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Rede Pessoal Significativa de Pacientes Submetidos à Cirurgia Cardíaca1 1 Artigo derivado da tese de doutorado da primeira autora sob orientação da segunda, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - Grant # BEX 4881/14-1).

La Red Personal Significativa de Pacientes Sometidos a Cirugía Cardíaca

Resumo:

A rede pessoal estabelecida frente ao processo cirúrgico cardíaco tem um impacto expressivo na recuperação e na reabilitação dos pacientes. Este estudo teve como objetivo compreender a dinâmica relacional das redes pessoais significativas de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. Doze pacientes pós-cirúrgicos participaram, por meio da realização de entrevistas semiestruturadas e da construção do Mapa de Redes. A análise dos dados foi baseada na Teoria Fundamentada. A família foi o grupo citado com maior ênfase pelos participantes. A função predominante exercida pelos membros da rede pessoal foi o apoio emocional, evidenciando as competências relacionais dos profissionais da saúde. Os resultados salientam atores geralmente invisibilizados pelos processos de atenção à saúde, também corresponsáveis pelo cuidado. Constata-se a relevância da dinâmica relacional entre as diferentes pessoas presentes no processo cirúrgico cardíaco, na construção de ações de cuidado favorecedoras do protagonismo dos pacientes.

Palavras-chave:
redes sociais; distúrbios do coração; cirurgia; enfrentamento

Resumen:

La red personal establecida frente al proceso quirúrgico cardíaco tiene impacto significativo en la recuperación y en la rehabilitación de los pacientes. La finalidad de este estudio cualitativo fue comprender la dinámica relacional de las redes personales significativas de pacientes sometidos a cirugía cardíaca. Doce pacientes postquirúrgicos fueran sometidos a entrevistas semiestructuradas y construyeron el Mapa de Red. El análisis de datos fue basado en la Teoría Fundamentada. La familia fue el grupo citado con mayor énfasis por los participantes. La función predominante de los miembros de la red personal de los participantes fue el apoyo emocional, evidenciando las competencias relacionales de los profesionales de la salud. Los resultados destacan actores generalmente invisibles en los procesos de atención a la salud, también corresponsables por el cuidado. Se evidencia la relevancia de la dinámica relacional entre las diferentes personas presentes en el proceso quirúrgico cardíaco, en la construcción de acciones de cuidado que favorecen el protagonismo de los pacientes.

Palabras clave:
redes sociales; cardiomiopatías; cirugía; enfrentamiento

Abstract:

The personal network established by the patient when facing the cardiac surgical process has a significant impact regarding patients’ recovery and rehabilitation. This qualitative study aimed to comprehend the relational dynamics of significant personal networks of patients who underwent cardiac surgery. Twelve post-surgical patients participated in the research. Data collection was carried out through semi-structured interviews and the Social Networks Map. Data analysis was based on Grounded Theory. Family was the most emphasized group mentioned by the participants. The predominant function of the members of the personal network of participants was emotional support, evidencing the relational competencies of the health care professionals. Results highlight actors who are generally invisible in processes of health care, but who are also responsible for it, evidencing the relevance of the relational dynamics of different subjects present in the cardiac surgery process, regarding health care actions that consider patients as protagonists of their treatment.

Keywords:
social networks; heart disorders; surgery; coping behavior

O foco das políticas e práticas de atenção à saúde tem se deslocado, ao longo dos tempos, de ações de conservação e de cura para ações de promoção de saúde, considerando-se que o processo saúde-doença tem implicações para além da esfera das decisões individuais e reconhecendo que a doença representa um estressor que incide sobre o sujeito e suas relações interpessoais. No marco dessa compreensão, no presente estudo entende-se por “rede pessoal significativa” o nicho interpessoal da pessoa, a soma de todas as relações que o sujeito distingue e define como significativas, em seu contexto relacional maior. A designação “significativa” alude ao fato de que é o sujeito que assim a percebe, quando nomeia os seus integrantes, com base no grau de vinculo relacional/afetivo estabelecido. Ou seja, trata-se de uma denominação singular do sujeito, estreitamente relacionada a suas experiências e percepções de relações (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Considera-se, ainda, que a temática “redes sociais” tem interfaces com diferentes posturas teóricas e práticas, sendo que a interface escolhida para a interlocução com o contexto hospitalar/cardíaco/cirúrgico foi a perspectiva psicológica/ sociológica, que tem como expoente Sluzki (1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

Considerando esse cenário como ponto de partida, no âmbito da cardiologia, a Cirurgia de Revascularização do Miocárdio (CRM) pode ser entendida como processo que repercute no ciclo de desenvolvimento individual e familiar. Abarca acontecimentos temporalmente sequenciais, porém não lineares, que devem ser compreendidos em sua realidade multifacetada, multifatorial e complexa, em torno dos quais aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais afetam-se recursivamente (Morin, 1982/2011Morin, E. (2011). Introdução ao pensamento complexo (4a ed.). Porto Alegre, RS: Sulina. (Original publicado em 1982)). Tal cirurgia caracteriza-se como um dos possíveis tratamentos para a Doença Arterial Coronariana (DAC), doença crônica e, portanto, incurável. A referida característica de cronicidade impõe que o processo de tratamento em relação à patologia cardíaca não se encerre após a realização da cirurgia, exigindo, do paciente, a adoção de hábitos que contemplem melhores condições para a continuidade de sua trajetória de vida (Banner, Miers, Clarke, & Albarran, 2012Banner, D., Miers, M., Clarke, B., & Albarran, J. (2012). Women’s experiences of undergoing coronary artery bypass graft surgery. Journal of Advanced Nursing, 68(4), 919-930. doi: 10.1111/j.1365-2648.2011.05799.x
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).

Nesse cenário, entende-se que a rede pessoal estabelecida pelos pacientes tem um impacto expressivo nas suas condições de saúde. No tocante às interlocuções entre “rede pessoal” e “saúde”, Sluzki (1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) salienta que uma rede pessoal estável, sensível, ativa e confiante é um elemento protetor de enfermidades e influencia no aumento da sobrevida. De fato, estudo epidemiológico internacional sobre as redes de relações configuradas em torno de doentes cardíacos, conduzido com base em coorte do renomado Estudo de Framingham, constatou que as relações sociais, mesmo as menos íntimas, influenciaram o comportamento e os hábitos de saúde das pessoas (Christakis & Fowler, 2009Christakis, N. A., & Fowler, J. H. (2009). Social network visualization in epidemiology. Norsk Epidemiologi, 19(1), 5-16. Recuperado de https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3337680/
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, 2013Christakis, N. A., & Fowler, J. H. (2013). Social contagion theory: Examining dynamic social networks and human behavior. Statistics in Medicine, 32(4), 556-577. doi: 10.1002/sim.5408
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).

À luz dessa informação, no âmbito da cardiologia, evidencia-se a importância da rede pessoal para o manejo da experiência de cirurgia. Cumpre salientar que os estudos encontrados sobre a temática, no contexto da cardiologia, têm como foco o “apoio social”, não se observando uma definição única do conceito na literatura, que ora remete à rede de suporte institucional, ora remete a atores específicos e ora remete às equipes de profissionais de saúde. Além disso, os estudos encontrados sobre “apoio social” partem de uma perspectiva epistemológica divergente da adotada no presente estudo, incluindo estudos operacionalizados por meio de instrumentos estruturados de avaliação.

Em tais estudos, a relevância do “apoio social” é marcada, de antemão, ao se encontrar correlação positiva entre a frequência de contato com amigos e parentes e a disponibilidade de ajuda, relatada por pacientes, na vida, em geral, e também com a ausência de sintomas cardíacos no período pós-cirúrgico (Jenkins, Jono, & Stanton, 1996Jenkins, C. D., Jono, R. T., & Stanton, B. A. (1996). Predicting completeness of symptom relief after major heart surgery. Behavioral Medicine, 22(2), 45-57. doi: 10.1080/08964289.1996.9933764
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). O casamento foi determinado como tendo um forte efeito protetivo na sobrevivência em um período de 5 anos após a cirurgia cardíaca (Idler, Boulifard, & Contrada, 2012Idler, E. L., Boulifard, D. A., & Contrada, R. J. (2012). Mending broken hearts: Marriage and survival following cardiac surgery. Journal of Health and Social Behavior, 53(1), 33-49. doi: 10.1177/0022146511432342
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). Coerente a essa perspectiva, estudo de King e Reis (2012King, K. B., & Reis, H. T. (2012). Marriage and long-term survival after coronary artery bypass grafting. Health Psychology, 31(1), 55-62. doi:10.1037/a0025061
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) constatou que pessoas casadas mostraram ter 2,5 vezes mais probabilidade de estarem vivas 15 anos após a cirurgia de revascularização do miocárdio do que aquelas que não estavam casadas, especialmente quando o casamento era percebido como altamente satisfatório.

Com base no universo de estudos encontrados, é possível supor que o funcionamento da rede pessoal significativa se apresenta como um processo complexo, cuja compreensão demanda uma perspectiva de estudo dinâmica e relacional. Nessa perspectiva, o termo “dinâmica relacional” pode ser entendido como as maneiras por meio das quais os sujeitos se relacionam e interagem, afetando-se recursivamente.

De acordo com as referências de Sluzki (1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), a rede pessoal significativa de uma pessoa pode ser composta por membros oriundos dos contextos da família, das amizades, colegas de trabalho e estudo e da comunidade, incluindo, no contexto da comunidade, sistemas de saúde e agências sociais. As redes pessoais significativas podem ser analisadas, também, em termos de características estruturais, funções desempenhadas pelos seus membros e atributos dos vínculos (Moré & Crepaldi, 2012Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. Recuperado de http://www.revistanps.com.br/index.php/nps/article/viewFile/265/257
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; Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

As características estruturais da rede compreendem as propriedades da rede como um todo, no presente estudo descritas em termos de tamanho (número de membros). Já as funções da rede compreendem a caracterização do tipo de intercâmbio interpessoal e são categorizadas como companhia social (estar junto), apoio emocional (apoiar, compreender, ser empático), guia cognitivo e de conselhos (compartilhar informações pessoais e proporcionar modelos de papéis), regulação social (reafirmar responsabilidades, neutralizar desvios de comportamentos), ajuda material e de serviços (colaborar de forma específica, com base em conhecimentos de especialistas ou ajudar financeiramente ou de forma instrumental) e acesso a novos contatos.

Por fim, os atributos dos vínculos compreendem especificidades dos vínculos estabelecidos pelos membros da rede. Neste estudo são analisados em termos da função ou funções predominante(s). Tais funções devem ser compreendidas como “qualificadoras” da rede, pois é com base nelas que a rede pessoal é considerada significativa, em termos da história do vínculo relacional estabelecido entre seus membros (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

Diante dessa caracterização e da constatação de que não foram encontrados estudos que abordem a influência das redes sociais no contexto da cirurgia cardíaca considerando-se uma perspectiva dinâmica e relacional, este estudo teve como objetivo compreender a dinâmica relacional das redes pessoais significativas de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, na perspectiva de pacientes pós-cirúrgicos. Sustenta-se, por meio dessa proposta, que o acesso a recursos da rede pessoal significativa do sujeito pode instrumentalizar os profissionais e pesquisadores a compreenderem os cenários com os quais trabalham, configurando-se como um meio de planejamento de intervenções de promoção de saúde no contexto hospitalar e da comunidade em geral.

Método

Participantes

Trata-se de um estudo qualitativo do qual participaram 12 pacientes pós-cirúrgicos, usuários de um hospital especializado em cardiologia, no sul do Brasil. O número de entrevistados teve como sustentação informações de um criterioso estudo, cujo objetivo metodológico foi o de estabelecer um número adequado de entrevistas no cenário da pesquisa qualitativa para atingir a saturação dos dados em função do tema pesquisado (Guest, Bunce, & Johnson, 2006Guest, G., Bunce, A., & Johnson, L. (2006). How many interviews are enough: An experiment with data saturation and variability. Field Methods, 18(1), 59-82. doi: 10.1177/1525822X05279903
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).

Os participantes da presente pesquisa foram recrutados de forma intencional, mediante a escolha de pessoas cujas características pudessem trazer informações significativas acerca do assunto em questão, considerando os objetivos propostos pelo estudo (Turato, 2013Turato, E. R. (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Petrópolis, RJ: Vozes.). Os critérios de inclusão dos participantes, objetivando atingir homogeneidade de características de seus perfis (Guest et al., 2006Guest, G., Bunce, A., & Johnson, L. (2006). How many interviews are enough: An experiment with data saturation and variability. Field Methods, 18(1), 59-82. doi: 10.1177/1525822X05279903
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), foram: (a) ter mais de 18 anos; (b) ter sido submetido pela primeira vez à cirurgia cardíaca; (c) ter realizado a cirurgia de forma emergencial; (d) ter sido submetido à cirurgia de revascularização do miocárdio apenas, sem a realização de outros procedimentos cirúrgicos cardiovasculares concomitantemente; (e) a realização da cirurgia ter acontecido em um período entre seis e 12 meses, na ocasião do contato com o pesquisador, para a realização da pesquisa.

As idades dos participantes variaram entre 54 e 79 anos, com tempo de pós-operatório que variou de cinco meses e 13 dias a um ano e um mês, participando do estudo sete homens e cinco mulheres. Quanto à situação conjugal, cinco participantes referiram ter uma relação estável. Destes, três residiam apenas com o companheiro e dois com o companheiro e outro familiar. Quatro participantes eram viúvos, sendo que dois desses viviam com os filhos e dois moravam sozinhos. Um participante era separado e morava com o neto. O participante que relatou ser solteiro morava com o irmão, e o participante que relatou ser divorciado residia sozinho. Cabe ressaltar que nenhum dos entrevistados havia participado ou estava participando de programas institucionais de reabilitação cardiovascular.

Instrumentos

Entrevista semiestruturada. Delineou-se um roteiro de entrevista, que consistiu em duas partes. A primeira abordou itens para caracterizar o perfil dos entrevistados através de um questionário de dados sociodemográficos. A segunda parte do roteiro foi composta de perguntas, que visaram ao conhecimento do processo da cirurgia cardíaca, buscando compreender a perspectiva das redes configuradas em torno da experiência.

Mapa de Redes. O roteiro de entrevista ofereceu subsídios para a construção do Mapa de Redes (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Tal instrumento foi utilizado de forma coadjuvante, seguindo temporalmente a realização da entrevista, para caracterizar graficamente a rede pessoal significativa dos participantes, aprofundando conteúdos relacionados à rede pessoal nomeada por eles. O instrumento é composto por três círculos concêntricos, divididos em quatro quadrantes, nos quais se visualiza objetivamente a caracterização da potencial rede pessoal significativa do paciente em relações de amizade, família, trabalho e estudos e comunidade. Graficamente, o sujeito pesquisado é representado pelo círculo central, e os membros de sua rede pessoal devem ser localizados em termos do quadrante em que se encontram e do grau de compromisso e intimidade em relação a si mesmo. Tendo em vista que, no contexto da comunidade, a presente pesquisa teve como foco os serviços de saúde, tal item foi incluído no Diagrama e subdividido em dois contextos de atenção à saúde - Hospitalar e da Atenção Básica, como se pode visualizar na Figura 1.

A título de esclarecimento, posto que alguns participantes referiram, além de pessoas específicas, agrupamentos de pessoas que tiveram em conta como integrantes da sua rede pessoal significativa, no presente estudo serão utilizadas as seguintes denominações: membro (refere-se a pessoa específica nomeada como constituindo a rede dos participantes), grupo (diz respeito a grupos de pessoas, cujo conjunto foi nomeado pelos participantes como parte de sua rede) e integrante (designando, de forma genérica, tanto membros quanto grupos nomeados pelos participantes, como parte de sua rede pessoal).

Figura 1:
Modelo do mapa de redes (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Adaptado com adição dos itens Contexto Hospitalar e Contexto da Atenção Básica, com permissão.

Procedimento

Coleta de Dados. O contato com a instituição foi realizado por meio da responsável pelo Serviço de Psicologia Clínica do hospital. Após serem contemplados os trâmites de formalização da pesquisa junto ao Comitê de Ética em Pesquisa, o acesso aos potenciais participantes aconteceu de forma pessoal, com base na mediação da equipe médica, que indicou os pacientes com perfil para serem participantes do estudo. A coleta de dados aconteceu de março a maio de 2014, sendo as entrevistas realizadas em espaço adequado para o fim, disponibilizado pela instituição hospitalar. Compuseram o grupo de participantes três pacientes usuários do ambulatório de consultas por convênios e nove pacientes usuários dos ambulatórios do SUS. A entrevista semiestruturada foi realizada primeiro (instrumento principal), sendo sequencialmente construído o Mapa de Redes (instrumento coadjuvante) em conjunto com os participantes, coerente à proposta de Moré e Crepaldi (2012Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. Recuperado de http://www.revistanps.com.br/index.php/nps/article/viewFile/265/257
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). Todo o processo foi gravado em áudio e transcrito, para fins de análise.

Análise dos Dados. O processo de organização e análise dos dados baseou-se nos preceitos da Teoria Fundamentada (Grounded Theory) (Strauss & Corbin, 2008Strauss, A., & Corbin, J. (2008). Pesquisa qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada (L. A. Rocha, Trad., 2a ed.). Porto Alegre, RS: Artmed.). Foram realizadas leituras sucessivas do material, que foi organizado em categorias, com base no processo recursivo de codificação aberta, axial e seletiva. Esse processo foi facilitado por meio do uso do software Atlas-ti, que potencializou o processo de organização e sistematização dos dados.

Considerações Éticas

A presente investigação foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos por meio de parecer consubstanciado número 20968713.0.0000.0121 que data de 09 de setembro de 2013. Foram seguidos os preceitos da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde que normatizam as condições da pesquisa que envolvem seres humanos, considerando a ética e a preservação da identidade dos participantes. Para preservar o anonimato, eles serão identificados, ao longo da apresentação e da discussão dos resultados pela letra P, seguida de um número sequencial (que indica a ordem de realização das entrevistas), pela idade dos participantes, sexo (M para masculino e F para Feminino) e tempo de pós-operatório (P.O.).

Resultados e Discussão

O conjunto de categorias de análise nucleado em torno do objetivo do presente estudo visa sistematizar os dados, de forma a retratar a apresentar as peculiaridades da dinâmica relacional das redes pessoais. A análise foi ancorada no instrumento Mapa de Redes, em que se analisa a especificidade do compromisso relacional, com subsídio na análise dos vínculos construídos, em quatro contextos diferentes, com base nos quais são nomeadas as categorias que seguem.

Relações no contexto da família

Essa categoria traz à tona a dinâmica dos vínculos estabelecida com base no compromisso relacional construído pelos participantes com os membros de sua rede pessoal significativa, no contexto da família, bem como as funções atribuídas aos membros nesse contexto. No âmbito geral do Mapa de Redes, a família é o grupo citado com maior ênfase pelos participantes, seja quantitativamente (em termos de números de membros citados e de distribuição nos diferentes níveis de proximidade), conforme se pode observar na Figura 2, seja qualitativamente (em termos de destaque nas narrativas).

A Figura 2 destaca a menção, pelos participantes, de 66 membros e um grupo em suas redes no contexto da família, totalizando 47,86% do total de membros citados no Mapa. Nesse cenário, predominou a menção dos filhos como fonte de apoio (18 membros, representando 26,86% do total de membros das relações na família). Tal cenário pode ser compreendido mediante a alusão ao estágio de desenvolvimento no ciclo de vida familiar em que os participantes se encontravam, uma vez que os estágios do meio da vida e tardio caracterizam-se pela construção de uma relação de adulto-para-adulto, mais igualitária, entre pais e filhos, tendo eles, inclusive, função mais central do que em outras fases, em relação ao cuidado para com os pais (Carter & McGoldrick, 2001Carter, B., & McGoldrick, M. (2001). As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. In B. Carter & M. McGoldrick (Eds.), As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar (M. A. V. Veronese, Trad., pp. 7-29). Porto Alegre, RS: Artmed.).

Figura 2:
Mapa de redes configurado em torno dos pacientes cardíacos pós-cirúrgicos que participaram da pesquisa.

As funções mais citadas como sendo exercidas por membros da família foram o apoio emocional e a ajuda material e de serviços. No intuito de melhor compreender o sentido da família para os participantes, cumpre ressaltar que a ela foram atribuídas as características de “suporte, de apoio, ... dando palavras de incentivo, que ia dar tudo certo” (P4, 57 anos, M, 8 meses P.O.), bem como de ajuda material e de serviços, para o desempenho das tarefas do cotidiano, como refere o depoimento a seguir: “Fazendo tudo que eu preciso. Lavar roupa, lavar tudo .... Vai em banco, tudo é ela.” (P3, 54 anos, M, 5 meses e 18 dias P.O.).

Essas funções podem ser compreendidas como análogas às encontradas em estudo de Bin, Costa, Vila, Dantas e Rossi (2014Bin, G., Costa, M. C. S., Vila, V. S. C., Dantas, R. A. S., & Rossi, L. A. (2014). Significados de apoio social de acordo com pessoas submetidas à revascularização do miocárdio: Estudo etnográfico. Revista Brasileira de Enfermagem, 67(1), 71-77. doi: 10.5935/0034-7167.20140009
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), sob a perspectiva do “apoio social” (apoio emocional e instrumental). No referido estudo, os participantes sinalizaram a relação de dependência da família estabelecida após o evento cardíaco, na medida em que os membros desse núcleo relacional foram apontados, no estudo, como principais articuladores das relações estabelecidas pelos pacientes com os demais contextos relacionais.

Complementando os dados quantitativos vislumbrados por meio da análise dos mapas (Figura 2), a análise das narrativas acerca do compromisso relacional estabelecido entre os participantes e os membros da família permite realçar, sob o ponto de vista qualitativo, no que diz respeito ao estabelecimento de vínculos, a presença de sentimentos ambivalentes, gestados em meio às relações familiares. Tais relações, por um lado, suscitam nos participantes a segurança que os sustenta (emocional e instrumentalmente) ao longo do processo cirúrgico: e, por outro, são caracterizadas como fazendo emergir um contexto de dependência, em que os cuidados disponibilizados são considerados excessivos.

Evidencia-se, dessa forma, que alguns membros da família podem exercer funções que excedem o desempenho da função de apoio material e instrumental, por exemplo. Trata-se de um tipo de função de apoio compreendida pelos participantes, eventualmente, como tendo efeito contraproducente para a sua reabilitação, na medida em que alguns familiares exercem uma atitude de tolhimento, impedindo que o sujeito retome as suas atividades e tarefas, como evidencia o depoimento que segue, recorte da narrativa de P6. “O meu marido ele é, assim ... ‘Não, tu não faz isso, tu não faz aquilo’... eu acho que ele quer fazer tanto, proteger tanto, que ele chega a me sufocar” (P6, 63 anos, F, 8 meses P.O.).

Observa-se, como exemplificado nesse relato, que a existência de uma relação permeada por cuidados considerados excessivos pelos participantes, podem atuar como fatores dificultadores para os processos de recuperação e reabilitação. Dados análogos foram constatados no estudo de Erdmann, Lanzoni, Callegaro, Baggio e Koerich (2013Erdmann, A. L., Lanzoni, G. M. M., Callegaro, G. D., Baggio, M. A., & Koerich, C. (2013). Understanding the process of living as signified by myocardial revascularization surgery patients. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 21(1), 332-339. doi: 10.1590/S0104-11692013000100007
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), no qual se observou que a condição pós-cirúrgica pode acentuar situações de conflito familiar, principalmente no que diz respeito às cobranças da família em relação às mudanças no estilo de vida do paciente.

Nesse sentido, destaca-se que a função e a efetividade dos vínculos construídos, em termos de apoio, devem ser considerados para além dos aspectos quantitativos (número de membros da rede, conforme expressos na Figura 2), valorizando, complementarmente, a qualidade do compromisso relacional estabelecido e o significado dos vínculos, na perspectiva nos sujeitos envolvidos nas relações. Mediante tal análise complementar, observa-se como a dinâmica relacional estabelecida, em termos de diferentes níveis de compromisso relacional, oculta e apresenta dilemas construídos nas relações dos pacientes com os membros da sua rede, mediante a demanda de adoção de um estilo de vida compatível com os cuidados de saúde frente ao problema cardíaco.

Relações de amizade

Essa categoria congrega o conjunto das relações de amizade estabelecidas pelos participantes da pesquisa, com base nos diferentes níveis de compromisso relacional estabelecidos e nas diferentes funções atribuídas a seus membros. Em termos comparativos, no que concerne ao número de membros nos diferentes contextos da rede pessoal, a Figura 2 destaca que as relações de amizade aparecem em segundo lugar, totalizando 30 membros e três grupos. Ainda, sob a perspectiva dos participantes, a função predominante dos membros no contexto das relações de amizade foi o apoio emocional.

De acordo com os resultados encontrados, evidencia-se claramente que as amizades configuram elementos relevantes, como recursos no enfrentamento da cirurgia cardíaca, para os sujeitos submetidos ao procedimento, concordando com resultados de pesquisa de Bin et al. (2014Bin, G., Costa, M. C. S., Vila, V. S. C., Dantas, R. A. S., & Rossi, L. A. (2014). Significados de apoio social de acordo com pessoas submetidas à revascularização do miocárdio: Estudo etnográfico. Revista Brasileira de Enfermagem, 67(1), 71-77. doi: 10.5935/0034-7167.20140009
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), que, estudando na perspectiva do “apoio social”, observaram que as pessoas mais importantes da rede pessoal para os pacientes submetidos à cirurgia foram os familiares e os amigos.

Além disso, quando se analisa o quadrante das relações de amizade no Mapa (conforme a Figura 2), é digno de nota o número reduzido de amigos citados na rede pessoal dos participantes: três participantes não citaram amigos e oito participantes citaram de um a três membros apenas no quadrante das relações de amizade. No contraponto desse cenário, uma participante referiu 20 amigos em sua rede significativa. Essa discrepância pode ser compreendida à luz da singularidade das vivências dos participantes (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), em termos de dinâmica relacional. Entende-se que, via de regra, são as relações no contexto familiar que mais consistentemente atuam como alicerce para o sujeito, em termos de funções desempenhadas, para o enfrentamento de situações de crise, representadas pela doença. No caso de P11, entretanto, mediante a fragilização da rede de relações familiar, as relações no contexto das amizades conformaram vínculos que a fortaleciam para o manejo da situação de crise representada pela cirurgia, como ilustra a narrativa a seguir: “Como eu te disse, a nossa família tá pequenininha. Eu tenho uma amiga, que é como família, que qualquer coisa que eu precisar, eu conto, posso contar” (P11, 59 anos, F, 10 meses P.O.).

Numa leitura geral, a presente categoria retrata que as relações de amizade, ainda que não sendo expressivas numericamente, quando consideradas as redes pessoais de cada participante, podem ser efetivas, na medida em que os aspectos qualitativos das relações estabelecidas (atributos do vínculo construído) suplantam a necessidade de ter muitas pessoas próximas como apoiadores frente ao processo cirúrgico. Alinhado a essa mesma compreensão, porém, desde uma perspectiva que não tem o foco na temática “redes sociais”, King e Koop (1999King, K. M., & Koop, P. M. (1999). The influence of the cardiac patient’s sex and age on caregiving received. Social Science & Medicine, 48(12), 1735-1742. doi: 10.1016/S0277-9536(99)00070-2
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) evidenciaram que a satisfação percebida de apoio social pelos pacientes em processo de submissão à cirurgia cardíaca relaciona-se ao aspecto qualitativo do cuidado, e não necessariamente à quantidade de pessoas capazes de oferecer apoio.

À luz dessa perspectiva, entende-se que as relações de amizade podem ser invisibilizadas pela própria dinâmica do processo cirúrgico, nos contextos de atenção à saúde, visto que, comparativamente, os membros da família são mais evidenciados do que as amizades, no que diz respeito ao planejamento de ações de cuidado. Com base nessa ideia, a presente categoria aponta para a relevância da consideração das relações estabelecidas pelo paciente no contexto de amizade, no sentido de que tais relações podem ser utilizadas como aliadas estratégicas no planejamento de intervenções em saúde.

Relações no contexto da comunidade

Essa categoria congregou elementos que evidenciaram o compromisso relacional, em termos de vínculos estabelecidos pelos participantes com pessoas no contexto da comunidade, em geral, bem como com pessoas do contexto dos serviços de saúde, destacando as funções de apoio assumidas pelos membros citados nesse contexto.

Em termos de tamanho das redes, conforme a Figura 2, os dados revelam escassa referência a membros no contexto da comunidade, sendo que seis participantes mencionaram não haver ninguém nesse contexto como membro de sua rede pessoal significativa. Dos outros seis participantes que mencionaram integrantes de sua rede no âmbito das amizades, destacou-se a menção a vizinhos por três pessoas, contexto também presente para pacientes cardíacos pós-cirúrgicos de estudo na perspectiva do “apoio social” (Bin et al., 2014Bin, G., Costa, M. C. S., Vila, V. S. C., Dantas, R. A. S., & Rossi, L. A. (2014). Significados de apoio social de acordo com pessoas submetidas à revascularização do miocárdio: Estudo etnográfico. Revista Brasileira de Enfermagem, 67(1), 71-77. doi: 10.5935/0034-7167.20140009
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). No referido estudo, a relação de “vizinhança” foi sinalizada como sustentando apoio emocional e instrumental após a cirurgia. Nessa mesma lógica, os resultados emergentes no presente estudo apontam como função predominante dos membros da rede significativa dos participantes, no âmbito da comunidade, o apoio emocional.

Constata-se, também, quando comparados os quatro quadrantes do mapa, que o contexto da comunidade (incluindo o cenário de serviços de saúde) é o espaço em que foram referidos mais “grupos” como integrantes da rede pessoal significativa dos participantes (Figura 2). Tais dados destacam que, ainda que não seja possível nomear individualmente alguns integrantes da rede, a sua funcionalidade aparece na coletividade, isto é, grupos específicos de sujeitos são significados como exercendo uma mesma função de apoio ao paciente submetido à cirurgia cardíaca.

Tal realidade pode ser melhor compreendida quando analisados os vínculos estabelecidos com os profissionais de saúde, tanto no âmbito hospitalar, quanto no contexto da atenção básica. Observa-se que, nesses contextos, foram citados quatro grupos como integrantes da rede pessoal significativa dos participantes, apontando que, no cenário da atenção à saúde, os participantes referem que existe um aporte de “equipe” por parte dos profissionais de saúde que os acompanham, validando o esforço conjunto dos cuidados em relação à sua condição. De forma contrária a esses resultados, pacientes pós-cirúrgicos de CRM participantes de estudo de Bin et al. (2014Bin, G., Costa, M. C. S., Vila, V. S. C., Dantas, R. A. S., & Rossi, L. A. (2014). Significados de apoio social de acordo com pessoas submetidas à revascularização do miocárdio: Estudo etnográfico. Revista Brasileira de Enfermagem, 67(1), 71-77. doi: 10.5935/0034-7167.20140009
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) sobre “apoio social” referiram que não houve qualquer tipo de apoio contínuo por parte dos profissionais de saúde após a alta hospitalar, salientando a percepção de que não se sentiram cuidados para além dos portões hospitalares. Ressalta-se, assim, a demanda da continuidade de cuidados e acompanhamento da equipe de saúde ao longo do processo cirúrgico, o que inclui o período de recuperação e reabilitação. Tal relevância é reiterada por meio de estudo conduzido com pacientes com DAC, cujos resultados apontam para a relação entre “apoio social percebido” por parte dos pacientes, ofertado pelos profissionais da saúde e realização de atividade física (Won & Son, 2017Won, M. H., & Son, Y. J. (2017). Perceived social support and physical activity among patients with coronary artery disease. Western Journal of Nursing Research, 39(12), 1606-1623. doi: 10.1177/0193945916678374
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).

No que diz respeito aos cenários de saúde pelos quais transitaram os participantes, conforme se pode verificar na Figura 2, os números de integrantes citados no âmbito da atenção hospitalar e da atenção básica foram similares. Além disso, cumpre ressaltar que os atores mencionados nesse contexto foram médicos, enfermeiros e psicólogo. A centralidade do médico nos serviços de atenção à saúde em cardiologia é referenciada pelos participantes do presente estudo, uma vez que foi o profissional mais citado por eles (dos 13 membros e quatro grupos referidos como integrantes da rede significativa dos entrevistados, oito foram médicos).

Com base na análise das narrativas e dos mapas, constata-se, também, que embora o fluxo de atenção à saúde do paciente vinculado ao SUS, num período após a alta hospitalar, o direcione para a Atenção Básica, o hospital acabou por se manter como referência. Dos nove participantes usuários do SUS, dois citaram apenas profissionais do contexto hospitalar, dois referiram profissionais da Unidade Básica de Saúde e um citou profissionais dos dois contextos. Esse panorama confirma a relevância da assistência hospitalar no cenário de atenção à saúde, no âmbito da cardiologia, principalmente por envolver práticas que se apoiam em recursos tecnológicos de diagnóstico e tratamento, calcadas numa perspectiva de compreensão do processo saúde-doença eminentemente biomédica (Wottrich & Moré, 2015Wottrich, S. H., & Moré, C. L. O. O. (2015). Visibilizando a rede pessoal significativa no contexto da cirurgia cardíaca: Entre os modelos biomédico e biopsicossocial de atenção à saúde. In A. M. Quintana & C. P. Farias (Orgs.), Psicologia hospitalar e saúde: Desdobramentos e particularidades (pp. 69-88). Curitiba, PR: Juruá.).

Os resultados do presente estudo apontam, entretanto, que, na perspectiva dos pacientes, ocupam lugares de destaque as tramas relacionais e os vínculos construídos entre profissionais e usuários. Depreende-se tal importância por meio da menção da função de apoio emocional, atribuída de forma predominante, pelos participantes, aos profissionais de saúde de suas redes, como evidenciam a narrativa de P9. “Até hoje ... eu passo ali, pra medir pressão, pra ver glicose, essas coisas, e elas (as enfermeiras da Unidade Básica de Saúde) são bárbaras. Conversam: ‘Ah, como tu tá bem!’” (P9, 67 anos, M, 9 meses P.O.).

Com base nessa narrativa, compreende-se que “sentir-se escutado” na relação com os profissionais da saúde que realizam ações de atenção na cardiologia foi valorizado sobremaneira pelos pacientes. Dados semelhantes podem ser encontrados nos resultados obtidos por Sarkar et al. (2011Sarkar, U., Schillinger, D., Bibbins-Domingo, K., Nápoles, A., Karliner, L., & Pérez-Stable, E. J. (2011). Patient-physicians’ information exchange in outpatient cardiac care: Time for a heart to heart? Patient Education and Counseling, 85(2), 173-179. doi:10.1016/j.pec.2010.09.017
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), que igualmente referem ser este um elemento importante para a construção de relações em que o paciente sinta-se respeitado e incluído em seu tratamento.

As discussões tecidas nessa categoria remetem à importância do contexto da comunidade como espaço de articulação dos cuidados em saúde. Sobretudo, destaca-se a relevância atribuída aos profissionais da saúde como potenciais membros das redes pessoais significativas dos pacientes, visibilizando que, para além de suas habilidades técnicas e instrumentais, são fundamentalmente valorizados por suas competências relacionais e pelo vínculo construído com o sujeito adoecido.

Relações no contexto do trabalho

Essa categoria diz respeito à trama relacional estabelecida pelos participantes no contexto de trabalho, levando em conta características estruturais das redes estabelecidas, o grau de compromisso relacional presente e as funções assumidas pelos integrantes. Os dados emergentes retratam escassa referência a membros da rede pessoal significativa no contexto laboral (no Mapa de Redes Geral constam sete membros, visualizados na Figura 2). Como recurso para compreender esse panorama, cumpre mencionar que, dos 12 entrevistados, seis não estavam desempenhando atividades laborais na ocasião da entrevista, em razão do processo cirúrgico em si ou da fase do ciclo vital vivenciada pelos participantes (dois estavam aposentados por tempo de serviço). A dificuldade no cenário da vida profissional após a cirurgia é uma realidade corroborada por outros estudos, segundo os quais restrições em relação ao exercício de atividades laborais e de trabalho após a cirurgia cardíaca acarretam repercussões emocionais e financeiras para os pacientes (Callegaro, Koerich, Lanzoni, Baggio, & Erdmann, 2012Callegaro, G. D., Koerich, C., Lanzoni, G. M. M., Baggio, M. A., & Erdmann, A. L. (2012). Significando o processo de viver a cirurgia de revascularização miocárdica: Mudanças no estilo de vida. Revista Gaúcha de Enfermagem, 33(4), 139-149. doi: 10.1590/S1983-14472012000400019
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; Erdmann et al., 2013Erdmann, A. L., Lanzoni, G. M. M., Callegaro, G. D., Baggio, M. A., & Koerich, C. (2013). Understanding the process of living as signified by myocardial revascularization surgery patients. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 21(1), 332-339. doi: 10.1590/S0104-11692013000100007
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).

Com base nos diferentes níveis de compromisso relacional apontados no mapa, o conjunto de dados permite inferir que, ainda que poucos em número, os colegas de trabalho ocuparam um lugar relevante, em termos de proximidade afetiva, uma vez que foram nomeados quatro integrantes no nível de relações íntimas e cinco integrantes no nível de relações intermediárias (Figura 2). Tal relevância é confirmada, ademais, pela constatação de que quatro participantes incluíram os seus ex-colegas e ex-chefe na rede nomeada por eles, mesmo que não estivessem mais trabalhando, confirmando que os vínculos construídos nesse cenário perduraram e conformaram-se como recursos disponíveis, que foram acionados mediante o enfrentamento do processo cirúrgico, como é possível visualizar no relato a seguir: “Mas cada vez que eu venho, ela (a pessoa que a empregava) já faz eu ir com algumas coisas pra casa, me dá um dinheiro, sabe. Ela está sempre me ajudando” (P10, 52 anos, F, 1 ano P.O.).

A presente categoria destaca importantes dados a serem contemplados no âmbito da gestão de pessoas nas organizações, no sentido da consideração das funções dos vínculos construídos no contexto laboral. Por um lado, destaca-se a existência de poucos membros no contexto de trabalho da rede pessoal significativa dos participantes, fato esse que pode ser entendido em razão do afastamento dos sujeitos das atividades profissionais. Por outro lado, evidencia-se que as relações estabelecidas no contexto de trabalho configuram recursos potenciais a serem ativados na situação de crise representada pelo processo cirúrgico. A possibilidade da ativação desses recursos parece passar pela existência de uma história de construção de vínculos, que permite que os participantes se sintam autorizados a acessar pessoas que, embora distantes fisicamente, mantêm-se disponíveis como fonte potencial de apoio.

Considerado o conjunto de dados apresentados no presente estudo e em termos de considerações finais do mesmo, por meio de uma perspectiva compreensiva sobre a dinâmica da trama relacional construída em torno do processo cirúrgico, os resultados trazem à tona atores geralmente invisibilizados em processos de atenção à saúde, apontando a existência de corresponsáveis pelo cuidado, que afetam decididamente os rumos dos processos de adesão ao tratamento e de qualidade de vida. Tais dados remetem à relevância da configuração de alianças entre as diversas pessoas presentes no processo cirúrgico cardíaco, como base para a construção de ações de cuidado, com vistas ao protagonismo dos pacientes. Os dados emergentes do presente trabalho referendam que, frente às demandas geradas pelo processo cirúrgico, a sua rede de relações estrutura-se em torno da função de apoio emocional. Sob esse prisma, é atribuída importante carga valorativa aos aspectos afetivos em torno dos quais acontece o processo de vinculação no contexto das relações familiares, comunitárias, laborais e de amizade, no universo relacional dos entrevistados.

Cumpre apontar que na literatura científica, no contexto da cardiologia, há o reconhecimento da efetiva influência da rede social configurada em torno de um individuo, através do estudo epidemiológico realizado junto à coorte do estudo de Framingham, citado na introdução desse texto. O presente estudo avança no sentido de adentrar na dinâmica das redes configuradas em torno dos pacientes cirúrgicos cardíacos, trazendo à tona as especificidades dos membros e das funções dessas redes, em diferentes cenários (relações familiares, relações de amizade, no contexto da comunidade/serviços de saúde e de trabalho), considerando-se que estudos que versem sobre a dinâmica relacional existente entre os diferentes atores presentes nessa amplitude de contextos não são encontrados na literatura.

Em termos metodológicos, no âmbito da pesquisa, o Mapa de Redes permitiu adentrar o mundo relacional dos participantes, possibilitando uma perspectiva compreensiva sobre os vínculos construídos em torno do processo cirúrgico, sob um aspecto relacional e dinâmico. Tendo em vista que a proposta original para a aplicação do Mapa parte do contexto de intervenção clínica em saúde, dado o potencial do instrumento, no âmbito da pesquisa, bem como a sua fácil aplicação, sugere-se que esse instrumento seja incorporado, não apenas em pesquisas com foco no processo saúde-doença, mas também nas rotinas dos profissionais em contextos de atenção à saúde.

A pesquisa esteve centrada no universo relacional de pacientes oriundos de um único centro de atenção à saúde, de uma região específica do País, em um período delimitado da experiência do processo cirúrgico. Entende-se, com base na compreensão de que o contexto é gerador de significados, que estudos longitudinais, realizados em diferentes contextos socioculturais e institucionais possam somar-se a este. Nesse sentido, sugere-se a realização de pesquisas que retratem diferenças contextuais e temporais na configuração do universo relacional dos pacientes, buscando cotejar as diferentes configurações contextuais e temporais do mapa com o estilo de vida e os hábitos de saúde das pessoas.

Os resultados discutidos no estudo permitem visibilizar as redes pessoais nas práticas de atenção à saúde como uma estratégia possível para a promoção de saúde e do desenvolvimento individual, familiar e relacional, em situações de adoecimento e crise. Nesse sentido, as atribuições do profissional de saúde, incluído como ator e potencial acionador e/ou mediador das redes pessoais dos pacientes, são concebidas no marco de uma posição epistemológica de reconhecimento da complexidade da análise do fenômeno saúde-doença, que requer um olhar integrativo e que tensiona o modelo assistencial vigente. Os resultados do presente estudo permitem, com base nesse tensionamento, o efeito recursivo de construção de práticas em saúde, no âmbito da cardiologia, balizadas pelo princípio da Integralidade.

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  • 1
    Artigo derivado da tese de doutorado da primeira autora sob orientação da segunda, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - Grant # BEX 4881/14-1).
  • 4
    Como citar este artigo: Wottrich, S. H., & Moré, C. L. O. O. (2017). Significant personal networks of patients who underwent cardiac surgery. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Suppl. 1), 422-429. doi: 10.1590/1982-432727s1201707

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2017
  • Revisado
    03 Ago 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
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