CARTA DAS EDITORAS CONVIDADAS
Caros leitores,
Estamos em festa! Não somente pela proximidade do Natal e do Ano Novo, como pelo lançamento de mais um número de História, Ciências e Saúde - Manguinhos, que reúne trabalhos produzidos por pesquisadores vinculados a instituições da Bahia ou de outros estados, mas concernentes, todos eles, às singularidades regionais na história brasileira das ciências e da saúde.
Os artigos foram, em sua maioria, apresentados no I Fórum de História das Ciências e da Saúde: Perspectivas Historiográficas, realizado no Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia, em 17 de outubro de 2006. O interesse dos trabalhos levou os editores da revista a nos convidar a organizar um número temático que expressasse a riqueza da produção historiográfica local, em termos de temas, fontes e metodologias.
Nesse momento, o grupo responsável pelo I Fórum promove sua segunda edição, com igual sucesso. Ainda em dezembro, a cidade de Salvador acolheu o II Fórum, com uma centena e meia de participantes, o que indica o crescimento da produção em história das ciências e da saúde fora do consagrado eixo Rio-São Paulo.
Maria Renilda Nery Barreto é a autora de "Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista", no qual procura mostrar que coexistiam no período, em Salvador, duas culturas obstétricas: a dos médicos-parteiros, que faziam uso dos recursos técnicos e cognitivos daquela especialidade médica, e a das tradicionais parteiras, cujo saber era de natureza empírico-sensorial. Apesar do esforço dos médicos para conquistar a confiança das famílias baianas, as parteiras continuaram hegemônicas na arte de 'aparar' crianças e tratar das doenças de mulheres. A autora põe em evidência os segmentos sociais e profissionais que atuaram na assistência ao parto; o papel da Faculdade de Medicina da Bahia na formação e certificação das parteiras; e o dos periódicos na legitimação dos médicos-parteiros revelando, por outro lado, a reduzida participação das parteiras nesses veículos de comunicação.
O artigo "Mulheres, imprensa e higiene: a medicalização do parto na Bahia (1910-1927)", de Marivaldo Cruz do Amaral, discute o papel da imprensa leiga na disseminação da agenda higienista na capital baiana. Detém-se especialmente no parto medicalizado e nos novos padrões de atenção ao corpo feminino e aos recém-nascidos na Maternidade Climério de Oliveira, que contou com o apoio incondicional da imprensa.
Em "A epidemia de gripe espanhola: um desafio à medicina baiana", Christiane Maria Cruz de Souza evidencia o momento em que as autoridades médicas e sanitárias da Bahia foram desafiadas a explicar um mal que se disseminava com inesperada virulência, em meio a incertezas e controvérsias sobre o diagnóstico e a etiologia da gripe. A autora analisa os posicionamentos dos médicos locais e os recursos que acionaram para explicar a crise epidêmica e para recomendar medidas terapêuticas e profiláticas.
Venetia Durando Braga Rios apresenta aos leitores interessante análise sobre um dos instrumentos de anamnese aplicados pelos médicos do Asilo São João de Deus, em Salvador (Bahia), a partir de 1874, ano da sua instalação. Seu artigo intitula-se "O 'Asylo', uma necessidade indeclinável de organização social: indagações em torno do questionário de internamento do Asilo São João de Deus". A pesquisadora localizou, no Arquivo do Estado da Bahia e no da Santa Casa da Misericórdia de Salvador, documentos importantes para a compreensão da história asilar e da história da psiquiatria do estado. Cerca de vinte questionários preenchidos por alienistas baianos revelam tanto o conhecimento médico sobre a loucura e seu tratamento como as maneiras de conduzir o cotidiano asilar.
O artigo de Vera Nathália Silva de Tarso também se reporta ao Asilo São João de Deus. A autora nos apresenta as tensões que envolveram a Santa Casa da Misericórdia, o Estado e a imprensa quando a gravidez e o parto da interna Joanna de Sá foram noticiados nas páginas do periódico O Monitor.
Tânia Salgado Pimenta e Ediná Alves Costa, autoras de "O exercício farmacêutico na Bahia da segunda metade do século XIX", estudam a tendência à delimitação crescente dos ofícios relacionados às artes de curar no Brasil ao longo do Oitocentos. Verificam, na medicina acadêmica, progressiva distinção entre os que prescreviam e aqueles envolvidos na fabricação e comercialização de medicamentos, evidenciando mudanças e permanências na legislação, na relação de farmacêuticos com autoridades, médicos e aqueles que, ilegalmente, fabricavam e vendiam remédios não autorizados.
Laura Carvalho dos Santos discorre sobre "Antônio Moniz de Souza, o 'homem da natureza brasileira': ciência e plantas medicinais no início do século XIX", em que registra um intenso movimento de investigação da natureza visando a nossa flora. Um dos principais objetivos das expedições feitas na época, em sua maioria por viajantes estrangeiros, era o mapeamento de espécies com valor econômico ou passíveis de serem empregadas nas práticas terapêuticas. Nas primeiras décadas do século XIX, o viajante baiano Antônio Moniz de Souza percorreu diversos pontos do país a observar, catalogar e coletar produtos dos três reinos da natureza, em especial plantas medicinais.
Em "Controle de riscos à saúde em radiodiagnóstico: uma perspectiva histórica", Marcus Vinicius Teixeira Navarro, Handerson Jorge Dourado Leite, Josemir da Cruz Alexandrino e Ediná Alves Costa apresentam a descoberta das radiações ionizantes, seus efeitos biológicos e a conseqüente necessidade de controle dos riscos que impõem à saúde. Ao analisarem a evolução histórica do controle de risco em radiodiagnóstico no Brasil, mostram que este estava associado não apenas à dose recebida, mas também a erros de diagnóstico e ao problema dos custos para o sistema de saúde. Salientam os autores que a legislação sanitária envolve múltiplos atores e um amplo leque de co-responsabilidade social.
"O Instituto de Matemática e Física da Universidade da Bahia: atividades matemáticas (1960-1968)" é o título do artigo de André Luís Mattedi Dias. Com base em documentação encontrada nos arquivos da instituição e em depoimentos de seus professores, analisa a implantação de um centro de pesquisa e pós-graduação na Universidade da Bahia, naqueles anos turbulentos da história social e política brasileira. Enfatiza o ator interesses, representações, articulações e conflitos envolvendo os protagonistas do processo: os autores e aliados do projeto, inclusive as lideranças matemáticas nacionais, os catedráticos da Escola Politécnica e da Faculdade de Filosofia que o contestaram, os estudantes dessas escolas e outros atores.
Juliano Moreira é objeto do artigo de Ronaldo Ribeiro Jacobina e Ester Aida Gelman, "Juliano Moreira e a Gazeta Medica da Bahia". À luz de estudos recentes, os autores revisitam a biografia do médico baiano e examinam com especial atenção os trabalhos que publicou no período de 1893 a 1903, na Gazeta Medica da Bahia, o periódico que serviu de veículo às pesquisas originais da Escola Tropicalista Bahiana. As contribuições de Moreira naquele período situam-se principalmente nas áreas de dermatologia, sifilografia, parasitologia e neuro-psiquiatria.
Em "Nossos mulatos são mais exuberantes", Mariza Corrêa trata de outro médico, o maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), cujo centenário de morte mereceu edição especial da Gazeta Medica da Bahia e artigos em vários outros periódicos. A autora apresenta tradução feito por ela de "Métissage, dégénerescence et crime", artigo publicado por Nina Rodrigues nos Archives d'Anthropologie Criminelle, em 1899. Na presente edição de História, Ciências Saúde - Manguinhos, o leitor encontrará a versão em português ("Mestiçagem, degenerescência e crime") e o facsímile desse texto tão interessante, quer pela etnografia, quer pelo seu uso de genealogias e estudos de caso, originais à época no país.
"Fontes de interesse para a história e a cultura da saúde: o Arquivo Histórico Municipal de Salvador", de Maria Teresa Navarro de Britto Matos e Adriana Sousa Silva, apresenta a evolução do Arquivo Histórico Municipal de Salvador, sua estrutura atual e seu acervo, dando ênfase às fontes de interesse para a história e a cultura da saúde.
A nota de pesquisa de Alex Gonçalves Varela trata da obra do 'metalurgista de profissão' Manuel Ferreira da Câmara (1783-1820), cujo perfil associa as atividades de estadista e parlamentar e o estudo das ciências naturais. Suas memórias científicas são testemunhos importantes da riqueza do pensamento ilustrado luso-americano no final do século XVIII e início do XIX.
Os trabalhos apresentados nessa edição de História, Ciências, Saúde - Manguinhos mostram que a história das ciências e da saúde na Bahia vai de vento em popa, uma imagem que cabe bem à sua capital, porto barroco de muitas tradições e, entre elas, festas belíssimas. E assim, diletos leitores, depois que terminarem esse mergulho pela vertente séria da Bahia, vamos às festas, onde quer que estejam, porque este foi um ano produtivo e o próximo será mais ainda.
Maria Renilda Nery Barreto
Lina Maria Brandão de Aras
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jan 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008