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Educação sanitária na profilaxia das endemias rurais

FONTES

Educação sanitária na profilaxia das endemias rurais

por Hortênsia Hurpia de Hollanda, 1956

No decorrer das aulas deste curso, foi muitas vezes chamada a atenção para o papel da educação sanitária como fator de profilaxia e controle das endemias rurais no Brasil. Sobre a necessidade da educação sanitária parece não haver dúvida, especialmente em programas de erradicação ou de controle de doenças em cuja epidemiologia os modos de viver, as práticas e as atitudes das populações são reconhecidos como fatores importantes de sua incidência.

Notamos, porém, que a maioria das pessoas, referindo-se à educação sanitária, está na realidade pensando em termos de informação científica sobre determinados assuntos de saúde, na suposição de que o conhecimento conduziria logicamente à mudança de comportamento desejada. Assim, no caso da esquistossomose, as populações às quais se facilitassem conhecimentos sobre o modo de transmissão da doença, com ênfase sobre o papel do caramujo como hospedeiro intermediário e o das cercárias na infestação do homem, deveriam consequentemente evitar os atuais focos de contaminação e tomar as medidas tendentes a impedir a criação de novos focos. A experiência, no entanto, revela que nas áreas endêmicas, apenas uma reduzida porcentagem da população modifica efetivamente suas atitudes e práticas, quando informada sobre o ciclo evolutivo do Schistosoma e sobre a localização dos focos potenciais de infestação. Vimos que as pessoas que respondem ao apelo do material educativo distribuído ou ao conselho do pessoal de saúde são significativamente aquelas que já demonstravam interesse por questões de saúde e que pertenciam a grupos econômicos mais favorecidos.

A ideia de que o conhecimento modificaria a conduta deriva certamente da concepção racionalista do homem - de que o homem é um animal capaz de raciocinar das premissas a conclusões, e guiar a sua atividade pelas conclusões lógicas. Sem negar o papel do conhecimento no comportamento consciente, devemos lembrar, no entanto, que o homem é antes de tudo um animal afetivo, cujo pensamento e ação sofrem irremediavelmente as influências do meio em que vive, e do jogo das interações entre o seu organismo total e o ambiente em que ele se desenvolve.

Uma revisão do conceito de conhecimento é, portanto, de primacial importância para todos aqueles que se empenham em tarefas educativas. E nenhum médico pode se evadir de sua função pedagógica.

Os indivíduos trazem para cada situação de aprendizagem o seu mundo de experiências, ideias, valores e expectativas, que determinarão, em grande parte, o que será percebido e incorporado, assim como o que não será percebido ou rejeitado. Esses valores e expectativas foram condicionados significativamente pelo mundo social em que nasceram e se criaram as pessoas. A verdade é que nascemos em um grupo social, encontramos nele uma situação feita e, nesta, modos de interpretar o mundo, modos de agir, que são desse grupo e dos quais começamos a participar desde os primeiros momentos da vida.

Assim, o problema da educação sanitária não é propriamente de dar conhecimentos, especialmente quando se trata daqueles grupos culturalmente mais atrasados, mas sim de reestruturação de atitudes, de concepções de vida já existentes. Esses grupos, que tão sumariamente chamamos de ignorantes, na verdade têm apenas uma outra concepção da vida, não científica, mas, de qualquer forma, uma concepção que os ajuda a aceitar e a interpretar o mundo.

O médico que lida com pessoas de grupos sociais diferentes, principalmente nas áreas chamadas subdesenvolvidas, precisa ter em mente que a recomendação, o conselho em relação a um comportamento específico, como o evitar o contato com os focos de infestação esquistossomótica não terá sentido para aquelas pessoas, a menos que se relacionem com a sua própria valorização da saúde, sua concepção particular de vida e muitas outras coisas mais. Às vezes a doença representa para aquela gente um meio de justificar a pobreza, o fracasso diante da vida. Para realizarmos uma tarefa de educação sanitária, temos que procurar compreender o todo de que fazem parte, das atitudes em relação a determinadas doenças e tratar de modificar essa concepção mais alta da qual decorrem as outras, mais específicas.

A especialização, provocada pela quantidade cada vez maior de fatos em cada disciplina, tem concorrido para uma perda da visão total dos problemas do homem. Os filósofos já chamaram a atenção para a dramática fragmentação do homem pelos especialistas, que não sabem nada um do outro. As multiplicidades cada vez maiores das ciências particulares empenhadas no estudo do homem confundiram e obscureceram mais do que elucidaram a concepção dos problemas básicos humanos.

Em Saúde Pública, a educação sanitária representa um esforço no sentido de integração, no sentido de encarar o homem, objeto da medicina, dentro do contexto social em que se criou e em que vive esse homem.

Para a perfeita compreensão dessa abordagem, é fundamental o conceito de cultura, a qual podemos definir curta e simplesmente como "o comportamento e os produtos do comportamento de um grupo humano". Cada indivíduo tem potencialmente muitos caminhos para se desenvolver, mas a cultura é uma grande limitadora, no sentido de que todas as necessidades individuais, mesmo as mais básicas fisiológicas - como de alimentação e de reprodução -, são no entanto reguladas pela cultura em que a pessoa nasce. Daí os padrões de comportamento em relação aos sexos opostos, variando nitidamente de grupo (a poligamia aceita em certas culturas, enquanto, em outras, a monogamia é reforçada com drásticas sanções por parte da sociedade). No que se refere ao problema alimentar, vamos encontrar uma rica variedade de dietas, dependentes em parte dos alimentos naturais da região onde floresce esta ou aquela cultura, mas, em grande parte, determinada pela tradição, pela tecnologia, pelas atitudes diante da vida, pela organização social, etc. Há, portanto, inúmeras soluções para os problemas básicos humanos, determinadas pela cultura.

Decorre desse conceito a verdade sociológica simples, mas fundamental, de que uma unidade de conduta não é um ato isolado, mas parte integrante de padrões preestabelecidos de pensamento e de conduta.

Outro conceito importante é o de mudança cultural, especialmente no planejamento de programas com ação educativa para as áreas subdesenvolvidas. Em ritmo mais lento ou mais apressado, realizam-se mudanças nos modos de viver de um grupo humano. Com o avanço da tecnologia e o fantástico aperfeiçoamento dos meios de comunicação, a nossa geração pode assistir e medir, especialmente nos centros urbanos, as modificações que se operaram na estruturação dos valores, nos papéis atribuídos aos diferentes membros ou grupos da sociedade, produzidas pela rapidez com que as ideias circulam pelo rádio, pelo cinema, pela imprensa, pelo avião, pelo automóvel, etc. Sabemos por isso que nas áreas tecnologicamente mais avançadas, aonde o impacto das ideias vindas de outras regiões e centros é constante, o problema da educação é em grande parte um problema de controle dos meios de comunicação (instituições educacionais, rádio, imprensa, teatro, cinema, etc.).

Nas áreas rurais, particularmente das regiões subdesenvolvidas, onde as populações vivem mais isoladas, em ritmo lento de mudança, desligadas, às vezes quase que totalmente, do progresso que se processa em outras regiões do mesmo país, a educação sanitária tem que se basear nos contatos pessoais, na aproximação dos grupos primários e na elaboração de programas coordenados com outras entidades - a escola, a igreja, as organizações de fomento agrícola, e outras. A Saúde Pública é, potencialmente, uma grande força de mudança cultural nas áreas subdesenvolvidas de nossa terra, desde que ela aborde os problemas em sua totalidade, procurando a participação da população, fazendo com que cada atividade de assistência médica ou de profilaxia vise o levantamento das possibilidades físicas e espirituais de cada indivíduo e da comunidade em geral. Aqui, a educação sanitária não pode ser definida em termos de conhecimentos, de divulgação de informações; tem que ser encarada como um programa de ação, no qual haja oportunidade para o trabalho de cada um dos habitantes da área em foco.

Um fator fundamental no trabalho de assegurar a participação individual e coletiva das populações nos programas de profilaxia é a capacidade do médico de se identificar emocionalmente com a tarefa, e de sentir-lhe a dimensão sociológica. Não haverá profundidade, nem resultados duradouros sem uma identificação emocional com o problema. Não creio que alguém tenha conseguido no campo da educação qualquer resultado ponderável com uma aproximação fria, embora competente, do problema humano.

Qualquer serviço de saúde, para ser educativo, para ter continuidade no tempo e no espaço, terá que contar com pessoal capaz de sentir e de compreender os aspectos psicológicos, sociais e econômicos do problema médico.

O trabalho de saúde pública exige ainda certa dose de espírito missionário, no sentido de desejo intenso e autêntico de resolver o problema, porque este é visto como uma situação injusta que não deve persistir.

Tal atitude depende em grande parte de uma sensibilidade pessoal para os problemas sociais, mas não se pode negar a importância do fator formação. Na realidade só percebemos aquelas coisas que a nossa própria sensibilidade distingue e procura, ou aquelas para cuja percepção fomos alertados intelectualmente. A sensibilidade para os problemas sociais, embora decorra de uma disposição da personalidade, pode ser desenvolvida pela formação profissional.

Cada médico devia ser formado para ser um educador, no sentido de que em cada contato seu com os pacientes ou membros da comunidade se estabelecem verdadeiramente uma comunicação de ideias e de sentimentos. O médico devia ser preparado para perceber e compreender as forças sociais como fatores epidemiológicos e determinantes de certos quadros da doença. Isto é que é essencial. Não há técnica nem material educativo que possa substituir essa capacidade de compreender e de fazer compreender.

Há situações em que sentimos essa necessidade com maior agudeza. Recordo bem que, logo no início de minha experiência no trabalho educativo em programas de combate à esquistossomose, senti como uma atitude de compreensão das motivações era fundamental. Em uma reunião de líderes de um município de Pernambuco, destinada a mobilizar o interesse dos donos de engenho para medidas de profilaxia da esquistossomose, uma das senhoras me afirmava que qualquer esforço seria inútil. A gente era ineducável.

"A senhora imagina - disse-me ela - que eu mandei abrir um poço para os trabalhadores de meu engenho para que tivessem água boa, e no dia seguinte soube que haviam defecado dentro do poço. Preferem a porcaria".

Tomando ao pé da letra, tal fato poderia levar-nos a um julgamento pessimista. Mas, antes de julgar, teríamos que conhecer o tipo de relações existentes entre aqueles donos de engenho e o grupo de trabalhadores. Esse ato de defecar num poço, classificado como prova de ignorância e de agressividade insuperáveis, não teria sido talvez a maneira infeliz de darem expressão a sentimentos de revolta, longamente recalcados?

É preciso lembrar que os grupos vivem uns com os outros, ou uns contra os outros. Todos nós pertencemos a grupos e sabemos que essa é a realidade. Mesmo dentro da mesma profissão, entre médicos, por exemplo, formam-se grupos ligados por interesses ou por orientação metodológica que se opõem permanentemente, ou se reúnem para a defesa de interesses ou pontos de vista comuns. Essa oposição pode ser frequentemente estimulante ou construtiva, porém determina uma verdadeira deformação da percepção. Isto é muito mais verdadeiro quando se trata de grupos sociais irremediavelmente dependentes um do outro, como é o caso da relação entre os donos de propriedades agrícolas e os trabalhadores assalariados, nas áreas de latifúndio. Cada um desses grupos tem que ser aproximado em relação ao mesmo problema de saúde de uma forma diferente. A conduta do segundo não pode ser encarada friamente como um comportamento isolado. Ela tem que ser encarada como um todo, ainda que o nosso interesse profissional focalize apenas os itens que se referem à epidemiologia da doença. Todo um trabalho de aproximação emocional do grupo, através da modificação da atitude geral dos donos, seria necessário, antes de esperarmos mudanças no comportamento daquela população. Só teríamos êxito no dia em que os próprios trabalhadores sentissem a necessidade da medida e trabalhassem por ela. E aqui tocamos um princípio importantíssimo em qualquer trabalho educativo. O pensamento se modifica através da ação. O pensamento da gente simples não se modifica na contemplação das coisas. A mão é um instrumento maravilhoso para a transformação do pensamento. Tudo aquilo em cuja execução participamos ativamente, tudo aquilo em que empenhamos o nosso esforço, adquire um sentido dinâmico para nós, enriquece o pensamento, dá-lhe segurança.

Todo o trabalho de educação sanitária deve, por isso, tanto quanto possível, trazer as pessoas para participarem na atividade de profilaxia desde o seu planejamento até a sua execução. A formação de grupos para a discussão dos problemas locais da comunidade favorece a mudança da mentalidade, o surgimento de aspirações para a comunidade. Mesmo que seja necessária a ajuda do Governo, qualquer medida terá um significado que não teria se dada de presente.

Na Paraíba, onde foram instalados postos de tratamento de esquistossomose, formamos grupos de moradores nas localidades para discussão dos problemas de saúde da população local. A princípio houve pouco interesse em projetos coletivos; os interesses pessoais sobrepunham-se aos da comunidade. Quando o grupo começou a fazer alguma coisa - primeiro uma pequena melhoria na escola, depois uma festa para o resto do povo da localidade e finalmente iniciando uma campanha de fossas - rapidamente se desenvolveu neles o senso de comunidade, o sentido de coletividade que é tão raro entre nós.

Na campanha das fossas, os membros do grupo tomaram a responsabilidade da iniciativa. Na população em geral, os que não podiam pediram a ajuda em tijolos, e os que podiam construíram suas fossas por conta própria. Vinham ao posto inscrever-se, receber orientação e o material, quando fosse o caso. Como cada membro da equipe era responsável por sua rua, surgiu a competição construtiva. Cada qual queria apresentar maior produção. Organizaram um mapa aonde iam sendo assinaladas as casas com fossas em início e término da construção.

Por prosaico que pareça, o assunto de fossas tornou-se o assunto do dia. Cada qual se interessava por aperfeiçoar a técnica de construção e por conseguir a ajuda para aqueles moradores inválidos, ou mulheres velhas que não podiam cavar elas próprias as suas fossas. Devido às dificuldades de verbas no princípio do ano, houve uma interrupção de quase três meses de atividade de construção de fossas. Os postos de tratamento não deixaram de funcionar e as educadoras sanitárias trataram de derivar o interesse do grupo para outros assuntos. Mas nas últimas reuniões dos grupos a que assistimos, com o Dr. Olympio da Silva Pinto, coordenador da Campanha Nacional Contra a Esquistossomose, os senhores não imaginam a impaciência demonstrada porque não dispunham de material para prosseguir a campanha das fossas. Se pensarmos que a situação comumente encontrada em Saúde Pública é justamente a oposta: fornecendo o Governo as fossas para a população que aceita o presente sem entusiasmo e o utiliza ou não, podemos dizer que a nossa experiência revela a potencialidade do método. Devo esclarecer que a população daquelas localidades é muitíssimo pobre, com a média dos salários não ultrapassando a Cr$1200,00 por mês; famílias com três ou quatro filhos em média; gente vivendo em mocambos. E contudo essa mesma gente conseguiu dedicar um pouco de seu trabalho, algumas de suas horas livres, para uma medida de proteção à saúde coletiva. Devo acentuar que no trabalho educativo todas as forças sociais foram mobilizadas - a escola, a Igreja, a assistente social que mantinha um precaríssimo salão de costura, e o serviço de fomento agrícola. A instituição da horta escolar estendeu-se às famílias; hoje, quatro meses ainda não decorridos desde a organização da primeira horta, cinquenta por cento das casas têm hortas. Organizou-se um curso de alimentação para donas-de-casa. Tudo isto foi decorrência do trabalho, apenas para o combate à esquistossomose. A necessidade do ataque do problema, em suas várias "frentes", norteou a nossa ação para um trabalho mais geral. Embora colocando ênfase na parte de saneamento básico, principalmente na parte de remoção dos dejetos e proteção das fontes de água.

Um outro ponto, para o qual quero chamar atenção, refere-se à atitude experimental diante do trabalho; não existem métodos padronizados para essa tarefa de educação sanitária, pois a educação é fundamentalmente educação social.

Temos que adotar uma atitude experimental, aprendendo dos fracassos. A avaliação deve ser um processo constante e à base da qual replanejemos e reorientemos a nossa atividade. É importante acentuar este ponto; qualquer setor do trabalho de desenvolvimento social e econômico exige essa atitude experimental por parte de quem vai executar; nada de esquemas padronizados, rígidos. Há necessidade de uma constante revisão das premissas e dos resultados dos programas de ação. Devemos ter em mente que os grupos e as pessoas a quem dirigimos o nosso trabalho não são estáticos. Reestruturam suas atitudes e modificam seu comportamento sob o impacto de novas situações, de novos conhecimentos e da interação pessoal.

A personalidade do médico ou do trabalhador de Saúde Pública determina em grande parte a qualidade e o ritmo do trabalho educativo. Nem a melhor formação acadêmica pode suprir a falta de simpatia pessoal, de empatia com o problema humano e social. Na realidade, nenhum médico, enfermeira ou qualquer outro profissional de Saúde Pública, pode prescindir dessa comunicação emocional com o mundo em que vivem os objetos de seu interesse imediato: os doentes, os contatos, os expostos às doenças. Se o médico se identifica com a população, a sua simples presença é um elemento de mudança social grande na localidade, principalmente nas áreas rurais.

É comum ouvirmos afirmações sobre a incapacidade de os adultos mudarem seu comportamento em relação às práticas que interessam à Saúde Pública. Depositam-se as esperanças na formação de uma geração nova, completamente livre dos maus hábitos da atual, considerando-se esforço perdido o empregado com os adultos. No entanto, na organização política e social do Brasil, não há condições para a educação da criança, separada da sua família, separada do grupo social em que ela viva. Se as escolas são precárias do ponto de vista de instalações, ainda o são muito mais em relação ao professorado. O recrutamento, a formação e o sistema de remuneração do professorado estão a pedir uma total revisão. A escola, como regra, só alfabetiza nada mais. À criança não são oferecidas as oportunidades para o desenvolvimento de suas potencialidades na interação inteligente com o seu próprio ambiente. Nessas escolas as professoras não têm a formação adequada para a educação em relação à saúde. A ignorância realmente é constrangedora. Aliás, participam dos padrões culturais dos grupos de população a que pertencem. Nestas condições como pensar na formação de uma nova mentalidade através do sistema de escolas primárias apenas?

O problema tem que ser atacado simultaneamente nos vários níveis do ensino, na família, e através de todos os contatos com a população adulta. Não há justificativa para a difundida ideia de que os adultos não aprendem. As experiências psicológicas demonstram que a idade não representa uma barreira para a aprendizagem e a consequente mudança de comportamento. Há apenas uma questão de abordagem e de utilização das motivações dos grupos que nos interessa. A experiência tem mostrado que é possível uma apreciável reestruturação das atitudes em relação a todos os setores da vida derivada do trabalho educativo de adultos no campo da saúde. Verdadeiros líderes comunais surgem dos grupos trabalhados.

Em uma das localidades onde desenvolvemos os trabalhos de profilaxia com a participação do povo, uma mulher que mora ao lado do posto de tratamento tornou-se um elemento valioso no trabalho educativo da comunidade. Doente, de esquistossomose, havia se submetido a tratamento e ficara boa. Todos os exames de controle foram negativos, até o oitavo. Era a vice-presidente do clube das senhoras, organizado para mobilizar o interesse da população nas medidas de profilaxia. Todo o dia de consulta do posto chamava os doentes para a sua casa e, embora analfabeta, com a ajuda das ilustrações dos cartazes e dos folhetos, sentava-se no chão da casa desnuda de móveis e explicava para os pacientes novos o ciclo evolutivo do verme, o mecanismo de transmissão da doença e recomendava as medidas de proteção.

"Olha - dizia - eu era uma doente, cansada, sem coragem para nada, a comida caía no estômago como um tijolo... Agora cuido de minha casa, de meus filhos e devo tudo ao posto da Malária, que antes nenhum médico me dava jeito... A gente pega essa malvada é mesmo no rio... Fazer poço em casa, não é difícil..." e continuava a falar. Era uma beleza como dona Amélia falava. Magrinha, pequena, séria, e extraordinariamente ativa.

Um dia, depois do oitavo exame de controle, pediu novo exame de fezes, que deu positivo. Então perguntou à educadora sanitária por que dera positivo. "Bem, dona Amélia", respondeu ela, "às vezes ocorre assim. Parece que nem todos os vermes morreram, ficaram apenas incapazes de botar ovos durante algum tempo. Mas agora alguns recuperaram a sua capacidade de botar ovos. A senhora precisará fazer um novo tratamento". Depois de ouvir atentamente, dona Amélia falou suavemente: "Não é nada disso, dona Malvínia; é só que eu fui outra vez ao rio. Porque esse povo aí andava dizendo que era besteira, que no rio não se apanha esquistossomose. Então eu fui, para mostrar a eles que é lá mesmo que se apanha". Tipos assim não são raros. É uma gente realmente cheia de altas qualidades de inteligência e de solidariedade humana.

Narrei este fato apenas para ilustrar a capacidade de reestruturação de atitudes dos adultos. Só através da educação de adultos podemos criar para as crianças as condições necessárias para a formação de uma nova mentalidade.

Agora, passemos a algumas considerações gerais sobre métodos de educação sanitária para o combate às endemias rurais.

Preliminarmente, quero ressaltar que qualquer serviço de profilaxia deve ser planejado para ser educativo. Para tanto é fundamental a definição das doenças em termos de conduta. Assim, por exemplo, a esquistossomose, do ponto de vista educativo, é uma doença culturalmente condicionada; ela se mantém como uma endemia, por modos de viver da população; ela se expande de acordo com os movimentos migratórios e as vias de comunicação. Portanto, desde o primeiro planejamento de combate temos que ter as vistas voltadas para as mudanças de comportamento necessários e para os meios de alcançar tais mudanças. A primeira condição de êxito é a formação de pessoal capaz de trabalhar com vistas para tais objetivos.

Em esquistossomose, porque ela incide especialmente em populações extremamente pobres, é preciso que outras atividades se desenvolvam para a melhoria das condições gerais de saúde - assistência médica geral e condições para melhorar o rendimento econômico. Onde não há oportunidade de trabalho, a saúde não pode ser valorizada em si. A saúde tem que ser um meio para uma vida melhor.

Para esse fim é indispensável a coordenação das entidades, trabalhando para o desenvolvimento social e econômico. Tal coordenação deverá efetivar-se, tanto no plano federal, como regional e local. Para a maioria das parasitoses intestinais são válidas as mesmas considerações gerais em relação ao método.

Um programa de erradicação tem que ser planejado buscando melhorar tais condições sociais. A abordagem comunal e de programas integrados visando à melhoria das condições gerais de saúde e de vida é a única que pode assegurar resultados duradouros e econômicos no controle de quase todas as endemias rurais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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