Resumos
Atualmente notamos uma explosão de livros, revistas e programas de televisão voltados para temas como carreira, negócios e empreendedorismo. Enquanto há, de um lado, uma literatura acadêmica que estuda o empreendedorismo como um tipo de ação econômica e o empreendedor como um ator social a quem corresponde um tipo de prática ligada à liderança e à inovação, há também , de outro, uma literatura não acadêmica que faz do empreendedorismo um conjunto de princípios ideais de bom comportamento e que, a partir desse conjunto, estabelece prescrições normativas para aqueles que desejam tornar-se empreendedores. Diante disso, o presente artigo pretende discutir a construção de uma ideologia que traz, na noção de empreendedor, o empresário como um ator social imbuído de uma conotação ética. As histórias de sucesso de empresários aparecem como um rico material empírico para a compreensão da construção e da difusão de uma ideologia na qual a noção de empresário vai sendo ressignificada. No centro desse processo, encontram-se os "gurus" da administração, os quais, por meio de seus sucessos editoriais, da internet e da grande mídia, difundem uma série de conselhos práticos e assumem a função de empreendedores morais do empreendedorismo. Conclui-se que, por meio desses conselhos e da divulgação dos casos exemplares de sucesso (assim como foi com o protestantismo, no início do capitalismo), formam-se sujeitos com disposição para atuar economicamente e de forma reconhecida como boa e justa. O empreendedorismo pode, portanto, sob esse ponto de vista, ser visto como uma ideologia do capitalismo atual que surge para garantir a adesão e a legitimidade a atividades antes não valorizadas.
Sociologia Econômica; capitalismo; empresário; empreendedorismo; mercado da auto-ajuda
We can currently perceive a veritable explosion of books, magazines and television programs geared toward topics such as career, business and entrepreneurship. While on the one hand there is a wide range of academic literature that studies entrepreneurial activity as a type of economic action and the entrepreneur as a social actor characterized by a type of practice linked to leadership and innovation, on the other hand there is another non-academic type of literature to be found which turns entrepreneurial activity into a set of ideal principals on good behavior and uses this as an opportunity to establish normative prescriptions for those who wish to become entrepreneurs. In light of this phenomenon, the present article discusses the construction of an ideology that sees entrepreneurialism as a form of social action imbued with ethical connotation. Businessmen's success stories thus emerge as rich empirical material for understanding the building and dissemination of an ideology within which the notion of the businessman is re-signified. Standing center stage are the "gurus" of business administration whom, through their editorial success - via Internet and large-scale media - spread practical advice and assume a role as moral facilitators of entrepreneurialism. We conclude that through this advice and the dissemination of exemplary cases of success (following the example of Protestantism in the early days of capitalism), subjects who are willing to act economically and in ways recognized as good and just are shaped. Thus from this point of view entrepreneurialism may be seen as the ideology of contemporary capitalism, emerging as a means to guarantee adherence to and the legitimacy of activities that in other periods were not held in high esteem.
Economic Sociology; capitalism; businessmen; entrepreneurialism; self-help market
Actuellement nous observons une explosion de livres, de magazines et d'émissions télévisées voués aux thèmes de la carrière professionnelle, des affaires et des entreprises. Alors qu'il existe une littérature académique qui étudie l'entreprise comme un type d'action économique et le manager comme un acteur social à qui correspond un type d'action liée à l'idée d'être le leader et l'innovateur, une littérature non académique fait en sorte que l'entrepreneur soit un ensemble de principes idéalisés de sagesse et d'où l'établissement de prescriptions normatives à ceux qui désirent devernir entrepreneur. Ainsi, le présent article discute de la construction d'une idéologie qui présente, sous le mot d'entrepreneur, le manager comme un acteur social riche en connotation éthique. Les histoires de réussite de certains entrepreneurs deviennent un riche matériel empirique pour la compréhesion de la formation et de la diffusion d'une idéologie dont la notion d'entrepreneur prend un nouveau sens. Au milieu de ce processus, se retrouvent les "gourous" de la gestion, qui, par l'intermédiarie de leurs leaders à succès, d'internet et des médias, diffusent une série de conseils pratiques et jouent le rôle d'entrepreneurs moraux du monde de l'entreprise. Nous concluons que, à travers ces conseils et la diffusion des cas exemplaires de réussite (comme il s'est produit lors du protestantisme, au commencement du capitalisme), il en résulte des individus désirant agir économiquement et d'une manière qui est considérée comme correcte et juste. Le monde de l'entreprise peut donc, sous cet angle, être vu comme une idéologie du capitalisme actuel stimulant l'adhésion et la légitimité des activités qui n'étaient pas valorisées auparavant.
Sociologie Économique; capitalisme; entrepreneur; entreprise; marché du développement personnel
DOSSIÊ "AS EMPRESAS E AS CIÊNCIAS SOCIAIS NA CRISE DA MODERNIDADE"
Uma nova noção de empresário: a naturalização do "empreendedor"
A new notion of the businessman: naturalizing the entrepreneur
Une nouvelle conception du manager : la naturalisation "de l'entrepreneur"
Elaine da Silveira Leite; Natália Maximo e Melo
RESUMO
Atualmente notamos uma explosão de livros, revistas e programas de televisão voltados para temas como carreira, negócios e empreendedorismo. Enquanto há, de um lado, uma literatura acadêmica que estuda o empreendedorismo como um tipo de ação econômica e o empreendedor como um ator social a quem corresponde um tipo de prática ligada à liderança e à inovação, há também , de outro, uma literatura não acadêmica que faz do empreendedorismo um conjunto de princípios ideais de bom comportamento e que, a partir desse conjunto, estabelece prescrições normativas para aqueles que desejam tornar-se empreendedores. Diante disso, o presente artigo pretende discutir a construção de uma ideologia que traz, na noção de empreendedor, o empresário como um ator social imbuído de uma conotação ética. As histórias de sucesso de empresários aparecem como um rico material empírico para a compreensão da construção e da difusão de uma ideologia na qual a noção de empresário vai sendo ressignificada. No centro desse processo, encontram-se os "gurus" da administração, os quais, por meio de seus sucessos editoriais, da internet e da grande mídia, difundem uma série de conselhos práticos e assumem a função de empreendedores morais do empreendedorismo. Conclui-se que, por meio desses conselhos e da divulgação dos casos exemplares de sucesso (assim como foi com o protestantismo, no início do capitalismo), formam-se sujeitos com disposição para atuar economicamente e de forma reconhecida como boa e justa. O empreendedorismo pode, portanto, sob esse ponto de vista, ser visto como uma ideologia do capitalismo atual que surge para garantir a adesão e a legitimidade a atividades antes não valorizadas.
Palavras-chave: Sociologia Econômica; capitalismo; empresário; empreendedorismo; mercado da auto-ajuda.
ABSTRACT
We can currently perceive a veritable explosion of books, magazines and television programs geared toward topics such as career, business and entrepreneurship. While on the one hand there is a wide range of academic literature that studies entrepreneurial activity as a type of economic action and the entrepreneur as a social actor characterized by a type of practice linked to leadership and innovation, on the other hand there is another non-academic type of literature to be found which turns entrepreneurial activity into a set of ideal principals on good behavior and uses this as an opportunity to establish normative prescriptions for those who wish to become entrepreneurs. In light of this phenomenon, the present article discusses the construction of an ideology that sees entrepreneurialism as a form of social action imbued with ethical connotation. Businessmen's success stories thus emerge as rich empirical material for understanding the building and dissemination of an ideology within which the notion of the businessman is re-signified. Standing center stage are the "gurus" of business administration whom, through their editorial success - via Internet and large-scale media - spread practical advice and assume a role as moral facilitators of entrepreneurialism. We conclude that through this advice and the dissemination of exemplary cases of success (following the example of Protestantism in the early days of capitalism), subjects who are willing to act economically and in ways recognized as good and just are shaped. Thus from this point of view entrepreneurialism may be seen as the ideology of contemporary capitalism, emerging as a means to guarantee adherence to and the legitimacy of activities that in other periods were not held in high esteem.
Keywords: Economic Sociology; capitalism; businessmen; entrepreneurialism; self-help market.
RÉSUMÉS
Actuellement nous observons une explosion de livres, de magazines et d'émissions télévisées voués aux thèmes de la carrière professionnelle, des affaires et des entreprises. Alors qu'il existe une littérature académique qui étudie l'entreprise comme un type d'action économique et le manager comme un acteur social à qui correspond un type d'action liée à l'idée d'être le leader et l'innovateur, une littérature non académique fait en sorte que l'entrepreneur soit un ensemble de principes idéalisés de sagesse et d'où l'établissement de prescriptions normatives à ceux qui désirent devernir entrepreneur. Ainsi, le présent article discute de la construction d'une idéologie qui présente, sous le mot d'entrepreneur, le manager comme un acteur social riche en connotation éthique. Les histoires de réussite de certains entrepreneurs deviennent un riche matériel empirique pour la compréhesion de la formation et de la diffusion d'une idéologie dont la notion d'entrepreneur prend un nouveau sens. Au milieu de ce processus, se retrouvent les "gourous" de la gestion, qui, par l'intermédiarie de leurs leaders à succès, d'internet et des médias, diffusent une série de conseils pratiques et jouent le rôle d'entrepreneurs moraux du monde de l'entreprise. Nous concluons que, à travers ces conseils et la diffusion des cas exemplaires de réussite (comme il s'est produit lors du protestantisme, au commencement du capitalisme), il en résulte des individus désirant agir économiquement et d'une manière qui est considérée comme correcte et juste. Le monde de l'entreprise peut donc, sous cet angle, être vu comme une idéologie du capitalisme actuel stimulant l'adhésion et la légitimité des activités qui n'étaient pas valorisées auparavant.
Mots-clés: Sociologie Économique; capitalisme; entrepreneur; entreprise; marché du développement personnel.
I. INTRODUÇÃO
"Empreendedorismo" é um termo que tem estado presente no vocabulário da Economia e da Administração e também no senso comum, mas que, contudo, pouco tem feito parte das pesquisas das Ciências Sociais. Atualmente, tem-se com grande freqüência anúncios, publicações de livros e revistas, programas de televisão, cursos no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e nas universidades, todos os quais divulgam o empreendedorismo. Isso faz com que o termo e as idéias que ele carrega enraízem-se no pensamento social de modo a parecerem "óbvias", naturais, como se sempre tivessem existido da forma como dá-se hoje. Procuraremos, então, desvelar essa percepção ao investigar quais são os atores que produzem e difundem tais idéias.
A comunicação aqui apresentada faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento que tem como objetivo discutir as formas de adesão ao mundo econômico, levando em conta que a empresa enquanto instituição é também uma produtora de significados para seus membros. Para contextualizar, sabe-se que, a partir dos anos 1980, iniciou-se uma substituição do paradigma do modelo de organização fabril. Ao contrário do modelo fordista, a produtividade passou a ser alcançada com a mobilização dos recursos internos da fábrica (materiais e humanos) para adequar a produção à demanda. Todos os setores da fábrica, agora, voltam-se a agradar o cliente por meio da diferenciação e qualidade dos produtos. O toyotismo introduziu a exigência de polivalência e flexibilidade aos trabalhadores, adaptados agora a máquinas multifuncionais. Por outro lado, passa a responsabilizar esses mesmos trabalhadores individualmente e a vincular seu sucesso ou fracasso à colaboração com a empresa, ao enfatizar que eles tenham autonomia nela (CASTRO & LEITE, 1994; HIRATA, 1998).
Por outro lado, a empresa também tem sofrido influências da esfera financeira em razões dos imperativos da globalização. Por exemplo, difunde-se a necessidade de mudança das organizações, no sentido de diminuir o seu tamanho e o seu custo (USEEM, 1996, p. 185). Além disso, as teorias econômicas e da administração lançaram nas últimas décadas um enorme conjunto de ferramentas e justificativas para realçar a primazia dos interesses do acionista da empresa. O acionista é comparado a um observador exterior à empresa, o qual irá decidir se aplica ou mantém os seus recursos nela. Portanto, os resultados da empresa passam a visar a ação desse investidor.
A teoria da agência interpreta a empresa como um feixe de contratos. Aplicada às relações industriais, tal teoria muda a idéia do Direito e a idéia de que os trabalhadores são indivíduos colocados em condição de subordinação pelo contrato de trabalho. Agora, os trabalhadores devem assemelhar-se aos prestadores eventuais de serviços, como os consultores (FAMA, 1980). Tanto contabilmente quanto em termos de organização, a empresa pode ser entendida como um conjunto de unidades independentes, apenas provisoriamente trabalhando em conjunto.
Outra técnica pela qual a empresa conecta-se à lógica do mercado financeiro é por meio da governança corporativa. Esta baseia-se na idéia do "reinado dos acionistas", mas também leva em consideração os interesses das diversas partes envolvidas (stakeholders). A idéia de democratização, que perpassa as boas práticas de governança corporativa, faz lembrar a existência e a importância dos diversos atores que ajudam a empresa a conseguir bons resultados e que devem ser remunerados por isso e cujos interesses devem ser levados em conta nos seus processos decisórios. Não só os acionistas investem na empresa, mas também seus empregados, os quais, agora, são denominados "colaboradores". Difunde-se a idéia de que trabalhar em uma empresa é também investir nela ou, ainda, investir em si mesmo, acumulando rede de contatos e conhecimento (BLAIR, 2003;AGLIETTA & REBÉRIOUX, 2004; GRÜN, 2005).
As teorias da administração e economia anunciam que a empresa hierárquica - lugar de sociabilidade e conflito de seus integrantes - mudou e, com ela, toda a sociedade. Individualmente, as ferramentas organizacionais substituem os esquemas coletivos ou novos esquemas individualizados de segurança financeira, profissional, de saúde e mesmo emocionais. Prescreve-se que o indivíduo que está ou quer entrar no mundo moderno deve desvencilhar-se das idéias "antigas", associadas ao coletivismo nas organizações. Agora, o que conta é o indivíduo - suas realizações, seu capital social bem ampliado, pronto para ser usado profissionalmente, tanto no próprio trabalho, quanto para arrumar outros, sabendo que a era do emprego vitalício acabou. Se antes as empresas cuidavam de todos os aspectos da vida de seus profissionais, elas também não davam espaço, como agora, para o desenvolvimento das potencialidades presentes nos indivíduos (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2002; POWELL, 2001).
Segundo a literatura sobre organizações, a sociedade atual evolui para superar as formas burocráticas tradicionais que impunham muitas barreiras à criatividade, à conectividade e, de maneira geral, à busca da felicidade dos indivíduos. Enquanto os críticos da financeirização enxergam a sombria precarização do trabalho e as tensões pessoais e sociais que ela provocaria, os adeptos da idéia de "sociedade em rede" vêem a promessa da flexibilidade dos indivíduos em processo de auto-desenvolvimento (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999;POWELL, 2001; GRÜN, 2003).
Diante desse panorama histórico, verifica-se a retomada de um objeto de estudo chamado "empreendedorismo" e, respectivamente, da figura do "empreendedor".
II. "EMPREENDEDORISMO": O MARCO TEÓRICO
Segundo Martinelli (1994, p. 476), a primeira referência ao termo ocorreu no século XVI e definia o capitão que contratava soldados mercenários para servir ao rei. Apenas no século XVIII, o termo passou a ser empregado para atores econômicos: entrepreneurs eram aqueles que introduziam novas técnicas agrícolas ou arriscavam seu capital na indústria.
Na teoria econômica, o termo entrepreneur não tem uma definição homogênea1 1 O termo entrepreneur foi traduzido para o português como "empresário", mas vem recebendo novos significados, como o de "empreendedor", que ganhou o sentido de "empresário bem sucedido" ou com qualidades especiais.É esse o sentido que damos no Brasil ao termo "empreendedor". , mas Schumpeter (1982) é considerado o principal teórico clássico do empreendedorismo. Ele retoma o termo, associando-o à inovação para explicar o desenvolvimento econômico. Para Schumpeter, o desenvolvimento econômico inicia-se a partir de inovações, ou seja, por meio da introdução de novos recursos ou pela combinação diferenciada dos recursos produtivos já existentes. Em sua teoria do desenvolvimento, o autor distingue o "capitalista" do entrepreneur2 2 Neste artigo, usaremos o termo original, em inglês, por entender que ele é mais neutro do que o termo "empreendedor", em português, como já foi explicado. (traduzido como empresário): "Mas, qualquer que seja o tipo, alguém só é um empreendedor quando efetivamente levar a cabo novas combinações, e perde esse caráter assim que tiver montado o seu negócio, quando dedicar-se a dirigi-lo, como outras pessoas dirigem seus negócios" (SCHUMPETER, 1982, p. 56).
Além dessa perspectiva econômica, a qual tem como principal representante Schumpeter, soma-se uma outra perspectiva chamada "comportamentalista", para a qual o termo entrepreneurship "significa a atitude psicológica materializada pelo desejo de iniciar, desenvolver e concretizar um projeto, um sonho. Significa 'ser empreendedor'. Diante desta perspectiva, reafirmamos que o empreendedorismo é algo que transcende o campo dos negócios e da economia" (SOUZA NETO, 2003, p. 112). A partir da perspectiva comportamentalista, é nas características do entrepreneurship, ou seja, no tipo de comportamento, que se identifica quem é o entrepreneur. Aqui, o termo não é traduzido por "empresário", mas por "empreendedor" e este é entendido mais por seus atributos psicológicos do que por sua ação econômica; esta, na verdade, seria conseqüência daqueles.
Já David McClelland, psicólogo, é o primeiro a elaborar um método para medir a intensidade da motivação. Segundo ele, há pessoas que manifestam o desejo de realização (achievement), enquanto outras vivem a obrigação da realização. Ainda segundo McClelland, todas as atividades humanas, e não só as econômicas, podem ser realizadas de modo empreendedor (entrepreneurial way). Suas pesquisas buscaram identificar quais os fatores que possibilitam a formação de empreendedores, traçando uma comparação entre países (MCCLELLAND, 1967, p. 207). Segundo Souza Neto, "em suma, McClelland descreveu o empreendedor, fundamentalmente por sua estrutura motivacional. E ele corroborou, tal suposição, por muitas pesquisas e experimentos que utilizaram um teste de avaliação motivacional - o TAT (Thematic Aperception Test) - além de testes de resolução de problemas e, nesses trabalhos, o indivíduo empreendedor se mostrou com uma estrutura motivacional diferenciada pela presença marcante de uma necessidade específica: a necessidade de realização. Para ele, a necessidade de realização - 'achieving'- era a 'força motriz da ação empreendedora'" (SOUZA NETO, 2003, p. 115).
Nessa perspectiva, indivíduos com essa necessidade tendem a buscar sempre o aperfeiçoamento e o progresso constantes. Uma outra característica dessas pessoas é o sentimento quanto às próprias possibilidades de êxito. Quanto a esse ponto, o entrepreneur apontado por Schumpeter não é mais uma função econômica situada em um determinado momento dentro do ciclo econômico, mas sim, segundo a perspectiva comportamentalista, um tipo específico de ser humano. Estes dois autores, Schumpeter e McClelland, são tomados aqui como representantes de duas abordagens distintas: a econômica e a comportamentalista. Elas não são, contudo, abordagens excludentes e vêm sendo ambas desenvolvidas por autores contemporâneos.
Segundo Aldrich (2004, p. 452-470), "empreendedor" e "empreendedorismo" são termos contestados freqüentemente em conferências e publicações acadêmicas desde os anos 1970, num debate que reflete disputas sobre unidade e níveis de análise. Aldrich identifica quatro perspectivas teóricas principais:
1) A capitalização e o crescimento dos negócios como foco dos estudos. Os autores desta perspectiva contrapõem essa nova forma de negócio aos tipos "tradicionais", isto é, àqueles negócios fundados por pessoas que se satisfazem com um pequeno grau de crescimento e retorno das empresas;
2) Baseada em Schumpeter, esta vertente refere-se a atividades inovativas e ao processo pelo qual as inovações levam a novos produtos e anovos mercados. É usado para empresas já estabelecidas. Há uma variante do termo que se refere a uma carreira empreendedora dentro das empresas: o intra-empreendedor. O problema dessa perspectiva teórica é tomar a inovação como critério; com isso, faz ignorar que uma atividade pode ser considerada nova em um contexto e não em outro. Além disso, é difícil classificar a priori qual ato é inovador, pois é preciso, primeiro, analisar seus resultados;
3) Esta perspectiva considera que identificar oportunidades de negócios é o coração do empreendedorismo. Os recursos iniciais para o negócio não estão em questão, mas, sim, a habilidade dos indivíduos de detectar oportunidades. Esta vertente está de acordo com o ponto de vista de investidores e das teorias das estratégias, pois considera a ação futura. Assim como o conceito de inovação, o de oportunidade pode ter vários significados. E é uma perspectiva que inclui necessariamente a abertura de empresas. Empreender é, portanto, um processo subjetivo. Os economistas têm considerado a natureza irracional das percepções empreendedoras e da decisão de auto-emprego. Pessoas parecem ignorar cálculos de custo-benefício quando tornam-se empreendedoras, o que tem trazido questionamentos aos modelos econômicos. Os sociólogos nesta vertente estão preocupados com o contexto social no qual há a entrada no mercado, assim como com as modalidades dessas entradas;
4) Define o empreendedorismo pela formação de novas organizações e pelos comportamentos e atividades para isso acontecer. O empreendedor é quem assume o risco de fundar organizações. A crítica que esta vertente recebe refere-se à dificuldade de identificar quando uma nova organização de fato começa, quando torna-se taken for granted, podendo ser tomados como critério para isso tanto a intenção subjetiva do empresário, quanto a legalização da organização.
No Brasil, há uma série de pesquisas acadêmicas sendo realizadas sobre o tema, nas mais diferentes áreas do conhecimento, como a Administração, a Economia, a Engenharia de Produção, a Sociologia e mesmo a Educação. Há pesquisas que visam, a partir de estudos de caso, verificar o perfil empreendedor dos empresários, contrastando suas ações com as características dadas pela literatura acadêmica sobre empreendedorismo (DINIZ, 1992; DUTRA, 2002; RAMOS, 2003; GREATTI, 2003). Tais pesquisas tomam as características do empreendedor para explicar o empreendimento e são influenciadas pela abordagem comportamentalista.
Há também outras pesquisas que enfatizam a introdução de tecnologia nas micro e pequenas empresas a fim de alcançarem maior competitividade (SANTANA, 2002; OLIVEIRA, 2003). Além dessa perspectiva, existe também aquela que entende o empreendedorismo como um conjunto de estratégias para a criação, crescimento ou sobrevivência das micro e pequenas empresas (BORTOLI NETO, 1987; LEITE, 1992), enfocando variáveis econômicas.
Por fim, há um grupo de autores preocupados com o empreendedorismo enquanto disciplina de ensino e que analisam vários programas de educação em universidades e outras instituições (MACHADO, 1999; MARCARINI, 2003). Há também trabalhos que enfocam a peculiaridade dos empreendimentos levados a cabo por mulheres e como elas lançam-se ao empreendedorismo por terem necessidade de conciliar trabalho e família (GOMES, 2003; QUENTAL, 2003); há estudos também sobre grupos de imigrantes (MARTES & RODRIGUES, 2004), os quais tentam dar explicação a fatores não econômicos.
Entre as Ciências Sociais, encontra-se uma perspectiva bem distinta. Antonia Colbari (2006) pesquisa a educação empreendedora do Sebrae. A autora aponta que é a partir da década de 1980 que o empreendedorismo torna-se um movimento social mundial que se apresenta "ora como um revival do pequeno negócio ora como sinônimo de inovação e mudança" (COLBARI, 2006, p. 2). Segundo a autora, desde a década de 1930, o Brasil passou por um esforço de construção social de trabalhadores adaptados a uma sociedade capitalista, do que decorrem as políticas de qualificação. Porém, a partir da década de 1980, há um período marcado por reestruturação produtiva e, com isso, há mudanças nos sistemas de representação e normas éticas que moldavam o mundo do trabalho.
Por sua vez, López-Ruiz (2007) fez uma pesquisa entre os executivos de empresas transnacionais e defendeu a tese de que o ethos desse grupo tem se tornado o ethos da sociedade capitalista atual. Nos anos 1990, com a reestruturação produtiva, ficou claro aos empregados das grandes empresas que seu capital humano depreciava-se, ou seja, que o valor de suas habilidades e competências deteriorava-se e o risco de desemprego aumentava entre eles. Surge, então, a metáfora do indivíduo enquanto empresa: cada pessoa deve, portanto (e isso é uma obrigação moral), aumentar suas habilidades e competências, ou seja, investir em si próprio, gerir seu próprio capital. Segundo o autor, é nesse contexto que a figura do empreendedor apontada por Schumpeter é retomada. Porém, se em épocas anteriores "a iniciativa econômica era o atributo de uma minoria, hoje todos devem ter (e perseguir constantemente) esse atributo" (SCHUMPETER, 1982, p. 20).
O autor também constata que os executivos das transnacionais sentem-se, hoje, como capitalistas e não como trabalhadores e justificam isso com o argumento de que estão na empresa para capitalizar seu próprio "capital". Lopes-Ruiz aponta que inúmeros livros e a mídia, atualmente, sugerem pensar os empregados como trabalhadores-investidores e a própria força de trabalho com um capital. Sendo assim, a trajetória profissional depende dos investimentos que o indivíduo faz emsi próprio. É importante reforçar o papel das Ciências Econômicas e da Administração para dar sustentação ideológica a essas mudanças. O autor revela um conjunto de representações que vêm de encontro ao panorama de mudanças apresentado, no qual a empresa incorpora as exigências da lógica financeira e a reproduz em suas dimensões internas.
Ao buscarmos analisar as mudanças no capitalismo a partir das transformações de seu conjunto de normas e valores, tem-se como referência o trabalho de Boltanski e Chiapello (2001), no qual os autores inspiraram-se em Weber, a fim de tratar de um "novo espírito do capitalismo". Esse trabalho não se baseia na religião, contudo, seu foco é na literatura gerencial das décadas de 1960 em diante. Os autores entendem o espírito do capitalismo como um conjunto de crenças que dirigem e justificam a ação de pessoas e grupos. Além disso, ele transcende as divisões de classe, pois tais crenças são compartilhadas tanto pelos capitalistas quanto pelos trabalhadores. Isso permite melhor compreender as pesquisas de Colbari e López- Ruiz, os quais apontam a difusão do empreendedorismo pela sociedade de modo a estar presente tanto em programas de (re)qualificação de trabalhadores de camadas mais baixas, quanto na forma como executivos de grandes empresas identificam-se.
Ainda segundo Boltanski e Chiapello, o espírito do capitalismo é definido como um conjunto de crenças inscritas em instituições. Os autores elaboram tal definição a fim de analisar as justificativas que sustentam o capitalismo e que fazem com que os indivíduos comprometam-se com ele. Eles relatam também como o capitalismo busca incorporar crenças não econômicas e dar respostas às críticas que recebe. Esse espírito do capitalismo é necessário para garantir o comprometimento tanto daqueles que dominam e devem justificar sua posição de dominador, quanto daqueles que são dominados e devem encarar tal subordinação como legítima dentro do capitalismo.
Diante da perspectiva sociológica acima citada, o presente trabalho busca investigar o empreendedorismo enquanto um fenômeno da ideologia do capitalismo atual, assim como o seu espírito enquanto dimensão valorativa, no sentido dado por Boltanski e Chiapello. Tomamos para análise informações coletadas junto a revistas (Pequenas Empresas, Grandes Negócios; Você S/A), livros de grande vendagem (Pai rico, pai pobre; O empreendedor rico; O segredo de Luísa etc.) e sítios especializados em eventos sobre o tema gerencial (Expo-Management, Sebrae), por serem todos estes meios de comunicação de massa que nos revelam os atores que atuam na difusão do empreendedorismo.
III. OS CONSELHOS E OS GURUS
"[...]
tentar fazer o futuro acontecer é arriscado; mas é uma atividade racional. E é menos arriscado do que continuar a trajetória com a confortável convicção de que nada vai mudar
[...].
O propósito da tarefa de construir o futuro não é decidir o que deve ser feito amanhã, mas o que deve ser feito hoje, para que haja um amanhã
[...].
Impor ao futuro, que ainda não nasceu, uma nova idéia que tenda a dar uma direção e um formato ao que está por vir. Isso poderia ser chamado de fazer o futuro acontecer
".
Peter Drucker (Drucker apud LULA FYLHO, 2006)3 3 Luiz Carlos de Assunção Lula Fylho é administrador de empresas, Pós-Graduado em Didática Universitária, facilitador do Empretec-Sebrae, consultor empresarial e palestrante. Empresário do ramo de alimentos e bebidas. .
De modo geral, a literatura acadêmica estuda o empreendedorismo como um tipo de ação econômica e o empreendedor como um ator social a quem corresponde um tipo de prática ligada à liderança e à inovação, criação e crescimento de empresas. Por outro lado, há uma literatura não acadêmica que faz do empreendedorismo um conjunto de princípios ideais de bom comportamento e a partir dele fazem prescrições.
O excerto acima nos dá um exemplo do tom como os manuais de administração têm orientado os leitores para as mudanças econômicas. Não se trata de análises empíricas ou formulações de conceitos, em vez disso, tem o caráter de conselhos que dizem o que deve ser feito ou, ao menos, indica como deve ser interpretado o presente, o passado e o futuro. Portanto, constroem e incutem nos indivíduos uma visão de mundo. Essas visões de mundo são, em geral, formulada por atores que desenvolvem trabalhos didáticos e de divulgação para empresários. Para melhor compreender esse fenômeno vale a pena tomar o trabalho de Donadone (1996), em que este demonstra como, na década de 1980, a mídia de negócios teve um importante papel difusor dos principais pacotes gerenciais. Os principais atores difusores desses pacotes são chamados de "gurus" (HUCZYNSKIN, 1993, p. 57-80). Pode-se identificar três tipos principais de gurus: os acadêmicos, os consultores e os managers heróis, profissionais bem-sucedidos que transformam suas idéias e experiências profissionais em produtos desse mercado.
A institucionalização do empreendedorismo deu-se concomitantemente à formação de um mercado de pacotes gerenciais, a partir de 1980, popularizando as teorias acadêmicas na mídia (livros, jornais, revistas, vídeos, palestras, treinamentos presenciais ou virtuais, até reality shows e jogos de computador). Para exemplificar, segundo Giardino (2005), entre as personalidades mundiais responsáveis por um novo fenômeno editorial estão nomes como o de Donald Trump, empresário norte-americano, dono da famosa expressão "You're fired!" ("você está demitido!"), utilizada para dizer quem seria o eliminado da vez em seu reality show, The Apprentice, que teve sua versão brasileira comandada pelo publicitário Roberto Justus. Já Covey, outro guru dessa área, conseguiu um feito inusitado na década de 1980, ao permanecer anos nas listas de mais vendidos, com o livro Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes, e ainda hoje é referência nos treinamentos para executivos no mundo inteiro. E como estes gurus, há uma infinidade de outros.
No que se refere ao empreendedorismo, também faz-se cada vez mais comum o surgimento de nomes importantes vinculados a essa temática4 4 Para citar dois deles: Fernando Dolabela, professor universitário, palestrante e escritor de livros campeões de vendas em empreendedorismo; Dornelas, também professor universitário, palestrante e escritor de livros sobre a mesma temática. Ambos os autores fazem parte do universo de gurus acadêmicos brasileiros. . Além deles, há outros nomes de consultores especializados em empreendedorismo que têm sido freqüentes na mídia, inclusive na digital. Há vários sítios na internet5 5 Por exemplo, os sítios Somma e e-empreendedor. , inclusive com testes para o leitor saber se é ou não um empreendedor. Além desses, há sítios de consultores para aconselhamento de indivíduos e para informar sobre a mesma temática das finanças e da administração de pequenos negócios. Há também uma associação de empreendedores formada por empresários que participaram dos treinamentos em empreendedorismo do Sebrae: o Empretec.
Levamos em conta que os valores sociais não se dissipam para as massas sem que haja quem tome essa função, e os gurus são os atores que exercem-na. Relembrando Becker (1977), normas sociais são criadas por grupos ou indivíduos, os quais são denominados empreendedores morais. O autor considera que estes constituem-se tanto em criadores quanto em impositores de regras. O criador de regras é apresentado como um cruzado, pois, para ele, difundir a norma é uma questão sagrada: "o cruzado é ardoroso e virtuoso, exigindo a virtude não só dos outros, mas também de si próprio" (BECKER, 1977, p. 108).
Em seu conteúdo, os conselhos visam guiar (e não apenas informar) os indivíduos às condutas consideradas adequadas. Os conselhos podem ser mais ou menos práticos. Por exemplo, encontram-se, de um lado, conselhos do padrão "como fazer algo" e, de outro, conselhos do modelo "seja auto-confiante etc.". Em geral, esses dois modelos de conselho combinam-se de modo que o público receptor não distinga um e outro e entenda como um todo coerente a prescrição de ações e de valores.
IV. AUTO-AJUDA E OS CASOS DE SUCESSO
Como foi mencionado, a diversidade de produtos e gurus do mercado de conselhos é grande, por isso, vamos tratar especificamente de um segmento que tem mostrado-se bastante promissor: os livros de auto-ajuda de negócios.
Atualmente, o mercado editorial brasileiro vem explorando um segmento considerado como literatura para profissionais, relacionado à vertente da auto-ajuda e que enfoca o que os profissionais devem fazer para adaptarem-se e terem melhor desenvolvimento no trabalho ou, ao contrário, "largarem tudo" e buscarem o negócio próprio. Esse segmento é chamado de light business, e os livros já estão sendo vistos como um dos principais filõesdo mercado editorial (AUTO-AJUDA É O QUENÃO FALTA, 2006).
Ao contrário do que aconteceu na década de 1990, quando houve uma grande expansão no consumo de obras recheadas com lições de vida ou de conselhos pessoais, hoje, cada vez mais, ganham espaço livros voltados para carreira e negócios: "Os executivos descobriram que não dá mais para pensar no emprego eterno. As empresas estão inseridas em um cenário dinâmico e mutável, exigindo mais de seus executivos e gerando maior competitividade", analisa Marcos Hashimoto, professor da Business School São Paulo e especialista em empreendedorismo, "por esta razão, os livros de desenvolvimento profissional passaram a ser tão procurados" (Hashimoto apud GIARDINO, 2005).
Para Martelli (2006, p. 55), o sucesso desse setor da auto-ajuda para profissionais pode ser tanto expressão da vitória do saber instrumental e da eficácia da indústria cultural - que trata de homogeneizar comportamentos, de produzir, em massa, problemas, angústias e a solução para tudo isso, por meio de ações controladas e calculáveis - como também uma expressão do "reencantamento": ao lado de dados estatísticos, de conhecimentos legitimados pelas ciências, tais manuais invocam os deuses, falam de fé, de sorte, de energia positiva, da força da mente e temem a revolta das forças da natureza e das energias negativas do mundo. A autora demonstra ainda que, num misto de ações racionais e irracionais, os discursos da auto-ajuda podem estar agindo sob duas frentes: podem consolidar um saber instrumental e, ao mesmo tempo, abrir espaço para novas formas de legitimidade do saber e para novas formas de dominação.
Rüdiger (1996, p. 242) credita o sucesso da auto-ajuda à incapacidade do homem moderno de enfrentar seu tempo com as coordenadas da modernidade - o pensamento racional e científico. Em épocas anteriores da história ocidental, os livros religiosos e os tratados morais da antigüidade grega bastavam para explicar o mundo e estabelecer formas de conduta. Dessa forma, Rüdiger afirma que os livros de auto-ajuda apresentam uma suposta fórmula para o homem moderno combinar elementos que estão em contradição, como ciência e religião, misticismo e realismo (idem, p. 194).
Para Bourdieu e Wacquant, a neutralização do contexto histórico resultante da circulação de textos e do correspondente esquecimento de suas condições históricas de origem produz uma aparente universalização ampliada pelo trabalho de teorização, isto é, as erosões da fronteira entre a publicação acadêmica e a comercial ajudaram a encorajar a circulação de termos, temas e tropos com forte (real ou esperado) apelo de mercado que, por sua vez, devem seu poder de atração essencialmente à sua ampla difusão (BOURDIEU & WACQUANT, 2002, p. 221).
Essa linha de gurus é alimentada pela indústria cultural que produz a circulação desse conhecimento. Relembrando Bourdieu (1987), que, ao tratar da circulação de bens simbólicos, enfatiza que o sistema de ensino contribui amplamente para a unificação do mercado desses bens, neste caso, constatamos a invasão e legitimação desse pensamento, principalmente, nos cursos de administração (cf. OLIVEIRA, 2006), o que reforça a autenticidade desse campo.
Desse modo, as biografias de sucesso também ganham espaço e conquistam as listas de mais vendidos, ou seja, os indivíduos tornam-se "aprendizes" das grandes trajetórias de vida. Nesse caso, Bourdieu, ao falar da ilusão biográfica, ajuda-nos a entender o sucesso desse segmento, pois a biografia é o que diz o senso comum, é a linguagem cotidiana, que vai descrever a vida como um caminho com suas encruzilhadas, um deslocamento unidirecional (a mobilidade) que tem um começo, etapas e um fim no sentido duplo, de termo e de objetivo: "ele fará seu caminho, significa: ele terá sucesso, ele fará uma bela carreira, um fim da história" (BOURDIEU, 1996, p. 74).
Santos (2007), ao apresentar uma pesquisa que relaciona a influência da literatura de auto-ajuda profissional (light business) com os impactos sobre as empresas e o ambiente de trabalho, relata que boa parte dos livros desse segmento centra suas reflexões na idéia de empreendedorismo.
Para exemplificar, tomemos um dos livros que nos chamou a atenção e é considerado "campeão de vendas" no momento: Empreendedor rico: 10 lições práticas para ter sucesso no seu próprio negócio, de Robert T. Kiyosaki e Sharon L. Lechter (2005). O livro faz parte da celebrada coleção "Pai rico, pai pobre", que reúne todos os livros de "sucesso" de Kiyosaki e Lechter sobre o mercado de administração e finanças. O livro parte da história do próprio autor, Robert Kiyosaki, e aborda os momentos de sucesso, fracasso e as lições que aprendeu como um empreendedor. Segundo Kiyosaki, é muito melhor ser um empresário do que um funcionário. Nesse livro, o autor demonstra que a segurança de um emprego com salário garantido no final do mês não passa de uma ilusão; que não se nasce empreendedor, mas torna-se um; que nem sempre quem vai bem na escola tem os elementos para ser um empresário de sucesso etc. Esse livro pretende ajudar o leitor a transformar-se em um empresário bem-sucedido, dando conselhos sobre equipes, liderança, missão, produto, aspectos legais, sistemas, comunicação e fluxo de caixa. O principal atrativo desse segmento editorial parte de questões como: "você teve uma idéia que vale um milhão de dólares?"; "tem medo de fracassar?"; "está cansado de tornar os outros ricos?"; "está saturado de receber ordens de seu chefe?"; "está cansado de trabalhar duro e não ir em frente?"; "está pronto para ser seu próprio patrão?" etc.
Assim, vai constituindo-se, no Brasil, o ideário do empreendedor e do homem de sucesso, ligado ao homem rico. E observamos que essa dimensão espraia-se para comunidades e sítios na internet, que discutem o tema e buscam formar discípulos. A citação apresentada abaixo foi retirada do sítio brasileiro Clube do pai rico, criado para discutir e trocar informações sobre como "ficar rico", seguindo os passos da coleção "Pai rico, pai pobre":
"O Brasil é um dos países mais empreendedores do mundo. Embora seja motivado muito mais pela necessidade do que pela oportunidade, o brasileiro traz como característica algo que se traduz como a alma do verdadeiro empreendedor: a criatividade. Mentes que criam 24 horas por dia, cabeças que pensam nas mais diversas opções de negócios com o objetivo de transformá-las em ganho de dinheiro. Quantas dessas idéias, porém, saem do idealizado para a prática? Quantas se concretizam e têm sucesso? Ao empreendedor inventivo, as respostas para tais perguntas são o que menos importa. [...] O 'equilíbrio empreendedor' do aspirante a homem de sucesso é sustentado por essa verdadeira usina de idéias, que trabalha de forma ininterrupta, gerando ilimitados pensamentos e elaborando novas maneiras de se ler antigas idéias ou criando novas formas de se enxergar soluções para determinados problemas" (CLUBE DO PAI RICO, 2006).
Nesse meio, torna-se sucesso um jogo criado pelo próprio Robert T. Kiyosaki, autor da referida coleção, que busca inspirar empreendedores a abrir novos negócios. Chamado de Cashflow 101, é um jogo de tabuleiro que "está virando mania nos Estados Unidos. Isso porque não se trata de um simples brinquedo: ele promete ensinar aos jogadores técnicas financeiras para ajudá-los a ficar ricos trabalhando por conta própria ou montando empresas e também visa ensinar a ganhar dinheiro"(PEQUENAS EMPRESAS & GRANDES NEGÓCIOS, 2007)6 6 O jogo já vendeu mais de 300 000 cópias desde seu lançamento, em 1997. Custa US$ 195 no sítio www.richdad.com. Além do jogo básico, existem versões para crianças, para jogar no computador e para jogadores avançados (em inglês e outros nove idiomas, mas não em português). .
A união da idéia de empreendedorismo e finanças em sintonia com as regras do mundo dos negócios mostra-nos o recrutamento de uma nova elite de pensadores, a formação de grandes gurus subordinados à indústria cultural e, evidentemente, observamos uma nova dinâmica social. Felicidade, ascensão financeira e sucesso profissional são temas da moda e certeza de sucesso, levando à formação de um grupo de peritos (gurus), detentores de um novo capital que exige um misto de ciência e magia para sua legitimação, isto é, dentro desse novo campo, o capital específico que se forma é reforçado pela forte presença do "pensamento positivo" e do carisma. Assim, ressalva Bourdieu (2002), "esse produto da cabeça do homem aparece como carisma, encanto inapreensível, mistério sem nome". Dessa forma, o discurso torna-se cada vez mais legítimo, formando novos pensadores - os gurus.
Esse verniz pseudocientífico presente na auto-ajuda expõe a relação entre o empreendedorismo e a idéia de homem rico, de modo que não percebermos a importância do contexto histórico, já que há ênfase nos eventos presentes. Entendemos ainda que, para além da auto-ajuda, a repercussão desses eventos é expressão dos valores da sociedade.
IV.1. Casos empreendedores
Nas histórias de sucesso, as personalidades bem-sucedidas são construídas de modo a traçar uma seqüência linear e coesa da história pessoal, a qual tem sempre uma finalidade. Os fracassos passados são tidos como desafios superados que servem para reforçar ainda mais o sucesso atual. De uma parte, esses casos podem ser construídos tanto a partir de personalidades famosas já reconhecidas pelo público, ou, de outra, podem ser produzidos pelos próprios gurus, ao construírem narrativas comparando os bons e maus exemplos. Os bons exemplos devem ser copiados e os maus devem ser evitados. Por meio de histórias como essas, as qualidades do empreendedor tomam corpo e veracidade. Esse mecanismo didático transforma a experiência individual em experiência coletiva e, assim, contribui para a (re)produção do habitus coletivo.
Em um período histórico em que a instabilidade de emprego e os riscos da abertura de um negócio assombram grande parte da população, as histórias de sucesso vêm contar casos de ascensão social, realização pessoal e profissional. O sucesso desses indivíduos não se deve a fatores econômicos, mas às suas qualidades pessoais, seu caráter, sendo que o sucesso financeiro é a conseqüência ou a recompensa pelas suas "boas ações". Alguns indicadores de sucesso para os empresários, apresentados nas revistas analisadas: casa própria, compra de ações, faturamento da empresas, viagem ou curso no exterior, aumento do número de empregados, ampliação da loja, exportação, profissionalização da administração, aplicação de tecnologia, abertura do capital na bolsa de valores.
As histórias e conselhos têm uma fundamentação ambígua: por um lado, visam tratar do ambiente emocional da sociedade atual e guiar a ação dos indivíduos em direção à constituição de uma realidade diferente, e muni-los de valores e significados para interpretar a realidade; por outro lado, esses conselhos justificam-se pela manutenção dessa realidade hostil, do contrário não existiriam: ou seja, precisam enfatizar que nada muda para justificar a existência permanente de conselheiros da mudança.
De modo geral, o empreendedorismo aparece, nos casos de sucesso, em oposição a outras relações e formas de organização. O empreendedor opõe-se ao emprego formal assalariado e subordinado, pois tende a entender esse trabalho como opressor da criatividade e da autonomia do indivíduo. Por ser a favor da liberdade do indivíduo, o empreendedorismo também opõe-se à rotina e à burocracia, buscando a mudança a partir do indivíduo.
Também pode opor-se ao conhecimento e organização universitárias. O conhecimento acadêmico é visto como contrário à criatividade e ao conhecimento prático. A teoria não se concilia à prática e o conhecimento é padronizado, voltado ao mercado de trabalho assalariado, subordinado e, portanto, desvalorizado. Os termos "intuição", "sonho", "visão", quando direcionados à prática, são valorizados. Assim, abre-se espaço para novas formas de conhecimento e de profissionais: os gurus, que atuam nessa área.
Sejam histórias fictícias ou de personalidades já reconhecidas, as narrativas de sucesso têm a capacidade de alterar a percepção dos indivíduos sobre o mundo social. Elas tomam como personagens papéis sociais bastante diferentes e, em alguns casos, desvalorizados socialmente, como, por exemplo, a dona de casa e o desempregado. A dona de casa tem a iniciativa de fazer salgados para vender e termina por abrir uma empresa. Já o desempregado reutiliza pneus velhos para produzir cercas de jardim. Ambos estavam excluídos do sistema de mercado e passaram a exercer uma atividade econômica por necessidade. Foram levados a se pensarem como empreendedores e não como trabalhadores precarizados.
Verifica-se que outros papéis sociais são ressignificados quando considerados empreendedores, como, por exemplo, o militar reformado e o cientista. Esses são profissionais não voltados à produção no mercado, mas ganham status de empreendedores quando o militar utiliza veículos anfíbios obsoletos para viagens de turismo ou quando o cientista produz um programa de computador e passa a comercializá-lo.
Esses exemplos destinam-se a um público de trabalhadores assalariados, desempregados, autônomos e profissionais liberais de classe média baixa para quem ser empreendedor significa criar uma empresa, passar a ser patrão, comercializar uma produção própria. O empreendedorismo dá resposta às crises do mercado de trabalho e difunde que se tornar empresário significa ascender socialmente. Mas o empreendedorismo não é apenas uma ideologia que busca a adesão das classes mais baixas e pequenos empresários, ele também está presente na valorização de iniciativas de empresários rumo à lógica do mercado financeiro.
IV.2. O empreendedor capitalista: um caso de sucesso
A revista Negócios: inspiração para inovar, uma publicação da Revista Época (Editora Globo) voltada para a cobertura de assuntos relacionados ao mundo empresarial, teve como matéria de capa o tema "O novo capitalista brasileiro", em que fazia-se uma descrição da extraordinária expansão do mercado de capitais, na primeira metade do ano de 2007, demonstrando como as empresas, os investidores e o Brasil estavam ganhando com tal desempenho e atribuindo ao presidente atual da Bovespa, Raymundo Magliano Filho, papel central e inovador, principalmente, no que tange à questão sobre a popularização do mercado financeiro no Brasil.
Assim a matéria de capa enfatizava a história da construtora Tecnisa, de Meyer Nigri, considerado um empreendedor, o qual, para adequar-se às "regras do jogo", abriu o capital da sua empresa e adotou o modelo de gestão profissional: "Ele construiu a empresa sozinho. Nos tempos em que cursava a faculdade de engenharia civil na Poli/USP, queria passar uma temporada na Inglaterra estudando inglês. O pai, imigrante de origem judaico-libanesa, não deixou. Disse que era hora de o filho trabalhar. Ressentido, Nigri devolveu o Puma azul que ganhara por ter passado no vestibular. Decidiu que faria sua própria empresa. Em 1977, aos 22 anos, concebeu a incorporadora com dinheiro emprestado de 15 amigos. Antes dos 30, fez dela um negócio rentável" (O NOVO CAPITALISTA BRASILEIRO, 2007, p. 91).
Como sabemos, a principal característica empresarial no Brasil são as empresas de caráter familiar, que constituem 285 dos 300 maiores grupos privados nacionais, segundo dados da mesma matéria. A história de vida caminha com a trajetória da empresa e, acompanhando as tendências do mercado, esses empreendedores natos precisam agora "parar de pensar como proprietários e raciocinar como investidor". Essa é a grande "inovação" do momento. Segundo Antonio Carbonari Netto, da Anhanguera Educacional, "organizamos a empresa internamente, criamos gerências administrativas e buscamos uma mentalidade mais empreendedora" (idem, p. 96).
Com esse quadro, temos a intenção de demonstrar alguns casos apresentado na mídia como bem-sucedidos e exemplares, uma vez que inovaram em alguma área da atividade econômica. A coluna "inovação" faz refletirmos sobre a inexistência de um padrão de critérios de definição desse termo, mas, em contrapartida, o que esses casos nos fazem compreender é que inovar significa romper com expectativas sociais, padrões de atividades mais freqüentemente encontrados na sociedade ou no mercado. São exemplos dessa ruptura de expectativas a criação de empresas a partir de estudos acadêmicos, uma seguradora de valores não ligada aos bancos, que passa a ofertar ações na bolsa de valores, ou, ainda, lançar no mercado financeiro empresas de um setor não produtivo como é o caso do educacional.
Em uma sociedade em transição como a atual, importa ser empreendedor, mesmo que não se saiba com precisão o que isso significa para cada dimensão da sociedade e para seus atores.
V. CONCLUSÕES
Neste artigo, apresentamos algumas discussões a respeito das recentes mudanças no mundo do trabalho e do desenvolvimento do mercado financeiro e das teorias que o sustentam. Concomitantemente a estas mudanças, verifica-se a ampliação de uma série de atores e conselhos gerenciais que alcançam o grande público por meio de livros de auto-ajuda e da mídia em geral. Os gurus da administração, ao difundir conselhos, assumem a função de empreendedores morais do empreendedorismo.
Por meio desses conselhos e dos casos de sucesso (assim como foi o protestantismo, no início do capitalismo) formam-se sujeitos com disposição para atuar economicamente e de forma reconhecida como boa e justa. Os casos de sucesso pretendem educar, apresentar elementos que devem ser copiados. Isso permite transformar os sentidos sociais dados às pessoas e às atividades sociais. Em suma, contribui para dar significados a uma esfera do mundo econômico antes não valorizado, seja este o mundo dos trabalhadores precarizados, informais, o dos proprietários de micro e pequenas empresas ou mesmo o dos empresários que entram no mercado financeiro.
Como mencionado, nas histórias dos indivíduos bem-sucedidos, "ser empreendedor" tanto pode ser considerado um atributo inato como um adquirido, mas há sempre em ambos um julgamento moral. O empreendedor é um tipo de ser humano, uma moralidade inata, o que encobre sua construção social e discursiva. Assim, como já nos apontavam Boltanski e Chiapello (1999; 2001), o empreendedorismo é uma ideologia do capitalismo atual que surge para garantir a adesão e a legitimidade às atividades antes não valorizadas.
OUTRAS FONTES
Recebido em 15 de junho de 2008.
Aprovado em 15 de setembro de 2008.
Elaine da Silveira Leite (elaineleite@dep.ufscar.br) é Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Natália Maximo e Melo (n.mmelo@uol.com.br) é Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Set 2009 -
Data do Fascículo
Nov 2008
Histórico
-
Recebido
15 Jun 2008 -
Aceito
15 Set 2008