Acessibilidade / Reportar erro

O "legado" dos megaeventos esportivos: a reatualização da remoção de favelas no Rio de Janeiro

Resumos

Este artigo busca apresentar parte das reflexões realizadas em minha tese de doutorado, em que analiso os significados da reatualização de práticas e discursos sobre a "remoção" de favelas atualmente no Rio de Janeiro. Neste trabalho discutirei uma das dimensões constituintes do que chamo de "repertório da remoção": o "legado" que deixará a realização dos megaeventos esportivos que a cidade sediará (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). As intervenções urbanísticas em curso vêm implicando alterações significativas nos fluxos e usos do espaço da cidade, provocando, inclusive, o deslocamento de moradores de algumas favelas. Esse processo tem sido traduzido pelas autoridades públicas envolvidas, bem como em relação a outras intervenções, como um "legado" permitido pela concretização desses megaeventos. Essa configuração representa uma inflexão importante na conformação do "problema favela" na atual conjuntura.

favelas; legado; megaeventos; remoção


This article seeks to present part of the reflections made in my doctoral thesis, in which I analyze the meanings of the revival of practices and discourses about the "removal" of favelas in Rio de Janeiro today. This paper will discuss one of the constituent dimensions of what I call "repertoire of removing" the "legacy" that will achieve the mega sports events that the city will host (the 2014 World Cup and 2016 Olympics). The current urban interventions are resulting in significant changes in the flows and uses of city space, causing even the displacement of some residents of slums. This process has been translated by the public authorities involved, as well as in relation to other interventions, such as a "legacy" allowed for achieving these mega events. This configuration represents an important alteration in the conformation of the "slum problem" at this conjuncture.

legacy; mega events; removal; slums


ARTIGOS

O "legado" dos megaeventos esportivos: a reatualização da remoção de favelas no Rio de Janeiro

Alexandre Magalhães* * Doutorando em Sociologia.

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil

RESUMO

Este artigo busca apresentar parte das reflexões realizadas em minha tese de doutorado, em que analiso os significados da reatualização de práticas e discursos sobre a "remoção" de favelas atualmente no Rio de Janeiro. Neste trabalho discutirei uma das dimensões constituintes do que chamo de "repertório da remoção": o "legado" que deixará a realização dos megaeventos esportivos que a cidade sediará (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). As intervenções urbanísticas em curso vêm implicando alterações significativas nos fluxos e usos do espaço da cidade, provocando, inclusive, o deslocamento de moradores de algumas favelas. Esse processo tem sido traduzido pelas autoridades públicas envolvidas, bem como em relação a outras intervenções, como um "legado" permitido pela concretização desses megaeventos. Essa configuração representa uma inflexão importante na conformação do "problema favela" na atual conjuntura.

Palavras-chave: favelas, legado, megaeventos, remoção.

ABSTRACT

This article seeks to present part of the reflections made in my doctoral thesis, in which I analyze the meanings of the revival of practices and discourses about the "removal" of favelas in Rio de Janeiro today. This paper will discuss one of the constituent dimensions of what I call "repertoire of removing" the "legacy" that will achieve the mega sports events that the city will host (the 2014 World Cup and 2016 Olympics). The current urban interventions are resulting in significant changes in the flows and uses of city space, causing even the displacement of some residents of slums. This process has been translated by the public authorities involved, as well as in relation to other interventions, such as a "legacy" allowed for achieving these mega events. This configuration represents an important alteration in the conformation of the "slum problem" at this conjuncture.

Keywords: legacy, mega events, removal, slums.

Logo após tomar posse em seu primeiro mandato, o prefeito do Rio de Janeiro afirmou que as favelas não deveriam (e não poderiam) ser vistas como um "tabu" (Entrevista..., 2009). De acordo com o dicionário Michaelis, tabu significa, entre outras coisas, "a própria pessoa ou coisa sagrada", "qualquer coisa que se proíbe supersticiosamente, por ignorância ou hipocrisia", "que tem caráter sagrado, sendo defeso a qualquer contato". Segundo a elaboração do prefeito,1 1 Ao partir das declarações do prefeito neste momento, considerarei aqui o fato de ele ser transfigurar como um "ator típico", tal como sugerido por Schutz (2012), cujos motivos por ele acionados para explicar a formulação emergem de uma "situação típica", no caso ora em análise, em processo de constituição em torno da remoção de favelas. Segundo o autor, "há atos de um tipo tão geral que é suficiente reduzi-los aos motivos típicos de "alguém" para torná-los compreensíveis" (Schutz, 2012, p. 198). as favelas teriam se constituído como algo "intocável", explicado pelo seu crescimento vertiginoso desde os anos 1980 e, como "coisa sagrada", além de "intocável", transformou-se em algo "indiscutível". Ainda de acordo com essa construção, expressa nas declarações públicas do prefeito, assim teria ocorrido não em função dos próprios moradores dessas localidades que, ingênuos, foram submetidos aos interesses políticos-eleitorais dos "demagogos". Estes teriam criado e veiculado a ideia de que as favelas seriam uma "solução" e, ao longo do tempo, as transformado em algo "intocável". Nas afirmações do prefeito, ao interditarem o debate e criarem uma espécie de barreira simbólica à intervenção nessas localidades, impediriam também, transformando em "tabu", não apenas as favelas, mas uma forma específica de intervir sobre estas: a erradicação. Era esse "tabu" que agora mereceria e deveria ser questionado.

Compreender a elaboração do prefeito acima mencionada sobre o "tabu", que teria se estabelecido em torno do tema "remoção", somente seria possível se se considerasse esta sua avaliação, que é, sobretudo, moral, como uma ação e não uma retórica abstrata, que não produziria consequências. Ao acionar a ideia de "tabu", o prefeito (mas muitos outros atores, individuais e coletivos) não estaria apenas opinando sobre um assunto, mas intervindo sobre ele. Além do mais, para fazer isso, seria necessário acionar um quadro de referência que articulasse sua elaboração e orientasse as ações decorrentes.

Ao acionar a expressão "tabu", que retoma, num certo quadro de referência, um conjunto de fenômenos e processos cujo centro são as favelas, o prefeito, bem como outros atores, realizam dois movimentos associados: em primeiro lugar, oferecem uma crítica ao que consideram ter se transformado num "pensamento dominante" (Entrevista..., 2009) acerca do que se fazer com o "problema favela" e que, consequentemente, teria permitido sua expansão no território urbano e, como implicação disso, dos problemas que lhe seriam correlatos. Em segundo lugar, essa crítica incorporaria elementos presentes nos repertórios constituídos anteriormente sobre as favelas, mas transformando-os. Um dos elementos principais acionados é o da "desordem urbana" que as favelas representariam, isto é, sua existência expressaria a impossibilidade de se conceber uma cidade urbanisticamente organizada e racionalmente funcional.

O que parece estar em jogo, atualmente, no que se refere às favelas cariocas, quando se tenta retomar a questão da erradicação através, entre outros argumentos, da ideia de "tabu" (e também da de "legado", como veremos) seria justamente a "consolidação" desses territórios no tecido urbano. Se anteriormente se percebiam as favelas como "provisórias" e, portanto, quase todas as ações direcionadas a elas previam sua eliminação do espaço da cidade, o longo caminho percorrido pelas favelas e seus moradores, por conjunturas que por vezes lhes eram mais favoráveis, por vezes não, acabaria por transformá-las em uma forma urbana entre outras, seja através da luta dos próprios moradores pelo reconhecimento de seus direitos, seja pela pura pressão de seu crescimento vegetativo, que as políticas de habitação e a própria especificidade da urbanização brasileira a partir dos anos 1980 não conseguiriam interromper.

Ao acionar a ideia de "tabu", questiona-se, sobretudo, o fato de que, ao se "permitir" a expansão e consolidação das favelas, consequentemente a cidade e seus moradores tiveram que suportar todos os efeitos negativos desse processo, vistos não somente pelo aspecto do "caos" urbanístico que esses territórios representariam, mas também por favorecer a proliferação da violência, que se transformaria, a partir da década de 1980, em nosso principal problema público.

O que a mobilização da ideia de "tabu" por determinados atores parece questionar seria justamente o fato de os jogos de linguagem que alteraram o quadro de referência moral sobre as favelas, especialmente a partir dos anos 1980, ao incorporar, entre seus dispositivos, a questão da urbanização como principal ação do Estado nesses territórios, teriam favorecido a tradução de qualquer intervenção nas favelas, que não fosse a sua urbanização, como sendo autoritária. Não por acaso, o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 expressam, num contexto mais geral da sociedade brasileira, um período importante: não apenas a mudança política lenta no sentido do fim da ditadura militar, que perdia cada vez mais sua legitimidade frente a vários setores da sociedade, mas também o surgimento de novas mobilizações sociais, especialmente aquelas vindas do chamado "novo sindicalismo" e dos "movimentos sociais urbanos".

O período de abertura democrática produziria um novo enquadramento para o debate2 2 A ideia de debate aqui utilizada se baseia, sobretudo, nas abordagens pragmatistas norte-americanas e francesas (Boltanski, 2000; Boltanski; Thevenot, 1991; Cefaï, 2002; Dewey, 2008; James, 1979). A sua utilização implica a consideração de que um determinado problema público (nesse caso, a "favela") é resultado de uma intensa disputa linguística, em que são elaborados argumentos que buscam defini-lo enquanto tal. Dessa forma, o problema em questão não seria resultado, necessária ou somente, de condições objetivas, dadas de antemão, mas resultado das disputas definicionais de diversos atores em variadas situações e arenas públicas (Cefaï, 2002). acerca do que se fazer com as favelas e as periferias em geral e, no bojo daqueles acontecimentos, as soluções consideradas associadas à ação do período anterior (marcadas pela repressão) seriam deslocadas do campo de intervenção estatal. Os debates sobre a urbanização foram retomados, visto que a correlação de forças que resultou no golpe militar de 1964 havia desconsiderado essa possibilidade de intervenção, tratada como não adequada aos propósitos do regime político de então.3 3 Afirmo que foram retomadas, pois, como apontam diversos autores (Grabois, 1973; Lima,1989; Machado da Silva, 2002), tal discussão já havia surgido nos anos 1950, especialmente no bojo das intervenções da Igreja Católica nas favelas e a partir da organização de seus moradores, inicialmente através da União dos Trabalhadores Favelados e, posteriormente, a partir da Federação das Associações de Moradores da Guanabara (Fafeg), cuja principal reivindicação daquele período fora justamente a urbanização desses territórios e a recusa da erradicação.

Nessa configuração, como resultado desse processo, o termo "remoção" acabaria sendo deslocado no repertório de representações e práticas sobre asfavelas. É importante ressaltar que, embora deslocada, a "remoção", enquanto um dos elementos da linguagem prática que constitui a favela como um problema, persistiu nas intervenções do Estado nessas localidades, embora de forma residual. Na narrativa elaborada atualmente para justificar a intervenção sobre esses territórios, como já afirmado, o termo "remoção" passaria a ser reincorporado e ressignificado: não seria mais possível pensá-lo como algo "autoritário", como o debate público dos anos 1980 assim o traduziu, mas como uma forma de ação estatal que, além de equalizar e equilibrar o espaço urbano considerado em fragmentação, permitiria oferecer melhores condições de vida aos moradores que estivessem habitando áreas classificadas no interior dessa argumentação como impróprias, seja por estarem situadas em "áreas de risco", de proteção ambiental ou por serem "não urbanizáveis".4 4 Importante destacar que quando me refiro à "redefinição" e/ou "reatualização" da remoção de favelas como um problema público, estou aludindo ao fato de que, embora a problemática seja a mesma que aquela dos anos 1960 e 1970 (a remoção), o contexto ao qual ela está indexada atualmente se modificou consideravelmente. Os referenciais de sentido que motivavam a ação estatal nas favelas e as justificativas ajustadas a estes se alteraram, embora, repito, a problemática seja a mesma.

É esse processo de reatualização da "remoção" e suas consequências concretas na vida dos moradores de favelas que acompanhei durante a realização da pesquisa de campo que empreendi ao longo de quase quatro anos para a elaboração de minha tese de doutorado.5 5 Visitei aproximadamente 30 localidades ao longo desse período. Contudo, acompanhei mais detidamente as experiências de remoção (já finalizadas, em curso ou ainda por se iniciar) em algumas delas. Nesse período, acompanhei inúmeras ações de realocação efetivadas pela prefeitura em diversas favelas da cidade,6 6 Entre as favelas totalmente removidas, destacam-se os casos conhecidos publicamente da Vila Harmonia, Vila Recreio II, Notre Dame (todas no Recreio dos Bandeirantes – Zona Oeste), Vila União (Barra da Tijuca), Favela da Guaratiba (Guaratiba – Zona Oeste), Largo do Campinho, Vila Quaximã e Vila das Torres (Madureira – Zona Norte), Terra Nostra (Parque Colúmbia/Pavuna – Zona Norte), Favela do Sambódromo (Centro), Sítio Amizade (Cidade de Deus – Zona Oeste), Favela Guacha (Jacarepaguá – Zona Oeste) e Largo do Tanque (Jacarepaguá – Zona Oeste). Entre as parcialmente removidas ou em processo de remoção (algumas o processo foi interrompido judicialmente) estão a Restinga (Recreio dos Bandeirantes), Estradinha-Tabajaras (Botafogo – Zona Sul), Laboriaux (Rocinha – Zona Sul), Torre Branca (Morro dos Prazeres), Favela Metrô-Mangueira (Maracan㠖 Zona Norte), Morro do Urubu (Zona Norte) e Morro da Providência (Centro). Entre as que o processo ainda está por iniciar, embora já tenha ocorrido o contato da administração municipal, destacam-se: Vila Autódromo (Jacarepaguá/Barra da Tijuca – Zona Oeste), Arroio Pavuna (Jacarepaguá/Barra da Tijuca – Zona Oeste), Muzema (Barra da Tijuca – Zona Oeste), Vila União de Curicica (Jacarepaguá – Zona Oeste), Belém-Belém (Engenho de Dentro – Zona Norte), Pavão-Pavãozinho (Copacabana – Zona Sul), Babilônia (Leme – Zona Sul), Santa Marta (Botafogo – Zona Sul), Borel (Tijuca – Zona Norte), Indiana (Tijuca – Zona Norte). Não se incluem nessa lista as favelas removidas completa ou parcialmente pelas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-Favelas). o que me permitiu perceber que a concretização desses processos apontava para uma reconfiguração importante do "problema favela", que aqui sugiro ser possível pensar como constituindo o "repertório da remoção", cujos traços principais apresentarei a seguir a partir da descrição da mobilização da justificativa do "legado" proveniente da realização dos megaeventos esportivos que a cidade do Rio de Janeiro sediará nos próximos anos.

Transformações internas à gramática da violência urbana, uma variação de repertório: a reatualização da remoção de favela

Para melhor delimitar a configuração atual do "problema favela", mar-cada pelo que venho chamando de reatualização das práticas e discursos da remoção, é preciso levar em consideração como as favelas passaram a ser vistas a partir dos últimos 30 anos. Como se verificará adiante, a apresentação da forma como essas localidades e seus moradores foram sendo concebidos e interpretados nesse período será importante para pensar como a "remoção" de favelas vem sendo redefinida como um problema público e reincorporada pelo Estado como uma forma específica de intervenção e gestão de população. Isso teria a ver, como afirmado anteriormente, com o crescimento do crime violento nas grandes cidades brasileiras, notadamente no Rio de Janeiro, a partir da década de 1980. A chamada "violência urbana" passaria a representar o principal problema público das últimas décadas, produzindo um intenso debate e uma miríade de propostas de intervenção.

Desde então, a criminalidade associada ao tráfico de drogas configurou-se como o principal problema público do Rio de Janeiro, organizando e orientando, a partir das diferentes maneiras como foi tematizada, as condutas dos diversos segmentos sociais. Além do mais, as novas modalidades de violência associavam-se igualmente aos inúmeros confrontos entre policiais e traficantes e entre quadrilhas rivais destes localizadas nas favelas da cidade.

O problema da "violência urbana", tal como foi sendo construído nos últimos tempos, aponta para uma preocupação das diversas camadas sociais, como afirma Machado da Silva (2008, 2010), com a continuidade das rotinas cotidianas, associando as práticas tidas como violentas como ameaçando a integridade física e patrimonial. Segundo o autor, a "violência urbana" expressaria uma gramática "que produz uma compreensão prático-moral de boa parte da vida cotidiana nas grandes cidades. Ninguém precisa definir a expressão, porque ela é a referência que confere sentido às atividades e ao debate coletivo." (Machado da Silva, 2010, p. 286). Essa gramática apontaria para um conjunto de práticas administrativa e legalmente apresentadas como crime, todas elas escolhidas pelo aspecto da força física que se encontra presente nelas e que ameaçaria, como afirmado antes, "o sentimento de segurança existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira – integridade física e garantia patrimonial" (Machado da Silva, 2008, p. 36). A "violência urbana" seria, de acordo com este autor, uma representação que associaria a utilização da força física à ideia comum de crime, chamando a atenção para o fato de que a agregação entre esses dois elementos seria responsável pela quebra da rotina cotidiana, isto é, pelo rompimento da certeza sobre a continuação do fluxo regular da vida diária.

Nesse contexto, uma nova configuração parecer ter se delineado, especialmente a partir de meados dos anos 2000, o que favorecerá as tentativas (depois consolidadas na conjuntura imediatamente posterior) de retomada daforma de intervenção estatal nas favelas do tipo erradicação. É importante ressaltar que, no interior mesmo da linguagem da violência urbana, a todo acontecimento que lhe era associado, notadamente os confrontos entre bandos de traficantes e entre estes e a polícia, surgiam no horizonte aquelas propostas de erradicação cujo conteúdo de sentido girava em torno, fundamentalmente, da associação entre o crescimento desses territórios no espaço da cidade e o crescimento, como consequência causal do primeiro, da violência. Essa associação reforçava a identificação dessas localidades como locus da violência e como fonte de todos os perigos que se espraiavam pela cidade. A partir dessa associação entre aumento do território das favelas e, consequentemente, aumento da violência na cidade, reforçava-se, ao trazê-la para o debate do "problema (atual) favela", as possibilidades de erradicação. Entretanto, tal proposta não obtinha as condições de possibilidade para se efetivar e permanecia em estado de hibernação.

Nesse compasso, a partir de 2005, mas mais precisamente a partir de 2009, a articulação entre violência e favela seria levada adiante a partir de uma mudança fundamental tanto no âmbito do debate quanto da consequência deste no que se refere à intervenção estatal nesses territórios. Por um lado, podemos considerar que essa inflexão, que trouxe novamente ao debate público a questão da "remoção", tem sua gênese na campanha empreendida pelo jornal O Globo em 2005, intitulada "Ilegal. E daí?", que se dirigiu fundamentalmente às favelas e propugnava como solução para esse problema (visto como gerador dos principais problemas da cidade, como a violência e a desordem urbana) a sua erradicação. Entretanto, apesar de inúmeras medidas terem sido aventadas, nenhuma delas seria levada adiante naquele período, fazendo com que o debate se arrefecesse, embora já tivesse trazido novamente à baila o tema da erradicação.

O que mudaria esse cenário de uma maneira decisiva seria, no argumento aqui proposto, a eleição do prefeito Eduardo Paes, cujo governo se inicia em 2009. A partir desse período, haveria um redirecionamento das ações das instituições em direção ao que havia sido discutido e formulado alguns poucos anos antes, fazendo com que as condições necessárias para que a intervenção sobre as favelas na forma da erradicação ganhassem a dimensão sugerida e descrita ao longo deste texto.

Antes de continuar, gostaria de ressaltar que, para a elaboração da discussão aqui proposta, sugiro ser possível pensar a reconstrução da prática da "remoção" de favelas como um dos resultados possíveis da gramática da "violência urbana". Seria razoável refletir, portanto, sobre essa inflexão no quadro dessa gramática como uma variação de repertório desta última, isto é, como uma rearticulação que ocorre em seu interior sem, contudo, lhe alterar a característica principal apontada acima: a possibilidade de rompimento das rotinas. Posto isto, caberia ressaltar quais são os elementos característicos desse repertório e as consequências práticas na vida dos moradores de favelas do Rio de Janeiro. Além disso, gostaria de fazer notar também o fato de que, nessa configuração, a possibilidade de erradicação não surgirá como alternativa às práticas de urbanização, que caracterizavam o tipo específico de intervenção até então levada a cabo pela administração pública, mas que ambas as possibilidades se constituíram em duas formas combinadas de lidar com o "problema favela" atualmente.

Seria importante destacar que a utilização do termo "remoção", e as práticas correspondentes, variariam de acordo com a situação específica em que era enunciado. Esquematicamente, poder-se-ia apontar três momentos distintos que contribuiriam para a formação desse novo enquadramento: o primeiro se poderia considerar como implicando uma tentativa de reintroduzir, como afirmado no início, no campo de debate constituído em torno do assunto favela, especialmente nas últimas décadas, o termo "remoção".7 7 Aqui entendido não somente como expressão discursiva, mas como linguagem prática, isto é, a todo ato de fala segue-se uma ação ou uma intenção de ação. Nesse sentido, no início do primeiro mandato do atual prefeito, o próprio, outros agentes públicos e demais atores (individuais e coletivos) acionavam a expressão, a associando à ideia de "tabu", para justificar o "caos" e apontando uma possível "solução" para este. Esse período seria caracterizado pelo fato de que o debate a partir dessa possibilidade de intervenção estatal seria estimulado, buscando formas de se legitimar, especialmente a partir da crítica às interpretações consideradas negativas do termo/ação elaboradas em outros períodos, especialmente a partir da década de 1980.

Um segundo momento, que se poderia chamar de consolidação da crítica, isto é, quando o que se supunha ser o "pensamento dominante" acerca das favelas fora definitivamente colocado em questão e um novo arranjo deveria substituí-lo. Para isso, contribuiriam alguns eventos circunstanciais: as chuvas de janeiro e abril de 2010 (a quebra de rotina que se seguiu a esses eventos) permitiram que a expressão/ação fosse novamente acionada para justificar a atitude da prefeitura em relação a esses territórios, expressando, de forma definitiva, a passagem para um novo enquadramento, no qual a "remoção" seria ressignificada numa chave positiva.8 8 Em outra ocasião (Magalhães, 2012), apontei que, em relação ao primeiro momento mencionado acima, haveria a constituição de um debate acerca do reordenamento do espaço urbano, cuja situação de "caos" e "descontrole" rapidamente seria associada às favelas da cidade. Ações de demolição se iniciariam, decretos prevendo o controle do crescimento dessas localidades foram publicados, e, posteriormente, fora feito um levantamento em que a prefeitura propunha a redução de 3,5% da área ocupada por favelas, estimando a remoção parcial ou completa de 119 delas. Em relação ao segundo momento, como afirmado, ocorreram chuvas muito fortes na cidade e no estado do Rio de Janeiro, que levaram à morte aproximadamente 250 pessoas, praticamente todas em favelas. Em seguida a esses acontecimentos, as propostas de solução para não permitir que mais mortes ocorressem giraram em torno basicamente da defesa aberta da remoção como forma de intervenção do Estado nessas localidades, que não somente criticava o "tabu", mas também a "demagogia" que existiria em relação ao assunto favela.

Após isso, nova postura frente à questão da "remoção", implicando num terceiro momento importante na configuração desse repertório. O termo deixa de ser usado abertamente pela administração (embora mantido por grandes jornais e movimentos sociais). Isso se dá no contexto das obras preparatórias para os Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo de 2014, especialmente diante das críticas que esse novo enquadramento passaria a receber, notadamente daqueles que estavam experimentando as suas consequências concretas. Os "reassentamentos", termo que já vinha sendo usado por setores da própria administração, passam a ser utilizados com mais frequência e o deslocamento dos moradores passaria a ser significado como um "legado" desses megaeventos esportivos. Como não há espaço neste artigo para especificar os dois outros momentos, centrarei a análise nos aspectos relacionados ao momento configurado pela realização dos referidos megaeventos.

As remoções de favelas no contexto dos megaeventos esportivos

Um dos elementos fundamentais na formação do que denominarei de "repertório da remoção" seria caracterizado pela mobilização do termo "legado". Tal expressão passaria a figurar em inúmeras situações nas quais fosse necessária uma explicação acerca das consideráveis intervenções urbanas que a cidade vem recebendo nos últimos anos. Estas ocorrem no bojo da preparação da urbe carioca para receber os megaeventos esportivos, notadamente a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

A realização desses eventos tem implicado uma importante intervenção no espaço físico da cidade, alterando, sobremaneira, seus usos pelos diversos segmentos e classes sociais, além dos seus fluxos constituintes (de pessoas, mercadorias, serviços e capital), visando prepará-la para a realização desses megaeventos, utilizando-se, inclusive, de alterações significativas na legislação urbanística como um todo, sendo o exemplo principal dessa mudança legal a reavaliação e aprovação do novo Plano Diretor, que ocorreria em 2011. A configuração constituída a partir dessas intervenções significará um incremento considerável na conformação do "repertório da remoção" e, consequentemente, como se vem afirmando, na reformulação do "problema favela" atualmente.

Saliento que os megaeventos não serão apreendidos aqui como um modelo de cidade imposto desde fora e que serviria às formas de acumulação atuais. Mais do que isso, serão compreendidos a partir de sua elaboração no curso de inúmeras situações, da mobilização de argumentos justificadores e de suas consequências práticas na vida das pessoas, bem como algo cujo significado apenas se observa na consideração das disputas empiricamente observáveis. O recurso ao "legado", que caracterizaria esse terceiro momento da configuração do "repertório da remoção", encontra-se intimamente associado aos megaeventos, mas não como uma consequência lógica de um processo cujo destino já estaria traçado desde o início.9 9 Essa observação não significa afirmar que o foco na dimensão moral das disputas, nas quais os megaeventos se apresentam como um dos elementos constituintes do quadro de referência em curso de elaboração na forma do "repertório da remoção", ignore as injunções de poder que atravessam as suas práticas correspondentes. Isto é, as avaliações morais não se realizam numa espécie de espaço social vazio: elas são conformadas por campos de força e jogos de poder que delimitam, em certo sentido, a abrangência dessas avaliações e, portanto, dependem da correlação de forças existentes (se pensarmos em termos gramscianos) ou dos diferenciais de poder (seja a terminologia utilizada a de Elias). Ao contrário, essas injunções serão percebidas em suas articulações mais finas observáveis através do trabalho de acompanhamento dos atores, individuais e coletivos, no curso das disputas e conflitos em que se encontram inseridos em seu cotidiano.

Importante destacar que, em relação à formação do "repertório da remoção", nessa ocasião, configurada pela mobilização justificadora do termo "legado", haveria um deslocamento importante a ser considerado: a própria palavra "remoção", que nos outros dois momentos seria abertamente utilizada, haja vista que se buscava "acabar com o tabu da remoção", dessa vez seria deslocada do vocabulário, especialmente dos agentes públicos, os operadores do quadro de referência em questão.

Cabe ressaltar o fato de que, adiantando uma interpretação possível a esta modificação situacional, esta se deveria, em grande parte, às próprias críticas que a administração pública municipal receberia já nos acontecimentos relacionados às chuvas do início de 2010, e a realização das primeiras intervenções urbanísticas (que implicaram deslocamento de moradores de diversas regiões da cidade) para a realização dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo. Entretanto, apesar de o termo "remoção" deixar de ser mobilizado frequentemente por agentes públicos associados às intervenções em curso nas favelas da cidade, o enquadramento moral desses processos de deslocamento populacional passaria a se dar a partir de uma ambiguidade, que será exposta mais adiante, cuja característica principal seria uma tensão entre a negação pública desses processos de deslocamento e a sua concretização.

Apenas adianto que essa ambiguidade poderia ser apreendida através de uma de suas expressões, que se daria, por um lado, a partir do anúncio, no início de 2011, da redução da área ocupada por favelas no Rio de Janeiro e, de outro, da revisão e aprovação do Plano Diretor da cidade, ocorrido no mesmo ano. Ambos os acontecimentos se apresentam como componentes importantes à configuração do "repertório da remoção", especialmente pelo fato de apontarem para uma alteração significativa no escopo das intervenções urbanas em curso, especialmente as que se realizam sobre as favelas, agora numa dimensão muito mais ampliada. Devido aos limites deste trabalho, destacarei somente a questão da redução das áreas ocupadas por favelas.

Importante lembrar que, em 2009, havia sido incluída no Plano Plurianual de governo a estimativa de redução de 3,5% da área ocupada por favelas no município. Do mesmo modo, no final daquele ano, a Secretaria Municipal de Habitação publicaria uma lista na qual constariam 119 favelas que seriam removidas, em diversas regiões da cidade. O debate público constituído em torno dessa questão chegaria ao paroxismo por ocasião das chuvas de abril de 2010, quando fora anunciada a remoção de inúmeras favelas, seguida das intervenções nesse sentido nos meses subsequentes. A prefeitura, em evento logo após a "tragédia de abril", no qual exporia as medidas que havia tomado em relação a esta, informaria que até aquele momento, exatamente seis meses depois, havia retirado aproximadamente quatro mil famílias das "áreas de risco", em 80 favelas, sendo que 1071 haviam sido realocadas em unidades do programa federal de habitação Minha Casa, Minha Vida.10 10 Cf. Rio de Janeiro (2010b). Além disso, no mesmo ano, se iniciaria a realocação de moradores daquelas favelas que estavam no traçado das obras preparatórias para os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo.

Ainda no mesmo ano, logo após as chuvas, outra importante ação seria realizada pela prefeitura, mas dessa vez sem o alarde que acompanharia os anúncios de medidas durante o período crítico do mês de abril: um novo levantamento das chamadas "áreas de risco" pela Geo-Rio (Fundação Instituto Geotécnica do Rio de Janeiro).11 11 Órgão da Secretaria Municipal de Obras responsável por elaborar estudos e propor soluções de geotecnia para as encostas e áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro. Essa instituição contrataria uma empresa privada para efetivar tal levantamento, cujo objetivo seria percorrer diversas regiões da cidade para produzir um mapa no qual constassem as áreas mais propensas a deslizamentos. O mapeamento indicaria que existiriam 17.244 casas em situação de desmoronamento,12 12 Cf. Onde só morar... (2011). número bem superior às quase 13 mil moradias apontadas pela listagem de 2009, e que tenderia a crescer, como afirmou o prefeito à época.

Nesse contexto, embora o termo "remoção" houvesse sido deslocado no vocabulário utilizado para se referir ao "problema favela", um dos desdobramentos do "repertório da remoção" permitiria afirmar que o enquadramento em curso de elaboração já produzia consequências concretas: a diminuição, pela primeira vez em muitas décadas, da área ocupada por favelas no Rio de Janeiro. No início de 2011, o Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da prefeitura responsável pelos levantamentos sociais, econômicos e geográficos da cidade, lançaria um estudo aerofotográfico no qual se apresentava que havia ocorrido uma redução das áreas ocupadas por essas localidades no tecido urbano. Sustentar-se-ia o argumento da redução, além das imagens áreas, a partir da comparação com períodos anteriores, marcados por um crescimento vertiginoso desses aglomerados no espaço da cidade. Até aproximadamente o ano de 2008, as favelas não teriam seu crescimento interrompido,13 13 Segundo estudo do próprio Instituto Pereira Passos, entre 1999 e 2008, a área ocupada por favelas teria aumentado em aproximadamente 3 milhões de metros quadrados. Mais informações, ver Vial e Cavallieri (2009). Tais dados seriam confirmados por outro levantamento, realizado também pelo IPP e publicado em 2012, que apresenta informações sobre o crescimento da área de favelas, e em que regiões isso mais ocorreu, entre os anos de 2004 e 2009 (Instituto Pereira Passos, 2012). o que passaria a ocorrer somente a partir de então.

No levantamento realizado atualmente (Instituto Pereira Passos, 2011), é possível perceber a redução ocorrida nas áreas ocupadas por essas localidades, interrompendo um processo contínuo de crescimento característico das últimas décadas. Segundo o estudo do IPP, entre 2009 e 2010, teria ocorrido uma diminuição da ordem de 386.879 metros quadrados de área onde havia favelas, o que corresponderia a 0,8% da área total ocupada.

Esses dados, apesar da ambiguidade que passaria a vigorar nos discursos a partir da mobilização da ideia de "legado" nesse momento, ajustar-se-iam ao "repertório da remoção", na medida em que se apresentam como consequências concretas do enquadramento a partir do qual as favelas passariam a ser situadas nesse período, cuja característica fundamental seria a retomada das práticas remocionistas. Isso ainda ficaria evidenciado quando o prefeito da cidade se posicionou publicamente sobre os dados produzidos pelo IPP:

[...] pela primeira vez na história da cidade, conseguimos registrar uma redução na área de favelas. Mas não é só isso. Desde 2009, não há registros do surgimento de novas favelas. Aqui você tem também uma mensagem muito clara, que é a de que a gente não vai tolerar invasão na cidade.14 14 Cf. A ilegalidade... (2011).

A "mensagem clara" à qual o prefeito da cidade se refere, situar-se-ia no âmbito da discussão aqui proposta na qual estaria em curso uma mudança no enquadramento do "problema favela", cuja característica principal seria a reincorporação da remoção no campo das intervenções possíveis do Estado nas favelas, atuando, de forma combinada, com a urbanização, apresentando-se como modos de lidar com esses territórios que não seriam excludentes, como assim fora interpretado pelas disputas que definiram o "problema favela" até aproximadamente a década de 1980.

A "remoção" de favelas como um "legado" dos Jogos Olímpicos

A justificação baseada na mobilização da ideia de "legado" se ajusta ao contexto de realização das intervenções que visam preparar a cidade para os megaeventos esportivos: a Copa do Mundo de 2014 e, principalmente, os Jogos Olímpicos de 2016. A conjuntura específica aberta pela preparação da cidade para esses eventos, em conjunto com o debate da "desordem urbana" e com os acontecimentos climáticos que produziram vítimas fatais em 2010, acabariam por formar o contexto específico favorável a retomada da via da erradicação como maneira específica de o Estado lidar com as favelas, ressignificando o termo "remoção", e situando-o como uma dimensão importante nas práticas de gestão do Estado de determinados territórios e populações.

Como descreverei logo a seguir, seria possível afirmar que os megaeventos se configurariam, nessa conjuntura, como uma espécie de ancoragem moral que vem permitindo a dimensão assumida pelo reordenamento do espaço urbano no Rio de Janeiro atualmente em curso, cuja justificativa mais comum seria justamente a do "legado". Ou seja, as intervenções que têm implicado mudanças nos usos e fluxos dos espaços da cidade ocorreriam em função do "legado" que os Jogos Olímpicos (e, em menor escala, a Copa do Mundo), deixariam para aquela. Isso se referiria, inclusive, para as ações nas favelas, cuja inclusão no "pacote olímpico" criaria as condições para que as intervenções do tipo erradicação incorporassem uma justificativa que, nos marcos dessa elaboração, buscaria se sobrepujar a qualquer crítica. Assim como em relação ao "risco", não se poderia ser contra algo que tão somente procuraria melhorar as condições de vida das pessoas, especialmente as mais pobres, e modernizar a cidade, cuja concretização se devia à realização desses Jogos.

Segundo alguns autores (Bienenstein, 2011; Vainer, 2011), a constituição da "cidade olímpica" se daria num plano de continuidade, cuja gênese poderia ser localizada no primeiro governo do ex-prefeito César Maia (19931996). Ainda de acordo com esses autores, a partir daquele período ter-se-ia configurado uma nova forma de gestão e planejamento da cidade, sustentada por uma coalizão de poder que, apesar dos dissensos ao longo do tempo, teria permanecido. Tal forma distinta de governar o urbano se daria nos marcos das transformações impostas pelo neoliberalismo, que teriam implicado não somente mudanças globais na economia e no Estado, mas também no nível local, que deveria se ajustar aos novos ditames. Além disso, para os autores, essa nova forma de gestão do urbano seria abalizada pela superação de um "vazio" de projetos que marcaria a configuração política do Rio de Janeiro até esse momento.

Como afirma Bienenstein (2011), nesse contexto, no qual a cidade se configuraria como uma mercadoria a ser vendida num mercado mundial de cidades altamente competitivo, a nova gestão do urbano deveria elaborar um conjunto de programas e projetos que buscassem inserir, de forma competitiva, a urbe no mercado mundial de cidades. No caso do Rio de Janeiro, isso poderia ser observado ainda durante o governo César Maia, com projetos, entre outros, como o Rio Cidade (que previa a reurbanização de áreas centrais de alguns bairros), o Favela-Bairro (programa de urbanização de favelas), a tentativa de instalar uma filial do Museu Guggenheim, e as tentativas não exitosas de sediar as Olimpíadas de 2004 e 2012, e a realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007.

Gostaria de ressaltar ainda duas formulações associadas a essa nova gestão das cidades, marcada pela passagem da cidade para a cidade-empresa (ou mercadoria): o sentimento de crise e o aproveitamento da oportunidade. Em diversas análises (Bienenstein, 2011; Novais et al., 2007; Sánchez, 2001; Vainer, 2011), os projetos e programas, no caso aqui em tela, os megaeventos esportivos, por um lado, seriam apropriados e justificados a partir de um constante acionamento de uma situação de crise pela qual estariam passando as cidades. Por outro, como efeito dessa situação, os megaeventos emergiriam como uma (a) oportunidade para superar tal condição. Em decorrência disto, em função do fato de que os megaeventos expressariam a possibilidade de superar um estado de letargia e abandono e, por isso mesmo, favorecer a modernização da cidade, as críticas possivelmente existentes seriam interpretadas como um impedimento a tal realização.

Embora concorde com parte da elaboração acima mencionada acerca da articulação entre cidades e megaeventos esportivos e mesmo recupere aspectos da reflexão ali presentes, buscarei discutir esses processos num sentido inverso ao apresentado nessas abordagens. Se há uma reconfiguração do urbano, como apontado nas abordagens acima destacadas, que se articula a partir da crítica à cidade transformada em empresa ou em mercadoria, esta será observada a partir de outro ponto de vista e a partir de outra unidade de análise, talvez mais modesta no escopo, mas importante para entender os encadeamentos práticos, estabelecidos no mundo vivido das pessoas, que formam e conformam a linguagem que permitiu reatualizar a remoção como forma específica de o Estado lidar com as favelas.

Em vez de pensar a "cidade mercadoria", a "cidade global", o "marketing urbano" como apenas construções ideológicas gerais manipuladas pelas elites, como novo suporte do capitalismo financeirizado, perceber como, nas práticas cotidianas, das quais os agentes públicos fazem parte, essas referências são elaboradas como um conjunto normativo e moral que os orienta (no caso ora em análise, formulando o "repertório da remoção") e lhes oferece a medida moral que permite atualizar mecanismos de controle da circulação de determinados segmentos sociais no espaço urbano.

Posto isto, passarei à descrição de como vem se configurando a justificativa do "legado" e de como se estruturaria um de seus desdobramentos: o programa Morar Carioca, importante aqui para compreender a localização das favelas no debate que define o conflito urbano atualmente.

Um dos primeiros aspectos que conformam a justificativa do "legado" se articula a partir da metáfora do "abandono", retomando, em parte, o que já se encontrava presente quando da referência à "desordem urbana". Essa metáfora resumiria duas dimensões importantes na configuração desse momento, quando a realização dos Jogos Olímpicos se apresentaria como constituinte do quadro de referência que faria reatualizar as práticas e discursos da remoção. A "metáfora do abandono", na formulação da justificativa do "legado", poderia ser compreendida como o seu primeiro elemento constitutivo, na medida em que se opera um deslocamento simbólico que cria uma sequência causal que teria levado a cidade ao abandono encontrado pela atual administração e justificaria as intervenções na dimensão observada.

A "metáfora do abandono" se caracterizaria por uma construção narrativa que apontaria para um passado de glórias e prestígio que teria marcado o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro até certo período, cuja imagem típica seria aquela resumida na expressão internacionalmente conhecida "Rio: Cidade Maravilhosa". Essa construção, elaborada para oferecer a medida de entendimento dos acontecimentos e intervenções que hoje tomam forma na cidade, seria elaborada a partir de uma postura cuja pretensão seria assumir a responsabilidade de recuperar esse passado idílico, que teria se perdido ao longo dos anos, o que teria provocado o "abandono" (e também gerado a desordem). Segundo o secretário da Casa Civil da prefeitura, Pedro Paulo,

a gente tem uma cota de responsabilidade, eu não vi o Rio Cidade Maravilhosa contada pelos meus pais, eu não vivi isso, eu vivi numa cidade que se desencontrou, numa cidade que se perdeu desde quando deixou de ser a capital, desde que foi atropelada pela fusão, nessa época eu estava nascendo.15 15 Entrevista ao programa Márcia Peltier, da rede de TV CNT, em 31 de maio de 2011.

Essa situação, portanto, teria feito com o que o Rio "se perdesse", como seria definido pelos atores envolvidos nessa construção narrativa justificadora das intervenções atualmente em curso na cidade. À medida que o Rio de Janeiro "se perdia", consequências negativas se avolumariam ao longo dos anos, fazendo com que a cidade, nas palavras do mesmo secretário citado acima, "passasse a ser a caixa de ressonância negativa do país".16 16 Secretário da Casa Civil da prefeitura do Rio de Janeiro, Pedro Paulo, na mesma entrevista da nota anterior. Dois acontecimentos principais expressariam essa passagem do Rio Cidade Maravilhosa para o Rio Cidade Abandonada: a "favelização" e a expansão da "violência".

Gostaria de ressaltar que a combinação dos dois processos (vistos como, simultaneamente, causa e consequência um do outro) teria levado à situação de "abandono" encontrada pelos gestores atuais: "Eu me criei vendo o Rio se degradando, se favelizando, a violência explodindo, sem oportunidades."17 17 Mesma entrevista da nota anterior. Mais uma vez, no mesmo movimento que aponta esse cenário de desolação, reafirma-se a imagem de que, agora, haveria um grupo que assumiria responsabilidades para interromper o processo de abandono e degradação, cujo objetivo central seria "deixar um legado" para o futuro, como vemos nas palavras do secretário Pedro Paulo: "[...] e eu acho que nós temos uma grande responsabilidade, por nossos filhos, pras próximas gerações, de deixar um legado para essa cidade, que seja um legado de uma cidade que se reencontra, que gera oportunidades, para se viver, para trabalhar".

Este cenário de desolação e abandono, ocorrido a partir da passagem histórica acima referida (que também pode ser localizada, assim como no caso da "desordem urbana", com o governo Leonel Brizola na década de 1980), teria produzido um triplo esvaziamento na cidade: econômico, de oportunidades e, principalmente, da sua imagem (ou autoimagem). Nesse sentido, a cidade "herdada" se definiria por sua incapacidade de enfrentar os desafios contemporâneos, que não teria capacidade de gerar e implementar projetos e apenas ficaria se referindo ao que fora, praticamente parada no tempo: "herdamos uma cidade com autoestima no chão, exemplo de vergonha no que se trata de políticas públicas, uma cidade desacreditada, incapaz de olhar para frente, sem perspectivas de futuro e se lamuriando do que foi no passado".18 18 Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao jornal Brasil Econômico, em 27 de agosto de 2012 (Costa; Murno, 2012). Esse círculo vicioso precisaria ser rompido. Seria necessário "deixar de se lamuriar" com o que se deixou de ser e "olhar para frente", e essa ruptura estaria ocorrendo exatamente agora.

Essa ruptura em relação ao estado de letargia descrito pela "metáfora do abandono" teria sua expressão no atual governo, mas que apenas se efetivaria com o que o próprio prefeito definiu como o "ativo Olimpíadas". Antes de prosseguir, gostaria de afirmar que o "ativo" ao qual se refere o prefeito admitiria uma reformulação considerável no interior do quadro de referência então em curso de elaboração, na medida em que sua operação prática permitiria uma intervenção nos usos e fluxos da cidade que, mesmo tendo sido já esboçada pelo governo anterior, não havia sido levada adiante, justamente por não ter existido uma configuração favorável e esse "ativo" tão importante para autorizar as ações na magnitude com que ocorrem.

Além disso, cabe mencionar outro aspecto relevante na conformação dessa formulação da justificativa do "legado": uma nova correlação de forças políticas, expressa na declaração "articulação dos três níveis de governo", teria permitido e autorizado as intervenções em curso. O estado de "abandono" também seria caracterizado pelo que se definia como "desarticulação" entre os níveis de governo que, ao permanecerem "isolados", teriam contribuído para o esvaziamento ao qual me referi acima: "Os governos vão mal, a população perde, se vão bem, a população se desenvolve."19 19 Entrevista do secretário da Casa Civil da prefeitura, Pedro Paulo, ao programa Márcia Peltier, da rede de TV CNT, em 31 de maio de 2011. Nessa elaboração, a ruptura em curso seria caracterizada por uma articulação política que, ao fazer um deslocamento interpretativo em direção ao passado e identificar como uma das causas do "abandono" justamente as "brigas" entre prefeito, governador e presidente, estaria favorecendo esse "reencontro do Rio consigo mesmo": "A gente jamais teve uma convergência tão grande entre as esferas do governo. O entendimento não precisa ser financeiro, mas de favorecimento por parte do governo federal."20 20 Mesma entrevista da nota anterior.

As transformações pelas quais a cidade vem passando nos últimos anos teria sido possível em função dessa articulação, tratada como uma novidade no cenário político local. Mais uma vez, reforça-se a tese de que se busca romper com uma lógica que vigoraria até então, cujas consequências seriam o abandono e a desordem. A falta de "parceria" entre os entes da federação teria prejudicado a cidade e a lançado numa espiral sem fim de desamparo e descrédito. Dessa vez, ao contrário, procurar-se-ia superar esta lógica, e uma das consequências da nova articulação política seria justamente a "conquista" dos Jogos Olímpicos de 2016, resultado da campanha elaborada e encabeçada pelos três níveis de governo.

Nesta conjuntura, a realização dos Jogos Olímpicos se descortinaria, na elaboração normativa em curso, como uma "oportunidade" que não poderia ser desperdiçada, pois, se assim o fosse, voltar-se-ia à mesma lógica que teria feito com que a cidade fosse lançada na espiral de abandono e desordem que a caracterizaria atualmente: "Olimpíada significa uma oportunidade de uma senhora transformação de uma cidade."21 21 Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao programa Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.

E essa "oportunidade" seria empunhada pelos operadores do quadro de referência em construção, do qual dos elementos constitutivos aqui em análise seria o "legado" dos Jogos Olímpicos. Em diversas situações em que fosse inquirido publicamente acerca de ações da administração pública em relação a diversos âmbitos da realidade da cidade, seria acionada a justificativa do "legado" que tais intervenções deixariam para os seus moradores. Não haveria nenhum investimento público que não fosse incluído e explicado como uma consequência da "conquista" das Olimpíadas. Conforme o prefeito Eduardo Paes:

Então, eu conto com esse fantástico ativo. Além de eu trabalhar muito, conhecer bem minha cidade e dei sorte: ganhei as Olimpíadas. Então isso é um instrumento que a gente usa o tempo todo para trazer as coisas. É um diferencial enorme você sediar, ter a oportunidade de sediar um evento como as Olimpíadas.22 22 Entrevista ao programa Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.

Essa "oportunidade", que produziu esse "diferencial enorme", transfigurar-se-ia no "legado" que já seria observável no espaço da cidade, perceptível na revitalização de espaços anteriormente considerados degradados, como a que vem sendo realizada na área portuária da cidade, e através das obras viárias cujo resultado seria ligar e alterar usos de certas regiões, como a ampliação da avenida das Américas e a abertura do túnel da Grota Funda (com o chamado corredor "Transoeste", localizado na Zona Oeste da cidade), que literalmente abriu caminho para uma área considerada como a nova fronteira de expansão da cidade, por apresentar consideráveis extensões territoriais pouco ocupadas.

Nessa elaboração, seria importante ressaltar que o "legado" ao qual se referem os atores que a mobilizam se desdobraria em duas dimensões: a primeira seria relacionada ao "legado físico" e a segunda, ao "legado da auto-estima" ou da imagem da cidade. O "legado físico" se referiria propriamente às intervenções levadas a cabo pela administração pública no espaço urbano, como ressaltado acima. O "legado da autoestima" expressaria que, em função da realização das Olimpíadas e, como consequência do "legado físico", um novo período teria se aberto para a cidade, rompendo com o estado anterior de abandono e situando-a num círculo virtuoso aberto atualmente: "Você têm um legado físico, tangível, renovação da Zona Portuária, e você tem o intangível, que é a mudança da imagem da cidade."23 23 Mesma entrevista da nota anterior.

Revitalizar, aqui, portanto, não significaria apenas recuperar áreas definidas como urbanisticamente problemáticas, mas também fazer com que se modifique moralmente a forma como a cidade é apropriada e percebida coletivamente. Nesse sentido, essa elaboração afastaria quaisquer críticas relacionadas ao fato de que as intervenções em curso poderiam expressar interesses particulares (leia-se empresariais).

Os investimentos em determinadas intervenções urbanas, como as obras viárias, respeitariam tão somente os "interesses da cidade", e seriam interpretados como benefícios para o conjunto da população. A fase dos "interesses particulares", aqui entendida como associada a administrações anteriores, que teriam aprofundado o estado de abandono da cidade, seria superada em favor dos seus moradores. Nessa elaboração, as Olimpíadas seriam, como apontado anteriormente, um "ativo" importante para que se pudesse trazer todos os benefícios necessários:

Quando você faz um investimento num BRT, isso é pra cidade. É o que tô dizendo: meu foco o tempo todo é na questão do legado pra cidade. Esses benefícios todos são benefícios que não são para os jogos, são benefícios que ficam para a população. Quando se fala em investimento em transporte, melhora a vida das pessoas, quando você fala em revitalizar a zona portuária, você muda a lógica de degradação do Centro do Rio de Janeiro. Você usa a Olimpíada para trazer beneficio para sua cidade.24 24 Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao programa Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.

Um dos "legados" mais importantes apresentados como decorrência da realização desses megaeventos seria o programa Morar Carioca, lançado em julho de 2010, e que está incluído no Plano de Legado Urbano e Social dos Jogos Olímpicos de 2016. O programa integra também o Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais, que é conduzido pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH), e cujo principal objetivo seria o de urbanizar todas as favelas da cidade até o ano de 2020, com recursos da ordem de R$ 8 bilhões. Esses recursos são provenientes de três fontes distintas: do governo federal, da própria prefeitura e também do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que já havia financiado o programa anterior e similar a este, o Favela-Bairro, implementado a partir de 1994.

Interessante observar que, embora o Morar Carioca seja apresentado como um dos "legados" dos Jogos Olímpicos, sua formulação já aparecia no início do atual governo. Em 2009, a prefeitura havia informado que estava realizando contatos com o BID para obter recursos para o que ainda naquele período era chamado de "Favela-Bairro 3", que daria continuidade às intervenções em curso há mais de uma década. Entretanto, como já assinalado, o referido programa apenas seria lançado mais de um ano após esse anúncio e num contexto específico marcado pelo debate em torno das consequências das "chuvas de abril" e no âmbito da preparação da cidade para a realização das Olimpíadas. Como também ressaltado anteriormente, a partir da escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede desse megaevento, todas as intervenções da administração pública na cidade seriam traduzidas como decorrendo, como um "legado", da realização dos Jogos. No âmbito urbano e social, como o relacionado à questão habitacional, as ações comporiam o Plano de Legado Urbano e Social, que faria parte, segundo a prefeitura, dos compromissos que a "cidade" havia estabelecido com o Comitê Olímpico Internacional quando de sua candidatura.

A realização do programa retoma, em parte, as justificativas e formas de intervenção presentes quando da criação e implementação do Favela-Bairro. Um dos principais argumentos que articularia a condução dessa intervenção seria o de "integrar" as favelas ao conjunto do tecido urbano, atualizando a compreensão de que essa forma não pertenceria à cidade, estando à parte. As obras permitiriam, assim como afirmado em relação ao Favela-Bairro, aproximar áreas consideradas degradadas e avessas às normas urbanísticas à cidade "formal". Entretanto, em muitos aspectos, o Morar Carioca se diferencia do seu antecessor, especialmente no que se refere ao seu escopo, bem como no tipo de intervenção que pretende realizar nesses territórios.

Assim como o Favela-Bairro, o Morar Carioca incluiria, em suas intervenções, a urbanização e instalação de infraestrutura, como a ampliação de redes de água e esgoto, abertura de vias, equipamentos de lazer e educação. Entretanto, incluiria também algo pouco presente no programa anterior: um sistema de controle e ordenamento da ocupação e uso do solo, através dos Postos de Orientação Urbanística e Social (Pousos). Seria possível perceber que o programa retoma uma leitura sobre as favelas, em que estas seriam compreendidas como sendo uma forma urbanisticamente desajustada ao que se conceberia ser uma cidade organizada e racionalmente planejada. Tal configuração se encontraria presente na afirmação de que as normas da cidade deveriam valer para esses territórios, o que até então não ocorreria, mais uma vez atualizando uma oposição que localiza as favelas como o "outro" da cidade, contrário às normas e regras que organizariam o restante do tecido urbano:

O Morar Carioca não é só fazer obras. É um projeto que, acima de tudo, vai integrar as comunidades à cidade. Ele também envolve a conservação e manutenção daquilo que está sendo feito e irá definir parâmetros urbanísticos como acontece em qualquer lugar do Rio. Vamos fazer com que as regras da cidade passem a valer, além de implementar um sistema de monitoramento e controle de expansão.25 25 Declaração do prefeito Eduardo Paes por ocasião do lançamento das primeiras obras do Morar Carioca, em agosto de 2010 (cf. Rio de Janeiro, 2010a).

Para "fazer valer" essas normas, tal como ocorre no "asfalto", além da criação de normas urbanísticas específicas para as favelas, definindo limites para a construção de novas edificações e aumento das já existentes, a Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop) ficaria responsável pela fiscalização de possíveis irregularidades que pudessem a partir de agora ocorrer, controlando o crescimento local e realizando demolições quando assim fossem consideradas necessárias.

Os aspectos mais rígidos e coercitivos presentes na formulação do programa Morar Carioca, observáveis na inclusão de regras mais severas para construção, na elaboração de legislação específica que buscaria controlar o crescimento e na garantia de maior repressão ao que se considerariam irregularidades, seriam complementados por dois elementos importantes, que comporiam a maneira específica como as favelas atualmente estariam sendo enquadradas moralmente: o "desadensamento" e os "reassentamentos". Ou seja, diferentemente do programa Favela-Bairro, em que as intervenções se centrariam basicamente na recomposição ou criação de infraestrutura básica local, o Morar Carioca vem atuando na própria forma das favelas, alterando a sua geografia. Nesse sentido, traduzido como um "legado" dos Jogos Olímpicos, o programa incorporaria as ações de erradicação em curso desde o início de 2010, justificados à época em função da tragédia provocada pelas "chuvas de abril".

A escala aumentaria consideravelmente em relação ao que fora o Favela-Bairro, tanto no que se refere à quantidade de favelas a serem atendidas como também no tipo de intervenção que se buscaria levar adiante, incorporando, como afirmado, a possibilidade de erradicação, seja através do que se passou chamar de "desadensamento", pela via do "reassentamento de áreas de risco", ou através da abertura de grandes vias de acesso e obras como teleféricos e planos inclinados. O Morar Carioca elencaria um conjunto de 123 favelas (aproximadamente 13 mil famílias) a serem completamente removidas até o final de 2012, objetivo que, como já mencionado, havia sido definido no final de 2009, embora este número viesse a se alterar com o levantamento feito após as "chuvas de abril", que apontaria um número perto de 18 mil famílias a serem realocadas.

A discussão sobre o "desadensamento", fazendo aumentar o vocabulário acerca das possibilidades de intervenção sobre as favelas, já havia sido iniciada algum tempo antes. O programa Morar Carioca incluiria esse debate, tornando-o um dos sentidos principais de sua intervenção:

O Morar Carioca aproveita diversas experiências das últimas décadas, seus erros, acertos e desvios de rumo, buscando ampliá-las, no objetivo da superação plena desse enorme desafio de integração social e urbanística... A reflexão por certo incluirá o tema das moradias precárias e do adensamento exagerado, onde há danos sanitários e ambientais. O desadensamento implicará a construção de novas moradias. (Paes; Magalhães, 2010).

O programa poderia ser compreendido aqui como expressando uma das dimensões da transformação na maneira de enquadrar moralmente as favelas que vem se configurando atualmente, já que, a partir da análise do que fora interpretado como "deficiências" do Favela-Bairro (como não ter impedido o crescimento verificado nos anos 1990), acabaria permitindo a inclusão da possibilidade da erradicação, algo que o debate do início dos anos 1990 havia afastado, mas que, como afirmado pelo secretário de Urbanismo na ocasião do lançamento do novo Plano Diretor (como já abordado), atualmente não seria mais possível entender como sendo uma medida autoritária

A mudança de escala apresentada pelo programa pode ser compreendida também como se situando, por um lado, no contexto específico do atual período de crescimento econômico do país, que vem ocorrendo nos últimos anos e, por outro, principalmente no da realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Diferentemente do que ocorrera com o Favela-Bairro, que contaria basicamente com recursos do BID, desta vez, além destes, e com uma menor restrição orçamentária em função do ajuste estrutural que se impôs fortemente nos anos 1990, haveria um grande aporte proveniente do governo federal. Além desses recursos financeiros diretos, haveria a contribuição também através da existência do programa federal de habitação Minha Casa, Minha Vida, que seria largamente utilizado pela prefeitura do Rio de Janeiro para levar a cabo as propostas de "desadensamento" e "reassentamento", articulando-se de maneira decisiva às intervenções em curso no município em relação às favelas no que se refere à possibilidade de reincorporação da via da erradicação como forma de o Estado atuar nesses territórios, marcando a passagem definitiva no enquadramento moral dessas localidades.

O objetivo seria atuar em grande escala, mas com a ressalva de que isso apenas ocorreria em favelas "passíveis de urbanização". As que não fossem "passíveis de urbanização", isto é, consideradas como estando em áreas de risco, seriam realocadas a partir justamente do programa Minha Casa, Minha Vida, através da construção de conjuntos habitacionais, que frequentemente têm sido construídos na Zona Oeste da cidade.26 26 Um análise interessante sobre a concentração espacial desses empreendimentos se encontra em Cardoso et al. (2011). Se anteriormente as intervenções buscavam impactar o mínimo possível o território ocupado, preservando inclusive as construções realizadas pelos próprios moradores, dessa vez se buscaria alterar a morfologia local, principalmente através de obras viárias de maior porte, alargando vias que implicariam realocação de um número considerável de pessoas, assim como a construção de equipamentos de transporte como teleféricos e planos inclinados, além de intervir nas próprias construções, ambas as iniciativas justificadas a partir do argumento de que seriam intervenções que buscariam melhorar as condições de vida local.

Seria justamente a partir do argumento do "legado" que se desdobraria o que acima mencionei como constituindo uma ambiguidade em relação às práticas de erradicação de favelas que então já demonstravam suas consequências concretas no reordenamento do espaço urbano em curso. Além do mais, a ambiguidade presente na construção narrativa justificadora das intervenções levadas a cabo pela administração municipal se configuraria a partir das críticas que lhes seriam destinadas desde os atores que estavam envolvidos diretamente nas situações de remoção, como os moradores e alguns movimentos sociais, bem como daquelas originadas de instituições públicas locais, como setores do Ministério Público e da Defensoria Pública, e de instituições internacionais, como a Anistia Internacional, a Organização das Nações Unidas e mesmo alguns meios de comunicação.

O conteúdo de sentido dessa ambiguidade pode ser compreendido a partir de dois argumentos principais recorrentemente acionados: por um lado, em relação às intervenções urbanísticas que implicassem a remoção de alguma favela, embora essas pudessem representar algum tipo de transtorno para os realocados, este seria imediatamente situado numa escala na qual um dos extremos expressaria os "interesses particulares" de um dado grupo e, no outro, pelo "interesse público". Ou seja, de um lado estariam os moradores das favelas em processo de remoção, que defenderiam os seus interesses particulares de permanecer em um dado local e, de outro, a administração pública que, enquanto corporificação do interesse do conjunto dos moradores da cidade, apenas estaria garantindo que este se efetivasse, como seria possível perceber em relação às obras voltadas à ampliação ou construção de novas vias na cidade: "Qualquer processo de reassentamento é complicado, porque, a priori, ninguém gosta de sair de onde mora. Mas para fazer corredores expressos, para fazer melhorias que vão beneficiar centenas de milhares de habitantes, algumas famílias precisam ser deslocadas".27 27 Declaração do secretário municipal de Habitação, Jorge Bittar (ONU e Anistia..., 2011).

Por outro lado, reincorpora-se o argumento da necessidade das remoções naquelas localidades situadas em áreas classificadas oficialmente como de "risco" ou "não passíveis de urbanização". Nesse caso, as realocações, incorporadas pelo programa Morar Carioca, ocorreriam em função do fato de que alternativas anteriormente aventadas para garantir a permanência em determinados locais seriam descartadas por estes não permitirem a possibilidade de urbanização. A ambiguidade se expressaria aqui a partir da elaboração argumentativa de um impasse, cuja resolução seria responsabilidade da administração pública, agora retomando sua capacidade de intervenção, outrora ignorada ou simplesmente abandonada, de acordo com essa construção normativa: "Não quer dizer que todas as famílias em áreas de alto risco serão reassentadas. Isso somente acontecerá onde não tivermos mais recurso."28 28 Prefeito Eduardo Paes (Onde só morar..., 2011).

Considerações finais

Neste trabalho busquei discutir uma das dimensões do que venho chamando de reatualização das práticas e discursos sobre a remoção de favelas no Rio de Janeiro. Procurei demonstrar, através da descrição da mobilização da justificativa do "legado", que estaria em curso uma transformação no enquadramento do "problema favela" atualmente, cuja característica fundamental seria a reincorporação da remoção no campo das intervenções possíveis do Estado nessas localidades.

A partir da explicitação do que dizem e realizam os diversos atores, individuais e coletivos, ao fazerem emergir o termo "remoção" atualmente no debate sobre as favelas e seus moradores, seria possível entrever a realização de um duplo movimento: de um lado, criticam um dos repertórios construídos sobre as favelas, especialmente aquele veiculado através da ideia de urbanização. De outro lado, remontam a outros períodos (notadamente às décadas de 1960 e 1970) em que tal prática era traduzida numa chave positiva pelo quadro de referência dominante, reincorporando-a a partir de outros parâmetros e justificando-a com novos argumentos, no caso ora em tela através da mobilização do termo "legado", elemento inextricável à realização dos megaeventos esportivos.

Recebido em: 31/12/2012

Aprovado em: 04/06/2013

  • A ILEGALIDADE perde terreno. O Globo, Rio de Janeiro, p. 16, 30 jan. 2011.
  • BIENENSTEIN, G. O espetáculo na cidade e a cidade no espetáculo: grandes projetos, megaeventos e outras histórias. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 14., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpur, 2011. p. 1-20.
  • BOLTANSKI, L. El amor y la justicia como competencias: tres ensayos de sociologia de la acción. Buenos Aires: Amorrortu, 2000
  • BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. De la justification: les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
  • CARDOSO, A. L. et al. Habitação de Interesse Social: política ou mercado? Reflexos sobre a construção do espaço metropolitano. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 14., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpur, 2011. p. 1-20.
  • CEFAÏ, D. Qu'est-ce qu'une arene publique? Quelques pistes pour une approche pragmatiste. In: CEFAÏ, D.; JOSEPH, I. (Dir.). L'Heritage du pragmatisme: conflits d'urbanité et épreuves de civisme. La Tour d'Aigues: Editions de l'Aube, 2002.
  • COSTA, O; MURNO, G. 'Prefeito não tem ideologia. Prefeito tem pragmatismo', afirma Eduardo Paes. Brasil Econômico, 27 ago. 2012. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-08-27/prefeito-nao-tem-ideologia-prefeito-tem-pragmatismo-afirma-eduardo-paes.html>. Acesso em: 5 out. 2012.
  • DEWEY, J. Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Edição de Thamy Pogrebinschi e Augusto Franco. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.
  • ENTREVISTA COM EDUARDO PAES. Veja, São Paulo, n. 2113, 20 maio 2009.
  • GRABOIS, G. P. Em busca da integração: a política de remoção de favelas no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1973.
  • INSTITUTO PEREIRA PASSOS. Área ocupada pelas favelas cadastradas segundo as Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas – Município do Rio de Janeiro – 2008-2010 Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/arquivos/2642_área ocupada pelas favelas cadastradas segundos aps_ras_08_10.XLS>. Acesso em: 2 out. 2012.
  • INSTITUTO PEREIRA PASSOS. Variação da área de favela em relação ao uso do solo no período 2004-2009 Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/arquivos/3233_nt7_variação da área de favela em relação ao uso do solo no período 2004-2009>. Acesso em: 2 out. 2012.
  • JAMES, W. Pragmatismo e outros textos São Paulo: Abril Cultural, 1979.
  • LIMA, N. V. T. O movimento de favelados do Rio de Janeiro: políticas de Estado e lutas sociais (1954-1973). Dissertação (Mestrado em ciência política) Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989.
  • MACHADO DA SILVA, L. A. A continuidade do problema da favela. In: OLIVEIRA, L. L. (Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 220-237.
  • MACHADO DA SILVA, L. A. Violência urbana, sociabilidade violenta e agenda pública. In: MACHADO DA SILVA, L. A. (Org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 35-45.
  • MACHADO DA SILVA, L. A. "Violência urbana", segurança pública e favelas o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, maio/ago. 2010.
  • MAGALHÃES, A. A. Entre o legal e o extralegal: a reatualização da remoção de favelas no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 14, n. 1, p. 119-133, 2012.
  • NOVAIS, P. et al. Grandes Projetos Urbanos: panorama da experiência brasileira. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓSGRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 12., 2007, Belém. Anais... Belém: Anpur, 2011.
  • ONDE SÓ MORAR já é aventura. O Globo, Rio de Janeiro, p. 18, 7 jan. 2011.
  • ONU E ANISTIA condenam processo de remoções para obras no Rio. Estadão, São Paulo, 27 abr. 2011. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,onu-e-anistia-condenam-processo-de-remocoes-paraobras-no-rio,711156,0.htm?p=2>. Acesso em: 5 out. 2012.
  • PAES, E.; MAGALHÃES, S. Morar carioca. O Globo, 15 out. 2010. Opinião, p. 7.
  • RIO DE JANEIRO. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Morros da Coroa e São José Operário recebem obras do Programa Morar Carioca Rio de Janeiro, 2010a. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=1077888>. Acesso em: 5 out. 2012.
  • RIO DE JANEIRO. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Prefeito apresenta balanço das ações de recuperação da cidade seis meses após chuvas de abril Rio de Janeiro, 2010b. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/ exibeconteudo?article-id=1187737>. Acesso em: 2 out. 2012.
  • SÁNCHEZ, F. A reinvenção das cidades na virada de século: agentes, estratégias e escalas de ação política. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 16, p. 31-49, jun. 2001.
  • SCHUTZ, A. Sobre fenomenologia e relações sociais Petrópolis: Vozes, 2012.
  • VAINER, C. Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. In:ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 14., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpur, 2011. p. 1-15.
  • VIAL, A.; CAVALLIERI, F. O efeito da presença governamental sobre a expansão horizontal das favelas do Rio de Janeiro: os Pouso's e o Programa Favela-Bairro. Coleção Estudos Cariocas, n. 20090501, maio 2009. Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2416_o efeito da presença governamental sobre a expansão das favelas o Rio.pdf>. Acesso em: 2 out. 2012.
  • *
    Doutorando em Sociologia.
  • 1
    Ao partir das declarações do prefeito neste momento, considerarei aqui o fato de ele ser transfigurar como um "ator típico", tal como sugerido por Schutz (2012), cujos motivos por ele acionados para explicar a formulação emergem de uma "situação típica", no caso ora em análise, em processo de constituição em torno da remoção de favelas. Segundo o autor, "há atos de um tipo tão geral que é suficiente reduzi-los aos motivos típicos de "alguém" para torná-los compreensíveis" (Schutz, 2012, p. 198).
  • 2
    A ideia de debate aqui utilizada se baseia, sobretudo, nas abordagens pragmatistas norte-americanas e francesas (Boltanski, 2000; Boltanski; Thevenot, 1991; Cefaï, 2002; Dewey, 2008; James, 1979). A sua utilização implica a consideração de que um determinado problema público (nesse caso, a "favela") é resultado de uma intensa disputa linguística, em que são elaborados argumentos que buscam defini-lo enquanto tal. Dessa forma, o problema em questão não seria resultado, necessária ou somente, de condições objetivas, dadas de antemão, mas resultado das disputas definicionais de diversos atores em variadas situações e arenas públicas (Cefaï, 2002).
  • 3
    Afirmo que foram retomadas, pois, como apontam diversos autores (Grabois, 1973; Lima,1989; Machado da Silva, 2002), tal discussão já havia surgido nos anos 1950, especialmente no bojo das intervenções da Igreja Católica nas favelas e a partir da organização de seus moradores, inicialmente através da União dos Trabalhadores Favelados e, posteriormente, a partir da Federação das Associações de Moradores da Guanabara (Fafeg), cuja principal reivindicação daquele período fora justamente a urbanização desses territórios e a recusa da erradicação.
  • 4
    Importante destacar que quando me refiro à "redefinição" e/ou "reatualização" da remoção de favelas como um problema público, estou aludindo ao fato de que, embora a problemática seja a mesma que aquela dos anos 1960 e 1970 (a remoção), o contexto ao qual ela está indexada atualmente se modificou consideravelmente. Os referenciais de sentido que motivavam a ação estatal nas favelas e as justificativas ajustadas a estes se alteraram, embora, repito, a problemática seja a mesma.
  • 5
    Visitei aproximadamente 30 localidades ao longo desse período. Contudo, acompanhei mais detidamente as experiências de remoção (já finalizadas, em curso ou ainda por se iniciar) em algumas delas.
  • 6
    Entre as favelas totalmente removidas, destacam-se os casos conhecidos publicamente da Vila Harmonia, Vila Recreio II, Notre Dame (todas no Recreio dos Bandeirantes – Zona Oeste), Vila União (Barra da Tijuca), Favela da Guaratiba (Guaratiba – Zona Oeste), Largo do Campinho, Vila Quaximã e Vila das Torres (Madureira – Zona Norte), Terra Nostra (Parque Colúmbia/Pavuna – Zona Norte), Favela do Sambódromo (Centro), Sítio Amizade (Cidade de Deus – Zona Oeste), Favela Guacha (Jacarepaguá – Zona Oeste) e Largo do Tanque (Jacarepaguá – Zona Oeste). Entre as parcialmente removidas ou em processo de remoção (algumas o processo foi interrompido judicialmente) estão a Restinga (Recreio dos Bandeirantes), Estradinha-Tabajaras (Botafogo – Zona Sul), Laboriaux (Rocinha – Zona Sul), Torre Branca (Morro dos Prazeres), Favela Metrô-Mangueira (Maracan㠖 Zona Norte), Morro do Urubu (Zona Norte) e Morro da Providência (Centro). Entre as que o processo ainda está por iniciar, embora já tenha ocorrido o contato da administração municipal, destacam-se: Vila Autódromo (Jacarepaguá/Barra da Tijuca – Zona Oeste), Arroio Pavuna (Jacarepaguá/Barra da Tijuca – Zona Oeste), Muzema (Barra da Tijuca – Zona Oeste), Vila União de Curicica (Jacarepaguá – Zona Oeste), Belém-Belém (Engenho de Dentro – Zona Norte), Pavão-Pavãozinho (Copacabana – Zona Sul), Babilônia (Leme – Zona Sul), Santa Marta (Botafogo – Zona Sul), Borel (Tijuca – Zona Norte), Indiana (Tijuca – Zona Norte). Não se incluem nessa lista as favelas removidas completa ou parcialmente pelas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-Favelas).
  • 7
    Aqui entendido não somente como expressão discursiva, mas como linguagem prática, isto é, a todo ato de fala segue-se uma ação ou uma intenção de ação.
  • 8
    Em outra ocasião (Magalhães, 2012), apontei que, em relação ao primeiro momento mencionado acima, haveria a constituição de um debate acerca do reordenamento do espaço urbano, cuja situação de "caos" e "descontrole" rapidamente seria associada às favelas da cidade. Ações de demolição se iniciariam, decretos prevendo o controle do crescimento dessas localidades foram publicados, e, posteriormente, fora feito um levantamento em que a prefeitura propunha a redução de 3,5% da área ocupada por favelas, estimando a remoção parcial ou completa de 119 delas. Em relação ao segundo momento, como afirmado, ocorreram chuvas muito fortes na cidade e no estado do Rio de Janeiro, que levaram à morte aproximadamente 250 pessoas, praticamente todas em favelas. Em seguida a esses acontecimentos, as propostas de solução para não permitir que mais mortes ocorressem giraram em torno basicamente da defesa aberta da remoção como forma de intervenção do Estado nessas localidades, que não somente criticava o "tabu", mas também a "demagogia" que existiria em relação ao assunto favela.
  • 9
    Essa observação não significa afirmar que o foco na dimensão moral das disputas, nas quais os megaeventos se apresentam como um dos elementos constituintes do quadro de referência em curso de elaboração na forma do "repertório da remoção", ignore as injunções de poder que atravessam as suas práticas correspondentes. Isto é, as avaliações morais não se realizam numa espécie de espaço social vazio: elas são conformadas por campos de força e jogos de poder que delimitam, em certo sentido, a abrangência dessas avaliações e, portanto, dependem da correlação de forças existentes (se pensarmos em termos gramscianos) ou dos diferenciais de poder (seja a terminologia utilizada a de Elias). Ao contrário, essas injunções serão percebidas em suas articulações mais finas observáveis através do trabalho de acompanhamento dos atores, individuais e coletivos, no curso das disputas e conflitos em que se encontram inseridos em seu cotidiano.
  • 10
    Cf. Rio de Janeiro (2010b).
  • 11
    Órgão da Secretaria Municipal de Obras responsável por elaborar estudos e propor soluções de geotecnia para as encostas e áreas de risco da cidade do Rio de Janeiro.
  • 12
    Cf. Onde só morar... (2011).
  • 13
    Segundo estudo do próprio Instituto Pereira Passos, entre 1999 e 2008, a área ocupada por favelas teria aumentado em aproximadamente 3 milhões de metros quadrados. Mais informações, ver Vial e Cavallieri (2009). Tais dados seriam confirmados por outro levantamento, realizado também pelo IPP e publicado em 2012, que apresenta informações sobre o crescimento da área de favelas, e em que regiões isso mais ocorreu, entre os anos de 2004 e 2009 (Instituto Pereira Passos, 2012).
  • 14
    Cf. A ilegalidade... (2011).
  • 15
    Entrevista ao programa
    Márcia Peltier, da rede de TV CNT, em 31 de maio de 2011.
  • 16
    Secretário da Casa Civil da prefeitura do Rio de Janeiro, Pedro Paulo, na mesma entrevista da nota anterior.
  • 17
    Mesma entrevista da nota anterior.
  • 18
    Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao jornal
    Brasil Econômico, em 27 de agosto de 2012 (Costa; Murno, 2012).
  • 19
    Entrevista do secretário da Casa Civil da prefeitura, Pedro Paulo, ao programa
    Márcia Peltier, da rede de TV CNT, em 31 de maio de 2011.
  • 20
    Mesma entrevista da nota anterior.
  • 21
    Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao programa
    Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.
  • 22
    Entrevista ao programa
    Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.
  • 23
    Mesma entrevista da nota anterior.
  • 24
    Entrevista do prefeito Eduardo Paes ao programa
    Roda Viva, da Rede Brasil de Televisão, em março de 2011.
  • 25
    Declaração do prefeito Eduardo Paes por ocasião do lançamento das primeiras obras do Morar Carioca, em agosto de 2010 (cf. Rio de Janeiro, 2010a).
  • 26
    Um análise interessante sobre a concentração espacial desses empreendimentos se encontra em Cardoso et al. (2011).
  • 27
    Declaração do secretário municipal de Habitação, Jorge Bittar (ONU e Anistia..., 2011).
  • 28
    Prefeito Eduardo Paes (Onde só morar..., 2011).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      31 Dez 2012
    • Aceito
      04 Jun 2013
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: horizontes@ufrgs.br