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Disfunção neurológica associada à COVID-19

RESUMO

A COVID-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde no dia 11 de março de 2020. O quadro clínico apresenta predominantemente sintomatologia respiratória, no entanto, na literatura atual, têm sido descritas diversas manifestações neurológicas associadas à infeção por SARS-CoV-2. Os autores apresentam o caso clínico de um homem de 45 anos internado por pneumonia com resultado positivo para SARS-CoV-2, sem antecedentes neurológicos, que, ao décimo sexto dia de internamento, apresentou alteração súbita do estado de consciência acompanhada de desvio conjugado do olhar para a direita e mioclonias da face e da região torácica à esquerda, seguidas de crise convulsiva tônico-clônica generalizada, associadas à hemiparesia esquerda persistente. Do estudo realizado salienta-se a existência de RT-PCR para SARS-CoV-2 no líquido cefalorraquidiano positiva. O doente apresentou evolução clínica com melhoria gradual, tendo o desfecho sido favorável.

Descritores:
SARS-CoV-2; COVID-19; Infecções por coronavírus; Manifestações neurológicas; Encefalite; Líquido cefalorraquidiano; Meningoencefalite

ABSTRACT

COVID-19 was declared a pandemic by the World Health Organization on March 11, 2020. The clinical presentation is predominantly respiratory symptoms; however, in the current literature, several neurological manifestations associated with SARS-CoV-2 infection have been described. The authors present the clinical case of a 45-year-old man hospitalized for pneumonia with a positive test result for SARS-CoV-2, without a neurological history, who, on the sixteenth day of hospitalization, presented a sudden change in his state of consciousness accompanied by conjugated right gaze deviation and myoclonus of the face and thoracic region to the left, followed by generalized tonic-clonic seizures associated with persistent left hemiparesis. The present study highlights a positive RT-PCR test for SARS-CoV-2 in cerebrospinal fluid. The patient progressed with gradual improvement, and the outcome was favorable.

Keywords:
SARS-CoV-2; COVID-19; Coronavirus infections; Neurological manifestations; Encephalitis; Cerebrospinal fluid; Meningoencephalitis

INTRODUÇÃO

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) atingia o nível de pandemia.(11 Ahmad I, Rathore FA. Neurological manifestations and complications of COVID-19: a literature review. J Clin Neurosci. 2020;77:8-12.) A doença provocada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) manifesta-se comumente como doença respiratória, no entanto, as manifestações neurológicas têm sido crescentemente descritas.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.)

Existem atualmente três potenciais mecanismos explicativos do atingimento do sistema nervoso central (SNC) pelo SARS-CoV-2: a disseminação transsináptica do vírus, a disseminação através da barreira hematoencefálica e a lesão imunomediada.

No primeiro caso, o SARS-CoV-2 infecta o epitélio olfactivo, migrando via nervo olfativo, que atravessa a lâmina cribiforme e atinge o bulbo olfativo no SNC.(11 Ahmad I, Rathore FA. Neurological manifestations and complications of COVID-19: a literature review. J Clin Neurosci. 2020;77:8-12.

2 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.

3 Ahmed MU, Hanif M, Ali MJ, Haider MA, Kherani D, Memon GM, et al. Neurological manifestations of COVID-19 (SARS-CoV-2): a review. Front Neurol. 2020;11:518.

4 Zhou Z, Kang H, Li S, Zhao X. Understanding the neurotropic characteristics of SARS-CoV-2: from neurological manifestations of COVID-19 to potential neurotropic mechanisms. J Neurol. 2020;267(8):2179-84.
-55 Kamal YM, Abdelmajid Y, Al Madani AA. Cerebrospinal fluid confirmed COVID-19-associated encephalitis treated successfully. BMJ Case Rep. 2020;13(9):e237378.) Alguns estudos têm mostrado que, nessa hipótese, o vírus pode apresentar disseminação retrógrada, por meio da transferência transsináptica, com recurso a processos de endocitose e exocitose de vesículas contendo o vírus, com posterior transporte axonal até os corpos das células neuronais.(66 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurological manifestations of the coronavirus in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.) Um segundo mecanismo neurofisiopatológico consiste na disseminação através da barreira hematoencefálica, que pode ocorrer de dois modos: por infecção das células do endotélio vascular, que expressam receptores da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2), sendo o vírus transportado através do endotélio para as células do SNC, nomeadamente neurônios e células da glia (que expressam receptores para a ECA2), ou, alternativamente, por infeção dos leucócitos (portadores de receptores para a ECA2) com capacidade para atravessar a barreira hematoencefálica e infetar secundariamente o SNC.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.

3 Ahmed MU, Hanif M, Ali MJ, Haider MA, Kherani D, Memon GM, et al. Neurological manifestations of COVID-19 (SARS-CoV-2): a review. Front Neurol. 2020;11:518.

4 Zhou Z, Kang H, Li S, Zhao X. Understanding the neurotropic characteristics of SARS-CoV-2: from neurological manifestations of COVID-19 to potential neurotropic mechanisms. J Neurol. 2020;267(8):2179-84.

5 Kamal YM, Abdelmajid Y, Al Madani AA. Cerebrospinal fluid confirmed COVID-19-associated encephalitis treated successfully. BMJ Case Rep. 2020;13(9):e237378.

6 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurological manifestations of the coronavirus in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.
-77 Chen X, Laurent S, Onur OA, Kleineberg NN, Fink GR, Schweitzer F, et al. A systematic review of neurological symptoms and complications of COVID-19. J Neurol. 2021;268(2):392-402.) A lesão imunomediada do SNC parece ser secundária à ativação da imunidade inata e adquirida com libertação de citocinas (entre as quais a interleucina 6 - IL-6), quimiocinas, monócitos e macrófagos, com consequente lesão celular neurológica.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.,33 Ahmed MU, Hanif M, Ali MJ, Haider MA, Kherani D, Memon GM, et al. Neurological manifestations of COVID-19 (SARS-CoV-2): a review. Front Neurol. 2020;11:518.)

O atingimento vascular pode ter também expressão clínica neurológica, por meio da doença cerebrovascular associada ao SARS-CoV-2. Esta pode ser explicada por dois mecanismos: infeção e disfunção das células endoteliais com libertação de fatores tecidulares ativadores da via trombótica (com consequente microangiopatia)(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.) e/ou pela ativação de uma via inflamatória responsável por fenômenos de vasculite ou desestabilização de placas ateroscleróticas preexistentes.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.)

No que concerne às manifestações neurológicas, foram já descritos casos de meningite, encefalite, mielite, vasculite do SNC, encefalomielite aguda disseminada, síndrome de Guillain-Barré e acidente vascular cerebral associados a infeção por SARS-CoV-2.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.,55 Kamal YM, Abdelmajid Y, Al Madani AA. Cerebrospinal fluid confirmed COVID-19-associated encephalitis treated successfully. BMJ Case Rep. 2020;13(9):e237378.,88 Paterson RW, Brown RL, Benjamin L, Nortley R, Wiethoff S, Bharucha T, et al. The emerging spectrum of COVID-19 neurology: clinical, radiological and laboratory findings. Brain. 2020;143(10):3104-20.)

O diagnóstico de encefalite pressupõe a existência de inflamação do cérebro, documentada ou não por pleiocitose do líquido cefalorraquidiano (LCR), por alterações compatíveis no estudo por imagem ou alterações características no eletroencefalograma. A detecção de SARS-CoV-2 per se não faz o diagnóstico de encefalite, caso não exista evidência de inflamação encefálica ou disfunção para a qual não se tenha melhor explicação.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.) Encontram-se descritos na literatura casos clínicos de COVID-19 que documentam manifestações neurológicas, como alteração do estado de consciência, convulsões, parestesias, entre outras, sem que coexista alteração nos exames de imagem.(99 Katal S, Balakrishnan S, Gholamrezanezhad A. Neuroimaging and neurologic findings in COVID-19 and other coronavirus infections: a systematic review in 116 patients. J Neuroradiol. 2021;48(1):43-50.) Na revisão da literatura, foram encontrados descritos oito casos de encefalite desde 19 de maio de 2020.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.)

O caso clínico descrito pelos autores pretende alertar para as manifestações neurológicas que podem ter como etiologia a infeção pelo SARS-CoV-2, com especial ênfase para a encefalite.

RELATO DO CASO

Homem de 45 anos, natural do Paquistão, residia em Portugal há 7 anos. Tinha história de obesidade grau 3, sem outros antecedentes pessoais conhecidos nem terapêutica farmacológica habitual.

Recorreu ao Serviço de Urgência por febre, tosse seca, dispneia, toracalgia, disgeusia, cefaleia e mialgias com 4 dias de evolução. No exame neurológico sumário da admissão, não apresentou outras alterações. Na avaliação do sistema respiratório, salientam-se taquipneia e auscultação pulmonar com murmúrio vesicular rude bilateralmente, sem outros ruídos adventícios. Restante do exame objetivo demonstrou-se sem alterações.

Dos exames complementares de diagnóstico realizados na admissão, destacaram-se discreta elevação dos parâmetros inflamatórios, gasometria arterial sob fração inspirada de oxigênio (FiO2) de 21% com insuficiência respiratória tipo 1 (Tabela 1) e telerradiografia de tórax com opacidades extensas de predomínio periférico e basal, bilaterais. Após resultado de transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase em tempo real (RT-PCR) para SARS-CoV-2 positivo no exsudado naso e orofaríngeo, com Influenza A e B, Streptococcus pneumoniae e Legionella pneumophila negativos, admitiu-se pneumonia por infecção com SARS-CoV-2.

Tabela 1
Exames complementares de diagnóstico realizados durante o internamento hospitalar

Ao longo das primeiras 48 horas, observou-se agravamento progressivo do cansaço, da dispneia e da insuficiência respiratória do tipo 1, com necessidade de incremento de oxigenoterapia suplementar. Por ausência de melhoria, foi instituída ventilação mecânica não invasiva, no entanto, por má adesão, foi iniciada oxigenoterapia de alto fluxo por cânula nasal, sem resposta à terapêutica.

Nesse contexto, o doente foi aceito no Serviço de Medicina Intensiva (SMI), nível III, onde foi submetido à sedoanalgesia e à entubação orotraqueal com conexão à ventilação mecânica invasiva.

No décimo primeiro dia de internamento, manteve a terapêutica já iniciada com remdesivir, dexametasona, enoxaparina e antibioterapia empírica com amoxicilina/ácido clavulânico e azitromicina, administrada por suspeita de sobreinfeção bacteriana. Nesse período, constata-se febre mantida, com fraca resposta à terapêutica antipirética, tendo-se observado melhoria dos parâmetros inflamatórios após o terceiro dia de internamento no SMI (Tabela 1).

Para exclusão de eventual etiologia infeciosa concomitante, foram trocados os dispositivos endovenosos, e foram realizadas hemoculturas, cultura da ponta do cateter central, secreções brônquicas, exame sumário de urina, urocultura e ecocardiograma transtorácico. Dos exames culturais realizados, foi isolada apenas Klebsiella pneumoniae na hemocultura, sensível à amoxicilina/ácido clavulânico, com a qual o doente já se encontrava medicado. O ecocardiograma sumário não revelou alterações valvulares sugestivas de endocardite, mas o doente apresentou hipocinesia da parede lateral e do ápex do ventrículo esquerdo, assim como má função biventricular. Confirmaram-se discreto aumento das troponinas (1,8ng/mL) e infradesnivelamento do segmento ST nas derivações I e aVL, sugerindo a existência de síndrome coronária aguda ou cardiomiopatia séptica.

Foram excluídas outras causas não infeciosas de quadro febril no doente crítico, nomeadamente terapêutica com neurolépticos ou alteração da função tireóidea.

Salienta-se o fato de ter existido necessidade de suporte inotrópico com dobutamina na fase de desmame ventilatório, bem como de suporte ventilatório não invasivo no período pós-extubação orotraqueal, que decorreu no décimo quinto dia de internamento.

Ao décimo sexto dia de internamento (décimo nono dia de doença), observaram-se episódio de alteração do estado de consciência, desvio conjugado do olhar para a direita e mioclonias da face e região torácica à esquerda seguidas de crise convulsiva tônico-clônica generalizada, que cessou após terapêutica com midazolam. Foi excluída a hipótese de o episódio de crise convulsiva ter ocorrido no contexto de evento hipóxico-isquêmico, uma vez que o doente se manteve normotenso, nunca se observou perievento ou hipoxemia, o lactato sérico era normal, e a diurese manteve-se preservada. Foram excluídos eventuais distúrbios iônicos ou glicêmicos que pudessem explicar o episódio convulsivo inaugural.

No período pós-crítico, constataram-se ausência de abertura ocular, ausência de resposta verbal, com localização da dor (escala de coma de Glasgow 7), e hemiparesia esquerda grau 3 em 5 persistentes. Por necessidade de proteção da via aérea, foi sedoanalgesiado e submetido à entubação orotraqueal, tendo iniciado terapêutica anticonvulsivante.

No decorrer da marcha diagnóstica do episódio convulsivo, foi submetido à punção lombar, após tomografia computorizada craniencefálica sem alterações, com saída de LCR turvo, ligeira proteinorráquia, mas sem pleiocitose e com pressão de abertura normal. No LCR, foi solicitada a pesquisa de vírus neurotrópicos, Venereal Disease Research Laboratory (VDRL), bactérias ácido-álcool resistentes, RT-PCR para SARS-CoV-2, assim como foi realizada colheita para exame cultural (Tabela 1). Foi realizado eletroencefalograma 1 hora após suspensão de propofol e sob fentanil, com registo único e duração total de 13 minutos, o qual não apresentou alterações (Tabela 1).

Após confirmação de RT-PCR para RNA de SARS-CoV-2 positiva no LCR, sem pleiocitose do LCR, excluiu-se a hipótese de meningite bacteriana, mas não viral, considerando-se a hipótese de encefalite. A ressonância magnética craniencefálica realizada ao décimo sétimo dia de internamento evidenciou múltiplos artefatos de imagem associados ao movimento, sugerindo-se repetição do exame.

Após suspensão da sedoanalgesia, observou-se alteração do estado de consciência com escala de coma de Glasgow 14, hemiparesia esquerda persistente com força muscular grau 4 em 5 e ausência de movimentos involuntários, permitindo extubação orotraqueal em segurança em 24 horas. Dada a evolução clínica favorável, excluiu-se a realização de biópsia cerebral. Ao vigésimo primeiro dia de internamento, o doente foi transferido para a enfermaria.

O doente manteve apirexia, sem alteração do estado de consciência. Não foram observados novos episódios de movimentos involuntários e, ao vigésimo sexto dia de internamento, foi submetido à ressonância magnética craniencefálica de reavaliação, que não revelou alterações com significado patológico. Como manteve evolução clínica favorável, o doente teve alta ao trigésimo primeiro dia de internamento sem fármacos antiepilépticos e com agendamento de consulta de Medicina Interna de reavaliação.

DISCUSSÃO

Várias manifestações neurológicas associadas à infeção por SARS-COV-2 têm sido recentemente reportadas na literatura médica. Estes trabalhos têm descrito o envolvimento do SNC, do sistema nervoso periférico (SNP) e do sistema músculo-esquelético. A manifestação neurológica mais frequente, de aparecimento precoce, é a cefaleia. No entanto, podem surgir outras formas mais estruturais e habitualmente mais tardias, como o acidente vascular cerebral, a encefalite, a meningite, a encefalomielite e a mielite aguda. O SNP pode ser acometido, destacando-se a anosmia/hiposmia e a ageusia/hipogeusia como sintomas clássicos mais frequentes e precoces, porém, casos descritos de síndrome de Guillain-Barré e paralisia de Bell têm sido publicados, apresentando tendencialmente um aparecimento mais tardio. Manifestações musculoesqueléticas como mialgias, habitualmente mais precoces, e rabdomiólise, num segundo tempo, também têm sido descritas.(22 Ellul MA, Benjamin L, Singh B, Lant S, Michael BD, Easton A, et al. Neurological associations of COVID-19. Lancet Neurol. 2020;19(9):767-83.,66 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurological manifestations of the coronavirus in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.,1010 Lahiri D, Ardila A. COVID-19 pandemic: a neurological perspective. Cureus. 2020;12(4):e7889.

11 Mao L, Jin H, Wang M, Hu Y, Chen S, He Q, et al. Neurologic manifestations of hospitalized patients with coronavirus disease 2019 in Wuhan, China. JAMA Neurol. 2020;77(6):683- 90.
-1212 Nepal G, Rehrig JH, Shrestha GS, Shing YK, Yadav JK, Ojha R, et al. Neurological manifestations of COVID-19: a systematic review. Crit Care. 2020;24(1):421.)

O estudo imagiológico pode demonstrar ou não alterações. A tomografia computorizada craniencefálica é sensível na identificação de lesões ocupando espaço ou hidrocefalia, enquanto a ressonância magnética craniencefálica tem especial importância na identificação de doenças da substância branca, designadamente esclerose múltipla, bem como epilepsias - particularmente do lobo temporal.

No caso clínico apresentado, é relevante tomar em consideração que, na admissão hospitalar, o doente referiu cefaleia, sem outras queixas sugestivas de atingimento do SNC. As restantes manifestações neurológicas surgiram apenas ao décimo sexto dia de internamento hospitalar, encontrando-se em conformidade com outros trabalhos já publicados.(66 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurological manifestations of the coronavirus in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.,1111 Mao L, Jin H, Wang M, Hu Y, Chen S, He Q, et al. Neurologic manifestations of hospitalized patients with coronavirus disease 2019 in Wuhan, China. JAMA Neurol. 2020;77(6):683- 90.,1212 Nepal G, Rehrig JH, Shrestha GS, Shing YK, Yadav JK, Ojha R, et al. Neurological manifestations of COVID-19: a systematic review. Crit Care. 2020;24(1):421.)

Um dado importante ao longo do internamento foi a manutenção de febre mesmo após melhoria analítica de parâmetros inflamatórios, que teve como possível fator de confundimento o isolamento em hemocultura de K. pneumoniae sensível à amoxicilina/ácido clavulânico, com a qual o doente já tinha sido medicado.

As duas ressonâncias magnéticas realizadas em internamento, principalmente a segunda, foram feitas tardiamente face ao início de sintomas, o que pode ter diminuído sua sensibilidade.

Considerando a cefaleia, a febre e a convulsão e tentando enquadrar a disfunção focal como uma paralisia de Todd, além da inexistência de achados patológicos na ressonância magnética craniencefálica e do resultado do citoquímico do LCR, a hipótese de meningite de etiologia viral seria a mais provável.

É, contudo, difícil excluir por completo a existência de um processo inflamatório fugaz. Apesar da inexistência de imagem que documente alterações sugestivas de encefalite, essa hipótese de diagnóstico deve ser admitida tomando em consideração a persistência de disfunção neurológica, nomeadamente a hemiparesia e a alteração ligeira do estado de consciência, no contexto do isolamento de SARS-CoV-2 no LCR, mesmo na ausência de pleiocitose do LCR, conforme descrito na literatura médica.(55 Kamal YM, Abdelmajid Y, Al Madani AA. Cerebrospinal fluid confirmed COVID-19-associated encephalitis treated successfully. BMJ Case Rep. 2020;13(9):e237378.)

Por definição, a paralisia de Todd não é aceita para explicar défices neurológicos pós críticos que se mantêm por um período superior a algumas horas e, no doente descrito no caso clínico, o quadro clínico persistiu durante 4 dias. A inexistência de achados imagiológicos vasculares, meníngeos ou parenquimatosos torna outras etiologias muito menos prováveis neste contexto.

Apesar de existirem casos clínicos descritos nos quais as manifestações neurológicas constituem a apresentação clínica inicial com um quadro de encefalite,(55 Kamal YM, Abdelmajid Y, Al Madani AA. Cerebrospinal fluid confirmed COVID-19-associated encephalitis treated successfully. BMJ Case Rep. 2020;13(9):e237378.) este caso clínico, como outros publicados,(66 Zubair AS, McAlpine LS, Gardin T, Farhadian S, Kuruvilla DE, Spudich S. Neuropathogenesis and neurological manifestations of the coronavirus in the age of coronavirus disease 2019: a review. JAMA Neurol. 2020;77(8):1018-27.,1111 Mao L, Jin H, Wang M, Hu Y, Chen S, He Q, et al. Neurologic manifestations of hospitalized patients with coronavirus disease 2019 in Wuhan, China. JAMA Neurol. 2020;77(6):683- 90.,1212 Nepal G, Rehrig JH, Shrestha GS, Shing YK, Yadav JK, Ojha R, et al. Neurological manifestations of COVID-19: a systematic review. Crit Care. 2020;24(1):421.) alerta-nos para a possibilidade de um doente com COVID-19 se apresentar com atingimento predominantemente respiratório, mas a expressão clínica de disfunção neurológica surgir num segundo tempo de evolução da doença - neste caso, 2 semanas. A sedoanalgesia, associada à ventilação mecânica, pode mascarar parte da expressão neurológica. O doente descrito referiu cefaleia inespecífica e manteve febre ao longo do internamento, tornando-se difícil datar com rigor o início do quadro neurológico.

Neste caso clínico, são vários os mecanismos que podem explicar o atingimento do SNC, incluindo a infeção direta pelo vírus, a disseminação hematogênica, ou até mesmo a existência de doença pós-infecciosa imunomediada, considerando que as manifestações neurológicas surgem predominantemente no período de cascata inflamatória, apesar da difícil documentação do início do quadro neurológico.(1313 Picod A, Dinkelacker V, Savatovsky J, Trouiller P, Guéguen A, Engrand N. SARS-CoV-2-associated encephalitis: arguments for a post-infectious mechanism. Crit Care. 2020;24(1):658.)

CONCLUSÃO

Neste caso clínico, o limite entre diagnóstico de encefalite versus meningoencefalite viral é tênue. No entanto, sua divulgação é relevante, porque nos alerta para as manifestações neurológicas que podem ter como etiologia a infeção pelo SARS-CoV-2, com especial ênfase para a encefalite, e para a possibilidade de um doente que apresente primariamente outra manifestação da doença poder desenvolver mais tardiamente um quadro neurológico.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2021
  • Aceito
    12 Mar 2021
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