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As artes e os ofícios da cura nas Gerais do século XIX

The arts and crafts of healing in nineteenth-century Minas Gerais

LIVROS & REDES

As artes e os ofícios da cura nas Gerais do século XIX

The arts and crafts of healing in nineteenth-century Minas Gerais

Margarida de Souza Neves

Professora do Departamento de História da PUC-RJ Rua Marquês de São Vicente, 225 22453-900 Rio de Janeiro — RJ Brasil msneves@vrac.puc-rio.br

Betânia Gonçalves Figueiredo

A arte de curar. cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 2002, 251 p.

A história da saúde e da doença no Brasil desenvolveu-se, nas últimas décadas, como uma das realidades mais promissoras no âmbito específico da história das ciências e na perspectiva mais ampla constituída pela historiografia brasileira. Representa hoje um campo de pesquisas históricas de perfil interdisciplinar, conformado por programas de pós-graduação consolidados e produtivos; por grupos de pesquisa de grande competência; por pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente; e por jovens pesquisadores interessados nesse microcosmo da história e da cultura. Livros e periódicos especializados reafirmam a riqueza da produção desses grupos e pesquisadores, enquanto que um número representativo de teses e dissertações na área das ciências sociais em geral e da história em particular aponta para a vitalidade dessa área de especialização.

O livro da professora do Departamento de História da UFMG Betânia Gonçalves Figueiredo, intitulado A arte de curar. Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais, inscreve-se nessa linhagem de estudos inovadores que vincula a história da saúde e da doença ao complexo universo da história da cultura e da sociedade. Distingue-se assim de uma produção sem dúvida valiosa, mas definida por uma perspectiva intradisciplinar, que, até a década de 1970, parecia dar prioridade ao que era visto como a 'evolução' de cada campo científico específico, às 'conquistas' de instituições e cientistas brasileiros, ou a temas científicos bem precisos e nos quais a perspectiva histórica residia sobretudo na temporalidade cronológica pretérita que delimitava as questões tratadas.

A arte de curar inova ao explorar o universo plural e aparentemente contraditório dos agentes sociais envolvidos naquilo que a autora denomina de "ofícios a serviço da cura" (p. 139) na província das Minas Gerais do século XIX, distante e distinta dos centros de formação acadêmica dos médicos que se diplomavam nas escolas médicas do Rio de Janeiro e da Bahia.

Não são poucas as surpresas que aguardam os leitores. A primeira delas está reservada àqueles mais atentos à natureza do texto, originalmente uma tese de doutorado em sociologia defendida na USP em 1998 e orientada pela professora Maria Célia Paoli, também responsável pelo prefácio do livro. Para esses leitores, a grata surpresa é a extensão e a densidade da pesquisa empírica. A autora privilegiou a produção memorialística, analisou um número impressionante de jornais mineiros e soube, simultaneamente, garimpar preciosidades, ao analisar com competência as águas nem sempre cristalinas da massa documental investigada e burilar com sensibilidade o resultado do trabalho paciente de pesquisa, traduzindo-o em um texto orgânico e bem escrito. O aproveitamento feito do livro de memórias de Alice Dayrell Caldeira Brant — que assina como Helena Morley (1994) o livro Minha vida de menina: cadernos de uma menina provinciana nos fins do século XIX — é um bom exemplo da sensibilidade e competência da autora. Este exemplo poderia multiplicar-se se detalhássemos a leitura cuidadosa dos anúncios de farmácias e serviços médicos nos jornais, a atenção aos detalhes dos relatos de viajantes e das memórias de médicos, e, de uma maneira geral, a todo o trabalho com a documentação primária.

Nestes tempos em que os programas de pós-graduação sofrem um processo de 'taylorização' e passam a assemelhar-se a linhas de montagem de teses e dissertações, a pressão do calendário das agências de fomento não poucas vezes atropela o tempo necessário para a maturação intelectual de uma tese de doutoramento. E, o que é igualmente grave, vem dificultando o prazer da conquista e do exercício da autonomia científica por parte dos doutorandos, que é substituído pela angústia do cumprimento dos prazos de titulação, definidos por uma burocracia nem sempre capaz de lidar com as diferenças de áreas, de escopo de pesquisa ou mesmo de situações de programas e de pesquisadores.

Não é pouco surpreendente, neste contexto, um livro originado de uma tese de doutorado que se traduza em um texto certamente escrito com prazer — e, portanto, passível de ser lido nesta mesma clave — a partir de uma pesquisa empírica muito ampla e significativa. Somente os leitores muito atentos saberão encontrar indícios da aceleração a que são submetidos os doutorandos em pequenos detalhes, tais como algumas repetições desnecessárias (p. 81, 155, 162, 176 ou 208, por exemplo) ou a referência truncada no item II da bibliografia, destinado aos dicionários, ao Dicionário da língua portuguesa, de Antonio de Morais e Silva (1813), cuja segunda edição foi publicada em Lisboa em 1813, essencial para os estudiosos do século XIX. O dever de ofício dos resenhistas supõe que se assinalem pequenas falhas como esta, de fácil solução em uma futura reedição, e é quase certo que nesse segundo item da bibliografia estariam originalmente incluídas outras obras de referência consultadas pela autora que, no entanto, não aparecem no livro.

Uma segunda surpresa é o painel extremamente rico, composto pelas práticas de cura nas Gerais do século XIX. O livro deixa perceber a infinidade de "procedimentos, técnicas e cuidados que buscavam o restabelecimento do corpo doente" (p. 23); o mosaico de doenças, remédios, espaços de cura, práticas curativas e tabus relativos à saúde; e o desfile de personagens variados, cuja atuação ligava-se diretamente aos ofícios de curar e que o texto de Betânia Gonçalves Figueiredo permite identificar.

Ao longo de todo o livro, e especialmente nos capítulos 3 e 4, Betânia põe em cena uma multidão de barbeiros, parteiras, curandeiros, cirurgiões, dentistas, práticos, médicos, boticários, farmacêuticos, rezadoras, sem esquecer de assinalar, a cada passo, as hierarquias existentes entre estas categorias socioprofissionais da cura e mesmo no interior de cada uma delas. Ao mesmo tempo, aprofunda a relação desses homens e mulheres, cujo ofício era o alívio dos males do corpo, com a sociedade como um todo e com suas práticas de sociabilidade e de exercício do poder, introduzindo o leitor no universo de medos, dores, perplexidades, crenças e desconfianças que pavimentam o que o capítulo 1 do trabalho denomina de "os percursos da cura no século XIX em Minas Gerais" (p. 39).

Em cada fragmento desse surpreendente mosaico, a tese central vai se esboçando, para aparecer com clareza no desenho final que o leitor perceberá ao concluir a leitura do livro. Não se trata apenas de assinalar que "o discurso médico no século XIX não é homogêneo, assim como sua prática também não" (p. 24). Trata-se de rever as práticas e procedimentos de cura no século XIX em Minas, para identificar, por um lado, o conflito entre a medicina moderna e científica e as formas tradicionais, eminentemente práticas e muitas vezes mágicas do exercício popular da cura e, por outro lado, surpreender as relações, superposições e interpenetrações entre a medicina acadêmica e as práticas de cura construídas e transmitidas pelo saber do povo.

A argumentação utilizada ao longo dos quatro capítulos é consistente, e justamente por isso a história de Hermes Augusto de Paula — o médico de Montes Claros cujo livro de memórias ajudou a autora a confrontar e relacionar "a medicina dos médicos e a outra medicina", anunciada logo no início do livro (p. 31) e narrada no final do quarto capítulo (p. 224) — é eloqüente e escapa ao episódico, ganhando foros de fábula emblemática da tese defendida por Betânia. O médico, depois do fracasso de dois colegas seus, enfrentava procedimentos complicados para extrair uma bala que se alojara em local de difícil acesso no rosto de um fazendeiro local. Manejava com uma das mãos os instrumentos cirúrgicos e as radiografias, conforme os ensinamentos científicos que aprendera na academia. Com a outra mão, apelava para os serviços da alma do negro Joaquim Nagô, prometendo-lhe uma ave-maria se este o ajudasse. O fato é que a pinça da ciência extraiu com sucesso o projétil do rosto do fazendeiro em minutos, o que não impediu o médico de reconhecer a ajuda da alma do outro mundo que convocara para assisti-lo, a quem recompensou rezando contrito não uma, mas três das orações prometidas.

Os episódios que confirmam a interpenetração entre o universo da ciência médica e o da 'outra medicina' se multiplicam e permitem ao leitor a percepção progressiva do alcance do trabalho. Este se desdobra e cresce a partir de uma hipótese, esboçada já na introdução do livro, na qual a autora afirma considerar que "o século XIX no Brasil (pode) ser estudado como um século fundante, pedra inaugural com um vetor em direção a um modelo de civilização" (p. 30). Esta intuição inicial é aprofundada por meio do diálogo teórico discreto, mas efetivo, com seus principais interlocutores, representados por autores como Norbert Elias (1990), cuja leitura fornece a chave para a compreensão da complexidade dos processos civilizatórios; Michel De Certeau (1994), de quem toma de empréstimo a noção de "pluralidade incoerente (e por vezes contraditória) de determinações relacionais" (p. 27); e Nestor Garcia Canclini (1997) — que não aparece, no entanto, citado na bibliografia do trabalho —, com quem aprendeu a importância de "explorar esse universo do mundo cultural composto por variações e hibridações" (p. 237).

A interlocução teórica confrontada com o universo oferecido pela pesquisa empírica conduz a uma terceira e definitiva surpresa. Como todo historiador, Betânia Gonçalves Figueiredo se debruça sobre o passado para refletir sobre as questões do presente. E seu trabalho minucioso sobre as profissões da cura no século XIX mineiro tem como horizonte de sentido a indagação sobre o processo complexo, híbrido, contraditório, ambíguo e sempre incompleto que caracteriza a construção do 'moderno' na sociedade brasileira. O peso de sua argumentação certamente ajuda a pensar o moderno como questão no campo científico brasileiro, ainda que os exemplos contemporâneos — aduzidos na conclusão e representados pela experiência da Casa do Chá, na cidade mineira de Ouro Branco, e da Farmácia Verde,mantida pela Prefeitura de Ipatinga — impliquem um salto lógico. Este não chega a acrescentar nada à tese defendida e parece afastar-se um pouco do rigor do raciocínio histórico que permeia todo o trabalho. Mas este é apenas um detalhe e nada prejudica o valor do trabalho.

O problema maior, como tantas vezes ocorre com as publicações veiculadas por pequenas editoras, é encontrar o livro... A editora Vício de Leitura, responsável por sua publicação, deve encontrar dificuldades para furar o cerco das grandes editoras e de sua relação com as livrarias para garantir a divulgação do trabalho de Betânia. Deste problema, no entanto, nem a autora nem a editora podem ser responsabilizadas.

O certo é que a busca pelo livro e sua leitura valem a pena. A arte de curar, de Betânia Gonçalves de Figueiredo, garantirá a seus leitores, além de horas de leitura instigante e prazerosa, a grata experiência do contato direto com um ótimo exemplo da produção de qualidade originada nos programas de pós-graduação brasileiros; a descoberta do complexo mundo das artes e ofícios da cura nas Gerais do século XIX; e, por acréscimo, uma ocasião para a reflexão sobre o intricado processo de construção do moderno no Brasil.

  • Canclíni, Nestor Garcia 1997 Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, Edusp.
  • De Certeau, Michel 1994 A invenção do cotidiano Petrópolis, Vozes.
  • Elias, Norbert 1990 O processo civilizador: uma história de costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
  • Morais e Silva, Antonio de 1813 Dicionário da língua portuguesa, recopilado dos vocabulários impressos até agora, segunda edição novamente emendada e muito acrescentada 2ª ed. Lisboa, s. n.
  • Morley, Helena 1994 Minha vida de menina: cadernos de uma menina provinciana nos fins do século XIX. 17ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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