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Bem-vinda a pesquisa na Faculdade de Medicina brasileira atual

Editorial

Bem-vinda a pesquisa na Faculdade de Medicina brasileira atual* * Adaptado de artigos publicados em Arq Cat Med 1995; 24 (2-3):3, e na Folha de S. Paulo, 8/4/96.

Vejamos, inicialmente, por que foi a pós-graduação instituída, no século passado, nos EUA.

Ela adquiriu seu grande impulso com a fundação da Universidade Johns Hopkins, em 1876, inspirada na idéia da creative scholarship, uma universidade destinada não somente à transmissão do saber já constituído, mas voltada para a elaboração de novos conhecimentos mediante a atividade de pesquisa criadora.

Uma Graduate School, instituto que se encarrega dos cursos de pós-graduação, é o lugar por excelência em que se faz pesquisa científica, se promove a alta cultura e forma-se o scholar (N. Sucupira, relator, C.E. Su, 1968).

Tentemos atualizar e discutir as inovações propostas naquela época. A pesquisa no ensino superior volta-se, basicamente, a gerar criatividade e imaginação. Visa indagar, perquirir e iluminar áreas ainda sob as trevas da ignorância. Não é por outra razão que no brasão de muitas Universidades vê-se uma tocha simbolizando sua função iluminadora. Sua meta, aliada à da "transmissão passiva do saber já constituído" (ensino tradicional), é a de lutar contra essas áreas obscuras, em que, uma vez feita a luz, entendimentos novos passam a dominar o setor.

Nossa tocha, nossa lamparina, nosso holofote emanam de uma burning need de lutar contra o desconhecido, descobrir o que ainda está encoberto.

Assume-se que o saber verdadeiro é gerado em etapas, pela construção de um conhecimento que tende, progressivamente, para a verdade. Nessa construção, precisamos cercar de todo o rigor necessário e possível o processo de captação do real. Trata-se, portanto, de uma verdade inicial, aproximada, construída, produzida dentro da teoria de que se pode dispor no momento, num determinado campo do saber, à espera de uma confirmação ampla e definitiva ( A. Cardoso, 1976 e E.A. Marques, 1989). Na construção da ciência, qualquer achado, mesmo que aparentemente pouco expressivo, passa a fazer parte do conhecimento estabelecido e, evocando A. Brito, 1990, passa a ser um instrumento de trabalho tão sólido como um estetoscópio ou um bisturi.

Uma pesquisa que conteste não deveria, a rigor, ficar restrita à pós-graduação, convindo que permeasse o ensino de todas as áreas da graduação e da pós-graduação. A iniciação científica do estudante exerce indescritível fascínio, pois oferece ao jovem inquieto, ávido por aprender e conhecer os segredos da natureza, a ocasião para o pleno exercício do raciocínio pela via do método científico (J.A. Guimarães). A "Didática", centrada em aulas magistrais, deveria ter seu vulto atenuado, já que não exige do aluno capacidade de raciocínio, nem se preocupa com a problematização do real (M.B. Guimarães, 1986).

Precisa a Universidade, hoje, de homens com inquietude criadora. Podem ser contemplativos, se isto lhes for caminho para luminosos altiplanos do espírito. Podem ser rústicos, se a rusticidade não lhes tolher a lucidez da inteligência e a firmeza do ânimo (R. Cirne-Lima). Excluídas, portanto, a mediocridade, a preguiça intelectual e a falta de elã.

Alguma peculiaridade da Medicina? Sim, nela, como em algumas outras carreiras universitárias, somos constantemente desafiados pela complexidade dos pacientes que atendemos. A cada caso repete-se a etapa do reconhecimento dos indícios clínicos e laboratoriais, a indagação de suas causas e a observação do efeito de nosso tratamento. Na realidade, o médico está, portanto, constantemente pesquisando ao equacionar os problemas de seus pacientes.

Cinco, dez, vinte vezes por dia, praticamos o método hipotético-dedutivo, nosso muito peculiar sistema de cientificamente proceder na elaboração do diagnóstico diferencial. Através dele, múltiplas hipóteses são repetidamente formuladas durante a entrevista médica, quando tentamos encaixar o quadro clínico na lista de explicações que encontramos para a situação. Se vários diagnósticos, mesmo assim são adequados, solicitamos testes adicionais para "pôr mais foco", no quadro, ajustando a "convergência de indícios" pela qual tanto ansiamos e nos entusiasmamos (N. Porto, 1990). Já se demonstrou, ao empregar a estratégia hipotética-dedutiva, que a primeira hipótese é formulada, em média, em 28 segundos; que para cada caso clínico são sugeridos, em média, cinco e meia hipóteses; e que em 75% dos casos o diagnóstico correto é formulado após seis minutos (D.L. Sackett, 1991).

Precisa-se ponderar ainda que, na Medicina, nossa missão transcende o exercício, independente de nossa carreira, uma vez que não podemos ignorar a fome, a miséria e a alienação social. Além dessa peculiaridade, o médico sabe curar e não consegue eximir-se disso. Conforme lembra M. Rigatto, "não ficaria bem a um cientista indagar: para que observar a causa deste achado? Nós, os médicos, apenas perguntamos por quê? Somos treinados para cuidar de seres humanos, para cuidar de doentes. A equação custo-benefício (significando o risco, basicamente, as conseqüências dos procedimentos a que os submetemos) está sempre presente em nossas decisões.

Esses desafios, aliados à nossa imensa possibilidade de atenuar o sofrimento do próximo, tornam a vida universitária médica fascinante. Nosso trabalho constitui um dos caminhos mágicos da libertação (J.J.P. Camargo, 1992).

Algumas sugestões de como se pôr em prática os embasamentos intelectual e ético revisados acima?

"O aluno que ingressa num curso de pós-graduação não pode dizer `preciso achar um assunto para minha tese'. Ele deve agregar-se, com o seu orientador, a uma das linhas de pesquisa seguidas por ele. Nessa linha, o grupo de pesquisadores não deve esperar que se venha a agregar, ao longo do tempo, mais do que modesta mas real viga na construção do edifício do conhecimento, seja local ou universal.

"As pesquisas, nas Faculdades de Medicina, podem ser clínicas experimentais de laboratório. Das publicações médicas universitárias brasileiras, 70% são geradas da pesquisa clínica, mais simples de ser implementada. Ela é válida e imprescindível em qualquer centro médico atual. Sustenta-se no desempenho de todos os atos diagnósticos e terapêuticos da medicina assistencial.

"Ela é gerada por clínicos, cirurgiões, pediatras que conseguem, de um jeito ou de outro, realizar pesquisas, publicar artigos científicos, capítulos de livros e discutir, com juízo crítico, casos em reuniões, além de atender os pacientes ambulatoriais e hospitalares que lhes cabem. É raro vê-los sem xerox de artigos ou diapositivos nas mãos. A própria renovação anual ou semestral da maioria de seus diapositivos — tarefa que aos não-iniciados pode parecer cansativa — causa-lhes prazer. Eles representam o elo entre a medicina experimental, ainda rara entre nós, que dispõe de equipamentos complexos, e a medicina clínica prática, devotada à assistência e a esgrimir as relações de custo-benefício dos vários procedimentos diagnósticos e terapêuticos que utiliza. São professores universitários que, embora sempre apressados, estão exultantes com o que fazem.

"De onde provém sua satisfação? Em grande parte resulta do fascínio da procura da verdade. Excitam-se por toda e qualquer oportunidade de decifrar um aparente enigma. Certamente, tiveram vivência em iniciação científica, quer seja no curso de medicina, na residência ou na pós-graduação. Num certo momento, aprenderam a questionar e, após reconhecerem o valor de seus questionamentos, disciplinaram-se de modo a melhor observar, estabelecer critérios e quantificar sua importância, registrá-los e redigir suas observações." (B.C. Palombini, 1990.)

São essas as considerações válidas no momento em que CNPq, CAPES e fundações estaduais vêm dando decisivo apoio à pesquisa nas Faculdades de Medicina brasileiras.

B.C. Palombini

Chefe de Clínica do Pavilhão Pereira Filho, Santa Casa — Porto Alegre; Professor Titular do Departamento de Medicina Interna da Faculdade de Medicina, UFRGS e FFFCMPA; Coordenador da área de Medicina 1 da CAPES, MEC.

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    Adaptado de artigos publicados em
    Arq Cat Med 1995; 24 (2-3):3, e na
    Folha de S. Paulo, 8/4/96.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2000
    • Data do Fascículo
      Jun 1997
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