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Elevação da lipase e amilase no doente crítico: estudo retrospectivo

Resumos

OBJETIVOS: A elevação da lipase e amilase séricas são frequentemente encontradas em doentes internados em unidade de terapia intensiva sem que exista doença pancreática prévia, constituindo um desafio diagnóstico e terapêutico. Baseados nesta evidência os autores propuseram-se a determinar a incidência de hiperlipasemia assintomática nos doentes críticos, fatores desencadeantes e evolução clínica destes doentes. MÉTODOS: Estudo retrospectivo dos doentes internados na unidade de terapia intensiva de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2006, excluídas internações por pancreatite aguda, história de patologia pancreática, insuficiência renal ou falta de dados. Pacientes foram distribuídos em dois grupos (com e sem hiperlipasemia) e feita comparação considerando diversas variáveis clínicas, laboratoriais, imagiológicas. Análise estatística: SPSS 13; testes t de Student e qui² (IC 95%), com significância estatística se p<0.05. RESULTADOS: Incluidos 102 doentes, a hiperlipasemia esteve presente em 39.2% deles. Lipase média de 797U/L. Os doentes com hiperlipasemia tiveram mais dias de internação (p<0.001), nutrição parenteral (p<0.001), ventilação mecânica (p=0.04), temperatura >38 ºC (p<0.001), hiperamilasemia (p<0.05), hiperbilirrubinemia (p=0.003) e elevação das transaminases (p=0.001), sem diferença significativa em diagnósticos, sexo, idade, APACHE II, SOFA, SAPS, mortalidade, hipotensão, fosfatase alcalina, hemoglobina, lactato, tolerância à nutrição enteral e utilização de propofol. O estudo radiológico revelou alterações morfológicas do pâncreas em dois doentes com hiperlipasemia. CONCLUSÕES: A elevação da lipase sérica foi frequente, relacionou-se com internação prolongada, mas não se acompanhou de aumento dos índices de gravidade clínica ou mortalidade. Foi mais frequente nos doentes submetidos a nutrição parenteral. Uma minoria preencheu os critérios de pancreatite aguda.

Pancreatite; Lipase; Amilases; Unidades de terapia intensiva


OBJECTIVES: Elevated lipase and amylase are commonly found in patients in intensive care unit without a previously recognized pancreatic illness, constituting a diagnostic and therapeutic challenge. The authors therefore proposed to determine the frequency of asymptomatic high serum lipase in critically ill patients, involved risk factors and outcome. METHODS: Retrospective study of patients admitted in an intensive care unit from January 1 to December 31, 2006, excluding admissions for acute pancreatitis, history of pancreatic disease, renal insufficiency or lacking of data. Patients were divided in two groups (with and without high serum lipase) that were compared for clinical, laboratory and radiological variables. Statistical analysis: SPSS 13; Student's t test and Chi-square test (CI 95%) with statistical significance if p< 0.05). RESULTS: 102 patients were included with high serum lipase was present in 39.2% of patients, mean lipase of 797U/L. Patients with high serum lipase had longer hospital stay (p< 0.001), parenteral nutrition (p< 0.001), ventilator support (p=0.04), fever (p< 0.001), hyperamylasemia (p<0.05), hyperbilirrubinemia (p=0.003) and rise of transaminases (p=0.001), with no significant differences in diagnosis, gender, age, APACHE II, SOFA, SAPS, mortality, hypotension, alkaline phosphatase, hemoglobin, lactate, tolerance to enteral nutrition and use of propofol. Imaging study revealed pancreatic alterations in two patients with high serum lipase. CONCLUSIONS: Elevated lipase was commonly found in critical patients, it related with longer length of stay but was not accompanied by increased clinical severity or mortality. It was more frequent with parenteral nutrition. A minority of patients met the criteria of acute pancreatitis.

Pancreatitis; Lipase; Amylases; Intensive care units


ARTIGO ORIGINAL

Elevação da lipase e amilase no doente crítico. Estudo retrospectivo

Margarida FerreiraI; Regina CoelhoII; José LuzioII; Paula CoutinhoII

IAcadêmica do Internato Complementar de Gastrenterologia-Serviço de Gastrenterologia Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal

IIEspecialista em Medicina Intensiva, Serviço de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal

Autor para correspondência Autor para correspondência: Margarida Ferreira Serviço de Gastrenterologia Centro Hospitalar de Coimbra EPE Quinta dos Vales, São Martinho do Bispo, Coimbra, Portugal Tel: 936488695 E-mail: magaidaferreira@gmail.com

RESUMO

OBJETIVOS: A elevação da lipase e amilase séricas são frequentemente encontradas em doentes internados em unidade de terapia intensiva sem que exista doença pancreática prévia, constituindo um desafio diagnóstico e terapêutico. Baseados nesta evidência os autores propuseram-se a determinar a incidência de hiperlipasemia assintomática nos doentes críticos, fatores desencadeantes e evolução clínica destes doentes.

MÉTODOS: Estudo retrospectivo dos doentes internados na unidade de terapia intensiva de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2006, excluídas internações por pancreatite aguda, história de patologia pancreática, insuficiência renal ou falta de dados. Pacientes foram distribuídos em dois grupos (com e sem hiperlipasemia) e feita comparação considerando diversas variáveis clínicas, laboratoriais, imagiológicas. Análise estatística: SPSS 13; testes t de Student e qui2 (IC 95%), com significância estatística se p<0.05.

RESULTADOS: Incluidos 102 doentes, a hiperlipasemia esteve presente em 39.2% deles. Lipase média de 797U/L. Os doentes com hiperlipasemia tiveram mais dias de internação (p<0.001), nutrição parenteral (p<0.001), ventilação mecânica (p=0.04), temperatura >38 ºC (p<0.001), hiperamilasemia (p<0.05), hiperbilirrubinemia (p=0.003) e elevação das transaminases (p=0.001), sem diferença significativa em diagnósticos, sexo, idade, APACHE II, SOFA, SAPS, mortalidade, hipotensão, fosfatase alcalina, hemoglobina, lactato, tolerância à nutrição enteral e utilização de propofol. O estudo radiológico revelou alterações morfológicas do pâncreas em dois doentes com hiperlipasemia.

CONCLUSÕES: A elevação da lipase sérica foi frequente, relacionou-se com internação prolongada, mas não se acompanhou de aumento dos índices de gravidade clínica ou mortalidade. Foi mais frequente nos doentes submetidos a nutrição parenteral. Uma minoria preencheu os critérios de pancreatite aguda.

Descritores: Pancreatite; Lipase; Amilases; Unidades de terapia intensiva

INTRODUÇÃO

A amilase e a lipase séricas são largamente utilizadas como marcadores de inflamação pancreática, contudo a sua elevação nem sempre prediz a presença de doença pancreática.(1) Podem estar elevadas em algumas situações que mimetizam a pancreatite aguda (Quadro 1), nomeadamente outras doenças intra-abdomiais como doenças do trato biliar, processos de oclusão ou isquemia intestinal, apendicite aguda, entre outros.(1,2) A especificidade das enzimas está também reduzida na insuficiência renal, doença hepática, abuso de álcool e várias doenças extraabdominais. Por exemplo, em doentes com insuficiência renal sem dor abdominal, encontra-se hiperlipasemia em 80%. Estas elevações começam a ser evidentes com clearance da creatinina inferior a <50 ml/min. Esta falta de especificidade implica que estas duas enzimas, embora podendo suportar o diagnóstico de pancreatite aguda, não asseguram o diagnóstico definitivo.(3) O diagnóstico de pancreatite, a avaliação da gravidade do quadro e o uso de exames complementares imagiológicos assenta em critérios e diretrizes cientificamente estabelecidas.Segundo as diretrizes de 2006 do American College of Gastroenterology (ACG), o diagnóstico de pancreatite aguda requer a presença de pelo menos duas das seguintes características: 1) dor abdominal típica, 2) amilase e/ou lipase superiores a três vezes o normal e 3) achados característicos nos exames de imagem (ultrasonografia, tomografia abdominal computorizada (TAC), ressonância magnética).(4)


A elevação destas enzimas verifica-se com frequência nos doentes críticos internados em unidades de terapia intensiva sem que haja evidência cínica de pancreatite aguda e/ou outra patologia pancreática. Esta elevação pode refletir uma produção pancreática ou extrapancreática.(3,5,6,7) Estão descritos alguns fatores que podem condicionar alterações inflamatórias a nível pancreático no doente crítico, tais como: 1) isquemia por hipoperfusão, que ocorre por exemplo no choque circulatório, grandes cirurgias (bypass cardiopulmonar ou aneurismas toracoabdominais); 2) fármacos, como por exemplo alguns antibióticos, fármacos com ação cardiovascular, propofol; 3) alterações metabólicas como hipertrigliceridemia e hipercalcemia provocada ocasionalmente por administração endovenosa de cálcio; 5) lama biliar, situação que é frequente nos doentes acamados e naqueles submetidos a nutrição parenteral.(3,6,8,9) A elevação das enzimas é observada, por exemplo, em doentes com traumatismo, tumores ou hemorragias intracranianos, doentes com traumatismos abdominais e doentes submetidos a cirurgia cardíaca.(2,10) Episódios recorrentes de pancreatite aguda podem ocorrer, ocasionalmente, vários meses ou anos após um acidente, principalmente por lesão do Wirsung a nível do corpo.(10,11) A hiperamilasemia no contexto de cirurgia cardíaca deve-se fundamentalmente à diminuição da excreção urinária e não propriamente a lesão pancreática assim como tem sido dada cada vez mais relevância à administração endovenosa de cálcio.(3) Liu et al. verificaram que 15% de um grupo de doentes admitidos por trauma, infecção, tumor ou outras lesões intracranianas apresentavam elevação da amilase e lipase, sem nenhuma evidência clínica ou radiológica de pancreatite, não recomendando a monitorização por rotina das enzimas nestes doentes.(5) Noutro estudo prospectivo com 130 doentes críticos, Denz et al., verificaram que a presença de hiperlipasemia foi comum, contudo não se acompanhou, na maioria dos casos, de alterações radiológicas do pâncreas ou de relevância clínica.(7)

Em suma, a elevação das enzimas pancreáticas em doentes críticos constitui um desafio, existindo poucos estudos que esclareçam o seu significado clínico, permanecendo dúvidas quanto à orientação diagnóstica e terapêutica: necessidade de realizar mais exames complementares nomeadamente radiológicos, alterar terapêuticas ou fórmulas de alimentação, etc.

Com base nesta problemática, os autores propuseram-se a efectuar um estudo cujo principal objectivo foi determinar a frequência de hiperlipasemia nos doentes críticos internados numa unidade de terapia intensiva, e possíveis fatores associados com esta elevação, assim como avaliação da gravidade e evolução clínica dos doentes. Foram escolhidos os níveis de lipase por serem mais específicos e ligeiramente mais sensíveis que os valores da amilase no diagnóstico de pancreatite aguda. (2)

MÉTODOS

Realizada uma análise retrospectiva de 189 processos clínicos referentes a internações consecutivas na unidade de terapia intensiva de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2006, após devida autorização do Comite de Ética. Foram recrutados para o estudo um total de 102 doentes. Foram incluídas internações do foro clínico, cirúrgico e neurocirúrgico, tendo sido excluídas internações por pancreatite aguda, doentes com antecedentes de patologia pancreática benigna ou maligna, doentes com creatinina sérica>2mg/dl ou internações com falta de dados clínicos. Excluídos pacientes com <18 anos e internações com menos de 72 horas.

Foram recolhidos do processo clínico as seguintes informações: 1) níveis séricos de amilase e lipase: registados os valores até à normalização e calculado o número de dias de elevação da lipase; considerados valores alterados quando lipase>300 UI/L e amilase>115U/L; 2) dados demográficos e clínicos: idade, sexo, dias de internamento, mortalidade, tolerância da alimentação, febre (temperatura axilar>38ºC), hipotensão arterial (pressáo sistólica<90mmhg), hábitos etílicos ou patologia hepática conhecida; 3) outros dados laboratoriais e imagiológicos: transaminase glutamil oxalacética (TGO) (>2 vezes o valor normal), transaminase glutamil pirúvica (TGP) (>2 vezes o valor normal), fosfatase alcalina (FA) (>2 vezes o valor normal), hiperbilirrubinemia >2mg/dl, anemia (hemoglobina<8g/dl), hiperglicemia >300mg/dl, lactato elevado >2,5mEq/L, bacteremia, alterações pancreáticas sugestivas de pancreatite na ecografia abdominal (aumento volume pâncreas, diminuição da ecogenicidade, presença de coleções peripancreáticas ou retroperitoneais) e tomografia abdominal computorizada (edema localizado ou difuso, irregularidade de contornos, apagamento gordura, áreas heterogêneas com alteração da densidade do parênquima, coleções líquidas peripancreáticas ou retroperitoneais); 4) Índices de gravidade: Acute Physiological and Chronic Heatlh Evaluation (APACHE) II, Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), Simplified Acute Phisiology Score (SAPS) II; 5) terapêutica e nutrição: necessidade de ventilação mecânica, tipo de alimentação (enteral e parenteral) e tolerância, terapêutica com propofol a 2%. A tolerância à alimentação enteral foi avaliada pela presença de estase gástrica.

Os doentes foram subdivididos em 2 grupos: 1) lipase normal; 2) lipase elevada. Foi feita comparação entre os dois grupos nas variáveis estudadas, considerando-se a lipase a variável dependente. Os valores de amilase e lipase foram dosados em todos os doentes admitidos na unidade de terapia intensiva no período considerado. Posteriormente, com o objetivo de identificar as variáveis que diferenciam os doentes que não desenvolveram hiperlipasemia dos que a desenvolveram, procedemos a uma análise discriminante utilizando o método stepwise.

Para o tratamento estatístico dos dados do estudo foi utilizado o programa SPSS (Statistical Package for the Social Science), na versão 16.0 de 2007. Foram calculadas medidas descritivas (frequências absolutas e percentuais, médias, mediana e desvios padrão e amplitude semi-interquartílica) e medidas inferenciais (teste t de Student para diferença de médias, teste de Mann-Whitney, teste Qui-quadrado, coeficiente Odds Ratio e respectivo intervalo de confiança a 95% e análise descriminante). Considerado estatisticamente significativo valores de p>0.05.

RESULTADOS

Dos 102 doentes envolvidos no estudo, verificou-se que 39,2% desenvolveram hiperlipasemia, estando esta elevada, em média, 6,15 dias (mínimo (min)=1, máximo (max)= 30 dias). Destes doentes, 37,5% (n=15) apresentavam valores de lipase superiores a 3 vezes o normal. A média da lipase sérica foi de 797 UI/ml (min -= 13; máx -4594). O valor máximo de lipase sérica (4594 UI/ml) registou-se num doente de 72 anos com falência respiratória no contexto de uma rickettsiose, não apresentando alterações radiológicas e verificando-se elevação da lipase durante 5 dias, com posterior normalização. A elevação da amilase sérica observou-se em 23,5% (n=24) doentes. Destes, 20,8% (n=5) não apresentavam hiperlipasemia, sendo a média de amilase neste grupo de 64,8 U/L (min=3; máx=345) e 79,1% (n=19) apresentavam concomitantemente hiperlipasemia sendo nestes a média de lipase 140,6 U/L (min=30; max=703). Verificou-se diferença estatisticamente significativa nestes dois grupos de doentes (p<0,05). Dos doentes com hiperamilasemia e hiperlipasemia concomitantes, 52,6% (n=10) apresentavam valores de lipase superiores a 3 vezes o normal, contudo a relação não apresentou significância estatística. Eram do sexo masculino 65,7% doentes (Tabela 1), verificando-se que a proporção de casos, com ou sem hiperlipasemia, foi semelhante em ambos os sexos. Os doentes que desenvolveram hiperlipasemia apresentaram uma média de idades mais baixa, mas a diferença para o grupo dos que não desenvolveu hiperlipasemia não foi estatisticamente significativa (p>0,05). Verificou-se tempo de internação significativamente superior (p<0,001) nos doentes com lipase elevada. Os diagnósticos encontram-se discriminados na tabela 2, não se tendo registrado diferenças com significado estatístico nos dois grupos (p=0,538). Verificou-se maior percentagem de doentes com história de hábitos etílicos e hepatopatia crónica no grupo com hiperlipasemia, contudo sem significância estatística na comparação dos dois grupos como se discrimina na tabela 2. O grupo de doentes com hiperlipasemia apresentou resultados mais elevados nos três índices de gravidade estudados (APACHE II, SOFA e SAPS) mas as diferenças para o grupo de doentes que não desenvolveu hiperlipasemia não foram estatisticamente significativas.

Em termos de mortalidade, também não se verificou diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos.

No tocante às características clínicas e analíticas dos doentes (Tabela 3) verificamos que os que desenvolveram hiperlipasemia tiveram mais frequentemente sintomas, como hipotensão, hipertermia, elevação das transaminases e fosfatase alcalina, hiperbilirrubinemia, anemia, hiperglicemia e bacteremia. Em relação à elevação do lactato a proporção é mais elevada no grupo de doentes que não desenvolveu hiperlipasemia . Analisando a tabela 3 podemos constatar que as diferenças estatisticamente significativas ocorrem apenas nas proporções de casos de hipertermia, de elevação das transaminases e hiperbilirrubinemia.

Em relação ao tipo de alimentação efetuada (Tabela 4) os doentes submetidos a nutrição artificial (parenteral ou enteral) apresentaram mais frequentemente hiperlipasemia, verificando-se significância estatística relativamente à nutrição parenteral quando comparados os dois grupos. Não se verificou diferença na tolerância á alimentação enteral nos dois grupos.

Também se verificou maior proporção de doentes com hiperlipasemia que foram submetidos a ventilação mecânica e terapêutica com propofol a 2% (Tabela 4). Verificaram-se diferenças com relevância estatística entre grupos em relação à ventilação mecânica (p = 0.040). Realizaram estudo radiológico (ecografia abdominal ou TAC) 19 (30.6%) dos doentes sem hiperlipasemia, tendo sido encontrado um doente com heterogeneidade pancreática. Dos doentes com hiperlipasemia, 17 (42.5%) realizaram estudo radiológico tendo sido encontradas alterações radiológicas em dois: pseudoquisto pancreático em doente submetido a cirurgia de urgéncia (lipase máxima de 492UI/l) e presença de coleções peripancreáticas num doente politraumatizado (lipase máxima 1069 UI/L).

Por fim, na análise discriminante efetuada (Tabela 5) foram utilizadas como variáveis independentes aquelas com associação positiva com a hiperlipasemia, ou seja tempo de internação, febre, elevação de transaminases, nutrição parenteral e ventilação mecânica.

Esta análise revelou a existência de uma única função com poder discriminante altamente significativo sendo constituída pelas variáveis nutrição parenteral, tempo de internação e febre.

Atendendo a estes resultados podemos afirmar que estas são as variáveis que mais significativamente diferenciaram os doentes que desenvolveram hiperlipasemia dos doentes que não a desenvolveram, e os valores dos coeficientes permitem escrever a função discriminante do seguinte modo:

Hiperlipasemia = 1.639×nutrição parenteral + 1.175×tempo de internação + 0.694×febre - 2.700

De acordo com os coeficientes obtidos, os doentes com hiperlipasemia recebem mais frequentemente nutrição parenteral, tendem a apresentar tempo de internação mais elevados e desenvolver quadros febris.

De acordo com os resultados da tabela 6, em termos globais a função classificou corretamente 75 dos 102 doentes, o que corresponde a 73.5% de classificações corretas.

DISCUSSÃO

A elevação da lipase e amilase séricas constitui um problema comum na prática clínica de uma unidade de terapia intensiva, não sendo exclusiva da inflamação pancreática(12-15). Existem poucos estudos neste âmbito, por isso os autores propuseram-se a efetuar um estudo retrospectivo de uma série de doentes internados numa unidade de terapia intensiva polivalente com internações tanto do foro cirúrgico, neurocirúrgico ou clínico, e avaliar a sua incidência, fatores relacionados e gravidade clínica destes doentes. Nesta série encontramos esta alteração da lipase sérica num número significativo de doentes, acompanhando-se de elevação concomitante da amilase num menor número de doentes. Como seria de esperar, na maioria dos doentes a hiperamilasemia acompanhou-se de lipase elevada. Na maioria dos casos, esta elevação não atingiu níveis diagnósticos (62.5%), ou seja, superiores a 3 vezes o normal e associou-se a quadro de pancreatite, segundo as diretrizes da ACG, apenas em 4 doentes. Claro que realçamos o fato de se tratarem de doentes na maioria dos casos entubados e sedados o que torna o diagnóstico clínico problemático. De fato, encontraram-se doentes com sintomatologia enquadrável na pancreatite aguda numa minoria de doentes. Os exames imagiológicos podem nestes doentes desempenhar um papel muito importante no estabelecimento do diagnóstico. A ultrasonografia abdominal, apesar de ser um exame inócuo, apresenta limitações no estudo do pâncreas, nomeadamente baixa sensibilidade no diagnóstico de inflamação peripancreática, coleções fluidas ou necrose. A TAC abdominal é a técnica gold standard no diagnóstico de pancreatite aguda, permitindo confirmar o diagnóstico, excluir diagnósicos alternativos e determinar a gravidade e presença de complicações.(2) Apesar de mais sensível apresenta, contudo, mais riscos nomeadamente, e segundo alguns autores, agravamento da necrose pancreática por alterações na microcirculação provocada pelo contraste endovenoso.(2) No nosso estudo encontramos alterações morfológicas do pâncreas numa minoria de doentes com hiperlipasemia, e dos dois doentes apenas um apresentava elevação maior que três vezes o valor normal. Contudo, realçamos o fato de o estudo radiológico ter sido efetuado numa pequena percentagem de doentes e segundo critérios mal esclarecidos, limitações inerentes ao fato de ser um estudo retrospectivo. Como descrito anteriormente, em alguns estudos prospectivos realizados com TAC abdominal em grupos de doentes com características idênticas, a percentagem de alterações é pequena e com pouco importância clínica.(7,11,12)

Não registamos diferenças significativas na incidência de hiperlipasemia nos doentes do foro clínico ou cirúrgico. O doente com o valor de lipase mais elevado apresentava, como já referido, quadro de falência respiratória no contexto de rickettsiose. Este doente não apresentava elevação concomitante da amilase. Numa revisão da literatura encontram-se descritos poucos relatos de pancreatite aguda nas rickettsioses.(13) No nosso estudo, verificamos também que a hiperlipasemia não se acompanhou de maior gravidade clínica, avaliada pelos índices de prognóstico, ou de maior mortalidade. Apesar disso relacionou-se com internação mais prolongada e com presença de ventilação mecânica. A hiperlipasemia nos doentes ventilados poderá relacionada com fenómenos isquémicos na microcirculação pancreática e alterações do tónus vascular da circulação corporal, incluindo pressão craniana, provocadas por alterações dos gases sanguíneos e alterações de pressão induzidas pela ventilação.(14,16-18)

Nos doentes que fizeram alimentação parenteral encontramos mais frequentemente elevação das enzimas pancreáticas, dados corroborados pela literatura, o que poderá estar relacionado, por exemplo, com elevação dos triglicerideos séricos ou formação de lama biliar(19,20). Não verificamos o mesmo em relação à alimentação enteral que mesmo nos doentes com lipase elevada foi bem tolerada, ou seja, não se verificou maior estase gástrica ou ileo paralítico que impossibilitasse esta forma de alimentação. Deve-se citar o fato de esta forma de alimentação ser administrada por sonda naso-gastrica em todos os doentes. Não verificamos maior frequência de hiperlipasemia na utilização de propofol o que poderá estar relacionado com o fato deste fármaco na formulação utilizada (a 2%) apresentar um menor teor lipídico relativamente à formulação a 1%.(8,9,21-23)

A elevação da lipase sérica acompanhou-se também de elevação das transaminases e bilirrubina o que poderá estar em relação com fenômenos de colestase, nomeadamente maior frequência de lama biliar nestes doentes.

Na análise multivariada efetuada observamos que os fatores que mais frequentemente diferenciaram os doentes com hiperlipasemia foram o elevado tempo de internação, a presença de nutrição parenteral e a febre. Estas variáveis colocam-nos em alerta para a existência de hiperlipasemia, caso estejam presentes, e possivelmente poderão ajudar-nos a selecionar os doentes em que realmente será importante fazer a dosagem das enzimas.

CONCLUSÃO

Em suma, os resultados globais deste estudo retrospectivo eram os esperados e os encontrados na maioria das referência bibliográficas. Embora o número da amostra não nos permita tirar conclusões com peso estatístico, este estudo alertou-nos para a elevada frequência de hiperlipasemia nos doentes críticos, que na maioria dos casos não acrescentou gravidade clínica ou maior mortalidade, apesar de se relacionar com internação mais prolongada. Uma minoria de doentes preencheu os critérios de diagnóstico de pancreatite aguda. Estes resultados podem-nos indicar que estas elevações poderão constituir, na maioria dos casos, um epifenómeno de uma doença mais grave.

Outros estudos serão necessários para nos ajudarem a interpretar estas alterações e assim responder a questões frequentemente colocadas por quem lida diariamente com esta situação: necessidade de determinação destas enzimas por rotina ou só em casos com suspeita clínica mais evidente; níveis de valores que devem suscitar a nossa atenção e que devem implicar realização de estudos radiológicos; intervenção terapêutica, nomeadamente a alteração do tipo de alimentação ou suspensão de fármacos.

Submetido em 01 de Julho de 2008

Aceito em 10 de Novembro de 2008

Recebido do Serviço de Cuidados Intensivos, Departamento de Anestesiologia e Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar de Coimbra EPE, Portugal.

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  • Autor para correspondência:

    Margarida Ferreira
    Serviço de Gastrenterologia Centro Hospitalar de Coimbra EPE
    Quinta dos Vales, São Martinho do Bispo, Coimbra, Portugal
    Tel: 936488695
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Nov 2008
    • Recebido
      01 Jul 2008
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