Acessibilidade / Reportar erro

A visibilidade do trabalho das mulheres ticunas da Amazônia

The visibility of work among ticuna women in the Amazon

Resumos

Este artigo se ocupa de uma análise do artesanato indígena da Amazônia, confeccionado pelas mulheres ticunas, o qual se apresenta como um produto importante no desenvolvimento sustentado da comunidade rural Bom Caminho, no estado do Amazonas. Trata-se de um cotejamento de dados observados e coletados no processo de consultoria realizada ao Sebrae/Amazonas no ano de 2004. Mostra o trabalho das mulheres como o elemento ordenador da economia doméstica na etnia ticuna, sob o primado de uma divisão sexual do trabalho que credita a elas responsabilidade maior pela manutenção da família.

trabalho; mulheres ticunas; etnicidade; Amazônia


This paper analyzes the Amazon Indian craftsmanship, done by Ticuna Women. Crafts are shown to be an important product in the strong positive development in the rural Amazon community. It works with data observed and collected in research done as a consultant for Sebrae/Amazonas in 2004. It shows how women work is an organizing element of the domestic economy for the Ticuna ethnicity. A principal feature of the sexual division of labor places women as having more responsibility for family maintenance.

Work; Ticuna Women; Ethnicity; Amazon


DOSSIÊ

A visibilidade do trabalho das mulheres ticunas da Amazônia

The visibility of work among ticuna women in the Amazon

Iraildes Caldas Torres

Universidade Federal do Amazonas

RESUMO

Este artigo se ocupa de uma análise do artesanato indígena da Amazônia, confeccionado pelas mulheres ticunas, o qual se apresenta como um produto importante no desenvolvimento sustentado da comunidade rural Bom Caminho, no estado do Amazonas. Trata-se de um cotejamento de dados observados e coletados no processo de consultoria realizada ao Sebrae/Amazonas no ano de 2004. Mostra o trabalho das mulheres como o elemento ordenador da economia doméstica na etnia ticuna, sob o primado de uma divisão sexual do trabalho que credita a elas responsabilidade maior pela manutenção da família.

Palavras-chave: trabalho; mulheres ticunas; etnicidade; Amazônia.

ABSTRACT

This paper analyzes the Amazon Indian craftsmanship, done by Ticuna Women. Crafts are shown to be an important product in the strong positive development in the rural Amazon community. It works with data observed and collected in research done as a consultant for Sebrae/Amazonas in 2004. It shows how women work is an organizing element of the domestic economy for the Ticuna ethnicity. A principal feature of the sexual division of labor places women as having more responsibility for family maintenance.

Key words: Work; Ticuna Women; Ethnicity; Amazon.

Nas sociedades indígenas da Amazônia, a família e as relações que dela resultam constituem-se no elemento organizador da economia. A divisão sexual do trabalho é o suposto da produção e tem nas atividades femininas o ponto basilar da organização do trabalho. Na etnia ticuna da Amazônia brasileira a mulher é preparada para realizar o trabalho de artesã. A menina quando atinge a menarca é submetida a um noviciado moçangol. Ela fica mais de 30 dias isolada num determinado local sem ver o sol. Somente a mãe ou a irmã mais velha têm a autorização do pajé ou xamã para entrar no local, dar-lhe alimento e auxiliá-la na higiene corporal. A menina entra em reclusão para aperfeiçoar as prendas domésticas e aprender a fazer os utensílios que irá utilizar na sua casa após o casamento, depois de passar pelo ritual da menina-moça.

A moça só estará apta para casar quando souber fazer vários objetos e prendas domésticas, pois "para ser digna de ter um marido bom caçador uma mulher deve saber fabricar uma louça de qualidade para cozinhar e servir a sua caça".1 1 Claude LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 33. Nenhum homem desposaria uma moça que não saiba fazer nada, considerando-se que "mulheres incapazes de fazer louça seriam criaturas malditas".2 2 LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 33. Além de a mulher saber tratar o peixe, cozinhar e lidar com os encargos da casa, realiza também um trabalho artístico de altíssima qualidade e fina sensibilidade.

Também o menino é submetido a esse processo de aprendizagem, já que, para assumir o compromisso matrimonial, ele deve primeiro saber fazer um mapa para pescar, caçar e se apropriar de todo o serviço reservado aos homens. O processo de iniciação ou noviciado envolve vários passeios dos meninos com alguns adultos na floresta. Os adultos arregimentam todos os meninos da comunidade em idade de iniciação (puberdade) e os levam para passear no mato. Ali os meninos aprendem a ser guerreiros, caçar e enfrentar a mata fechada.

Na sociedade ticuna, toda a lógica subjacente ao sistema que informa as ações e o comportamento indígena em suas relações sociais, particularmente no que se refere àquelas entre homens e mulheres, reside no modo como os sujeitos percebem e organizam o seu universo cultural. Nesse universo, as diferenças centrais entre os gêneros servem como baliza para determinar as posições ocupadas por eles no contexto social onde atuam.3 3 Maria Angélica MAUÉS, 1993. Nessa etnia as fundações de vida e de morte, as ações do cotidiano, o trabalho e as relações sociais são recortados pelo simbolismo. Homens e mulheres desempenham papéis sociais baseados em valores mitológicos que constituem o seu acervo cultural. Entre a mulher e a olaria, por exemplo, paira um simbolismo da feminilidade. Segundo Lévi-Strauss, "é à índia que compete fabricar os recipientes de cerâmica e servir-se deles, porque a argila de que são feitos é feminina como a terra".4 4 LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 28. Guardadas todas as situações de discriminação e exploração da mulher na sociedade ticuna, pode-se dizer que elas são parte integrante desse sistema simbólico. O trabalho é visto como um fator de maturação e desenvolvimento social para as mulheres, que só são desobrigadas das atividades laborais aos 60 anos de idade, momento em que elas vão assumir outras funções como conselheiras, dando palpites sobre o que fazer em determinadas situações e até impedindo as guerras.

O aspecto social do trabalho sustenta-se numa ética de solidariedade e relações com a natureza que prescinde das determinações derivadas das grandezas socialmente estabelecidas, quer seja no âmbito do lucro e da renda da terra, quer seja no aspecto do salário ou de outros tipos de troca econômica. O ajuri é o tipo de trabalho coletivo que mobiliza várias famílias para ajudar no plantio ou na colheita agrícola de uma outra família que se encontra em dificuldades e sem recursos. É o que nos explica Arthur Reis ao afirmar que "o trabalho coletivo, os adjutórios que mobilizam as pequenas coletividades na obtenção de maior rendimento na obra em que um, sem mais recursos, não pode executar tudo, o ajuri, é de origem indígena".5 5 REIS, 1966, p. 45. São as mulheres que organizam o ajuri depois de terem percebido as dificuldades de determinada família que necessita de ajuda. A família que recebe a ajuda deverá prover somente a alimentação aos trabalhadores e alguma gratificação com farinha ou outro produto fabricado pelo próprio coletivo de trabalhadores. Posteriormente, essa prática do trabalho coletivo passou a ser remunerada em algumas comunidades caboclas, pois essas comunidades sempre mantiveram um padrão de vida baseado na agricultura de subsistência nas terras de várzea que obedecem às leis de enchente e vazante dos rios. Torna-se necessário, em alguns casos, contratar trabalhadores para evitar a perda da colheita.

O significado social das atividades das mulheres é bem mais diversificado e participante do que geralmente possamos supor. Além de elas realizarem o importante trabalho de preparo do plantio, participam também das atividades de colheita de malva, piaçava e lavagem de juta, considerado trabalho pesado. No período colonial homens e mulheres trabalharam na produção das drogas do sertão sob o jugo do trabalho forçado. Construíram "intensa lavoura de cacau, de algodão, de café, de outras espécies comerciáveis".6 6 REIS, 1966, p. 138. No século XIX, Lourenço da Silva Araújo e Amazonas admoestava a sociedade branca afirmando que as mulheres índias não diferiam em qualidades morais em relação aos homens. Dotadas de um talento natural que parecia suprir a falta de educação formal, "as mulheres desempenham seu sublime ministério sobre a terra em companhia do homem [...], por sua ternura de indígena ao pé do berço de sua prole, e pela instintiva e angélica devoção em compartir a dor do que sofre". 7 7 AMAZONAS, 1984, p. 24-25.

Ainda é bem visível esse tipo de divisão social do trabalho na etnia ticuna. O artesanato, a arte da olaria e toda a produção realizada pelas mulheres possuem um cunho social significativo. Na comunidade Bom Caminho a comercialização do artesanato tem-se constituído numa fonte de renda às famílias. A Associação de Mulheres Artesãs Ticunas de Bom Caminho (AMATU) é um exemplo de entidade social que organiza e encaminha os produtos fabricados pelas mulheres para o mercado consumidor. Com a venda desses produtos as mulheres garantem o sustento de suas famílias. O trabalho de artesã constitui-se na arte da perfectibilidade da obra. Tanto a olaria quanto a tecelagem representam uma das maiores artes da civilização. Lévi-Strauss ressalta que, "nas sociedades européias tradicionais, o ofício de oleiro era muitas vezes exercido por um grupo, mais do que por um indivíduo isolado".8 8 LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 17. Nas sociedades dos povos da floresta e das savanas da América tropical a arte da olaria é realizada por mulheres, que podem formar grupos para esse tipo de ofício ou desempenhá-lo individualmente. Também na África a olaria é um ofício circunscrito às mulheres, tendo as etnias às vezes funções artesanais distintas no âmbito da olaria e da forja, assemelhando-se às castas. Para os ameríndios, sobretudo os jívaros e os dessanas da Amazônia, a olaria assume fundamental importância na divisão social do trabalho. Lévi-Strauss explicita que, "para se dar conta da passagem da natureza à cultura, do cru ao cozido, um conjunto acentua o fogo de cozinha, outro a olaria, cujo emprego culinário supõe adquirido o fogo doméstico".9 9 LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 174

As mulheres deveriam se apropriar desse ofício da arte do intelecto com exímia responsabilidade. Todo cuidado era pouco para não incorrer em qualquer deslize que pudesse arruinar o objeto em processo de fabricação. Além da atenção minuciosa e da paciência necessária ao processo de fabricação dos produtos, eram necessárias também a destreza dos dedos alongados e a delicadeza no manejo das peças. A percepção cognitiva era indubitavelmente a matriz de todo o processo de fabricação. Tudo deveria ser muito preciso, desde o tipo de argila e a textura da massa, até o ponto do forno e do cuidado para não dourar demais e nem de menos. Mantida a acuidade da percepção e da arte do ornato, as mulheres mostrar-se-iam capazes de fabricar peças de reconhecida habilidade e criação artística.

Deve-se notar que a divisão sexual do trabalho não esgota a noção de relações de trabalho transpassadas pelo corte de gênero. As relações de trabalho sexuadas comportam construções culturais e históricas interdependentes e complementares. Para Elizabeth Souza-Lobo, "as relações entre homens e mulheres são vividas e pensadas enquanto relações entre o que é definido como masculino e feminino: os gêneros".10 10 SOUZA-LOBO, 1992, p. 260. É assim que a divisão sexual do trabalho entra em inflexão enquanto conceito absoluto das determinações entre os sexos, passando a ser um dos muitos locus das relações de gênero. Gênero é uma categoria analítica que constrói uma relação social-simbólica, sem estabelecer uma mecânica de determinação. Do mesmo modo, gênero e etnia são conceitos que nasceram de um mesmo esforço, o de afastar-se de idéias e estereótipos que fazem da biologia o determinante de relações sociais.11 11 Cristina WOLFF, 1999, p. 191. Esses dois conceitos relacionais só têm sentido se forem tomados dentro de relações sociais envolvendo pessoas que se diferenciam, confrontando formas diferentes de identidades que se constroem nas relações de confronto e de convivência.12 12 Maria Odila DIAS, 1994.

Bom Caminho, solo da experiência de trabalho artesanal das mulheres da nação ticuna, objeto deste estudo, é uma comunidade rural do município de Benjamin Constant, incrustado na mesorregião do Alto Solimões, estado do Amazonas. Localizado no extremo-oeste desse estado e distante 1.118 km da capital Manaus, em linha reta, Benjamin Constant se destaca pela inserção de populações indígenas em atividades econômicas sob a égide do desenvolvimento sustentável. O município possui uma área de 8.742 km², com uma população estimada em 23.219 habitantes. A população masculina é de aproximadamente 11.973, e a feminina, 11.246.13 13 Dados de 2000 do IBGE. A condição humana dos indígenas da etnia ticuna está diretamente relacionada à identidade regional, expressa na relação harmoniosa entre o homem nativo e a natureza. A relação de desequilíbrio com o meio ambiente começou a se estabelecer, segundo Djalma Batista,14 14 BATISTA, 1976. a partir da presença exógena na Amazônia.

A relação de trabalho do indígena se dá a partir da sua experiência com a terra, a floresta e os rios, que são os maiores referenciais de sua vida. Em tempos pretéritos e assaz anteriores à conquista portuguesa na região (séc. XVII), a organização do trabalho e a divisão da produção, principalmente de alimentos, garantiam vida farta aos indígenas, que reservavam boa parte do seu dia para o lazer e a vida aprazível em família. Entre as populações indígenas a abundância de alimentos só era possível por causa do uso sustentável de todos os recursos naturais disponíveis, quando a caça e a pesca, a coleta e a agricultura, sobretudo na várzea, eram praticadas de acordo com as leis de enchente e vazante das águas.15 15 Iraildes TORRES, 2005.

Hoje, os tempos são outros e os indígenas se vêem aviltados em sua condição de vida. A perda da lucratividade do extrativismo da borracha e a ausência de investimentos em políticas públicas nas áreas rurais contribuíram para a pauperização da população local, cuja expectativa de vida é de 65,71 anos e o IDHM é de 0,640 (é o 3.934º do Brasil). O artesanato, que é um produto importante na identidade ticuna, potencialmente capaz de impulsionar o desenvolvimento sustentado da comunidade em estudo, assumia forma individualizada em sua produção e comercialização. A troca de produtos artesanais por roupas usadas e gêneros alimentícios não chegava a impactar a economia doméstica, embora contribuísse minimamente para minorar o estado de penúria dos indígenas.

A baixa lucratividade obtida na venda do artesanato no município de Benjamin Constant e/ou no município vizinho, Tabatinga, não compensava sequer o dispêndio de força física empregada na mão-de-obra, muito menos o trabalho cognitivo despendido na produção artística do produto. Algumas artesãs levavam seus produtos para serem comercializados na cidade de Letícia, onde também não obtinham um preço justo, pois eram identificados como souveniers made in Colômbia. A presidente da AMATU, Rosa Chota,16 16 Quando este trabalho foi realizado, o SEBRAE solicitou autorização de Rosa Chota e Elizabeth Souza para citá-las (com seus nomes verdadeiros) na pesquisa. Ao pesquisador Monteiro, já falecido, também foi solicitada permissão para usar o seu nome, e a própria obra pública dele também justifica esse tratamento. Já no caso de outras indígenas associadas e citadas em trabalhos relacionados com o estudo e a intervenção aos quais este artigo se refere, preferiu-se usar iniciais ou nomes fictícios em respeito aos seus direitos de anonimato. lembra que o baixíssimo preço dos produtos nem sempre cobria os gastos com o transporte (entrevista/2004).

A economia solidária foi a forma encontrada para gerar renda aos moradores da comunidade Bom Caminho. A economia solidária é um novo conceito que vem sendo construído no Brasil, de forma esparsa e difusa, desde a década de 1980. Trata-se de empreendimentos autogestionários que diferem do capitalismo, mas não sobrevivem fora de uma economia mercantilista – entenda-se, fora de um sistema de compra e troca.17 17 Paul SINGER, 2000. É sobretudo a partir dos anos 1990 que a economia solidária passou a ganhar vitalidade e visibilidade no Brasil. Algumas empresas que entraram em processo falimentar foram reabilitadas pelos próprios trabalhadores, que passaram a autogeri-las democraticamente com participação nos lucros e nas decisões. Mas a economia solidária não se restringe à compra de ações das empresas por parte dos trabalhadores diante da sucumbência dos negócios, atingindo sobremaneira a massa dos excluídos sociais.

Nezilda Culti18 18 CULTI, 2002. sinaliza para o fato de que os excluídos sociais despertaram para a realização de negócios comunitários para satisfazer suas necessidades e abrir novos caminhos na vida, por meio do uso de suas próprias forças e recursos, associando-se a outros e organizando-se em grupos, associações e cooperativas. A criação da Associação de Mulheres Artesãs Ticunas de Bom Caminho, em 5 de dezembro de 1999, foi o ponto de partida para a potencialização da economia dos indígenas da referida comunidade. O artesanato apresentou-se como uma excelente alternativa para o desenvolvimento sustentável local. Para potencializar essa alternativa, fez-se necessária a realização de atividades de revitalização do produto artesanal, através da capacitação das artesãs, pois o artesanato necessitava de um burilamento e refinamento que lhe imprimisse maior competitividade, necessária para acessar mercados exigentes e preocupados com a origem dos produtos. Essas ações foram desenvolvidas por técnicos do Sebrae do Amazonas, que não só ensinaram a metodologia de intervenção do design como também realizaram curso de associativismo.

O artesanato necessitava aliar a sensibilidade e a habilidade da artesã, na criação do belo, com o espírito do trabalho solidário e compartilhado voltado para o atendimento de necessidades coletivas e individuais. Abrir-se-ia uma oportunidade ímpar de potencialização e visibilização do trabalho indígena no mercado nacional e internacional. As peças artesanais levavam consigo os traços da cultura simbólica e associativista das mulheres ticunas da Amazônia. É patente o fato de serem as mulheres os sujeitos centrais na organização da economia doméstica da etnia ticuna. Elas realizam, inclusive, um tipo de trabalho mais pesado do que os homens, que é a preparação e capinação do roçado para o plantio agrícola. São elas que se ocupam da limpeza do campo sob a técnica da capinação e da coivara, que consiste na queimada do matagal retirado, num processo de adubação da terra para o plantio.19 19 TORRES, 2005. São as mulheres que se ocupam do trabalho de fiar, bordar, tecer a rede de dormir e a rede de pesca; fazem o jamaxi, que é o utensílio utilizado para iluminar a rede de pesca; fazem abanos ou leques, paneiros para o depósito de farinha, cestos, peneiras, balaios; confeccionam o jirau para tratar o peixe; fabricam o seu próprio fogão de barro e o forno de fazer farinha; tecem o tipiti, que é utilizado na fabricação de farinha; enfim, confeccionam vários outros implementos de cozinha com paciência, atenção e perfeccionismo (Mário Ypiranga Monteiro, entrevista/2001).

Para Lévi-Strauss, as mulheres indígenas da Amazônia "faziam uma cerâmica policromática de grande beleza e maestria [...]".20 20 LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 306. Essa aptidão técnica e artística é acompanhada de uma inflexão significativa da mitologia do arco-íris. Para os índios ticunas, o arco-íris é o senhor da argila de cerâmica. O método utilizado pelo herói para preparar sua paleta produz aparentemente uma mistura parcial, dando à pintura dos instrumentos um aspecto fundido, semelhante às nuanças do arco-íris. É o aspecto dessa pintura a causa principal do saber relativo aos instrumentos que as mulheres não podiam ver. Ao longo do tempo esse mito acabou perdendo vigor a ponto de serem as próprias mulheres ticunas que realizam, hoje, a pintura policromática na cerâmica.

É preciso desmistificar as idéias que tendem a diminuir e discriminar as mulheres no universo indígena. Elas desempenham um papel fundamental na tribo, sem o qual a economia doméstica não seguiria o seu curso normal. É fato incontestável a lucratividade do artesanato indígena de Bom Caminho, o qual beneficiou 136 famílias em 2001 e já gerou cerca de 991 empregos diretos sem a degradação do meio ambiente. Atualmente a AMATU beneficia diretamente seus 35 associados e indiretamente 61 famílias na própria comunidade e cinco famílias da comunidade de Porto Espiritual, totalizando 486 pessoas. Para Elizabeth Souza,21 21 Ver nota 16. membro da AMATU, a potencialização do artesanato ticuna trouxe de volta o orgulho da sua origem, "elevou a auto-estima indígena e trouxe uma perspectiva de vida melhor para todos" (entrevista/2004).

O momento presente exige que o sujeito histórico, homem e mulher, crie novas oportunidades e formas de trabalho socialmente reinventadas e auto-sustentáveis. Essa é a condição histórica de reinvenção da sobrevivência com o uso de novas técnicas de trabalho, em que as pessoas busquem a sua valorização, ampliem a sua capacidade e se redescubram condutoras da sua história.

  • AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Dicionário topográfico, histórico, descritivo do Alto Amazonas Manaus: Grafima, 1984.
  • BATISTA, Djalma. O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento Prefácio de Arthur Cezar Ferreira Reis. Rio de Janeiro: Conquista, 1976.
  • CULTI, Maria Nezilda. "O cooperativismo popular no Brasil: importância e representatividade". In: CONGRESSO EUROPEU DE LATINOAMERICANISTAS, 4., 2002, Amsterdã, Holanda. Mimeo.
  • DIAS, Maria Odila Leite da Silva. "Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças". Revista Estudos Feministas, v. 2, n. 2, p. 373-382, 1994.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. A oleira ciumenta Tradução: José Antônio Braga Fernandes Dias. Lisboa: Edições 70, 1985.
  • ______. O cru e o cozido Tradução: Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • MAUÉS, Maria Angélica Motta. Trabalhadeiras e camarados: relações de gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica Belém: Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA, 1993.
  • REIS, Arthur Cézar Ferreira. Aspectos da experiência portuguesa na Amazônia Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1966.
  • SINGER, Paul. "Economia solidária: um modo de produção e distribuição". In: SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de (Orgs.). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. p. 11-28.
  • SOUZA-LOBO, Elizabeth. "O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho". In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 252-265.
  • TORRES, Iraildes Caldas. As novas amazônidas Manaus: Editora da UFAM, 2005.
  • WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história Alto Juruá, Acre (1890-1945) São Paulo: Hucitec, 1999.
  • 1
    Claude LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 33.
  • 2
    LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 33.
  • 3
    Maria Angélica MAUÉS, 1993.
  • 4
    LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 28.
  • 5
    REIS, 1966, p. 45.
  • 6
    REIS, 1966, p. 138.
  • 7
    AMAZONAS, 1984, p. 24-25.
  • 8
    LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 17.
  • 9
    LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 174
  • 10
    SOUZA-LOBO, 1992, p. 260.
  • 11
    Cristina WOLFF, 1999, p. 191.
  • 12
    Maria Odila DIAS, 1994.
  • 13
    Dados de 2000 do IBGE.
  • 14
    BATISTA, 1976.
  • 15
    Iraildes TORRES, 2005.
  • 16
    Quando este trabalho foi realizado, o SEBRAE solicitou autorização de Rosa Chota e Elizabeth Souza para citá-las (com seus nomes verdadeiros) na pesquisa. Ao pesquisador Monteiro, já falecido, também foi solicitada permissão para usar o seu nome, e a própria obra pública dele também justifica esse tratamento. Já no caso de outras indígenas associadas e citadas em trabalhos relacionados com o estudo e a intervenção aos quais este artigo se refere, preferiu-se usar iniciais ou nomes fictícios em respeito aos seus direitos de anonimato.
  • 17
    Paul SINGER, 2000.
  • 18
    CULTI, 2002.
  • 19
    TORRES, 2005.
  • 20
    LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 306.
  • 21
    Ver
    nota 16 16 Quando este trabalho foi realizado, o SEBRAE solicitou autorização de Rosa Chota e Elizabeth Souza para citá-las (com seus nomes verdadeiros) na pesquisa. Ao pesquisador Monteiro, já falecido, também foi solicitada permissão para usar o seu nome, e a própria obra pública dele também justifica esse tratamento. Já no caso de outras indígenas associadas e citadas em trabalhos relacionados com o estudo e a intervenção aos quais este artigo se refere, preferiu-se usar iniciais ou nomes fictícios em respeito aos seus direitos de anonimato. .
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, CEP: 88040-970, Telefone: +55 (48) 3721-8211 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br e revistaestudosfeministas@gmail.com