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Pensadoras de peso: o pensamento de Judith Butler e Adriana Cavarero

Thinkers that matter: on the thought of Judith Butler and Adriana Cavarero

Resumos

O texto expõe o ponto de vista de duas grandes filósofas feministas da atualidade, Adriana Cavarero e Judith Butler, sobre subjetividade e relacionalidade, mostrando como ambas distanciaram-se dos temas específicos do feminismo de maneira a aprofundar e ampliar suas reflexões sobre política e ética. Questionando a tradição, Cavarero não compactua nem com o binarismo metafísico nem com a impessoalidade pós-moderna, combinando uma perspectiva feminista com a arendtiana da subjetividade embasada na relacionalidade. No entanto, diferentemente do pensamento de Cavarero, sob a perspectiva desconstrucionista de Butler a linguagem molda corpo e identidade. A subjetividade está presa às normas e valores sociais. Butler e Cavarero repensam a subjetividade, alinhando-se quanto à relacionalidade, ou seja, deslocando a política para longe do ser imune e realocando-a no ser vulnerável em relação com o outro e com os efeitos das regras e valores sociais impostos.

Adriana Cavarero; Judith Butler; feminismo; subjetividade; relacionalidade


The work presents the standpoint of two important contemporary feminist philosophers, Adriana Cavarero and Judith Butler, on subjectivity and relationality, showing how both moved away from the specific feminism motif in order to deepen and broaden their reflection on politics and ethics. Calling tradition into question, Cavarero agrees neither with the metaphysical binary, nor with the post-modern impersonality, combining a feminist and the arendtian perspectives of the subjectivity based on relationality. Contrary to Cavarero's thought, though, under Butler's deconstructionist standpoint language shapes body and identity. Subjectivity is "trapped" into social norms and values. Both Butler and Cavarero rethink subjectivity based on relationality, that is, displacing politics from the immune individual and reallocating it on the vulnerable individual in relation with the other and with the social rules and values imposed on them.

Adriana Cavarero; Judith Butler; Feminism; Subjectivity; Relationality


PONTO DE VISTA

Pensadoras de peso: o pensamento de Judith Butler e Adriana Cavarero

Thinkers that matter: on the thought of Judith Butler and Adriana Cavarero

Olivia Guaraldo

Università degli Studi di Verona, Itália

RESUMO

O texto expõe o ponto de vista de duas grandes filósofas feministas da atualidade, Adriana Cavarero e Judith Butler, sobre subjetividade e relacionalidade, mostrando como ambas distanciaram-se dos temas específicos do feminismo de maneira a aprofundar e ampliar suas reflexões sobre política e ética. Questionando a tradição, Cavarero não compactua nem com o binarismo metafísico nem com a impessoalidade pós-moderna, combinando uma perspectiva feminista com a arendtiana da subjetividade embasada na relacionalidade. No entanto, diferentemente do pensamento de Cavarero, sob a perspectiva desconstrucionista de Butler a linguagem molda corpo e identidade. A subjetividade está presa às normas e valores sociais. Butler e Cavarero repensam a subjetividade, alinhando-se quanto à relacionalidade, ou seja, deslocando a política para longe do ser imune e realocando-a no ser vulnerável em relação com o outro e com os efeitos das regras e valores sociais impostos.

Palavras-chave: Adriana Cavarero; Judith Butler; feminismo; subjetividade; relacionalidade.

ABSTRACT

The work presents the standpoint of two important contemporary feminist philosophers, Adriana Cavarero and Judith Butler, on subjectivity and relationality, showing how both moved away from the specific feminism motif in order to deepen and broaden their reflection on politics and ethics. Calling tradition into question, Cavarero agrees neither with the metaphysical binary, nor with the post-modern impersonality, combining a feminist and the arendtian perspectives of the subjectivity based on relationality. Contrary to Cavarero's thought, though, under Butler's deconstructionist standpoint language shapes body and identity. Subjectivity is "trapped" into social norms and values. Both Butler and Cavarero rethink subjectivity based on relationality, that is, displacing politics from the immune individual and reallocating it on the vulnerable individual in relation with the other and with the social rules and values imposed on them.

Key Words: Adriana Cavarero; Judith Butler; Feminism; Subjectivity; Relationality.

Como ser feminista sem permanecer feminista: este pode ser o lema que se poderia usar para a descrição do percurso intelectual de duas importantes e pioneiras pensadoras da atualidade. Se há algo que Judith Butler e Adriana Cavarero compartilham, entre outras coisas, é exatamente isto: ser feministas, líderes intelectuais do grande e diversificado cenário feminista ocidental, apesar de terem reorientado suas pesquisas recentes fora dos temas específicos do feminismo. Colocando de outra forma, ambas diriam – com orgulho – que são feministas, mesmo tendo, há bastante tempo, abandonado a chamada pesquisa feminista. Isso não significa que passaram por algum tipo de Kehre, rejeitando e renunciando seus trabalhos anteriores.

De fato, elas pertencem de maneira bastante diferente ao "gênero" do feminismo, com Butler criticando ferozmente a assim chamada matriz essencialista heterossexual do pensamento feminista francês desde seu primeiro trabalho mais importante, Gender Trouble,1 1 BUTLER, 1990. enquanto Cavarero propunha, nesse mesmo ano, uma genealogia feminista do pensamento, apesar da tradição predominante da metafísica masculina.2 2 CAVARERO, 1990a. Butler desconstruía e criticava as práticas implícitas da abjeção no pensamento feminista, revelando assim uma tendência estrutural interna ao discurso feminista, o da heterossexualidade. Cavarero, uma filósofa política, desconstruía o paradigma patriarcal do pensamento político, denunciando a amnésia insustentável que funciona em seu âmago, a saber, a diferença sexual.3 3 CAVARERO, 1992. Ambas estavam, por assim dizer, fazendo o papel de advogadas do diabo, desconstruindo esferas potencialmente libertadoras de agência – feminismo, liberalismo e marxismo –, não obstante se isolaram desde então, abandonando progressivamente a esfera estreita dos estudos feministas (ou queer), aspirando a uma reflexão sobre política e ética mais ampla ou mais profunda. Isso não significa que o ponto de vista feminista deixou de existir. Significa simplesmente que foi posto em seu lugar: o ponto de vista feminista ou situado, de 'diferença', se tornou a pedra fundamental para se repensar radicalmente a subjetividade.

1. Adriana Cavarero

Dadas as origens opressoras e falogocêntricas da ontologia moderna (o tal "indivíduo" do discurso político moderno é um ser racional encarregado de si mesmo, independente e soberano, desde que pressuponha um ser dependente, irracional e não-soberano para controlar), Cavarero, em seus trabalhos recentes, vê a possibilidade de apresentar a questão da subjetividade de forma diferente: o que vem depois do Sujeito, poderíamos dizer, parafraseando Nancy? O que vem depois, uma vez que a ficção do indivíduo moderno mostrou ser insuficiente para justificar, e incluir na esfera política, diferentes modos de ser? A questão não é apenas política, mas principalmente filosófica: para repensar a política, diz Cavarero, temos de repensar a ontologia. Não apenas uma ontologia – feminina – separada, mas uma ontologia que aprendeu do pensamento da diferença sexual a importância constitutiva da esfera simbólica: sem uma ordem simbólica capaz de articular a diferença sexual corporal – não apenas diferença biológica – não há possibilidade de excluir os paradigmas reificadores do discurso político e filosófico.4 4 Essa hipótese geral está na base dos trabalhos anteriores de Cavarero, dentro da comunidade filosófica de Diotima, que funciona desde o início dos anos 1980 na Universidade de Verona. Cavarero, uma de suas fundadoras, junto com a pensadora feminista italiana Luisa Muraro, deixou o grupo de pesquisa em 1992. Veja, entre outros, os seguintes ensaios nos quais Cavarero tematiza o problema de se declarar a diferença sexual e a corporificação dentro da ordem simbólica do patriarcado: CAVARERO, 1987 e 1990b. Veja também CAVARERO, 1991. Eis por que o esforço intelectual de Cavarero se torna progressivamente centrado na necessidade de se questionar filosoficamente a tradição, começando crucialmente com Platão, não apenas para criticá-lo, mas para especular sobre a possibilidade de dizer o corpo de formas que não o restrinja nem à oposição binária sugerida pela metafísica, nem às maneiras orgânicas e impessoais nas quais uma parte do pensamento pós-moderno o tem celebrado.

Em seu livro Corpo in figure5 5 CAVARERO, 1995. Cavarero lê a história do pensamento político como sendo caracterizado pela tentativa constante de elaborar modelos de ordem política na qual o corpo é expelido, recusado, obliterado, através das estratégias discursivas de apagamento e encobrimento. Criticamente, diz Cavarero, o corpo ausente estrutura e, paradoxalmente, legitima essa ordem política da qual é excluído. Não é necessário dizer que o paradigma relevante de tal corpo excluído é o da mulher: de Antígona a Ofélia, o corpo feminino é dotado de características perigosas e irracionais, que legitimam a necessidade de uma ordem política desincorporada baseada nas entidades fictícias que radicalmente negam suas origens maternais, portanto femininas e corporais. A ordem da polis, assim como a do Estado, encontraram sua legitimidade, propõe Cavarero, na necessidade de regular, ordenar e governar um mundo potencialmente feminilizado de laços, paixão e tolices.6 6 CAVARERO, 1995.

Pode-se ver facilmente como o tema feminista original de se pensar a diferença sexual7 7 CAVARERO, 1990a. está presente e funcionando, uma ferramenta de desconstrução capaz de detectar até que ponto a história da filosofia, assim como a matriz teórica da história do pensamento político, têm, ao mesmo tempo, negado e explorado o corpo, e, com isso, sua natureza sexuada. Para Cavarero, desconstruir ou ler de forma diferente a história do pensamento político e filosófico não significa simplesmente denunciar sua natureza patriarcal, mas também testar os limites de sua legitimidade, tanto filosófica quanto política. Alinhada com a tradição do pensamento feminista iniciada por Luce Irigaray, Cavarero está convencida de que a crítica e a exposição do patriarcado não levam necessariamente à celebração da igualdade, mas envolvem um questionamento mais radical dos próprios mecanismos da teoria.8 8 Veja IRIGARAY, 1985. Sua abordagem em relação à política permanece, portanto, caracterizada por um élan essencialmente teórico, que, como em Irigaray, não pode atingir seu alcance radical, a menos que esteja ansiosa por abandonar a racionalidade lógica tradicionalmente 'fria' do discurso filosófico. A interrrupção do maquinário filosófico nas origens de uma negação da diferença sexual e incorporação significa a exploração de caminhos de pensamento que descarta a abordagem dicotômica do conhecimento de todas as maneiras: não somente o conteúdo mas também a forma é necessária para 'tornar-se desfeita' através de meios expressivos e cognitivos que não necessariamente pertencem integralmente à severa disciplina da filosofia.9 9 A esse respeito, embora continue extremamente teórica em seu pensamento, Cavarero deve muito de seus insights mais interessantes sobre a incorporação e a sexualidade ao pensamento poético desenvolvido, em vários momentos e com objetivos diferentes, por algumas figuras-chave de uma 'tradição escondida' do pensamento feminino, que inclui, entre outras, María Zambrano, Karen Blixen, Ingeborg Bachmann, Hélène Cixous e a própria Luce Irigaray. Nos textos de Cavarero, desde Nonostante Platone,10 10 CAVARERO, 1990a. a linguagem desincorporada do pensamento está contaminada pelos elementos teatrais, poéticos, literários e visuais capazes de expressar a inadequação do discurso filosófico, abstrato, para articular a incorporação sem reduzi-la a um mero substrato indispensável ao estado de primazia da mente. Ao fazer isso, Cavarero revela camadas de preconceito e injustiça que estão longe de produzir um sujeito racional e transparente, testemunha da natureza opressora e disfarçada de qualquer substantivo abstrato que tente representar a humanidade em sua completude.

É também por isso que o trabalho desconstrutivo originalmente feminista é, de uma forma hegeliana, aufgehoben, apropriado e preservado pelos trabalhos subseqüentes de Cavarero. Aqui a questão da incorporação não é abandonada, mas transformada, por assim dizer, na proposta de se pensar a subjetividade em termos de uma desincorporação que não é simplesmente uma característica comum à feminilidade – e, como tal, oprimida, escondida, explorada – mas se torna inserida em uma dimensão de diferença singular radical. Cavarero desenvolve, portanto, a interessante noção de "unicidade incorporada" ("unicità incarnata"). A necessidade feminista de dar importância ao corpo, de falar de um ponto de vista incorporado que é o lugar da subordinação e opressão política feminina, é transformada na possibilidade de se pensar um tipo radicalmente novo de subjetividade, onde está em jogo uma noção provocadora do humano, baseada principalmente em uma singularidade que é, em corpo e mente, 'este e não outro'.11 11 Veja CAVARERO, 1997. A ordem simbólica que Cavarero tem como objetivo, portanto, nem é matriarcal, nem simplesmente feminista, mas se origina da necessidade feminista de criticar radicalmente as proposições universalistas que invalidam a existência do corpo e da diferença sexual. Ao mesmo tempo, no entanto, a busca por essa ordem simbólica se baseia no desafio de superação das oposições binárias sobre as quais o patriarcado fundou sua eficácia, enfatizando formas possíveis de conceituação do sujeito que não apague a incorporação nem a confine à esfera pré-semântica. A meta é ambiciosa, e está baseada em uma combinação audaciosa: Hannah Arendt e o pensamento da diferença sexual.

Em Tu che mi guardi, tu che mi racconti. Filosofia della narrazione,12 12 CAVARERO, 1997. Cavarero se refere explicitamente à crítica de Arendt do 'sujeito soberano' no desenvolvimento de uma noção de eu que é essencialmente relacional, isto é, baseada em uma dependência constitutiva do eu sobre o outro. A condição humana de dependência é visível desde o nascimento, quando o recém-nascido é fragilidade exposta ao olhar cuidadoso da mãe, mas também à possibilidade de vulnerabilidade. Tematizar a exposição, a fragilidade e a vulnerabilidade como pontos iniciais de uma noção relacional do eu significa, para Cavarero, encontrar uma cena existencial significativa na qual essa condição humana de dependência apareça. Ela a individualiza na prática comum de contar histórias de vida. A prática da narrativa é a cena preferida de relacionalidade e reciprocidade: não contar a alguém minha história, mas contar a alguém sua história, significa atribuir a essa pessoa sua identidade – responder a uma necessidade de unidade que cada pessoa percebe como essencial a seu ser. A identidade em forma de uma história é o resultado de uma prática relacional – entre o eu e o você –, não uma característica essencial de cada singularidade. A identidade é, portanto, algo dado a mim pelo outro, em forma de uma história de vida, uma biografia.

O ponto principal dessa proposta de identidade narrativa é que, na realidade, Cavarero critica profundamente cada tentativa de fixação de identidade na autobiografia, como se a necessidade de unidade e significado pudesse ser resolvida pelo sujeito tomado separadamente e 'encarregada de si mesma',13 13 Aqui veja também a leitura totalmente anti-essencialista, e bastante nietzscheana, da categoria arendtiana de "singularidade", feita por Bonnie HONIG, 1993. Além disso, a leitura que Honig faz de Arendt abriu uma série de apropriações inovadoras de seu pensamento, entre as quais se devem incluir as de Linda Zerrilli e Lisa Disch. Veja também HONIG, 1995. como se, em outras palavras, o eu pudesse justificar sua vida a partir de uma perspectiva individual. Longe de destinar a necessidade de unidade e significado à prática narcisista do eu de contar sua própria vida, a proposta de Cavarero da identidade narrativa coloca a fonte de significado no outro, o que conta minha história de vida para mim. Como conseqüência, a identidade é posicionada em uma prática relacional, que Cavarero expressa com um oxímoro significativo: "identità altruistica", "identidade altruísta", em que o eu e o outro não se excluem mutuamente, mas formam uma noção diferente de identidade, em que a coerência do eu consigo mesmo só pode vir do exterior, de outro eu que responde ao desejo do eu por unidade contando sua história, colocando em narrativa o caminho aparentemente sem sentido de sua manifestação no mundo.

Ecos arendtianos são quase inevitáveis, à medida que Cavarero se apóia totalmente na feroz crítica de Arendt à identidade como soberana sobre atos e obras do indivíduo. O conceito arendtiano do eu como singularidade é o ponto de partida de Cavarero: singularidade, para Arendt, é a característica primária de cada ser humano, mas não é o sinônimo de excepcionalidade: cada ser humano é único, não no sentido de que possui qualidades únicas, mas ao contrário, já que ele ou ela pode dar à luz o imprevisível. Singularidade, para Arendt, pode surgir apenas em ação, apenas diante de outros, e é completamente dependente do testemunho de outros para existir. É possível ver como a recusa da autobiografia de Cavarero se origina exatamente dessa ênfase arendtiana do eu como necessariamente relacionado aos outros, a um 'exterior' capaz de preparar o palco para a aparição do 'quem'. É exatamente este 'quem' que expressa a singularidade de alguém, enquanto 'o que se é' não compreende, por assim dizer, as características distintivas da singularidade. 'O que sou' pode ser contado por uma linguagem abstrata que substitui minha singularidade por características comuns: mulher, branca, classe média, européia, e assim por diante. 'Quem sou' pode ser dito apenas na forma de uma recontagem narrativa de minha aparição no mundo. Aparecer significa estar diante de alguém e depender desse alguém para receber em troca a confirmação de minha existência. Uma vida em solidão, diz Arendt, está 'literalmente morta'.

A mudança que Cavarero opera em relação a essa categoria arendtiana de singularidade é a de inseri-la no elemento inevitável do corpo. Enquanto, para Arendt, todos temos em comum 'o som da voz' e a 'aparência do corpo', para Cavarero a singularidade não pode ser pensada independentemente da incorporação. Em outras palavras, a singularidade sozinha não pode explicar totalmente a diferença radical que dá forma a cada singularidade, à medida que as diferenças corporais contribuem para formar 'quem se é'.

Usando os termos de Arendt, deve-se decidir se o fato de eu ser uma mulher e não um homem pertence à ordem de minhas qualidades (o que sou), ao invés de minha singularidade (quem sou). No coração da primeira alternativa há um sujeito, único e irreproduzível, que, no entanto, nasce 'neutro' em relação ao sexo e assim pode fazer de uma qualidade feminina uma hipóstase que pode ser confiada ao domínio da representação. No coração da segunda alternativa, há uma singularidade, igualmente única e irreproduzível; o nascimento mostra quem é o recém-nascido – a saber, sexuado, e confiado ao domínio contextual e relacional da expressão [...] Desde o nascimento, a singularidade que aparece e que provoca a questão fundamental 'quem é você?' é uma singularidade incorporada e portanto sexuada.14 14 CAVARERO, 1997, p. 61.

A mudança é testemunha da combinação original de Cavarero da perspectiva feminista com a perspectiva aredtiana – esta última abertamente ligada à abordagem fenomenológica que deve mais a Heidegger que a Merleau-Ponty, e, como tal, um tanto cega ao problema da incorporação.

A radicalização da questão da incorporação continua no trabalho subseqüente e mais recente de Cavarero, For More than One Voice,15 15 CAVARERO, 2003. onde o que importa é posicionar a singularidade incorporada no elemento físico da voz. Cada voz é singular, é única, diferente de qualquer outra, e dessa forma é o elemento material que testemunha a singularidade incorporada e a impossibilidade de negá-la. Através de uma releitura da história da filosofia como uma "história da desvocalização", Cavarero continua em seu projeto desconstrutivo iniciado com Nonostante Platone,16 16 CAVARERO, 1990a. enfatizando a proverbial recusa da filosofia de aceitar o elemento material da incorporação. A voz se torna, em sua perspectiva, a cifra de uma singularidade incorporada que, como tal, não pode ser pensada em termos neutros, já que imediatamente anuncia a natureza sexuada do falante. Além disso, no entanto, a voz humana – necessariamente sexuada e única – não é só som, assim como o corpo não é só carne, impessoal e irracional. Um dos maiores méritos do empreendimento de Cavarero é manter uma posição de originalidade tanto em relação à abordagem moderna quanto à pós-moderna até o ponto em que, enquanto denuncia a natureza desincorporada do discurso tradicional filosófico e seus epígonos contemporâneos, ela, ao mesmo tempo, não abraça a ambição pós-moderna de superar o humano e celebrar as versões impessoais da subjetividade que arriscam uma estetização excessiva da questão de identidade. A voz, portanto, é o signo da singularidade humana enquanto incorporação material, sonora, que pode tomar a forma de singularidade porque está destinada ao discurso. "O discurso não é apenas voz, mas precisamente na voz já é dado como que essa singularidade incorporada que o ouvido metafísico não quer ouvir."17 17 CAVARERO, 2003, p. 206.

A busca por uma ontologia da relacionalidade, a saber, uma ontologia que descarta as ficções filosóficas do Homem, do Indivíduo e que tais, de forma a tomar seus atributos de um corpo materialmente dependente, pelo nascimento, de outros, torna-se, nos últimos trabalhos de Cavarero, seu propósito para forçar a linguagem da filosofia em direção a um reconhecimento material da incorporação, onde a incorporação como tal é principalmente um evento relacional ao invés de um evento social. Se ainda há um espaço para o discurso filosófico, esse espaço é o da aceitação, dentro de suas estruturas, a um dado material da incorporação não simplesmente para comemorar a "filosofia do corpo" falsamente libertadora – cujo objetivo está contido essencialmente na estrutura da proposição, onde a filosofia inevitavelmente incluirá, apagará ou 'idealizará' o corpo em sua mudez – mas para produzir uma noção de subjetividade que mantém juntos voz e discurso, incorporação e singularidade, eu e o outro, e onde, por assim dizer, a relação vem antes da identidade.

2. Judith Butler

É interessante observar que os assuntos em pauta na última produção de Judith Butler apresentam uma afinidade muito grande com aqueles elaborados por Cavarero. Desde a publicação de The Psychic Life of Power18 18 BUTLER, 1997. Butler tematiza uma noção de 'eu' como essencialmente 'excessivo' ou 'além de si', significando, portanto, que a esfera de agência e subjetividade não pode ser levada em conta em termos exclusivamente construtivistas. Algo na agência excede a possibilidade de explicar, racionalmente e exaustivamente, as condições de emergência do eu. Mesmo se tivesse havido uma tentativa anterior de desconstruir a natureza aparentemente de si para si do Sujeito, como em Nietzsche e Freud, Butler parece reconhecer a necessidade de ir além das tentativas aparentemente anti-dogmáticas ou 'libertadoras' de uma 'genealogia da moral' e da psicanálise. A noção paródica da drag celebrada por Butler em Gender Trouble19 19 BUTLER, 1990. como uma forma de contestar os limites heterossexuais da inteligibilidade e resistir a eles, como uma forma de celebrar a queda pós-estruturalista de um eu sólido e transparente, cedeu lugar, em seus últimos trabalhos, a uma forma mais reflexiva e 'trágica' de lidar com as questões de identidade e subjetividade. A identidade é, para Butler, uma combinação complexa de estruturas normativas abrangentes que, como tal, precisam ser desconstruídas em sua suposta universalidade – e ocorrências existenciais e singulares que, como tal, inevitavelmente moldam nossos eus. Aceitar esta combinação de normatividade e contingência não significa, para Butler, resolver a questão da identidade na prática narrativa de contar histórias, como faz Cavarero, mas reconhecer a impossibilidade do sujeito de contar sua própria história de vida à medida que a primeira parte permanece obscura ao eu como tal. Enquanto Cavarero encontra no ato mútuo de contar histórias de vida uma maneira de resolver parcialmente a questão da auto-identidade através da noção de 'identidade altruísta', assim estruturando a 'alteridade' com a qual o eu está, desde o nascimento, relacionado como outra pessoa concreta, Butler expõe o problema da 'alteridade' ou exterioridade de outra forma.

Para ela, o problema está no campo normativo estrutural no qual todos nascemos:

Constituídos como um fenômeno social na esfera pública, meu corpo é e não é meu. Entregue desde o início ao mundo dos outros, carrega sua marca, é formado dentro do cadinho da vida social; somente mais tarde, e com certa insegurança, posso reclamar meu corpo como meu, se, de fato, eu alguma vez o fizer.20 20 BUTLER, 2004a, p. 25.

As "condições sociais da incorporação" são um aspecto essencial para toda a produção de Butler: sua abordagem à questão da identidade não aceita explicar a relacionalidade em uma relação diádica entre o 'eu' e o 'você', mas dispersa, por assim dizer, a alteridade constitutiva em uma dimensão social normativa que, como tal, não pode ser evitada. O 'mundo dos outros', para Butler, não é somente um mundo de outros eus, mas uma dimensão social na qual os "outros" também apóiam as normas culturais e sociais estruturais. Quanto a isso, a perspectiva de Butler demonstra um débito intelectual à análise foucaultiana de poder e conhecimento. A primazia do domínio impessoal estruturador, por assim dizer – o da linguagem – sobre as relações diádicas (o 'eu e você' dos quais fala Cavarero) ao moldar tanto corpo quanto identidade, atribui a Butler uma tradição filosófica que é muito diferente da de Cavarero. As raízes do pensamento de Butler são pós-estruturalistas e desconstrucionistas (Michel Foucault e Jacques Derrida), mas por trás deles pode-se detectar facilmente a matriz hegeliana.

A insistência de Butler – a partir de Gender Trouble – sobre a primazia de um conjunto de normas e regulações (tanto visíveis quanto invisíveis) na formação da identidade e da incorporação pode ser lida como a tentativa de enfatizar a dimensão idealista da incorporação, ao invés da dimensão material. Para Butler, na verdade, não há possibilidade de acessar o corpo em sua materialidade, uma vez que o corpo está, desde o início, 'aprisonado' em uma rede de significados e valores que contribuem para formar o contorno físico do próprio corpo.21 21 Veja BUTLER, 1993. O gênero é parte dessa estrutura, quando não a matriz de todas as estruturas. O gênero vem antes da possibilidade de um 'eu', é um tipo de portão para a realidade, pelo qual passam os seres humanos para alcançar a humanidade completa. O que acontece com os que não se enquadram no gênero binário? A resposta a esta questão, diz Butler, está no trabalho do pensamento crítico, com um questionamento da aparente naturalidade da inevitabilidade das estruturas da inteligibilidade de gênero, desfazendo sua suposta rigidez, de forma que aqueles que não se ajustem a qualquer norma de gênero existente possam adquirir um nível de viablidade. Por isso Butler responderia à suposição de Cavarero de que cada ser humano é único e sexuado (assumindo assim que os sexos são dois) através de um questionamento radical dessa suposição, de sua natureza 'verdadeiramente material': não há possibilidade de se aproximar da insegurança da realidade, para Butler, já que a realidade está sempre em contato com uma idealidade que determina o que é e o que não é real.

No pensamento de Butler, em outras palavras (e parece ser uma constante, início inalterado), pode-se perceber a inacessibilidade do corpo "em carne e osso" – sendo sempre parte da estrutura de inteligibilidade – não como a redução idealista da materialidade para a idealidade, mas como a atenção necessária que cada "ordem do discurso" sobre o corpo não pode almejar ao contar a verdade do corpo. Não há verdade do corpo, nenhuma materialidade real inegável – como desafiaria Cavarero, ao definir o dado da diferença sexual –, mas apenas uma série de discursos estratégicos que produzem corpos de acordo com certos regimes de verdade. O problema, portanto, está em desfazer esses regimes de verdade não com o propósito de 'liberar' o corpo de uma vez por todas – Foucault docet –, mas produzir, progressivamente inclusive, estruturas emancipatórias de inteligibilidade que, como tal, são suscetíveis a mudança, revisão e emenda.22 22 Veja BUTLER, 2004a.

No entanto, como mencionado anteriormente, Butler é inteligente o bastante para não reduzir o problema da subjetividade a uma esfera social que constrói totalmente o eu. Em seu livro Giving an Account of Oneself,23 23 BUTLER, 2005. ela reflete mais filosoficamente sobre a 'natureza' dessa alteridade com a qual o eu está constitutivamente ligado e, baseando-se fortemente em Levinas, coloca a questão do Outro como algo que não incorpora simplesmente as normas e estruturas sociais. A relacionalidade original que forma nossos corpos e eus está marcada, desde o início, por um discurso colocado para nós por outros. Este outro aparece diante de mim e faz exigências sobre mim, dessa forma estruturando meu ser desde o começo. Para Butler, essa cena interlocutória levinasiana é a prova de que o sujeito nunca é self-made, autônomo, independente, mas 'entregue' desde o princípio a uma exterioridade que pode ser personificada, a saber, tomar a forma da 'aparência' de um outro ser humano.

No entanto, Butler não aceita totalmente a proposta levinasiana, à medida que ela quer definir essa alteridade também em termos psicanalíticos. Combinando a filosofia ética de Levinas com a psicanálise de Jean Laplanche, Butler afirma que essa cena interlocutória, a estrutura retórica de referência, como uma forma de conceber a relacionalidade original, tem muito a ver com as impressões originais produzidas na criança pelo mundo adulto.24 24 O problema da psicanálise parece constituir um abismo intransponível entre as duas pensadoras, dadas também suas diferentes experiências intelectuais. Como é importante para a questão aqui, podemos resumir o abismo assim: para Butler, a psicanálise não pode ser evitada, uma vez que é um modo de compreender a maneira na qual o eu não consegue explicar-se totalmente buscando posicionar a opacidade do eu para si mesmo em uma dimensão reprimida – ou inconsciente. A tarefa ética da psicanálise é, para Butler, a de iluminar os laços inevitáveis que constituem o eu, não para superá-los, mas para poder lidar com certo grau de ansiedade que as relações primárias de dependência – e sua assimetria – podem insinuar no 'eu' em formação. Cavarero, por outro lado, parece atribuir a falha da explicabilidade ou da narratibilidade total do eu a uma dimensão que, como tal, permanece imanente à própria relação, sem procurar ser resolvida, ser mais compreensível através da história da repressão que, como tal, é para ela um artigo de fé. Para um diálogo interessante sobre esses tópicos entre as duas pensadoras, veja BUTLER e CAVARERO, 2005.

Essa alteridade, entretanto, não deve ser essencializada, diz Butler, nem destinada ao conceito de 'ausência' ou 'vazio' de origem lacaniana. Baseando-se em Jean Laplanche, Butler quer definir essa alteridade como algo que é construído dentro do eu na infância, através das impressões do mundo adulto. Essas impressões, dadas à criança que não tem instrumentos para lidar com elas, tornam-se reprimidas e, portanto, constitutivas do inconsciente.

Jean Laplanche, dentro de uma veia psicanalítica, discute algo semelhante [para Levinas] quando ele alega que o discurso do outro, concebido como uma exigência, se insere ou se insinua no que mais tarde será chamado, de uma forma teórica, 'meu inconsciente'. De uma certa forma, essa nomenclatura estará sempre malogrando em si mesma. Será impossível falar sem erro de 'meu inconsciente', porque não é algo que se possua, ao contrário, é o que não posso possuir. [...] Compreender o inconsciente, no entanto, é exatamente compreender o que não pode pertencer, falando de forma adequada, exatamente porque desafia a retórica do pertencimento, é uma forma de estar despossuído, através do discurso do Outro desde o início.25 25 BUTLER, 2005, p. 36.

A opacidade do sujeito para si mesmo, portanto, tem algo a ver com a relação primária (não apenas com uma mãe – a propósito, Butler nunca pronuncia esse nome) da criança com um conjunto de pessoas adultas, e é a relação com tal mundo adulto que estrutura uma dimensão inconsciente do eu. Essas impressões iniciais não são simplesmente de cuidado, mas também podem ser violentas.

O eu que ainda estou por ser (no momento em que a gramática ainda não permite um 'eu') está preso, desde o princípio – mesmo se for a uma cena de violência, um abandono, uma destituição –, a um mecanismo de apoio à vida, já que é para o melhor ou para o pior o apoio sem o qual eu não posso ser, do qual depende meu próprio ser, o que meu próprio ser, fundamentalmente, e com uma ambigüidade irredutível, é. Este é um cenário, se podemos chamá-lo assim, ao qual voltamos, dentro do qual nossa ação acontece, e que gentilmente ou talvez violentamente imite a postura do controle da narrativa.26 26 BUTLER, 2005, p. 53.

A vulnerabilidade é o centro do eu relacional, o eu que não se consegue considerar totalmente: ser exposto aos outros, ser essa exposição, é o que qualifica o humano como tal. Pode-se facilmente detectar aqui os ecos da noção de exposição de Cavarero, vital à sua noção de identidade altuísta: cada ser humano é, ao nascer, exposto ao mundo, mas primeiramente ao olhar da mãe, a quem o bebê se dirige como a primeira 'exterioridade' à disposição. Esse panorama maternal de olhar e voz, recíproco e pré-semântico, é o que Cavarero explora como uma metáfora sugestiva possível, capaz de chegar bem próxima da noção de uma ontologia relacional. A falácia da autobiografia reside exatamente nesta cegueira à exposição; o sujeito autobiográfico é incapaz de aceitar o fato de que nosso ser constitutivo, exposto aos outros pelo nascimento, oblitera a possibilidade de um sujeito autotransparente, autocontável.27 27 Vale a pena mencionar que, quando Butler discute com profundidade a noção de identidade narrativa de Cavarero, parece um pouco equivocada em sua leitura. De fato, ela confunde biografia e autobiografia, como se a noção de identidade narrativa de Cavarero tivesse que ver com um simples impulso autobiográfico para recontar-se sem problemas: "Em sua visão [de Cavarero] pode-se somente contar uma autobiografia a Outro, e pode-se apenas fazer referência a um 'eu' em relação a um 'você': sem o 'você', minha própria história se torna impossível". Não fica claro se Butler compreende corretamente a posição de Cavarero, na medida em que parece pensar que Cavarero propõe uma prática autobiográfica direcionada a um você indispensável, embora autobiográfico. Enfatizo essa leitura aparentemente equivocada, pois o que Butler diz a seguir parece refletir muito a posição de Cavarero: "Essa exposição, por exemplo, não é exatamente narrável. Não posso ser responsável por ela, mesmo quando estrutura qualquer história que eu possa contar. As normas pelas quais procuro me fazer reconhecível não são exatamente minhas. Não nasceram comigo, a temporalidade de sua emergência não coincide com a temporalidade de minha própria vida. Então, ao viver minha vida como um ser reconhecível, vivo um vetor de temporalidades, um dos quais tem minha morte como seu ponto final, mas outro dos quais consiste da temporalidade social e histórica dessas normas pelas quais minha reconhecibilidade é estabelecida e mantida" (BUTLER, 2005, p. 24). Exposição, vulnerabilidade e dependência de outros são exatamente o que impossibilita um 'relato de si': isto é o que as duas pensadoras enfatizam muito. E é este seu ponto de união: de Giving an Account of Oneself28 28 BUTLER, 2005. a Precarious Life,29 29 BUTLER, 2004b. a produção de Butler tem, progressivamente, centrado suas reflexões na possibilidade de um sujeito responsável apesar da impossibilidade constitutiva do sujeito como tal para 'contar de si'. A questão central ao esforço de Butler é: há uma possibilidade de uma ética que não pressuponha um sujeito totalmente autônomo e racional? Novamente, a resposta de Butler é completamente levinasiana: justamente porque a ética precede a ontologia, o 'eu' é o efeito de um cenário interlocutório onde o Outro me exige, demanda minha responsabilidade sobre ela. Este outro interlocutório é que dá forma à minha subjetividade – um 'eu' que me questiona, exigindo uma resposta, uma palavra, um olhar, um toque. Subseqüentemente, 'eu' sou o efeito dessas relações estruturais: não apenas como um sujeito consciente, diz Butler contaminando Levinas com a psicanálise, mas também como um sujeito que está atento a ser incapaz de controlar-se, dominar-se, disciplinar-se totalmente. O inconsciente também é o efeito dessa relacionalidade inegável: é a história não dita e incontável de minha dependência.

De fato, se queremos que alguém seja capaz de contar em forma de história as razões pelas quais sua vida tomou o rumo que tomou, isto é, ser um autobiógrafo de si mesmo, pode ser que prefiramos a consistência da história a algo que podemos tentativamente chamar de verdade da pessoa, uma verdade que, até certo ponto, e por razões que já sugerimos, bem podem tornar-se mais claras em momentos de interrupção, suspensão, fim aberto, em articulações enigmáticas que não podem ser facilmente traduzidas em forma de narrativa.30 30 BUTLER, 2005, p. 43.

Suspensão, fim aberto, interrupção são as características de uma impossibilidade narrativa que, como tal, é, no entanto, perseguida, já que é muito difícil viver fora de qualquer estrutura de coerência. A alegação ética de Butler tanto em Precarious Life31 31 BUTLER, 2004b. quanto em Giving an Account32 32 BUTLER, 2005. testemunha a necessidade de repensar a ética como um movimento crítico radical contra uma política que está progressivamente assumindo os tons de uma ética de princípios, em que a identidade, a soberania, a verdade, a liberdade e a justiça se tornaram assuntos encorajados, usados categoricamente, embora ambiguamente, para justificar a violência, a agressão, a retaliação e a guerra preventiva.33 33 Essa é a meta que Butler se coloca, especialmente em BUTLER, 2004b. Colocar a questão de uma ética relacional – sou, desde o início, dependente de você, tanto eu quanto você somos vulneráveis uma à outra, mas também aos efeitos estruturadores das normas e valores sociais, nos percebemos carregando o nome 'humano' – à luz de uma necessidade de repensar a política é o que Cavarero e Butler parecem compartilhar mais de perto. Desafiando o projeto político de modernidade – especialmente seus corolários individualistas: não-relação, auto-suficiência e soberania – as duas pensadoras embarcam no esforço de radicalmente repensar a condição humana, saindo de sua condição essencial de dependência, precariedade e vulnerabilidade. Seu movimento teórico, a esse respeito, tem a ver com um deslocamento da política para longe do indívíduo imune – uma entidade fictícia que, como tal, tem hoje em dia finalmente parado de convencer, mesmo dentro dos limites de sua narrativa 'ficcional' – de forma a realocá-la no ser vulnerável e, portanto, exposto aos outros. A política e a ética têm de ser pensadas dentro do contexto de uma violência inegável que, ao mesmo tempo, é a chave de uma relacionalidade inegável.

E difícil balizar, no momento, o valor político dessas premissas éticas. Elas permanecem fortemente utópicas à medida que a violência e a soberania ainda parecem ser as únicas velhas ferramentas capazes de resolver os novos e indecifráveis conflitos do presente.34 34 O último livro de Cavarero (CAVARERO, 2007) tematiza as formas contemporâneas de violência (bombas humanas, guerra preventiva e seus 'danos colaterais') através do neologismo do 'horrorismo', uma vez que 'terrorismo' é um termo demasiadamente amplo, demasiadamente geral, ligado demais à noção moderna de política e, portanto, incapaz de compreender a natureza da violência contemporânea. Cavarero sugere que o "horrorismo" pode se adequar melhor à compreensão de formas de violência que são "crimes" que "ofendem a condição humana no nível antológico" (CAVARERO, 2007, p. 34). Cavarero, portanto, distancia-se das formas contemporâneas de horrorismo para continuar em sua elaboração de uma ontologia de relacionalidade, da qual a vulnerabilidade seria, do ponto de vista da violência, a condição inevitável da vida humana. Portanto, ela propõe chamar essa ontologia de "vulnerabilidade" – uma exposição recíproca na qual nos entregam ou ao cuidado ou dano do outro, "quase como se a ausência de dano ou cuidado fosse inimaginável" (CAVARERO, 2007, p. 32). A vulnerabilidade, em outras palavras, é o objetivo principal do 'horrorismo', já que é a alternativa entre cuidado e dano – e não uma "crueldade pura e gratuita" – que é o "núcleo gerativo" do horror. Essa ontologia de vulnerabilidade tem como meta política deslocar o uso da violência do ponto de vista tradicional, ainda moderno, do 'guerreiro', de maneira a posicioná-lo na perspectiva da vítima vulnerável, sem defesa (a vítima casual dos homens-bomba e das 'baixas' produzidas pelas bombas supostamente 'inteligentes'). Poderão vir a ser políticas apenas quando a vulnerabilidade for reconhecida não somente individualmente, mas, acima de tudo, socialmete. Mas isso vai depender precisamente de como e quando o 'eu' e o 'você' puderem se transformar em um 'nós'.

Recebido em março de 2007 e aceito para publicação em agosto de 2007

Tradução de Maria Isabel de Castro Lima

  • BUTLER, Judith. Gender Trouble New York and London: Routledge, 1990.
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  • BUTLER, Judith; CAVARERO, Adriana. "Condizione umana contro 'natura'". Micromega. Almanacco di Filosofia, n. 4, p. 135-146, 2005.
  • CAVARERO, Adriana. "Per una teoria della differenza sessuale". In: DIOTIMA. Il pensiero della differenza sessuale Milano: La Tartaruga, 1987. p. 43-79.
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  • ______. "Dire la nascita". In: DIOTIMA. Mettere al mondo il mondo Milano: La Tartaruga, 1990b. p. 96-131.
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  • ______. Feminist Interpretations of Hannah Arendt University Park: Penn State U. P., 1995.
  • IRIGARAY, Luce. This Sex which Is not One Ithaca: Cornell U.P., 1985.
  • 1
    BUTLER, 1990.
  • 2
    CAVARERO, 1990a.
  • 3
    CAVARERO, 1992.
  • 4
    Essa hipótese geral está na base dos trabalhos anteriores de Cavarero, dentro da comunidade filosófica de Diotima, que funciona desde o início dos anos 1980 na Universidade de Verona. Cavarero, uma de suas fundadoras, junto com a pensadora feminista italiana Luisa Muraro, deixou o grupo de pesquisa em 1992. Veja, entre outros, os seguintes ensaios nos quais Cavarero tematiza o problema de se declarar a diferença sexual e a corporificação dentro da ordem simbólica do patriarcado: CAVARERO, 1987 e 1990b. Veja também CAVARERO, 1991.
  • 5
    CAVARERO, 1995.
  • 6
    CAVARERO, 1995.
  • 7
    CAVARERO, 1990a.
  • 8
    Veja IRIGARAY, 1985.
  • 9
    A esse respeito, embora continue extremamente teórica em seu pensamento, Cavarero deve muito de seus
    insights mais interessantes sobre a incorporação e a sexualidade ao pensamento poético desenvolvido, em vários momentos e com objetivos diferentes, por algumas figuras-chave de uma 'tradição escondida' do pensamento feminino, que inclui, entre outras, María Zambrano, Karen Blixen, Ingeborg Bachmann, Hélène Cixous e a própria Luce Irigaray.
  • 10
    CAVARERO, 1990a.
  • 11
    Veja CAVARERO, 1997.
  • 12
    CAVARERO, 1997.
  • 13
    Aqui veja também a leitura totalmente anti-essencialista, e bastante nietzscheana, da categoria arendtiana de "singularidade", feita por Bonnie HONIG, 1993. Além disso, a leitura que Honig faz de Arendt abriu uma série de apropriações inovadoras de seu pensamento, entre as quais se devem incluir as de Linda Zerrilli e Lisa Disch. Veja também HONIG, 1995.
  • 14
    CAVARERO, 1997, p. 61.
  • 15
    CAVARERO, 2003.
  • 16
    CAVARERO, 1990a.
  • 17
    CAVARERO, 2003, p. 206.
  • 18
    BUTLER, 1997.
  • 19
    BUTLER, 1990.
  • 20
    BUTLER, 2004a, p. 25.
  • 21
    Veja BUTLER, 1993.
  • 22
    Veja BUTLER, 2004a.
  • 23
    BUTLER, 2005.
  • 24
    O problema da psicanálise parece constituir um abismo intransponível entre as duas pensadoras, dadas também suas diferentes experiências intelectuais. Como é importante para a questão aqui, podemos resumir o abismo assim: para Butler, a psicanálise não pode ser evitada, uma vez que é um modo de compreender a maneira na qual o eu não consegue explicar-se totalmente buscando posicionar a opacidade do eu para si mesmo em uma dimensão reprimida – ou inconsciente. A tarefa ética da psicanálise é, para Butler, a de iluminar os laços inevitáveis que constituem o eu, não para superá-los, mas para poder lidar com certo grau de ansiedade que as relações primárias de dependência – e sua assimetria – podem insinuar no 'eu' em formação. Cavarero, por outro lado, parece atribuir a falha da explicabilidade ou da narratibilidade total do eu a uma dimensão que, como tal, permanece imanente à própria relação, sem procurar ser resolvida, ser mais compreensível através da história da repressão que, como tal, é para ela um artigo de fé. Para um diálogo interessante sobre esses tópicos entre as duas pensadoras, veja BUTLER e CAVARERO, 2005.
  • 25
    BUTLER, 2005, p. 36.
  • 26
    BUTLER, 2005, p. 53.
  • 27
    Vale a pena mencionar que, quando Butler discute com profundidade a noção de identidade narrativa de Cavarero, parece um pouco equivocada em sua leitura. De fato, ela confunde biografia e autobiografia, como se a noção de identidade narrativa de Cavarero tivesse que ver com um simples impulso autobiográfico para recontar-se sem problemas: "Em sua visão [de Cavarero] pode-se somente contar uma autobiografia a Outro, e pode-se apenas fazer referência a um 'eu' em relação a um 'você': sem o 'você', minha própria história se torna impossível". Não fica claro se Butler compreende corretamente a posição de Cavarero, na medida em que parece pensar que Cavarero propõe uma prática autobiográfica direcionada a um você indispensável, embora autobiográfico. Enfatizo essa leitura aparentemente equivocada, pois o que Butler diz a seguir parece refletir muito a posição de Cavarero: "Essa exposição, por exemplo, não é exatamente narrável. Não posso ser responsável por ela, mesmo quando estrutura qualquer história que eu possa contar. As normas pelas quais procuro me fazer reconhecível não são exatamente minhas. Não nasceram comigo, a temporalidade de sua emergência não coincide com a temporalidade de minha própria vida. Então, ao viver minha vida como um ser reconhecível, vivo um vetor de temporalidades, um dos quais tem minha morte como seu ponto final, mas outro dos quais consiste da temporalidade social e histórica dessas normas pelas quais minha reconhecibilidade é estabelecida e mantida" (BUTLER, 2005, p. 24).
  • 28
    BUTLER, 2005.
  • 29
    BUTLER, 2004b.
  • 30
    BUTLER, 2005, p. 43.
  • 31
    BUTLER, 2004b.
  • 32
    BUTLER, 2005.
  • 33
    Essa é a meta que Butler se coloca, especialmente em BUTLER, 2004b.
  • 34
    O último livro de Cavarero (CAVARERO, 2007) tematiza as formas contemporâneas de violência (bombas humanas, guerra preventiva e seus 'danos colaterais') através do neologismo do 'horrorismo', uma vez que 'terrorismo' é um termo demasiadamente amplo, demasiadamente geral, ligado demais à noção moderna de política e, portanto, incapaz de compreender a natureza da violência contemporânea. Cavarero sugere que o "horrorismo" pode se adequar melhor à compreensão de formas de violência que são "crimes" que "ofendem a condição humana no nível antológico" (CAVARERO, 2007, p. 34). Cavarero, portanto, distancia-se das formas contemporâneas de horrorismo para continuar em sua elaboração de uma ontologia de relacionalidade, da qual a vulnerabilidade seria, do ponto de vista da violência, a condição inevitável da vida humana. Portanto, ela propõe chamar essa ontologia de "vulnerabilidade" – uma exposição recíproca na qual nos entregam ou ao cuidado ou dano do outro, "quase como se a ausência de dano ou cuidado fosse inimaginável" (CAVARERO, 2007, p. 32). A vulnerabilidade, em outras palavras, é o objetivo principal do 'horrorismo', já que é a alternativa entre cuidado e dano – e não uma "crueldade pura e gratuita" – que é o "núcleo gerativo" do horror. Essa ontologia de vulnerabilidade tem como meta política deslocar o uso da violência do ponto de vista tradicional, ainda moderno, do 'guerreiro', de maneira a posicioná-lo na perspectiva da vítima vulnerável, sem defesa (a vítima casual dos homens-bomba e das 'baixas' produzidas pelas bombas supostamente 'inteligentes').
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2007
    • Recebido
      Mar 2007
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