Em sua tese de doutorado, Miriam Maria de Andrade teve por objetivo principal desenvolver uma análise do livro Essais sur l'enseignement em général, et sur celui des mathématiques em particulier, que em português se traduz como Ensaios sobre o Ensino em Geral e o de Matemática em particular, de Lacroix (1838)LACROIX, S. F. Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier. 4. ed. Paris: Bachelier, Impremeur-Libraire, 1838., tendo como referencial metodológico a Hermenêutica de Profundidade (HP), uma metodologia para a interpretação de formas simbólicas proposta por John B. Thompson (1995)THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. 1995.. A pesquisa surgiu, num primeiro momento, com o objetivo de elaborar uma análise de livros didáticos apoiada no Referencial Metodológico da Hermenêutica de Profundidade (HP), sem, contudo, ter escolhido o livro didático que adotaria para desenvolver o exercício de análise pretendido. A autora relata que diante das possibilidades, a referência escolhida foi uma obra não didática, com o título acima citado, francesa, cuja primeira edição é de 1805, sendo que tema é o ensino em geral e, particularmente, o ensino de Matemática. Tal opção alterou o objetivo inicial da pesquisa, por se tratar de uma obra não didática como previa seu objetivo anterior.
A tese é dividida numa introdução e seis capítulos. Na introdução, a autora apresenta o grupo de pesquisa do qual participa GHOEM – Grupo de História Oral e Educação Matemática – e faz referência a seus projetos. Ela vincula o seu trabalho na esfera de um dos projetos do grupo, pois trata de um estudo sobre um livro que compõe o acervo do grupo. Revela que o acervo do GHOEM possui um total de 25 livros de Lacroix e fala que as obras francesas contribuíram significativamente para a Matemática escolar no Brasil. Relata, ainda, que Lacroix foi educador, matemático e autor de diversos livros didáticos de sucesso na França, na Europa e nas Américas e que apesar de não ter se destacado no que diz respeito a novas descobertas matemáticas foi certamente, um dos autores mais influentes de livros de Matemática do período que vai do final do século XVIII a meados do século XIX. Lacroix viveu em um período revolucionário, com diversas mudanças nas estruturas sociais e politicas e também na educação, características que deixam esse estudo de Andrade ainda mais curioso e importante.
O primeiro capítulo é iniciado com uma reflexão acerca dos termos “formas” e “símbolos” buscando conceituar a expressão “formas simbólicas”, como “construções humanas intencionais”, explicando que uma obra de arte ou um poema podem ser considerados formas simbólicas, visto que ambas as “representações” possuem uma determinada e particular intenção, se inserem num determinado contexto social, foram construídas por um produtor que, ao construí-las, teve como objetivo transmitir uma mensagem para um sujeito ou conjunto de sujeitos receptores, que, por sua vez, apropriando-se de tal “mensagem”, pode atribuir a elas um determinado significado, ou vários, numa trama interpretativa. Para a autora, pode-se considerar o livro como forma simbólica, pois o livro é uma produção humana carregada de intenções, possui uma estrutura específica, responde a várias e determinadas convenções e refere-se ao seu objeto de forma contextualizada.
Segundo a autora, adotar a hermenêutica como proposta metodológica em pesquisas na área da Educação é uma prática usual, assim também como não é novidade a opção pelo trabalho com a Hermenêutica de Profundidade em áreas de pesquisa como a Sociologia e a Medicina. Apoiada em Cardoso (2011)CARDOSO, V. C. A cigarra e a formiga: a hermenêutica de profundidade como proposta de método de pesquisa em Educação Matemática. In: CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA. 13., 2011, Recife. Anais... Recife: [inserir a editora], 2011. p. 1 - 11, a autora afirma que, entretanto, quando nos referimos à Hermenêutica de Profundidade na Educação Matemática, se percebe um movimento bastante tímido e inicial, mas bastante interessante.
Sobre o Referencial Metodológico da Hermenêutica de Profundidade, a autora explica que Thompson (1995)THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. 1995. propõe o uso do referencial para analisar a ideologia de formas simbólicas nos meios de comunicação de massa e Oliveira (2008)OLIVEIRA, F. D. Análise de textos didáticos: três estudos. 2008. 224 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) –Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2008. apoia-se nessa ideia para propor o uso desse referencial como orientação metodológica para analisar textos didáticos, adaptando assim a metodologia de Thompson para um objeto específico de análise. Este referencial compõe-se de três fases, interligadas e concomitantes: a “Análise Sócio-histórica”, a “Análise Formal ou Discursiva” e a “Interpretação/Reinterpretação”.
A autora discute a possibilidade de usar a concepção de “Paratextos Editoriais”, apresentada por Genette (2009)GENETTE, G. Paratextos Editoriais. Tradução de Á. Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., como um apoio para a análise do livro de Lacroix e explica que os “Paratextos Editoriais” são, segundo Genette, “aquilo por meio de que um texto se torna um livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (p. 09). Assim, paratextos seriam tudo o que “cerca” o texto, como: o nome do autor, os títulos, e os subtítulos, a data da obra, os releases, as dedicatórias, as epígrafes, a instância prefacial, as notas de rodapé, listas de obras do mesmo autor, notas do autor, ilustrações, capas, anexos etc.
Relacionado à tradução, dado que o original está em francês e que seria necessário de alguma forma traduzi-lo, a autora fala de suas angústias e dificuldades com relação a esse processo, seu despreparo com relação ao idioma francês, as pessoas que colaboraram com ela no processo de tradução e explicita ter havido, para este seu projeto, duas traduções, feitas simultaneamente, mas separadamente: uma delas por três membros do grupo de pesquisa e a outra por uma profissional da área de tradução vinculada ao Departamento de Letras da UNESP de São José do Rio Preto. Com relação ao processo de traduzir, a autora faz um estudo no qual se apoia em Eco (2007)ECO, U. Quase a mesma coisa. Tradução de E. Aguiar; revisão técnica de R. Quental. Rio de Janeiro: Record, 2007. que colabora com a ideia de que o tradutor tem que buscar dizer “quase a mesma coisa” que o texto original. Ela faz uma discussão acerca das diferenças entre “traduzir” e “interpretar” e acerca de “erros” no processo de tradução.
No segundo capítulo da tese, Andrade fala sobre a Análise Formal ou Discursiva da obra em questão. Dentre as várias opções propostas por Thompson para conduzir esse processo – a análise semiótica, análise de conversação, análise sintática, análise narrativa e análise argumentativa – a autora opta por uma análise mais focada na argumentação, tendo a análise narrativa e sintática como secundárias, mas também afirma que mobilizou paratextos externos – que revelam informações relevantes para a constituição de uma interpretação do livro escolhido – para aprofundar a sua análise da obra. A análise discursiva é apresentada, na tese, em dois momentos, intercalados pela análise sócio-histórica. Cada um destes momentos compõe um capítulo da tese.
A autora faz uma análise dos elementos internos da obra, apresentando um trailer da mesma: com a ajuda dos Paratextos Editoriais de Genette (2009)GENETTE, G. Paratextos Editoriais. Tradução de Á. Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., analisa o nome do autor (que, no caso de Lacroix, funciona como um “sinônimo de confiabilidade”, visto que o mesmo era já famoso por escrever livros didáticos de Matemática); o formato do livro (in-8°, formato esse que classificava a obra como leitura séria na época, ao contrário do que ocorria com livros “menores”, como as edições de bolso); a capa das edições; o título (meio pelo qual o autor revela o que será possível encontrar no seu texto); o sumário (que apresenta a divisão das principais partes do texto e que, no caso desta obra, e como usualmente ocorre nos trabalhos antigos, é bem detalhado com relação ao que o leitor encontrará em cada umas dessas partes); as dedicatórias e as epígrafes (inexistentes nessa obra); o prefácio (que não é oficialmente denominado prefácio, mas que se apresenta em um texto chamado “Objetivo da Obra” logo após a apresentação do sumário, e pode ser considerado como sendo seu prefácio devido à característica explicativa dos objetivos pelos quais o autor foi levado a escrever essa obra); e as notas presentes na obra durante todas as suas edições (uma ferramenta muito utilizada por Lacroix e que, segundo a autora, podem ser categorizadas em quatro tipos diferentes - “Indicação de Leituras Complementares”, “Considerações Complementares”, “Considerações Complementares e Indicação de Leitura” e “Justificativas ou opiniões do Autor”).
Seguindo para o terceiro capítulo da tese, a autora apresenta os resultados de sua Análise Sócio-histórica, resultados estes que revelam que a França, antes da Revolução Francesa, monárquica, socialmente desigual e católica, passava por uma grande crise financeira.
Em se tratando da Educação Francesa a autora situa o leitor nas discussões, ideias e acontecimentos a respeito da instrução desde o Iluminismo até a Revolução e da Revolução até o século XIX. Em seu relato, resumidamente, afirma que a educação dos franceses, no Antigo Regime se resumia a duas frentes: a educação primária, a escola do povo, e a educação secundária, que atendia uma pequena minoria composta pela nobreza e pela elite burguesa. Descreve os Colégios do Antigo Regime que, posteriormente, foram substituídos, ao final do século XVIII, por institutos, chamados de Escolas Centrais, onde era oferecido o segundo grau da instrução pública, apostando no abandono do modelo de instrução até então adotado pelos colégios. Posteriormente às escolas centrais, que sobreviveram por seis anos e que foram extintas em 1802, deu-se o advento de dois novos tipos de estabelecimentos educacionais: as escolas secundárias, chamadas de colégios e mantidas pelas comunas ou por particulares, e os liceus, mantidos pelo Estado, e cuja estrutura escolar era parecida a dos colégios do Antigo Regime. A autora também relata os métodos utilizados para a escolha dos livros didáticos usados pelos professores franceses e detalha sobre os concursos para a elaboração dos livros elementares, terminando seu dossiê sobre a educação discursando sobre o período que a França ficou sob o poder de Napoleão.
Ao final do capítulo a autora se volta à figura do autor: fala da situação financeira de Lacroix na infância, de seus pais, descreve sua carreira e os grupos aos quais pertencia, assim como as pessoas com que se relacionava, fala de sua visão política e seus ideais. Discute o alcance de sua obra e, finalizando o capítulo, a autora discute os meios técnicos de construção e transmissão da obra Essais sur l'enseignement em général, et sur celui des mathématiques em particulier, examinando a materialidade do livro, suas marcações e indícios de como ele foi produzido e circulou em determinado espaço e tempo.
No quarto capítulo, Andrade retoma a Análise Formal ou Discursiva: é quando detalha os assuntos da obra lançando um olhar para a linguagem utilizada na redação do texto, utilizando trechos dele e tentando vincular esses trechos ao contexto em que foram produzidos. A autora, ainda, evidencia algumas afirmações de Lacroix e busca detectar fundamentos possíveis para essas afirmações, observando o “movimento narrativo” do texto, como sua textura escrita se desenvolve, como a sequência dos assuntos é articulada e como aparentemente o autor tenta estabelecer uma coerência entre esses assuntos. Para encaminhar essa proposta, Andrade realiza uma leitura minuciosa das traduções disponíveis e a partir delas busca comentar os pontos que julga mais significativos no discurso do autor. Durante a discussão desse capítulo há um diálogo entre esta obra sob análise e outras obras de Lacroix que compõem o Curso Elementar de Matemática, coleção de livros didáticos de Lacroix, detalhadamente comentadas por ele no Essais sur l'enseignement em général, et sur celui des mathématiques em particulier.
No quinto capítulo encontramos a última etapa da análise proposta por Thompson (1995)THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. 1995.: a Interpretação e Reinterpretação da obra de Lacroix, concluindo, assim, o que foi proposto desde o inicio da sua tese. Andrade tenta resgatar linearmente, na elaboração textual, seu movimento de pesquisa, afirmando, entretanto, o quão caótico é todo o processo de análise de uma obra quando se utilizando da HP. Neste arremate final – que segundo a autora, não é final de modo algum – ela organiza e retoma os elementos centrais de seu estudo no decorrer dos processos de análise Sócio-histórica e de análise Formal ou Discursiva. Ao final do capítulo, num diálogo com Gomes (2008)GOMES, M. L. M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. a respeito de como Lacroix se apropria dos ideais iluministas relativos à Matemática e ao ensino de Matemática, a autora finaliza seu trabalho, não sem antes incluir, uma discussão apoiada em Garnica (2010)GARNICA, A. V. M. Matemática, Educação Matemática, Cidades e Casacos Vermelhos: um prefácio. In: OLIVEIRA, C. C.; MARIM, V. (Org.). Educação Matemática: contextos e práticas docentes. Campinas: Alínea, 2010. p. 1 - 10. acerca da proximidade da obra estudada com algumas ideias da Educação Matemática Contemporânea.
Finalmente, no sexto e último capítulo, Andrade faz algumas breves considerações acerca das potencialidades e limitações do referencial metodológico da Hermenêutica de Profundidade. Ela fala do vasto, amplo e interminável exercício hermenêutico, de como cada exercício permite a exploração de um “novo” objeto segundo novos olhares, causando a sensação de que num próximo exercício algo novo se revelará. Todo exercício hermenêutico parece se reduzir à elaboração de uma “Interpretação e Reinterpretação”, mas toda informação leva a outra informação, toda descoberta induz a outra descoberta, novos detalhes, outras “amarrações”. A autora também fala da importância de o hermeneuta ser paciente, colaborativo, atento, aberto a críticas, flexível e cauteloso, por ser a HP um processo lento.
Referências
- CARDOSO, V. C. A Cigarra e a Formiga: uma reflexão sobre a Educação Matemática brasileira da primeira década do século XXI. 2009. 226 f. Tese (Doutorado em Educação)—Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
- CARDOSO, V. C. A cigarra e a formiga: a hermenêutica de profundidade como proposta de método de pesquisa em Educação Matemática. In: CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 13., 2011, Recife. Anais.. Recife: [inserir a editora], 2011. p. 1 - 11
- ECO, U. Quase a mesma coisa Tradução de E. Aguiar; revisão técnica de R. Quental. Rio de Janeiro: Record, 2007.
- GARNICA, A. V. M. Matemática, Educação Matemática, Cidades e Casacos Vermelhos: um prefácio. In: OLIVEIRA, C. C.; MARIM, V. (Org.). Educação Matemática: contextos e práticas docentes. Campinas: Alínea, 2010. p. 1 - 10.
- GENETTE, G. Paratextos Editoriais Tradução de Á. Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.
- GOMES, M. L. M. Quatro visões iluministas sobre a educação matemática: Diderot, D’Alembert, Condillac e Condorcet. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
- LACROIX, S. F. Essais sur l'enseignement en général, et sur celui des mathématiques en particulier 4. ed. Paris: Bachelier, Impremeur-Libraire, 1838.
- OLIVEIRA, F. D. Análise de textos didáticos: três estudos. 2008. 224 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) –Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2008.
- THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. 1995.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016