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Com a Palavra, o Professor de Matemática e o Intérprete de Libras

With the Word, the Mathematics Teacher and the Interpreter of Libras

Resumo

Este trabalho é resultado dos estudos sobre a inclusão de alunos surdos nas aulas de Matemática e da imersão nos estudos de Bakhtin. Nesse sentido, foi proposto analisar os discursos de um professor de Matemática e de um intérprete de Libras sobre a inclusão, numa perspectiva bakhtiniana. Para tanto, foram considerados excertos de entrevistas feitas na pesquisa de mestrado sobre o que esses sujeitos pensam sobre a inclusão e deles foram construídas análises a partir de conceitos de enunciado, discurso e diálogo de Bakhtin. Os resultados apontam para uma enunciação concreta por parte dos sujeitos em torno dos sentidos que eles possuem sobre a inclusão nas atividades laborais deles, além de que há um dialogismo também com o pesquisador proveniente do gênero discursivo entrevista.

Inclusão; Enunciado; Discurso

Abstract

This work is the result of studies on the inclusion of deaf students in mathematics classes and immersion in Bakhtin’s studies. In this sense, it was proposed to analyze the discourses of a mathematics teacher and a Libras interpreter on inclusion, through a Bakhtinian perspective. To this end, we considered excerpts from the interviews conducted during the Master’s research about what these subjects think about inclusion, and built analyses based on Bakhtin’s concepts of enunciation, discourse, and dialogue. The results point to a concrete enunciation by the subjects around the senses they have about inclusion in their work activities, and there is also a dialogism with the researcher coming from the interview discourse genre.

Inclusion; Enunciation; Discourse

1 Os enunciados que precedem...

Quando nos deparamos com a tarefa árdua de produzir textos sob parâmetros acadêmicos ficamos sujeitados a formas e maneiras de colocar ideias, fundamentações e resultados em moldes que, às vezes, encerram a amplitude de nos colocarmos para além de pesquisadores. Ser um pesquisador em curso de doutorado e ler o texto Viver a tese é preciso, de Freitas (2002)FREITAS, M. E. Viver a tese é preciso! In: BIANCHETTI, L.; MACHADO, A. M. N. (org.). A bússola do escrever: Desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações. Florianópolis/ São Paulo: Editora da UFSC/ Cortez, 2002. P.215-226. , nos deixa inquietos e reflexivos quanto ao ser antes e depois da pesquisa. Antes porque, diante daquilo que Olinda Evangelista (2002)EVANGELISTA, O. Publicar ou morrer. In: BIANCHETTI, L.; MACHADO, A. M. N. (org.). A bússola do escrever: Desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações. Florianópolis/ São Paulo: Editora da UFSC/ Cortez, 2002. p.297-300. coloca como o imperativo da publicação, pouco refletimos sobre o porquê de publicarmos (nesse caso, por que escrevemos uma tese?) e, nessa reflexão do imperativo, subjaz outros questionamentos: o quê publicar? Onde vamos colocar nossos escritos? Para que eu preciso publicar? Por que as pessoas precisam ler sobre minhas pesquisas? E o depois da pesquisa? Esse sim nos coloca em uma situação de compreensão de um processo longo que é uma formação acadêmica.

Pensar nesse processo é mover além da cognição presente nas discussões das aulas de disciplinas selecionadas ou não, da escrita de artigos e da própria tese e além da atividade motora que impera movimentos plurais de onde podemos ir, onde estar e qual lugar ocupamos. Opera muito também, em termos emocionais, não só pela demanda do tempo, mas pelas novas relações estabelecidas, pelo estranhamento dos que eram antes nossos chegados, das mudanças de posturas e até de ideias.

Começo esse texto com essas reflexões para elucidar a coerência de escrever esse artigo a partir de uma perspectiva bakhtiniana, seguindo o dialogismo tão fundamentado nas obras de Mikhail Bakhtin. Esse processo de escrita já é coerente com as ideias desse teórico, uma vez que a compreensão se dá numa situação de comunicação. Este texto é um diálogo com Bakhtin, apareço como um destinatário que busca em suas obras entender ainda mais minha pesquisa, de forma responsiva num diálogo aberto.

Ainda no mestrado conheci a Educação Matemática Inclusiva e, desde então, tenho buscado aprofundar estudos no âmbito dessa recente área de pesquisa no doutorado. As experiências são diversas e com elas vem um leque de reflexões e questionamentos sobre as interações que se encadeiam nas aulas de Matemática, particularmente, as relações comunicativas entre professor ouvinte, intérprete de Libras e alunos ouvintes e surdos.

É nesse contexto que a disciplina “Gêneros do Discurso na Pesquisa e na Sala de Aula de Ciências e Matemática” ofertada no curso de Doutorado em Ensino da Rede Nordeste de Ensino pelo Professor José Joelson Pimentel de Almeida possibilitou uma problematização em torno do que os profissionais (professores e intérpretes de Libras) que lidam com a presença de alunos surdos pensam sobre a inclusão a partir de suas experiências e vivências com ela.

Na perspectiva inclusiva, o aluno surdo está inserido na sala de aula comum e, com isso, emerge a necessidade de entender as implicações discursivas dos profissionais que estão em efetiva relação social com esse aluno. Em relação ao professor, temos que as atividades cotidianas desse profissional junto aos alunos surdos devem estar alicerçadas num projeto educacional que considera e respeita as diferenças, no ato de compreender as necessidades e potencialidades do outro, uma vez que a compreensão das atividades de outros indivíduos é condição ontológica da vida social do homem ( WATIER, 2009WATIER, P. Uma introdução à sociologia compreensiva . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ).

Nesse sentido e seguindo uma perspectiva bakhtiniana, percebemos a sala de aula como um ambiente discursivo em que se encontram professores e alunos e, sendo ela uma instituição escolar, também responde a uma demanda social que impulsiona direta ou indiretamente os discursos que são tecidos numa relação dialógica.

Nesses termos e partindo do pressuposto que o dialogismo pressupõe um processo inclusivo, podemos pensar como as interações entre professor e alunos surdos desvelam a inclusão ou exclusão, o que nos faz refletir sobre o lugar do aluno surdo nas práticas escolares perante uma barreira nesse processo: a dificuldade de comunicação entre os sujeitos ouvintes (como o professor, colegas de classe e provedores de outros serviços) e os alunos surdos.

Por isso, na perspectiva inclusiva, temos o papel importante do intérprete de Libras presente na sala de aula e em outros ambientes educacionais. Esse profissional é primordial para intermediação da comunicação entre ouvintes e surdos. Na aula de Matemática, o intérprete impulsiona o processo da relação do surdo com o saber ( SANTOS, 2019SANTOS, W. F. A Transposição Didática Interna no Ensino do Conjunto dos Números Naturais para Surdos: um estudo numa sala de aula inclusiva. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, 2019, 195 p. ), mas há uma barreira que se opõe a uma escolarização de boa qualidade: as estratégias metodológicas disponibilizadas e utilizadas pelo professor em uma aula ainda prioriza a fala como o principal meio de comunicação ( BORGES; NOGUEIRA, 2016BORGES, F. A.; NOGUEIRA, C. M. I. Das palavras aos sinais: o dito e o interpretado nas aulas de Matemática para alunos surdos inclusos. Perspectivas da Educação Matemática , Campo Grande, v. 9, n. 20, p. 479-500, 2016. ).

Ao considerarmos aspectos culturais relacionados às especificidades da Libras, como uma língua viso-motora, proporcionamos uma comunicação mais efetiva dos surdos num ambiente escolar. Gesser (2010)GESSER, A. Metodologia de Ensino em LIBRAS como L2 . Florianopolis: UFSC, 2010. sustenta que as línguas de sinais desempenham no desenvolvimento das funções cognitivas dos alunos surdos o mesmo papel que as línguas orais no desenvolvimento cognitivo dos alunos ouvintes.

O sucesso ou não da inclusão escolar do aluno surdo perpassa o fator de comunicação, no entanto, concordamos com Guerreiro et al. (2015), quando elucida sobre como o papel da comunicação nas aulas de Matemática influencia fortemente o processo de ensino e aprendizagem. Para tanto, consideramos compreender, o discurso do professor de Matemática e o intérprete de Libras sobre a inclusão, numa perspectiva bakhtiniana.

2 Metodologia

Considerando uma abordagem de caráter qualitativo e analítico, pretendeu-se partir de alguns dados coletados na pesquisa de mestrado que originou a dissertação “A Transposição Didática Interna no Ensino do Conjunto dos Números Naturais para Surdos: um estudo numa sala de aula inclusiva” para investigar o que pensam e dizem sobre a inclusão o professor de Matemática e o intérprete de Libras que atuam junto ao aluno com surdez.

Na pesquisa supramencionada foram feitas observações de quatro aulas, no ano de 2018, ministradas por um professor de Matemática sobre conjuntos numéricos para uma turma de 35 alunos, sendo dois surdos que denominamos de S1 e S2 e que contavam com a atividade profissional de um intérprete de Libras. Era uma turma do 1º Ano do Ensino Médio do curso integrado de Mineração do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, campus Campina Grande.

De caráter complementar, também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o professor e o intérprete de Libras, pois identificamos a necessidade de compreender situações e concepções desses sujeitos em uma situação didática, cujas implicações didáticas foram relevantes para entendermos quesitos da transposição didática interna no ambiente inclusivo. Todos os procedimentos seguiram as diretrizes éticas para a coleta de dados.

Neste trabalho, a partir de um excerto das entrevistas, identificamos e analisamos os discursos desses sujeitos, entendendo que eles poderão realçar o que os profissionais que lidam efetivamente com a presença de alunos com deficiência dizem e pensam sobre a educação inclusiva, bem como as dificuldades evidenciadas numa situação de ensino de conteúdos matemáticos a partir das experiências vivenciadas. Por isso, trata-se de um novo direcionamento e aprofundamento de dados coletados anteriormente no contexto da pesquisa do mestrado.

Ainda, justificamos a utilização desse método consoante os esclarecimentos de que “[...] a entrevista possibilita a coleta de dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador o desenvolvimento da ideia de como os sujeitos interpretam aspectos do mundo [...]” ( BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. , p. 134).

Para tanto, foram levantadas questões em torno dos discursos dos sujeitos desta pesquisa sobre a inclusão buscando entender, a partir dos estudos de Bakhtin, que outros discursos se revelam nas concepções deles sobre a educação inclusiva.

3 Diálogo, discurso e enunciado para Bakhtin

A palavra como signo social é uma das bases dos estudos de Bakhtin e seu círculo e é tratada como o próprio discurso, por vezes, não havendo distinção entre esses termos. Bakhtin (2010) explica que a consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua tal como de um sistema de formas reguladas. Nesse caso, o que se percebe é que o locutor irá utilizar a língua em situações concretas, em situações que expressam um contexto concreto.

Disso depreende-se que a língua concede o sistema virtual e abstrato que os usuários de uma determinada língua compartilham para que possam se expressar por meio de combinações de palavras em enunciados. Em uma situação concreta, ao tomar uma palavra, o falante escolhe as palavras que quer usar e, com isso, surgem as implicações de sentidos nessa construção que não é ingênua, porque carrega significados e sentidos para uma determinada comunidade.

Neste trabalho, assim como Brait e Melo (2005)BRAIT, B.; MELO, Rosineide. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p.61-78. , situamos a concepção bakhtiniana no cenário dos estudos de linguagem, apresentando e discutindo brevemente alguns conceitos.

Numa perspectiva bakhtiniana, isto é, ancorada pelo contexto sócio-histórico-cultural, a concepção de linguagem e sua apropriação é um processo que compreende a interação social da qual é situada por práticas discursivas. Em uma esfera social, a comunicação se efetiva a partir dos sujeitos locutores e interlocutores e discursos, nos quais se faz uso de signos linguísticos materializados em enunciados.

Entre outras obras, Brait e Melo (2005)BRAIT, B.; MELO, Rosineide. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p.61-78. destacam o texto “Discurso na vida e discurso na arte – sobre poética sociológica”, assinado por Voloshinov, para apresentar os conceitos de 1) enunciado, 2) enunciado concreto e 3) enunciação.

  1. Definido como compreendendo três fatores, que, em poucas palavras, se resumem aos aspectos comuns do horizonte espacial, conhecimento e compreensão da situação e a avaliação dessa por parte dos interlocutores (p. 67).

  2. Esse conceito aponta para uma configuração de um processo interativo verbal e não-verbal que constitui uma situação contextual.

  3. Definido como um todo significativo compreendendo duas partes, a percebida ou realizada em palavras e a parte presumida (p. 67).

  4. Definida como um processo que dá vida ao discurso verbal, dando a qualquer coisa linguística estável o seu momento histórico vivo e a unicidade de caráter (p. 67-68).

As autoras ainda, enfatizam que o enunciado concreto nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes da enunciação. Tal ideia proporciona vislumbrar a importância dos entrelaçamentos dos conceitos de enunciado concreto e enunciação, pois assim como um ser vivo nesse processo vital de nascer, viver e crescer precisa de energia para que ele se efetive, o enunciado para “viver” necessita dessa energia que é provida pela enunciação.

Na obra “Estética da criação verbal”, de Mikhail Bakhtin (2003), há a exploração de que os conceitos de língua, enunciado e gêneros do discurso e de não são indissociáveis, mas estão intimamente relacionados, uma vez que “[...] a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e único, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana [...]”, como bem explica Bakhtin (2003, p. 280). Com isso, ele estabelece que os gêneros do discurso resultam em formas-padrões relativamente estáveis de enunciados mediante a relação inerente da atividade humana e do uso da língua.

Os gêneros estão presentes em todas as formas de atividades do homem, ou seja, no dia a dia e seus enunciados revelam muito mais que as palavras, já que são construções únicas e determinadas sócio historicamente. Pode-se, então, depreender que as diversas instâncias históricas da sociedade produziram ou reproduziram gêneros discursivos diversos, por isso, o autor salienta a infinidade de gêneros textuais, “[...] não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Pensando-se sobre isso, e o que Almeida (2016)ALMEIDA, J. J. P. Gêneros do discurso como forma de produção de significados em aulas de Matemática . São Paulo/Campina Grande, PB: Livraria da Física/ Eduepb, 2016. assinala sobre os gêneros do discurso nas aulas de Matemática na promoção de significados nas diversas atividades em sala de aula, pode-se refletir sobre como os nossos alunos leem os enunciados que propomos nos exercícios, ou nas notas de aula, ou até mesmo na nossa oralidade. Será que consideramos os conhecimentos prévios necessários para a compreensão do texto? Digamos em um sentido amplo, não só em termos linguísticos, mas os fatuais também. Nossas aulas têm sido povoadas por gêneros textuais diversos ou insistimos em um padrão? Será que os próprios textos literários, por exemplo, poderiam nos ajudar a desenvolver aprendizagens de conteúdos matemáticos?

É sobre essas finalidades discursivas que Bakhtin reconhece a heterogeneidade dos gêneros e os classifica em primários e secundários. Destaca-se que os ideais bakhtinianos pregam os discursos na base do diálogo amplamente entendido como ação comunicativa, no qual o enunciado é analisado de acordo com o papel do locutor, mas também do interlocutor, ambos ativos na construção de um diálogo com sentido.

Em vista disso, os gêneros primários são aqueles que remetem a situações comunicativas cotidianas, no sentido de espontâneas, como por exemplo o bilhete, o diálogo cotidiano, um SMS, uma mensagem de Whatsapp etc. Os secundários se estabelecem, geralmente pela escrita, em situações de comunicações mais complexas e elaboradas, palestra, romance, artigo científico são exemplos desses gêneros. Para o autor a diferença entre esses gêneros são importantes, “[...] sendo esta a razão pela qual a natureza do enunciado deve ser elucidada e definida por uma análise de ambos os gêneros [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 282-283). Ele ainda assinala que uma concepção clara da natureza do enunciado em geral ou de gêneros discursivos específicos é indispensável para uma análise em qualquer estudo.

Diante desses pressupostos apontados por Bakhtin, é possível inferir que em situações de ensino de Matemática para alunos surdos não basta apenas tê-los presentes no ambiente escolar, é preciso estabelecer uma vivência comunicativa deles com todos os sujeitos que integram a escola, professores, diretores, colegas da sala, de outras salas também, funcionários, enfim, todos. E essa vivência deve ser permeada pelo contato com os diferentes gêneros do discurso para o exercício da competência linguística do produtor de enunciados, especialmente, os enunciados produzidos ou reproduzidos nas aulas de Matemática.

Não há inclusão se os alunos surdos se sentem impotentes em algumas situações por não dominarem os gêneros da esfera discursiva no âmbito da aula de Matemática.

3.1 Uma análise tal qual Brait e Melo: projetando análises do que se diz sobre a inclusão

Assim como Brait e Melo (2005)BRAIT, B.; MELO, Rosineide. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p.61-78. , apresentamos a seguir um exemplo com o objetivo de mostrar que o enunciado/enunciado concreto/enunciação se revela de forma implicada com outros enunciados, isto é, há relações contratuais dialógicas entre os enunciados que elucidam as tensões das vozes sociais pela disputa de sentidos.

Considere a charge ( Figura 1 ) a seguir:

Figura 1
– Charge sobre a inclusão

A charge constitui-se como um gênero discursivo cujo objetivo é criticar ou ironizar, ou ainda, representar de forma cômica acontecimentos nas mais diversas esferas sociais, política, religiosa ou educativa. Ela como gênero discursivo e a composição de seus enunciados revelam muito mais que uma construção engendrada por imagens e textos (ou não) que apresentam um conteúdo temático e tem um estilo de linguagem.

No campo discursivo, as imagens, suas formas, espaço que ocupam e as sequências verbais estão inteiramente articuladas, atuam entre si, revelando discursos que constitui no enunciado não só o sujeito que elabora a charge, mas também a quem ela se dirige.

Por essa razão, para analisar a charge não podemos ver as imagens desassociadas da sequência verbal, dos gestos presentes. Observando a realidade apresentada, o que percebemos visivelmente é que se trata de uma sala de aula, mas por quê? Pode-se dizer pela presença de objetos comuns a esse ambiente, como o quadro, professor e alunos, mas ainda, percebemos além deles que se trata de uma sala de aula com alunos com deficiência: pelo menos visivelmente temos um aluno surdo e um aluno cego, considerando os elementos como o x na orelha, mãos em movimentos (língua de sinais ) e óculos escuros mais bengala remetem a esses sujeitos, respectivamente.

A interrogação e exclamação apenas sobre esses alunos remetem que esses estão inquietos com a atitude do professor. Uma primeira impressão que já se tem é: os outros alunos não estariam também inquietos? Acreditamos como Brait e Melo (2005)BRAIT, B.; MELO, Rosineide. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: Conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p.61-78. , baseado nos pensamentos de Bakhtin, que a charge não ganha sentido pleno em sua autonomia, apenas por ser uma charge, mas ressalta-se também como os discursos presentes nela estão sustentados pelas esferas de produção, circulação e recepção. O enunciado verbal A prova é... complementa a compreensão de que se trata de uma sala de aula e que há uma inquietude por parte do aluno cego e surdo.

A charge foi veiculada na Revista Pandora Brasil que divulga criações literárias e textos acadêmicos de professores e alunos, esses são os leitores imediatos dessa revista e sendo essa objeto de um veículo que preza por gêneros literários como também acadêmicos, podemos perceber um diálogo entre textos não acadêmicos e textos literários, além da própria interdiscursividade.

Olhar para a charge e fazer uma leitura/visualização imediata pode remeter para um leitor não muito atencioso apenas um “enunciado comum” sobre a inclusão, mas há muito ao explorar os discursos que se revelam num gênero como esse veiculado em uma revista. Para uma compreensão desses enunciados, no sentido concreto é preciso investigar que outros discursos, que outras vozes constituem o discurso dito/mostrado na charge e num pensamento bakhtiniano, portanto, é preciso compreender o enunciado em suas condições sócio-históricas de produção. Qual o discurso que se faz presente na esfera política da charge? Podemos perceber, em primeira mão , ou à primeira vista, a inclusão, ou melhor a perspectiva inclusiva, diga-se que na atualidade da educação no Brasil.

No momento atual, a educação de surdos no nosso país está sistematizada pela Educação Especial numa perspectiva inclusiva. Trata-se de uma política pública que resultou da ação e movimento da comunidade surda conjunta a grupos de trabalho integrados por pessoas envolvidas com a Educação Especial.

A Educação Inclusiva, como paradigma educacional, está fundamentada nos direitos humanos em que a igualdade e a diferença são valores a serem buscados na proposição de uma escola inclusiva, constituída pela superação da exclusão social. Com isso, a escola tem papel crucial no desenvolvimento de ações integradas com a sociedade para eliminar preconceitos e barreiras que excluam o surdo dos direitos plenos.

Com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, a adequação das escolas brasileiras ganha importância para atender todas as crianças e a inclusão incorpora os discursos voltados para a educação de surdos. Para tanto as escolas e classes especiais foram repensadas, desencadeando uma mudança estrutural e cultural na educação que atende aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, principalmente, porque com essa política a Educação Especial passa a integrar a proposta pedagógica da escola regular em classes comuns.

O discurso presente na charge também remete a vozes que persistem, ou seja, podemos perceber que os enunciados estão em ligação com outros já existentes, como esclarece Bakhtin (2003, p. 376) que “[...] não pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem [...]”. Como, por exemplo, é de conhecimento de quem acompanha as notícias atuais que foi dito que a inclusão de alunos com algum tipo de deficiência “atrapalha” o aprendizado dos colegas na sala de aula. Esse discurso está intimamente ligado ao processo histórico-político da educação dos surdos no Brasil e no mundo em que há apontamentos de diferentes formas de se considerar a educação desses sujeitos, sempre no cerne da discussão linguística.

Outra observação que pode ser feita é aquela que se refere a forma que se apresenta a figura de um professor que aparentemente não leva em consideração a presença do aluno surdo, como também do aluno cego. Ele solicita aos alunos, em particular ao surdo, um comando que não pode fazer. É relevante saber que na sala de aula há uma diversidade que precisa ser respeitada, assim como existem nela alunos ouvintes, existem também alunos surdos, cegos e outros e todos precisam ser respeitados e participar do processo de ensino e aprendizagem. Nesse aspecto caberiam muitas discussões: formação inicial, continuada, contínua, mas não é objeto desse trabalho, por isso não nos deteremos nesses discursos.

Pensando na aula de Matemática, geralmente, os problemas em Matemática são apresentados aos alunos sob a forma de um texto escrito, por isso sua resolução depende não apenas do domínio de conceitos matemáticos por parte dos alunos, mas também da interpretação do enunciado do problema, ou seja, do seu texto.

Sendo assim, podemos pensar se o conhecimento escrito da Matemática seria suficiente para a compreensão de uma atividade matemática? Vários estudos, como Nogueira e Nogueira (2019)NOGUEIRA, C. M. I.; NOGUEIRA, B. I. A influência da forma de apresentação dos enunciados no desempenho de alunos surdos na resolução de problemas de estruturas aditivas. Educação Matemática Pesquisa , São Paulo, v. 21, n. 5, p. 110-120, 2019. já apontam que a interpretação de enunciados pode se constituir uma barreira para aprendizagem dos alunos surdos sobre os conteúdos matemáticos. Em relação ao aluno cego, pode-se refletir de forma análoga: a predominância de enunciados escritos pode-se configurar também como uma barreira.

Para compreender este enunciado em sua concretude, é necessário, considerar a multiplicidade de sentidos que os leitores da charge podem ter e isso caracteriza essa análise no sentido bakhtiniano, porque eles são parte da interação que se estabelece ao ter contato com esse gênero discursivo, identificando-se o contexto sócio-histórico que se insere, as implicações dos enunciados que estabelecem relações entre o verbal e o não verbal.

Esse enunciado concreto, revela um diálogo direto com o momento sócio-histórico em que se situa, o que lhe possibilita interagir com os leitores desse trabalho e com outros destinatários, que estejam imersos nos estudos da inclusão ou não.

A leitura de mundo nos faz perceber outros discursos na charge: Como a pessoa surda é vista? Como a pessoa cega é vista? Numa percepção de inclusão como conceito contestado, como coloca Ole Skovsmose (2019)SKOVSMOSE, O. Inclusões, encontros e cenários. Educação Matemática em Revista . Brasília, PUC-SP, v. 24, n. 64, 2019, p. 16-32. , quando falamos e discutimos a inclusão, primeiro devemos refletir sobre o que parece óbvio, mas não é tão simples assim: Inclusão em quê? Inclusão de quem?

A charge remeteu a uma ideia de inclusão restrita ao que é visível: só cegos e surdos revelam a inclusão? O veja bem, ouça, olhe são enunciados acessíveis aos outros alunos só porque tem olhos, ouvidos? Isso é bem reflexivo e evidenciado quando se coloca a interrogação no surdo e no cego.

Com isso, é preciso considerar que o discurso sobre surdos, cegos, sobre a inclusão não é discurso de uma só voz, mas de várias vozes e desvelam marcas históricas que estão relacionadas à luta e movimentos de pessoas que foram subjugadas.

4 Diálogos, discursos e enunciados do professor de Matemática, intérprete de Libras

O professor de Matemática da turma que denominamos de P é graduado em Matemática, possui mestrado em Matemática Aplicada e é Doutor em Ciências e Engenharia de Petróleo e encontrava-se no quadro de professores efetivos do IFPB dando aulas para alunos de cursos técnicos integrados e subsequentes do Ensino Médio e cursos superiores. A seguir apresentamos um excerto da entrevista que foi feita com o professor em que ele toma a palavra sobre a visão geral sobre a inclusão e de experiências vivenciadas com alunos com deficiência.

PESQUISADOR: Outras questões vão ser ligadas a inclusão, até porque a gente tinha dois alunos surdos na sala. Sua visão geral sobre a inclusão, seja de aluno surdo ou aluno cego, de um modo geral, sobre alunos com deficiência na sala de aula comum.

P: Olhe, é... Eu já tive várias experiências com alunos com as deficiências que você citou. Já tive um deficiente visual e auditivo, né (sic)? E o que é que ocorre? Ocorre o seguinte: Eu tenho uma aluna, ela não escutava, mas ela lia os lábios.

Inclusive, ela era a melhor aluna que eu tinha. Como ela lia meu lábio, eu dava aula pra (sic) turma, mas de frente para ela. Todo mundo entendia, "Gente eu vou dar uma explicação para todo mundo, mas eu vou ficar direcionado para ela", e ela lia meus lábios e ela fez três provas comigo. Ela tirou três 10, uma letra maravilhosa, extremamente inteligente, extremamente organizada.

É o que eu percebo aqui também com os meninos do primeiro ano de mineração. Eles são extremamente organizados, qual o problema? Tem o intérprete? Tem... beleza, maravilha! Só que quando a gente tá (sic) dando aula, ou ele olha pra o intérprete ou ele vai olhar pra o quadro. Se ele olhar para o quadro ele não acompanha porque não está escutando, se ele olhar para o intérprete ele não vai está copiando (sic), não tem como fazer isso ao mesmo tempo. Então, o que é que acontece?

Não sei se você lembra daquela (sic) minha aula, que eu dava minha aula bem pausada, devagarinho, com calma para que ele tivesse tempo de falar com a intérprete e também tentar olhar um pouquinho pra (sic) o quadro, porque eu digo pra ela, se ele não entender, manda me parar que eu paro e vou explicar. Eu quero que você fique olhando para que aqui, ali...

Qualquer coisa que ele não entender para a gente explicar. A grande dificuldade é essa, porque não dar tempo ele olhar pra (sic) o quadro escrever e olhar para a intérprete. Ele teria que fazer três funções em uma.

Então, ele acompanha a intérprete e eu aqui vou falando e ela traduzindo pra (sic) ele. Então, essa é a grande dificuldade, porque é três em um e ele não consegue, mas mesmo dentro desse "não conseguir" o que eu observo neles é que eles são alunos que são capazes, aprendem muito e aprendem muito bem.

São também extremamente organizados, a prova deles, dar gosto da gente ver, erra uma coisinha aqui, erra uma coisinha ali, mas é normal. E as notas deles não são notas ruins. Tem aluno que tem defeito... aspecto de saúde, bem inferior as deles. Então, eu noto que eles têm também pelo fato da deficiência, eles têm também, um interesse até maior e o desenrolar do trabalho, meu com eles tá (sic) casando, mas eu ainda digo: Eu ainda deveria ser mais devagar, eu ainda me cobro isso.

Eu deveria ser mais devagar, mas como você viu que a turma tem trinta e cinco alunos, fica difícil a gente pegar os trinta e cinco alunos e dois com essa deficiência e tentar ajustar ao todo. Mas ao todo, a gente tenta aos poucos, devagarinho e vai fazendo e sempre que tem um espaço, eu paro e vou lá onde (sic) eles estão e tento fazer um trabalho à parte.

Chamei e... preparei um monitor, e preparei um monitor para trabalhar, especificamente, com eles, e mais recentemente eu peguei mais três monitores pra (sic) trabalhar, também com eles, em outro horário, claro, pra (sic) ajudar um pouquinho mais, pra (sic) ver se ele avança um pouco mais ainda.

Não é que eles estejam ruins, não. Se fosse classificar de uma média de zero a dez, eles estariam em um sete e meio, então, não tá (sic) ruim, tá (sic) bem? Mas, eu quero que eles fiquem cada vez melhor. Porque realmente precisam da nossa ajuda.

(Entrevista com o professor e aluno, 2019).

Agora, apresentamos o intérprete de Libras e a resposta dele dada a mesma pergunta feita ao professor de Matemática. Ele será denominado neste trabalho de I , sendo este do sexo masculino. Conquistou uma vaga no IFPB por meio de processo seletivo e foi lotado em Picuí – PB, porém depois foi transferido para o campus de Campina Grande. O intérprete I não possui formação em curso Superior, mas possui certificação do PROLIBRAS e aprendeu Libras não com intuito profissional, mas por meio de trabalhos religiosos de instrução para pessoas surdas desde 14 anos de idade e por desenvolver um bom domínio da língua decidiu procurar uma certificação do PROLIBRAS quando tinha dezoito anos, sendo que tinha 28 anos no período de realização dessa pesquisa.

PESQUISADOR: E a sua visão sobre inclusão?

I: A inclusão que é feita aqui no Brasil, você diz?

PESQUISADOR: Isso, exato!

I: Bem, eu não vejo inclusão no Brasil.

PESQUISADOR: Ok!

I: Assim, se eu for observar de forma geral, incluir, na minha visão, é quando você dá para pessoa um espaço dentro da sociedade, onde ela tenha as mesmas possibilidades de crescer. Então, quando você enxerga um surdo dentro de uma escola, por exemplo, ele não tem inclusão. Ele não tem material na língua dele, os profissionais professores não tem uma habilitação de como trabalhar com deficientes em sala de aula, como adaptar seu material. Então, isso meio que não torna uma (sic) inclusão, torna uma (sic) barreira. Inclusão deveria ser a quebra dessa barreira. Então, minha visão é essa.

(Entrevista com o intérprete de Libras, 2019).

Segundo Bakhtin (2003, p. 269), o “[...] estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva [...]” permite uma melhor compreensão do processo discursivo. Percebemos que na fala de P há evidências da compreensão da inclusão em termos da experiência vivenciada em sua própria profissão. Não há explicitamente uma discussão em torno do que é a inclusão, no sentido amplo que esse signo carrega, mas há uma restrição quando se coloca as vivências profissionais como aquilo que se entende como prática inclusiva. Já na fala de I há duas respostas que se complementam, sendo a primeira imediata ( Bem, eu não vejo inclusão no Brasil) que revela um posicionamento ideológico sobre o tema e a segunda se apresenta como uma reflexão da resposta anterior, apresentando elementos que justificam porque considera que não há inclusão no Brasil.

No entanto, este trabalho identifica e destaca a partir de uma concepção bakhtiniana a natureza dialógica do enunciado, em termos da comunicação que se estabelece em um processo de entrevista de um pesquisador e um sujeito da pesquisa. Tanto o professor como o intérprete, respondem a uma pergunta feita pelo pesquisador em uma situação concreta em que são objetos de estudo e as relações de poder vão se instituindo na construção dessas respostas.

Eles falam sobre inclusão não para os pais desses alunos, para uma rede de televisão ou até para um coordenador de seus trabalhos, mas para uma pessoa que está observando suas aulas, que investiga e estuda questões relativas à inclusão. Então, de forma responsiva, agregam em suas falas a necessidade de justificar o que consideram inclusão, a partir das situações vivenciadas no chão da escola. Essa responsividade é uma característica da própria compreensão do enunciado, da pergunta que foi feita, de quem fez a pergunta e em qual contexto social estão inseridos, pois “[...] toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 271).

Percebemos como as respostas para uma pergunta consideravelmente igual se manifestaram de formas diferentes. Apontam-se semelhanças em termos das dificuldades que é o próprio processo inclusivo, ao passo de identificarmos a significação da temática para ambos, no sentido de que, em termos inclusivos nas escolas comuns, deve-se ressaltar que somente o acesso ao ambiente escolar não se configura como prática inclusiva, mas também garantir que sejam dadas reais condições de desenvolvimento cognitivo, social e afetivo e, para isso, é preciso valorizar as especificidades culturais, físicas e psicológicas de todos os alunos.

As diferenças entre as respostas dos sujeitos são evidenciadas também em termos significativos, pois enquanto o intérprete faz uma leitura imediata de que não há inclusão no Brasil, o professor de Matemática busca construir um discurso de que suas ações são inclusivas ao considerar algumas especificidades, fazendo-o modificar alguns elementos de sua prática educativa, ainda que, por vezes o discurso promova ações e compreensões, como considerar na própria palavra tomada “alunos com defeitos”

No entanto, há também de se considerar a complementaridade dos discursos deles, muito do que não é dito por um é elucidado pelo outro. No sentido da análise aqui construída, pontua-se a compreensão silenciosa que se engendra nessa complementaridade dos discursos, isto é, os sujeitos expõem explicitamente aquilo que eles acham que proporcionarão ao pesquisador a resposta pretendida, que serão compreendidos naquilo que subjaz as suas palavras, ao passo que a clareza deles seria “[...] apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 272).

Nessa conjuntura responsiva, os enunciados construídos pelos sujeitos ao falar sobre a inclusão também revelam uma concretude discursiva, como Bakhtin (2003) assinala sobre a relação mútua dos enunciados na formação de um discurso.

O professor aponta uma inclusão como um acontecimento de sua prática profissional. Ele possui alunos com deficiência em suas turmas e isso decorre do enunciado concreto de outros discursos que o antecedem, como por exemplo, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, entre outros. Essa política tem sido o norte das políticas públicas no Brasil, a qual se enuncia em defesa do direito de todos os alunos com deficiência estarem nas escolas comuns.

Tal política revela-se como um gênero discursivo no âmbito das legislações brasileiras, mas para o professor, em seu discurso, ela se revela um tanto mais, como uma atividade profissional, de forma geral, uma atividade humana que exterioriza suas dificuldades e possibilidades dentro de um contexto educacional e, por isso, percebe-se que P apresenta a inclusão não como um conjunto de leis em torno de uma política pública propriamente dita, mas como a prática dele. Isso fica mais evidente quando ele apresenta um discurso de comparação entre alunos com deficiência e alunos sem deficiência com um tom de surpresa, não de forma explícita, mas um discurso que subjaz enunciados capacitistas, ou seja, uma discriminação com pessoas com deficiência, compreendendo preconceitos em torno da subestimação das capacidades e aptidões de pessoas em razão de suas deficiências. O enunciado capacitista pressupõe a construção social de padrões de um corpo perfeito.

O intérprete, por sua vez, revela outros contextos, ao passo que percebemos em seu discurso, enunciados que são próprios de pesquisas acadêmicas, no sentido de apontar o que precisa ser feito em termos operacionais para a inclusão de alunos com deficiência. Quando ele fala sobre a necessidade de adaptação de materiais, adaptação linguística e de formação de professores aponta para discursos muito próximos dos que encontramos em pesquisas sobre a temática.

Isso não quer dizer que esse discurso não tenha se construído pela sua atuação profissional, na vivência experimentada como intérprete de Libras, mas realçamos a sua formação e estudos como intérprete imergidos na comunidade surda e, segundo Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas São Paulo: Editora 34, 2019. , a comunicação ou interação discursiva só se realiza graças à existência de algo subentendido para eles, isto é, as pessoas que estão imersas nas causas da inclusão, ou mais especificamente, nas lutas pelos direitos dos surdos, formam uma comunidade socialmente organizada e possuem signos ideológicos ( VOLÓCHINOV, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas São Paulo: Editora 34, 2019. ).

Ainda, em relação ao professor e sobre o enunciado concreto que é posto, temos o apontamento que é identificado por ele e foi percebido na pesquisa de mestrado ( SANTOS, 2019SANTOS, W. F. A Transposição Didática Interna no Ensino do Conjunto dos Números Naturais para Surdos: um estudo numa sala de aula inclusiva. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande, 2019, 195 p. ): a dificuldade do aluno surdo nas interações comunicativas quando em situação de ensino e aprendizagem. P esclarece que uma das dificuldades do aluno surdo é lidar com o “olhar” diretivo para o professor, o intérprete e para os enunciados que se expõe de forma escrita na lousa.

Percebe-se que algumas vezes o professor precisa escrever no quadro os procedimentos matemáticos e que o surdo tem que lidar com a atenção para aquilo que está sendo escrito e para a mediação do intérprete de Libras, uma vez que o professor está falando sobre esses procedimentos enquanto escreve. Essa situação remete muito ao que Bakhtin coloca em torno do enunciado como uma unidade real e precisamente delimitada e que há uma alternância dos sujeitos do discurso, a qual se encerra com a passagem da palavra para o outro num diálogo real, em que se alternam as enunciações dos interlocutores, mas quando se trata de uma comunicação intermediada por um intérprete, precisamos pensar nas assimetrias que se revelam nessas alternâncias uma vez que o aluno está, até certa medida, direcionado a interlocutores diferentes e em línguas diferentes, embora depreende-se uma mesma temática: os procedimentos matemáticos.

Trata-se de uma tarefa difícil e complexa, manter uma comunicação adequada com os surdos para que eles compreendam os conceitos matemáticos requer estratégias que busquem lidar com os ritmos dos enunciadores, pois, numa perspectiva inclusiva, o aluno surdo torna-se um sujeito responsivamente ativo do diálogo que se inscreve nas aulas, em particular das aulas de Matemática que possuem gêneros discursivos estáveis ( ALMEIDA, 2016ALMEIDA, J. J. P. Gêneros do discurso como forma de produção de significados em aulas de Matemática . São Paulo/Campina Grande, PB: Livraria da Física/ Eduepb, 2016. ).

A Língua Portuguesa e a Libras são duas línguas de modalidades diferentes e, por isso, muitas vezes, o intérprete opta por simplificar o que está sendo falado. Isso ocorre por vários fatores, tais como: domínio da Libras para sinais de termos específicos, a diferença de tempos necessários para a comunicação em português e em Libras, várias pessoas falando ao mesmo tempo durante as aulas (BORGES, 2013).

Em suma, os discursos do professor e do intérprete provocam muitos outros diálogos em torno da inclusão, muito pela realidade e existência desses sujeitos e a leitura de mundo que possuem.

5 Considerações finais: os enunciados que perpassam e sucedem...

A inclusão é princípio fundamental na constituição de uma coletividade que se enuncia na proposição de igualdade e justiça social. A diversidade deve ser valorizada e, para tal, necessitamos de contínuo diálogo com o nosso interior e com os outros. Esse outro possibilita a construção da comunicação. Nesse sentido, este trabalho buscou apresentar um diálogo não apenas com a inclusão como conceito e prática, mas também com os sujeitos que perfazem os discursos construídos no cerne da inclusão.

Na proposição de dialogar com os sujeitos da pesquisa e com conceitos bakhtinianos, percebeu-se as conexões dos discursos de quem propõe a pesquisa, isto é, o pesquisador. As falas dos sujeitos, assim como do próprio pesquisador são objetos de análise, ao passo que evidenciam a posição ideológica de quem as enuncia. Dessa forma, os dados são construídos na dinâmica das interações.

Um dos elementos que se evidencia é a dificuldade dos professores e intérpretes em suas atividades laborais em prol da aprendizagem dos alunos com deficiência diante das relações comunicativas e, consequentemente, da constituição dos diálogos engendrados numa relação didática. Há uma necessidade de aprofundamento de pesquisas e práticas que atentem para as estratégias comunicativas, quando o professor apresenta enunciados escritos e orais, quando do uso da lousa e, ao mesmo tempo, o aluno surdo está direcionado a interpretação simultânea do intérprete de Libras. Ainda mais, essa é uma realidade significante para a inclusão de surdos, mas há também tantos outros públicos da educação inclusiva que provocam outras reflexões sobre as estratégias comunicativas.

Essa realidade é considerável ao ponto que ela se engendra em um Instituto Federal de Educação, que apresenta uma configuração deveras peculiar em relação a outras instituições públicas de ensino. Trata-se de uma escola com alunos com deficiência e que são assistidos por programas e núcleos que consideram em suas ações e atividades as especificidades desses, além de ter intérpretes com curso superior e/ou certificação PROLIBRAS e professores doutores no Ensino Médio, o que reverbera num diálogo direto com a prática discursiva seja de inclusão ou exclusão.

Em ambos os discursos se percebe um diálogo entre inclusão e exclusão, não somente do professor com falas capacitistas, mas o intérprete também constrói um discurso que coloca em questão a inclusão no Brasil em detrimento de padrões aceitáveis socialmente, mas especificamente das ações e atividades em sala de aula. Essa construção dialógica é realizada em função da presença social e histórica desses sujeitos, segundo Bakhtin (2003), quando não há isolamento entre a comunicação desses sujeitos, nesse caso, quando discursam prontamente com um pesquisador da e para inclusão.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2022
  • Aceito
    09 Fev 2023
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