Os médicos intensivistas diariamente encaram pacientes que sofrem de delirium, desordem que causa considerável desconforto a pacientes e familiares, e que prevê desfechos piores para esses pacientes, inclusive demência e morte. Com a utilização rotineira de ferramentas de triagem, o delirium é, hoje, identificado em pacientes que antigamente eram considerados estar sob o efeito de sedação, deprimidos ou simplesmente serem pacientes difíceis ou queixosos. Estudos em todo o mundo documentam a prevalência do delirium na unidade de terapia intensiva (UTI) com uma variação entre 30 e 80%.(11. Gusmao-Flores D, Salluh JI, Chalhub RA, Quarantini LC. The Confusion Assessment Method for the Intensive Care Unit (CAM-ICU) and Intensive Care Delirium Screening Checklist (ICDSC) for the diagnosis of delirium: a systematic review and meta-analysis of clinical studies. Crit Care. 2012;16(4):R115.) Estudos que utilizaram exames de tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética dos pacientes formularam a hipótese de uma conexão entre a duração do delirium e a atrofia cerebral.(22. Gunther ML, Morandi A, Krauskopf E, Pandharipande P, Girard TD, Jackson JC, Thompson J, Shintani AK, Geevarghese S, Miller RR 3rd, Canonico A, Merkle K, Cannistraci CJ, Rogers BP, Gatenby JC, Heckers S, Gore JC, Hopkins RO, Ely EW; VISIONS Investigation, VISualizing Icu SurvivOrs Neuroradiological Sequelae. The association between brain volumes, delirium duration, and cognitive outcomes in intensive care unit survivors: the VISIONS cohort magnetic resonance imaging study. Crit Care Med. 2012;40(7):2022-32.) Ao mesmo tempo em que a fisiopatologia do delirium ainda não é bem compreendida, há certas evidências que apoiam a hipótese de uma via final comum de um estado hiperdopaminérgico e hipocolinérgico persistente, talvez desencadeado pelo estresse oxidativo e associado à excitotoxicidade.(33. Trzepacz PT. Is there a final common neural pathway in delirium? Focus on acetylcholine and dopamine. Semin Clin Neuropsychiatry. 2000;5(2):132-48.)
Considerando conjuntamente o diagnóstico de uma síndrome que se sabe estar associada a dano, e uma base que considera um desequilíbrio em curso entre neurotransmissores, é inevitável que os médicos optem por uma intervenção antipsicótica com o objetivo de uma resolução rápida. Um treinamento educacional a respeito de atitudes com relação à farmacoterapia do delirium resultou em uma atitude geral mais positiva em relação a intervenções farmacológicas, especialmente em quadros hipoativos e profilaticamente em pacientes de alto risco.(44. Meagher DJ. Impact of an educational workshop upon attitudes towards pharmacotherapy for delirium. Int Psychogeriatr. 2010;22(6):938-46.)
As evidências até aqui disponíveis para apoiar o uso de antipsicóticos no delirium em terapia intensiva continuam pouco confiáveis, além da necessidade do controle dos sintomas de agitação. Como um editorial prévio salientou, se aceitarmos a premissa de que as nossas intervenções terapêuticas têm como alvo o estágio final de uma complexa síndrome multifatorial, é seguramente improvável que essas intervenções sejam eficazes. Esse editorial estava relacionado a um estudo que concluiu que a administração profilática em curto prazo de haloperidol endovenoso em baixa dose diminuiu, de forma significante, a incidência de delirium pós-operatório.(55. Caplan JP. Delirium, sigma-1 receptors, dopamine, and glutamate: how does haloperidol keep the genie in the bottle? Crit Care Med. 2012;40(3):982-3.) O Dr. Caplan, na verdade, chegou a especular se a atividade antagonista do haloperidol em relação ao receptor sigma-1 lhe conferiria efeitos neuroprotetores em condições de estresse oxidativo. Os receptores da proteína do retículo endoplasmático sigma-1 são locais singulares de ligação no cérebro que exercem um potente efeito em múltiplos sistemas de neurotransmissores: neuroesteroides, receptor de glutamato N-metil-D-aspartato (NMDA) e dopamina. Outras teorias podem incluir efeito poupador de sedativos, efeito imunomodulatório, ou simplesmente notar os resultados de estudos observacionais de coortes.
O primeiro uso publicado de um antipsicótico para tratar delirium em um
paciente gravemente enfermo foi uma descrição do uso de haloperidol, em
1977.(66. Moore DP. Rapid treatment of delirium in critically ill patients. Am
J Psychiatry. 1977;134(12):1431-2.) Os fármacos
antipsicóticos tradicionais agem principalmente pela interferência com a transmissão
dopaminérgica no cérebro, por meio do bloqueio dos receptores D2 da dopamina, o
que também pode resultar em efeitos colaterais no sistema extrapiramidal e
hiperprolactinemia. Contudo, eles podem também afetar receptores colinérgicos,
alfa-adrenérgicos, histaminérgicos e serotoninérgicos. Nos últimos 10 anos, os médicos têm
se referido a dois grupos diferentes de antipsicóticos: "típicos", que são os fármacos mais
antigos, com ação predominante na liberação da dopamina (clorpromazina, haloperidol,
primazida, trifluoperazina e sulpirida); e os "atípicos", que são os fármacos mais
recentes, que interferem nas vias serotoninérgicas (clozapina, olanzapina, quetiapina e
risperidona, entre outros), alguns deles com muito pouco antagonismo à dopamina. Recentes
grandes pesquisas clínicas independentes sugerem que os novos fármacos não são, na verdade,
diferentes, mas, em algumas situações, são mais fáceis de utilizar. As taxas de eficácia
dos antipsicóticos típicos e atípicos no tratamento dos sintomas do
delirium são similares, e doses ideais de baixa potência de um fármaco
convencional podem não induzir mais a efeitos colaterais extrapiramidais do que fármacos de
nova geração.(77. Yoon HJ, Park KM, Choi WJ, Choi SH, Park JY, Kim JJ, et al. Efficacy
and safety of haloperidol versus atypical antipsychotic medications in the treatment
of delirium. BMC Psychiatry. 2013;13:240.,88. Leucht S, Wahlbeck K, Hamann J, Kissling W. New generation
antipsychotics versus low-potency conventional antipsychotics: a systematic review
and meta-analysis. Lancet. 2003;361(9369):1581-9.) O haloperidol, como único antipsicótico
que pode ser administrado por via endovenosa, é o fármaco antipsicótico mais utilizado e
estudado no tratamento de delirium. Esse fármaco atinge picos de
concentração plasmática em um tempo relativamente curto (por via endovenosa: 5 a 15
minutos) e é útil por seus efeitos sedativos, mais do que por seu efeito
anti-delirium específico.(44. Meagher DJ. Impact of an educational workshop upon attitudes towards
pharmacotherapy for delirium. Int Psychogeriatr. 2010;22(6):938-46.) A posologia é amplamente variável entre os estudos, principalmente
dependendo da via de administração e da frequência.(99. Wang EH, Mabasa VH, Loh GW, Ensom MH. Haloperidol dosing strategies
in the treatment of delirium in the critically ill. Neurocrit Care.
2012;16(1):170-83.) Estudos mais recentes salientam o uso crescente de
olanzapina, risperidona e quetiapina como agentes neurolépticos atípicos no tratamento de
delirium. Na verdade, as recentes diretrizes do National
Institute for Health and Care Excellence (NICE), do Reino Unido, apoiam a
utilização de olanzapina para uso em curto prazo em pacientes com
desconforto,(1010. National Institute for Health and Care Excellence - NICE. Delirium:
Diagnosis, prevention and management. July 2010. Available in:
http://publications.nice.org.uk/delirium-cg103
http://publications.nice.org.uk/delirium...
) mas a
experiência com administração de haloperidol na prática diária justifica a continuação de
seu uso no controle sintomático em curto prazo.(1111. Meagher DJ, McLoughlin L, Leonard M, Hannon N, Dunne C, O'Regan N.
What do we really know about the treatment of delirium with antipsychotics? Ten key
issues for delirium pharmacotherapy. Am J Geriatr Psychiatry.
2013;21(12):1223-38.)
O estudo Hope-ICU, que foi um estudo clínico randomizado e controlado com placebo em pacientes gravemente enfermos, demonstrou que a administração rotineira de haloperidol não encurta a duração do delirium, conforme diagnosticado utilizando a ferramenta CAM-ICU. Demonstrou, porém, que o haloperidol reduz a agitação. Concluímos que, dependendo de mais estudos, o haloperidol deve ser reservado apenas para controle da agitação aguda.(1212. Page VJ, Ely EW, Gates S, Zhao XB, Alce T, Shintani A, et al. Effect of intravenous haloperidol on the duration of delirium and coma in critically ill patients (Hope-ICU): a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet Respir Med. 2013;1(7):515-23.) As diretrizes The Pain, Agitation, and Delirium practice guidelines, publicadas pelo American College of Critical Care Medicine (ACCCM), em 2013, concluíram:
-
I. não existe evidência publicada de que o tratamento com haloperidol reduza a duração do delirium em pacientes adultos de UTI (sem evidências);
-
II. antipsicóticos atípicos podem reduzir a duração do delirium em pacientes adultos de UTI (recomendação baixa/muito baixa).(1313. Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.)
Os médicos têm justificativa para usar antipsicóticos em caso de delirium em um paciente não agitado? Os resultados negativos do estudo Hope-ICU levam inevitavelmente a preocupações com relação à potência, embora não tenha havido qualquer sinal em qualquer direção, tanto favorável quanto desfavorável. Na ocasião, perguntou-se se os médicos estavam administrando antipsicóticos para tratar o desconforto do paciente ou o seu próprio.(1414. Skrobik Y. Can critical-care delirium be treated pharmacologically? Lancet Respir Med. 2013;1(7):498-9.) Uma razão para que os médicos busquem a quetiapina quando seus pacientes deixam de ter melhoras clínicas após diversos dias de delirium é que desejam dar todas as chances para que o desfecho do paciente seja o melhor possível, fazendo algo ativo para aliviar o sofrimento.
Três estudos clínicos do uso profilático e terapêutico do haloperidol estão atualmente recrutando participantes nos Estados Unidos. Quiçá seus resultados finalmente respondam à questão de forma satisfatória para os médicos: o haloperidol trata delirium? Se os antipsicóticos não atuam no tratamento do delirium, quais são as alternativas? Enquanto aguardamos para estabelecer o lugar dos antipsicóticos na terapia de pacientes graves, precisamos continuar olhando além dos antipsicóticos e explorar como e por que sedamos os pacientes da forma como fazemos, como medicamos pacientes com fármacos deliriogênicos, além de atuar para "mobilizá-los ativamente" 7 dias por semana. A pesquisa em delirium já estabeleceu que fármacos anticolinesterásicos têm probabilidade de ser perigosos no cuidado da população de pacientes graves,(1515. van Eijk MM, Roes KC, Honing ML, Kuiper MA, Karakus A, van der Jagt M, et al. Effect of rivastigmine as an adjunct to usual care with haloperidol on duration of delirium and mortality in critically ill patients: a multicentre, double-blind, placebo-controlled randomised trial. Lancet. 2010;376(9755):1829-37.) porém intervenções anti-inflamatórias são outra opção, havendo um estudo em andamento para determinar se a sinvastatina diminui o delirium em pacientes mecanicamente ventilados.(1616. Page VJ, Davis D, Zhao XB, Norton S, Casarin A, Brown T, et al. Statin use and risk of delirium in the critically ill. Am J Respir Crit Care Med. 2014;189(6):666-73.) Enquanto houver médicos comprometidos em encontrar soluções para esse complexo problema, a resposta não se detém nos antipsicóticos.
REFERÊNCIAS
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1Gusmao-Flores D, Salluh JI, Chalhub RA, Quarantini LC. The Confusion Assessment Method for the Intensive Care Unit (CAM-ICU) and Intensive Care Delirium Screening Checklist (ICDSC) for the diagnosis of delirium: a systematic review and meta-analysis of clinical studies. Crit Care. 2012;16(4):R115.
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2Gunther ML, Morandi A, Krauskopf E, Pandharipande P, Girard TD, Jackson JC, Thompson J, Shintani AK, Geevarghese S, Miller RR 3rd, Canonico A, Merkle K, Cannistraci CJ, Rogers BP, Gatenby JC, Heckers S, Gore JC, Hopkins RO, Ely EW; VISIONS Investigation, VISualizing Icu SurvivOrs Neuroradiological Sequelae. The association between brain volumes, delirium duration, and cognitive outcomes in intensive care unit survivors: the VISIONS cohort magnetic resonance imaging study. Crit Care Med. 2012;40(7):2022-32.
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3Trzepacz PT. Is there a final common neural pathway in delirium? Focus on acetylcholine and dopamine. Semin Clin Neuropsychiatry. 2000;5(2):132-48.
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4Meagher DJ. Impact of an educational workshop upon attitudes towards pharmacotherapy for delirium. Int Psychogeriatr. 2010;22(6):938-46.
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5Caplan JP. Delirium, sigma-1 receptors, dopamine, and glutamate: how does haloperidol keep the genie in the bottle? Crit Care Med. 2012;40(3):982-3.
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6Moore DP. Rapid treatment of delirium in critically ill patients. Am J Psychiatry. 1977;134(12):1431-2.
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7Yoon HJ, Park KM, Choi WJ, Choi SH, Park JY, Kim JJ, et al. Efficacy and safety of haloperidol versus atypical antipsychotic medications in the treatment of delirium. BMC Psychiatry. 2013;13:240.
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8Leucht S, Wahlbeck K, Hamann J, Kissling W. New generation antipsychotics versus low-potency conventional antipsychotics: a systematic review and meta-analysis. Lancet. 2003;361(9369):1581-9.
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9Wang EH, Mabasa VH, Loh GW, Ensom MH. Haloperidol dosing strategies in the treatment of delirium in the critically ill. Neurocrit Care. 2012;16(1):170-83.
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10National Institute for Health and Care Excellence - NICE. Delirium: Diagnosis, prevention and management. July 2010. Available in: http://publications.nice.org.uk/delirium-cg103
» http://publications.nice.org.uk/delirium-cg103 -
11Meagher DJ, McLoughlin L, Leonard M, Hannon N, Dunne C, O'Regan N. What do we really know about the treatment of delirium with antipsychotics? Ten key issues for delirium pharmacotherapy. Am J Geriatr Psychiatry. 2013;21(12):1223-38.
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12Page VJ, Ely EW, Gates S, Zhao XB, Alce T, Shintani A, et al. Effect of intravenous haloperidol on the duration of delirium and coma in critically ill patients (Hope-ICU): a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet Respir Med. 2013;1(7):515-23.
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13Barr J, Fraser GL, Puntillo K, Ely EW, Gélinas C, Dasta JF, Davidson JE, Devlin JW, Kress JP, Joffe AM, Coursin DB, Herr DL, Tung A, Robinson BR, Fontaine DK, Ramsay MA, Riker RR, Sessler CN, Pun B, Skrobik Y, Jaeschke R; American College of Critical Care Medicine. Clinical practice guidelines for the management of pain, agitation, and delirium in adult patients in the intensive care unit. Crit Care Med. 2013;41(1):263-306.
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14Skrobik Y. Can critical-care delirium be treated pharmacologically? Lancet Respir Med. 2013;1(7):498-9.
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15van Eijk MM, Roes KC, Honing ML, Kuiper MA, Karakus A, van der Jagt M, et al. Effect of rivastigmine as an adjunct to usual care with haloperidol on duration of delirium and mortality in critically ill patients: a multicentre, double-blind, placebo-controlled randomised trial. Lancet. 2010;376(9755):1829-37.
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16Page VJ, Davis D, Zhao XB, Norton S, Casarin A, Brown T, et al. Statin use and risk of delirium in the critically ill. Am J Respir Crit Care Med. 2014;189(6):666-73.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2014
Histórico
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Recebido
27 Mar 2014 -
Aceito
06 Abr 2014