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A poesia e a clínica propriamente psicanalítica

The poetry and the properly psychoanalytic clinic

La poesía y la clínica propriamente psicoanalítica

La poésie et la clinique proprement psychanalytique

Resumos

Este ensaio é dedicado à poética na clínica psicanalítica, entendida como a possibilidade de elaboração da dor e da emergência de processos criativos a partir do acolhimento, por parte do psicanalista, do testemunho de alguém que sofre. Referindo-se a um conjunto bastante heterogêneo de autores - de Sándor Ferenczi a Jacques Derrida, de Nicolas Abraham a Emmanuel Lévinas e Paul Celan -, nele são discriminados os fios que tecem a ética do cuidado - categoria situada nas fronteiras da psicanálise, da filosofia e da literatura - que inspira a concepção de uma “psicanálise a duas pessoas”.

Psicanálise Clínica; Criação; Ética; Filosofia; Literatura


This essay is dedicated to poetics in clinical psychoanalysis, understood as the possibility of pain elaborating and the emerging of creative processes from the hearing, by the Psychoanalyst, of the testimonial of someone who is in pain. Referring to a quite heterogeneous group of authors, from Sándor Ferenczi to Jacques Derrida, from Nicolas Abraham to Emmanuel Lévinas and Paul Celan, this essay points out the threads that weave the ethics of caring, category that lies among the frontiers of psychoanalysis, philosophy and literature, that inspires the conception of “two person psychoanalysis”.

Clinical Psychoanalysis; Creation; Ethics; Philosophy; Literature


Este ensayo está dedicado a la poética en la clínica psicoanalítica, como posibilidad de elaboración del dolor y de la emergencia de procesos creativos, a partir de la recepción, por parte del psicoanalista, del testimonio de alguien que sufre. Con referencia a un grupo bastante heterogéneo de autores -de Sandor Ferenczi a Jacques Derrida, de Nicolas Abraham a Emmanuel Lévinas y Paul Celan- el artículo deja entrever los hilos que tejen la ética de la cura -categoría situada en las fronteras del psicoanálisis, la filosofía y la literatura- que inspira la concepción de un “psicoanálisis a dos personas.”

Psicoanálisis Clínica; Creatividad; Ética; Filosofía; Literatura


Cet essai est consacré à la poétique dans la clinique psychanalytique, en tant que possibilité d'élaboration de la douleur et d'émergence de processus créatifs à partir de l'accueil, de la part du psychanalyste, du témoignage de celui qui souffre. L’essai est fondé sur un ensemble assez hétérogène d'auteurs - allant de Sandor Ferenczi à Jacques Derrida, de Nicolas Abraham à Emmanuel Lévinas et à Paul Celan - y sont indiqués les fils qui tissent l'éthique du soin - catégorie située aux frontières de la psychanalyse, de la philosophie et de la littérature - qui inspire la conception d'une "psychanalyse à deux personnes".

Psychanalyse Clinique; Création; Éthique; Philosophie; Littérature


Dossiê Sublimação

A poesia e a clínica propriamente psicanalítica

The poetry and the properly psychoanalytic clinic

La poésie et la clinique proprement psychanalytique

La poesía y la clínica propriamente psicoanalítica

Fábio Landa

Association de Psychanalyse et Anthropologie Transmission Recherche Echange

RESUMO

Este ensaio é dedicado à poética na clínica psicanalítica, entendida como a possibilidade de elaboração da dor e da emergência de processos criativos a partir do acolhimento, por parte do psicanalista, do testemunho de alguém que sofre. Referindo-se a um conjunto bastante heterogêneo de autores - de Sándor Ferenczi a Jacques Derrida, de Nicolas Abraham a Emmanuel Lévinas e Paul Celan -, nele são discriminados os fios que tecem a ética do cuidado - categoria situada nas fronteiras da psicanálise, da filosofia e da literatura - que inspira a concepção de uma “psicanálise a duas pessoas”.

Palavras-chave: Psicanálise Clínica. Criação. Ética. Filosofia. Literatura.

ABSTRACT

This essay is dedicated to poetics in clinical psychoanalysis, understood as the possibility of pain elaborating and the emerging of creative processes from the hearing, by the Psychoanalyst, of the testimonial of someone who is in pain. Referring to a quite heterogeneous group of authors, from Sándor Ferenczi to Jacques Derrida, from Nicolas Abraham to Emmanuel Lévinas and Paul Celan, this essay points out the threads that weave the ethics of caring, category that lies among the frontiers of psychoanalysis, philosophy and literature, that inspires the conception of “two person psychoanalysis”.

Keywords: Clinical Psychoanalysis. Creation. Ethics. Philosophy. Literature.

RÉSUMÉ

Cet essai est consacré à la poétique dans la clinique psychanalytique, en tant que possibilité d'élaboration de la douleur et d'émergence de processus créatifs à partir de l'accueil, de la part du psychanalyste, du témoignage de celui qui souffre. L’essai est fondé sur un ensemble assez hétérogène d'auteurs – allant de Sandor Ferenczi à Jacques Derrida, de Nicolas Abraham à Emmanuel Lévinas et à Paul Celan – y sont indiqués les fils qui tissent l'éthique du soin - catégorie située aux frontières de la psychanalyse, de la philosophie et de la littérature - qui inspire la conception d'une "psychanalyse à deux personnes".

Mots-clés: Psychanalyse Clinique. Création. Éthique. Philosophie. Littérature.

RESUMEN

Este ensayo está dedicado a la poética en la clínica psicoanalítica, como posibilidad de elaboración del dolor y de la emergencia de procesos creativos, a partir de la recepción, por parte del psicoanalista, del testimonio de alguien que sufre. Con referencia a un grupo bastante heterogéneo de autores –de Sandor Ferenczi a Jacques Derrida, de Nicolas Abraham a Emmanuel Lévinas y Paul Celan- el artículo deja entrever los hilos que tejen la ética de la cura –categoría situada en las fronteras del psicoanálisis, la filosofía y la literatura- que inspira la concepción de un “psicoanálisis a dos personas.”

Palabras-clave: Psicoanálisis Clínica. Creatividad. Ética. Filosofía. Literatura.

"O Poema é o paciente privilegiado da psicanálise"

Nicolas Abraham

A frase do título (entre aspas) de Nicolas Abraham (1978, p.346) pode ser surpreendente. Escrita nos anos 1970 quando o mundo psicanalítico era atravessado pelas tentativas de aproximação e mesmo de adequação às tendências em voga na época: o estruturalismo e o marxismo.

Lendo os escritos de Nicolas Abraham, por bastante tempo me coloquei a questão se ele mesmo compreendia o que escrevia. Sobretudo os primeiros textos, dentre os quais há um sobre a relação entre a arte e a psicanálise e outro artigo sobre o símbolo. Este último, que podemos considerar seguindo Geahchan (1978) e Derrida (1976) como um programa de pesquisa e trabalho de longo alcance, é particularmente penoso de se penetrar. Já o artigo sobre arte e psicanálise, tão complexo quanto o sobre o símbolo, termina esboçando um território comum à arte e à psicanálise que se pode pensar como sendo a terra-pátria da obra de Nicolas Abraham. Este território é sumariamente balizado ao final do seu artigo:

1°) o inconsciente de uma obra é evidenciado como uma dimensão indispensável à articulação estética; 2°) a obra deve ser considerada como um sintoma no sentido freudiano do termo, mas um sintoma de si mesmo, ao mesmo tempo suficiente e necessário para exemplificar os quatro polos da psique: o desejo e seu superego, o ego e sua realidade; 3 ) a obra inautêntica não tem inconsciente, ela não é a solução exemplar de nenhum problema que lhe seja intrínseco, não passando de psitacismo e macaquice, não mais do que uma exploração dos procedimentos do engano e da fascinação. (Abraham, 1978, p.118)

Fica insinuado então um território entre as fronteiras da psicanálise, da filosofia, da literatura.

Levinas (1968) conta a história de um discípulo que, vendo durante a noite seu mestre estudar à luz de uma vela, considerava esta visão como um pedaço do paraíso: um homem em paz, lendo atentamente. Ao aproximar-se silenciosamente para não incomodar, percebe as mãos crispadas, o mestre todo contraído. Observa os dedos afundarem na mão e para seu espanto, entrevê um filete de sangue correr das mãos do mestre. Pergunta então ao mestre se ele está se sentindo bem, se precisa de ajuda. O mestre responde que está estudando. O discípulo pergunta sobre a crispação e do sangue que escorre. O mestre responde que o estudo implica tudo isso, é preciso verter sangue para fazer viver o texto, para tocar a vida do texto sob a pedra das letras estáticas. Podemos pressentir Nicolas Abraham (1978) lendo seus autores, seus mestres, de estilos e horizontes tão diferentes – Freud, Husserl, Ferenczi – com uma tensão que não arrefece jamais. Sua leitura do caso do “homem dos lobos” é paradigmática. Longe de remanejar os dados num passe de prestidigitação para preencher algumas páginas em branco para publicação, vai arrancar o drama que se desenrola para além do desaparecimento dos próprios protagonistas – Freud e o “homem dos lobos”. Longe ainda de uma perspectiva exegética do texto, sábia e elegante, encontra a mensagem de um homem a outro homem e a traduz, com Maria Torok, por uma frase que vai dar o tom da música do que quer dizer psicanálise e nos abre, de certa maneira, uma via de entrada no espaço analítico: “salvar a análise do homem dos lobos, nos salvar” (Abraham & Torok, 1976, p. 111).

Somos imediatamente confrontados a uma passagem de fronteiras: o espaço analítico é por natureza um espaço extraterritorial onde se joga a vida, a morte. Somos confrontados a um risco e cada um de nós está nu nesse espaço, tocado pela mesma fragilidade, que nos obriga a lutar para salvar alguém e, no elã da mesma frase, nos salvar.

Arrancados, assim, brutalmente de nossa vida cotidiana e jogados num espaço completamente distinto, devemos nos habituar às leis desse território. Judith Dupont (Conferência, Paris, outubro de 2009), grande leitora de Ferenczi, tradutora das suas obras completas, diz que a contribuição maior de Ferenczi à psicanálise, a chave de seu pensamento, é a fundação de uma psicanálise a duas pessoas formulação anteriormente explicitada por Balint, discípulo de Ferenczi. Essa noção, aparentemente anódina, tem pesadas consequências. Estamos, sobretudo, habituados a viver a leitura como um ato de dominação. Um livro é um objeto que podemos fechar quando quisermos, temos o prazer de colocá-lo numa estante e reencontrá-lo onde o deixamos na véspera. Por vezes, lemos para extrair do texto o que nos dá prazer, como diante de um espelho obediente que nos diz o que queremos escutar. Por vezes, lemos como os entomologistas dispõem os insetos e os classificam. O entomologista fica feliz ao observar essas criaturas estranhas e assustadoras imobilizadas e impotentes, presas numa ficha por um alfinete. Completamente diferente é ler um texto e se deixar pegar pela mão para chegar a lugares em que não estamos seguros de encontrar o caminho de volta; os insetos na selva não são as criaturas dóceis dos catálogos classificados cuidadosamente pelos entomologistas. A tensão entre o autor e o leitor, longe das antologias completas ou parciais de tal ou tal época, torna-se por vezes insustentável. Um livro pode nos cortar o cérebro, como dizia Kafka citado por Alter (1992) a respeito dos livros que, segundo ele, merecem ser lidos. O conflito entre o autor e o leitor, esta tensão por vezes insustentável, convida-nos a fechar o livro e, querendo retornar à calma, desdenhosamente apagamos um dos polos do conflito: o outro. A proposição de uma psicanálise a duas pessoas interdita-nos esse ato tão natural quanto cotidiano: o apagamento de um polo do conflito.

Nesse espaço onde se está interditado de efetuar um gesto tão simples quanto banal, o de diminuir a intensidade do conflito apagando-se um dos polos ou, como o entomologista, reduzindo o outro polo a uma neutralidade reasseguradora, as mensagens preenchem e animam rapidamente o conjunto aparentemente tranquilo e acolhedor. Um homem diz querer efetuar um percurso analítico por ocasião de um período particularmente desgastante de sua vida. Analista ele mesmo, o homem chega ao encontro com seu colega com alguma esperança, mas também com muitas precauções conhecendo os limites da atividade que o espera. Uma corrente impulsiona-o, outra refreia. Ao final do encontro, um aperto de mão. Ele sente que o analista retém sua mão um segundo a mais. Para o segundo encontro, chega para prosseguir seu caminho, mas sua atenção já está aparentemente desviada por alguma coisa e, na saída, o mesmo aperto de mão marcado pelo segundo a mais. O terceiro encontro começa pela observação dita a respeito dessa estranha percepção – o segundo a mais. O homem teve de reconhecer que ele era um convidado, o hóspede encontrava seu albergue.

Nesse espaço particular – espaço analítico – esse aperto de mão de um segundo a mais, torna-se um ato fundador. Ele funda o espaço analítico com sua natureza específica, natureza heterogênea à clínica médica ou psicológica. Esse aperto de mão funda o espaço analítico nesse aspecto preciso que o faz sair dos territórios conhecidos e nos remete a um território no qual o acolhimento chega antes da compreensão, a atestação de existência do outro chega antes de qualquer justificativa ou explicação. Um território onde as leis da hospitalidade ganham toda sua importância. De acordo com nossos hábitos cotidianos, queremos conhecer antes de dizer sim, queremos decidir com conhecimento de causa, cientificamente e, se possível, racionalmente. A clínica médica ou psicológica se conforma perfeitamente aos nossos hábitos cotidianos. O especialista escuta, raciocina e decide se o material colocado à sua disposição cabe ou não em suas competências ou se é preciso sugerir outro especialista. Nesse espaço completamente distinto, dizemos sim antes de saber. Nossos hábitos nos conduzem a querer saber antes de decidir; aqui, o ato fundador é antes obedecer e depois compreender, obedecer para compreender, como fez Freud (1937/1985) diante de sua paciente, que lhe ordenou calar-se e deixá-la falar. Freud calou-se e nesse instante preciso, passou da hipnose (o apagamento do outro por excelência) ao espaço ao qual foi obrigado a conferir um nome, o espaço analítico. Poderíamos acrescentar que, como compreendia Derrida (Seminário sobre a hospitalidade, École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2000-2001) a hospitalidade é acolher o desconhecido, o impossível, então, nesse espaço, nada se passa se a lei fundamental da hospitalidade não é respeitada. Não estamos longe do que dizia Ferenczi (1982) a respeito da ternura e o estado de ternura. Retomando Freud, Ferenczi diz que o amor objetal é precedido de uma fase de identificação, um amor objetal passivo. Poderíamos traduzir, sem arriscar uma grande traição, o ato fundador de dizer sim a um recém-chegado.

Piera Aulagnier (1990) constrói uma cena de urgência. Um homem cai no abismo. No derradeiro momento, ele consegue agarrar-se a uma pedra. Ela diz que a identidade desse homem é mão-pedra. Trata-se da mão estendida buscando a salvação. Nesse mesmo registro extremo, Jean Améry (1995, p.70) nos diz que o homem que foi torturado permanece torturado para sempre, já que a confiança no mundo foi partida para sempre. A confiança partida no mundo é a ruptura do princípio esperança (Améry, 1995, p.79). Améry (1995, p. 62) afirma que o princípio esperança é a base de toda vida humana e acrescenta, de toda vida; saber que pode-se esperar ajuda no desamparo. O aperto de mão é um gesto cotidiano de saudação, mas é também outra coisa. Celan (2002) nos diz que o poema é o equivalente de um aperto de mão, o poema é um aperto de mão.

Aperto de mão gesto cotidiano de saudação, mas também reconhecimento do humano pelo humano. O poema para Celan (2002) é uma garrafa ao mar, sinal maior de desamparo que busca seu interlocutor, alguém que numa praia distante se dispõe a abrir a garrafa e se coloca a decifrar a mensagem. Michel Neyraut (1974) nos fornece uma imagem bastante eloquente da transferência. Suponhamos alguém numa esquina qualquer dando a cada um dos transeuntes um envelope; aquele que abre o envelope aceitou a transferência. A banalidade desta cena é apenas aparente. Ela implica considerar que alguém se desvia de seu caminho para receber uma mensagem que o obriga a um ato de acolhimento e de leitura. Para Celan (2002), o interlocutor é a terra-coração buscada pelo poema. Mandelstamm (1986) nos pergunta: qual é a característica mais assustadora do louco? É que o louco não chega a considerar a existência do homem diante de si. O louco para Mandelstamm (1986) pode ser assimilado ao homem indiferente, ao homem que segue seu caminho a qualquer custo, nada nem ninguém pode afastá-lo do seu caminho. O louco é o homem de princípios e certezas, incapaz de dizer “eu não sei”, “eu não sei nada”.

Na perspectiva de uma psicanálise a duas pessoas o universo de certezas e de princípios – universo que por vezes parece uma estranha liturgia – desmorona. Ferenczi foi ridicularizado e caricaturado como aquele que se colocava sempre do lado do paciente, considerado como um louco por suas extravagantes pesquisas clínicas. Não se trata do mesmo louco de Mandelstamm (1986), trata-se de outro: aquele a ser jogado no lixo, o idiota, uma espécie de Kaspar Hauser da psicanálise. O idiota, sabemos, coloca questões que não devem ser formuladas. A insistência de Ferenczi de sempre questionar o psicanalista desperta um certo desdém e convida a um certo sorriso complacente. Porém, a ideia de uma psicanálise a duas pessoas nos remete a um universo que rompe seus laços às clínicas médica e psicológica. O psicanalista é, sobretudo, um desamparado em sua solidão e fragilidade, obrigado a estar na condição de não saber a cada sessão qual a mensagem a decifrar. A perspectiva de uma psicanálise a duas pessoas nos impõe uma atitude particular: ela nos interdita de ser o louco de Mandelstamm (1986).

A interdição de ser o louco de Mandelstamm (1986) se encontra desde as primeiras linhas de a “Confusão de línguas entre os adultos e a criança” de Ferenczi (1982) em que se lê que o acolhimento baixo uma hipócrita benevolência profissional reproduz as condições nas quais aquele que procura uma análise viveu. Equivocadamente, poderíamos entender a crítica à atitude de hipocrisia profissional como uma observação de ordem moral. Com efeito, algumas linhas abaixo, encontramos uma indicação clínica precisa. Porém, não qualquer clínica, mas um assinalamento no interior dessa perspectiva de psicanálise a duas pessoas. Podemos ler, então, que a marca do trauma advém quando a criança abusada, buscando num sobressalto guardar a possibilidade de ser fiel a si mesma, emerge como uma testemunha incômoda em um esforço derradeiro de contar a um adulto de sua confiança o que lhe aconteceu. Este adulto recebe o relato como o louco de Mandelstamm (1986), simplesmente ignorando com arrogância o que acaba de escutar; então a criança desmorona, ela não consegue sustentar seu relato e cai, uma queda fora do mundo da palavra, não pode mais confiar em seus sentimentos, não é mais testemunha de si mesma, despenca numa existência mecânica. A garrafa ao mar não encontrou acolhimento ou, nos termos de Celan (2002), o poema não encontrou seu interlocutor, sua terra-coração. A partir deste ponto de vista, o analista é aquele que recebe o testemunho em uma língua que se tornou bem complicada em consequência das múltiplas peripécias das recusas anteriores. A tarefa do analista é oferecer a possibilidade de um aperto de mão, para colaborar com o outro a se levantar, ou para não deixar sua queda continuar. Pensamos que aqui podemos entrever a segunda chance ou o novo começo aventado por Balint (citado por Ricaud, 2000, pp. 91-93).

Testemunhar implica sempre um quadro jurídico e também a construção de um relato. A testemunha se dirige ao outro na esperança de ser acreditado, mas para aceder à credibilidade, deve construir um relato para convencer que diz a verdade. Pode mentir, mas tenta dizer a verdade e deve convencer que escolheu dizer a verdade. Primo Levi (1990) se perguntava se aqueles que voltaram dos campos de concentração foram capazes de compreender e fazer compreender suas experiências. Questão incontornável. Encontramos em Primo Levi (1990) e em Ferenczi (1982) o mesmo cuidado de advertir que eles não são as verdadeiras testemunhas: para um porque ele não percorreu o caminho até o fundo das câmaras de gás, portanto não poderia substituir os testemunhos dos que lá pereceram, poderia falar apenas do percurso que pode observar; enquanto Ferenczi (1982) nos lembra que ele vai falar do que imagina ser o vivido de uma criança abusada. Para os dois, encontramos a preocupação do testemunho, a preocupação de ser claro. Essa característica torna os textos de Ferenczi (1982) e de Primo Levi (1990) particularmente difíceis. Em aparência tudo é claro, existe mesmo um excesso de luz, nada a acrescentar às frases cuidadosamente expurgadas de toda sombra. Mas, tanto para um quanto para o outro, devemos ter presente a mesma precaução enunciada por Primo Levi (1990, p. 17): não confundir simplificação com compreensão. Trabalhar os textos da testemunha, deixar o texto da testemunha nos trabalhar, abrir seu caminho em nós não é tarefa fácil pelo fato de sermos colocados imediatamente numa espécie de interpelação que, com facilidade, nos leva a adotar uma atitude um tanto arrogante. Esta atitude nos conduz a certa precipitação, seja não acreditarmos, seja começarmos a duvidar, a ensaiar colocar em questão o relato da testemunha, ou então aderimos como boçais às palavras, como se costuma dizer, tomamos as palavras ao pé da letra.

A testemunha é um mensageiro. Sabemos a importância que Nicolas Abraham (1978) conferia à figura do mensageiro. Esta figura desempenha um papel essencial em duas de suas proposições maiores: a anassemia e a casca e o núcleo.

O mensageiro, segundo Nicolas Abraham (1978), é aquele que recebe alguma coisa de um polo desconhecido e vai transmitir a outro polo também desconhecido. Quanto mais o mensageiro é fiel à mensagem, mais o mensageiro torna-se a mensagem. A clareza tão almejada pela testemunha é marcada seguramente por uma obscuridade: o trabalho da mensagem sobre o mensageiro. Essa obscuridade é reivindicada por Celan (2002); é nessa obscuridade que se deve procurar a gênese do poema. O mensageiro que se tornou a mensagem permite-nos avançar um passo e dizer, com Nicolas Abraham (1978), que o paciente privilegiado da psicanálise é o poema. Sem essa atitude do analista disposto a decifrar o poema, quantos poemas perdidos.

No espaço analítico, assim esboçado a partir da psicanálise a duas pessoas, a construção do relato da testemunha e a decifração pelo analista nos permitem avançar na apreensão da importância do trabalho de nominação. Encontrar as palavras, não qualquer palavra, mas as palavras poéticas, aquelas no limite da zona clara e da zona de sombra. As palavras que dizem o que se pode ver, mas também capazes de fazer alusão ao que não se vê. Appelfeld (Conferência, Paris, agosto de 2008) diz que toda palavra deveria ser capaz de criar imagens e também, no sentido inverso, toda imagem deveria suscitar uma palavra. No âmbito dessa psicanálise a duas pessoas, trata-se de encontrar a cena a partir da qual o analista vai desempenhar o papel de catalisador, figura ferencziana por excelência, permitindo ao processo progredir como numa reação química em que o catalisador não participa, mas sem o qual nada se passa. O catalisador é destinado ao desaparecimento. O analista, afinal, é aquele que recebeu o testemunho e propôs uma decifração do poema.

Nicolas Abraham (1978) amou um poema de Poe. Traduziu um poema de Babitts. Enfim, diz que se deve levar o poema ao divã, não o poeta. Celan (2002) não diz outra coisa: eu sou a poesia. Ler o poema é entrar num universo simbólico particular, único. Nesse universo, cada símbolo é a marca de uma ameaça de morte e de sobrevivência e, para Nicolas Abraham (1978, p. 211), numa frase cortante, pouco habitual em seus escritos, o símbolo é o objeto da psicanálise na perspectiva de uma psicanálise a duas pessoas. A partir desse ponto de vista, estritamente ferencziano, a repetição não é apenas e tão somente um indício da pulsão de morte, mas um apelo a um encontro na fragilidade, diante da possibilidade de morrer, mas por sorte estamos ainda aí sem saber até quando.

Referências

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Améry, J. (1995). Par-delà le crime et le châtiment. Paris: Actes Sud.

Aulagnier, P. (1990). Um intérprete em busca de sentido – II. São Paulo: Escuta.

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Derrida, J. (1976). Fors. In N. Abraham & M. Torok. Le Verbier de l’homme aux loups (pp.7-73). Paris: Aubier Flammarion.

Ferenczi, S. (1982). Confusion de langue entre les adultes et l'enfant. In S. Ferenczi, Oeuvres complètes (Vol. 4, pp. 125-135). Paris: Payot.

Freud, S. (1985). Constructions en analyse. In S. Freud, Résultats, idées, problèmes (Vol. 2) Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1937)

Geahchan, D. J. (1978). A relire Nicolas Abraham. In Etudes Freudiennes, 13-14 (pp. 9-30). Paris: Denoël.

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Levinas, E. (1968). Quatre lectures talmudiques. Paris: Minuit.

Mandelstamm, O. (1986). De l'interlocuteur. In M. Broda, Dans la main de personne (pp. 53-60). Paris: Cerf.

Neyraut, M. (1974). Le transfert. Paris: PUF.

Ricaud, M. M. (2000). Michael Balint: Le renouveau de l’École de Budapest. Ramonville Saint-Agne: Érès.

Recebido em: 18/12/2009

Aceito em: 08/02/2010

Fábio Landa, Diretor de Seminario na Aparte (Association de Psychanalyse et Anthropologie Transmission Recherche Echange) e Membro permanente do comite de redação da revista Le Coq Heron. Endereço para correspondência: A/C Cibele Moreira Giacone, Rua Bocaina, 23, ap. 63. CEP: 05013-030, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: f.landa@orange.fr

  • Abraham, N., & Torok, M. (1978). L'Écorce et le noyau Paris: Aubier-Flammarion.
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  • Ricaud, M. M. (2000). Michael Balint: Le renouveau de lÉcole de Budapest Ramonville Saint-Agne: Érčs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2010

Histórico

  • Aceito
    08 Fev 2010
  • Recebido
    18 Dez 2009
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