Resumo
A primeira metade do século XX foi um período marcado por uma intensa construção de identidades nacionais no Brasil e nos Estados Unidos. A música popular desses dois países, especialmente o samba e os blues, reflete esses processos. Um dos temas centrais nas canções da época é o dinheiro e o modo como ele permeia o cotidiano.
Palavras-chave
blues; dinheiro; música popular brasileira e norte-americana; samba
Abstract
The first half of the XX century was a period characterized by an intense construction of national identities in Brazil and the United States. Popular music of both countries, specially samba and blues, reflects those processes. One of the central themes in the songs of that period is money and the way it permeates daily life.
Keywords
blues; Brazilian and North American popular music; money; samba
I
Brasil e Estados Unidos são países muito diferentes e, por isso mesmo, torna-se interessante compará-los. Eles têm em comum o fato de serem sociedades do Novo Mundo, situadas nas Américas. Ambos os países eram habitados por povos nativos antes da chegada dos colonos europeus. Também foram sociedades escravagistas até a segunda metade do século XIX. Enquanto nos Estados Unidos a escravidão se concentrava no Sul, no Brasil ela se difundia por todo o território, e durante três séculos a economia foi fundamentalmente dependente desse modo de produção.
A primeira metade do século XX foi um período de grandes transformações em ambos os países. Eles haviam abolido a escravidão, recebiam quantidades crescentes de imigrantes e passavam por processos de urbanização, industrialização e construção da nação. A crise econômica da década de 1930 afetou os dois países de modo dramático. A vida social tornou-se cada vez mais monetarizada, e houve diferentes reações a esse processo. A Segunda Guerra Mundial foi um grande evento tanto para o Brasil quanto para os Estados Unidos, e ambos lutaram do mesmo lado. Um intenso processo de construção da nação estava ocorrendo em ambos os países.
Tudo isso se reflete na música popular, que abre uma janela para comparar as duas sociedades. A música popular é um importante prisma através do qual olhar para sociedades. Ela reflete a vida quotidiana, eventos sociais e políticos, mudanças na moral, nos valores culturais e em representações econômicas. Várias das canções brasileiras e norte-americanas dessa época eram, e com frequência ainda são, muito populares, porque elas ecoam e continuam a ecoar o imaginário social de ambos os países.
No Brasil e nos Estados Unidos, a maioria dos compositores é homem; eles tendem a se valer da música como uma das poucas esferas públicas nas quais se permitem falar mais livremente sobre seus sentimentos privados. Eles cantam sobre suas fraquezas, seu medo da perda, seus sentimentos com relação às mulheres.
O dinheiro tende a ser um tema central na música popular. Ele costuma aparecer relacionado a outros tais como o trabalho, desigualdades sociais, relações de gênero, ou amor (Oliven, 20049. OLIVEN, R. G. O imaginário na música popular brasileira. In: PAIS, J. M.; BRITO, J. P.; CARVALHO, M. V. de (Org.). Sonoridades luso-afro-brasileiras. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. p. 291-321.). O lado negativo do trabalho é refletido na música popular brasileira. Durante os anos 1920, 1930 e 1940, compositores de samba costumavam exaltar a malandragem. Ela se desenvolveu enquanto um modo de vida. O governo estava tão preocupado que o brasileiro pudesse estar desenvolvendo uma ética da malandragem que durante a ditadura de 1937-1945 o Estado decidiu intervir, por meio do Departamento de Informação e Propaganda (DIP), seu órgão de censura, no sentido de proibir músicas que exaltassem a malandragem, ao mesmo tempo em que premiava aqueles que exaltavam o trabalho (Oliven, 19897. OLIVEN, R. G. A malandragem na música popular brasileira. In: OLIVEN, R. G. Violência e cultura no Brasil. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 29-60.).
Os mesmos compositores que faziam o elogio da malandragem também pintavam o dinheiro como algo inferior, normalmente demandado por mulheres que não entendiam que os homens aos quais elas se dirigiam tinham algo muito mais precioso a oferecer: seu amor. É claro, há aqui um “complexo das uvas verdes”: sabendo que nunca ganhariam muito dinheiro não importa o quanto tentassem, esses homens menosprezavam o vil metal. Por outro lado, em várias das letras dessas canções, nota-se que o dinheiro é uma realidade da qual ninguém vivendo numa sociedade monetarizada pode escapar. Mas tudo isso é visto de forma melancólica. E o dinheiro pode ser, afinal de contas, destrutivo: ele às vezes acaba com o amor e a amizade e convida à falsidade e à traição. Como colocou Noel Rosa, um dos grandes compositores dos anos 1930, em Fita amarela (uma canção coautorada com Vadico):1 1 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=utUzUVEs90s. “Não tenho herdeiros/ Nem possuo um só vintém/ Eu vivi devendo a todos/ Mas não paguei a ninguém.”
A primeira composição registrada com o nome de samba apareceu em 1917. Antes disso, praticamente não havia indústria musical e nenhuma noção de direitos autorais no Brasil. Nos Estados Unidos, a indústria musical e os direitos autorais começaram mais cedo.
Em ambos os países, as músicas que lidavam com o dinheiro também abordavam temas como trabalho, amor e relações de gênero. O samba floresceu ao longo dos anos 1920, amadureceu durante a década de 1930 e tornou-se hegemônico nos anos 1950. Junto ao chorinho e à marcha carnavalesca, formou o que se tornou conhecido como MPB, ou Música Popular Brasileira (McCann, 20045. McCANN, B. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press, 2004.; Sandroni, 200110. SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar: Editora da UFRJ, 2001.; Vianna, 199512. VIANNA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: Editora da UFRJ, 1995.).
II
Ao analisar a música popular norte-americana da primeira metade do século passado, deve-se lidar com diferentes gêneros, estilos e influências. Há o minstrelsy, o Tin Pan Alley (lugar próximo da rua 28 e Broadway em Nova Iorque, onde se desenvolveu a sheet music) e, é claro, os blues. Todos eles lidam com o dinheiro, mas de formas diferentes. Enquanto no minstrelsy os afro-americanos eram frequentemente descritos como não sendo capazes de entender o significado de “tempo é dinheiro” enquanto pilar central da vida norte-americana moderna, nas canções de Tin Pan Alley (Hamm, 19792. HAMM, C. It’s only a paper moon. Or, the golden years of Tin Pan Alley. In: HAMM, C. Yesterdays: popular song in America. New York: W.W. Norton & Company, 1979. p. 326-390.) o dinheiro era frequentemente cantado de modo frívolo, como um modo de alcançar o luxo (como em Diamonds are a girl’s best friend, música interpretada por Marilyn Monroe no filme de 1953 de Howard Hawks, Os homens preferem as loiras). Nos blues, por outro lado, o dinheiro é central à sobrevivência, porém difícil de conseguir por meio do trabalho (Jones, 19633. JONES, L. Blues people: negro music in white America. New York: William Morrow and Company, 1963.; Levine, 19774. LEVINE, L. W. Black culture and black consciousness: Afro-American folk thought from slavery to freedom. New York: Oxford University Press, 1977.).
Diversas canções produzidas no final do século XIX e começo do século XX nos Estados Unidos discorrem sobre o dinheiro. If time were money I’d be a millionaire (letra de Felix F. Feist e música de Ted S. Barron, direitos autorais de 1902) é um bom exemplo:
A lazy coon a hangin’ ‘round / Um negro preguiçoso que andava por aí
Heard Parson Jenkins say / Ouviu o Pastor Jenkins dizer
“Dat time was money” / “Que tempo é dinheiro”
And it almost took his breath away / E ele quase perdeu o fôlego
He never done a stroke of work / Ele nunca trabalhou
He was too big and strong / Era grande e forte demais
He’d stretch out in the boilin’ sun / Ele se espichava debaixo do sol escaldante
And sleep de whole day long / E dormia o dia inteiro
Of course he never had a dollar / É claro, ele nunca teve um tostão
In his tattered clothes / Em suas roupas esgarçadas
And didn’t own a pair of shoes / E nunca teve um par de sapatos
To cover up his toes / Para cobrir seus dedões
De only thing he had / A única coisa que ele tinha
Was lots of time to pass away / Era muito tempo pra gastar
And when he heard / E quando ele ouviu
Dat time was money / Que tempo era dinheiro
Dis is what he did say / Ele disse o seguinte
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
I’ve got time honey / Eu tenho tempo, meu bem
An’ chunks of it to spare / E muito dele pra gastar
Oh dere aint no other coon / Não tem outro negro
Could get wealth half so soon / Que fosse capaz de enriquecer tão rápido
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
Dis nigger was too lazy / Esse crioulo era preguiçoso demais
Fo’ to raid a chicken roost / Para correr atrás de um frango
Because he’d have / Porque ele teria
To lift his arm to give / Que levantar seu braço
His hand a boost / Para mexer sua mão
He nearly starved / Ele quase morreu
To death one day / De fome um dia
Fo’ certainly because / Certamente porque
He didn’t have the energy / Ele não tinha energia
To move his lazy jaws / Para mover suas mandíbulas preguiçosas
Dis coon was never sociable / Esse negro nunca foi sociável
It tired him to talk / Falar o cansava
If twenty mules would kick him / Nem se vinte mulas lhe dessem coices
All at once he wouldn’t walk / Ao mesmo tempo, ele não andava
‘An so a baskin in the sun / Então, debaixo do sol escaldante
Dis nigger laid all day / Esse crioulo ficava deitado o dia inteiro
A grinnin’, chucklin’ to himself / Rindo para si mesmo
An’ dis am what he’d say / E isso é o que ele dizia
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
Essa canção foi composta por dois músicos brancos num momento em que parte da população norte-americana já havia sido convertida às virtudes da produtividade e da gestão adequada do tempo. Por outro lado, a escravidão havia sido abolida há pouco, e certas pessoas eram consideradas incapazes de entender essa lógica. Na música, são ex-escravos que ainda não haviam sido integrados nas novas formas do processo produtivo. O sujeito de If time was money I’d be a millionaire é visto como um coon, ou seja, alguém que hoje seria chamado de afro-americano – de modo ofensivo e depreciativo, associado com, e sinônimo de, uma “pessoa rústica ou indigna” (Webster’s, 199413. WEBSTER’S Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language. New York: Gramercy, 1994., p. 321). Além de preguiçoso, ele é visto como tão ingênuo que não é capaz de perceber o significado do provérbio “tempo é dinheiro”, um pilar central da América capitalista. Como não trabalha e parece se contentar com a situação, ele tem todo o tempo de que precisa e é levado a acreditar que é um milionário. O modo como é ele descrito é eivado dos preconceitos que abundavam nos Estados Unidos na época em que a música foi escrita.
Há uma diferença importante entre as músicas brasileiras e norte-americanas com relação à questão da raça. Os compositores brasileiros do início do século XX eram não raro descendentes de escravos e assumiam uma posição quase política no fato de rejeitarem de forma um tanto consciente o trabalho e a ética a ele associada (Oliven, 19978. OLIVEN, R. G. O Vil metal: o dinheiro na música popular brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12, n. 33, p. 143-168, 1997.). Enquanto o sujeito de If time was money I’d be a millionaire é mostrado como estúpido e incapaz de compreender o que significa uma ética capitalista, mais ou menos na mesma época os compositores negros brasileiros exaltavam a ociosidade e menosprezavam o trabalho. Eles admitiam que eram preguiçosos e que tinham coisas mais nobres a fazer do que pensar em dinheiro. A preguiça era tida como uma atitude digna. Macunaíma, o principal personagem de um dos romances formadores da literatura brasileira, publicado em 1928, resultado de uma mistura racial entre brancos, negros e indígenas, nasce preguiçoso e é definido como “um herói sem nenhum caráter”. Suas primeiras palavras ao nascer foram “ai, que preguiça” (Andrade, 19931. ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Villarica, 1993.). A preguiça enquanto traço herdado e inevitável da personalidade aparece claramente no samba Caixa Econômica, gravado em 1933 por Orestes Barbosa e Antônio Nássara:2 2 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uD_MEzFxoPg&feature=related.
Você quer comprar o seu sossego
Me vendo morrer num emprego
Pra depois então gozar
Esta vida é muito cômica
Eu não sou Caixa Econômica
Que tem juros a ganhar
E você quer comprar o quê, hem?
Você diz que eu sou moleque
Porque não vou trabalhar
Eu não sou livro de cheque
Pra você ir descontar
Se você vive tranquila
Sempre fazendo chiquê
Sempre na primeira fila
Me fazendo de guichê
E você quer comprar o quê, hem?
Meu avô morreu na luta
E meu pai, pobre coitado
Fatigou-se na labuta
Por isso eu nasci cansado
E pra falar com justiça
Eu declaro aos empregados
Ter em mim essa preguiça
Herança de antepassado
Temos aqui um exemplo em que a preguiça se torna um traço herdado e é transformada numa ética. O personagem masculino, provavelmente neto de um escravo e filho de um trabalhador, argumenta que o trabalho é inútil para as classes baixas. A preguiça é vista como um traço pelo qual ele não é responsável, manifesto no momento do seu nascimento.
Vale notar que, enquanto numa canção como When you ain’t got no money well you needn’t come round (letra de Clarence S. Brewster e música de A. B. Sloane, direitos autorais de 1898, apresentada como “uma nova cantiga de um negro apaixonado”), a mulher demandante que pronuncia a frase que dá título à música (“se você não tem dinheiro nem precisa aparecer”) tem o controle da situação, em Caixa Econômica, apesar de a personagem feminina orientar o enredo do samba ao acusar o homem narrador de ser um vagabundo, ele termina tendo a palavra final ao se defender vigorosamente. Ele o faz em dois níveis. Além de argumentar que trabalhar é inútil para as classes baixas, seu segundo nível de defesa é um contra-ataque, expresso na acusação de que a mulher é uma consumidora insaciável com um caráter predador, já que ela quer obter estabilidade fazendo-o entrar no mundo da ordem, aqui representado por um trabalho assalariado. O homem também rejeita toda associação entre ele e qualquer coisa que lembre dinheiro.
III
Nessas canções, o amor é normalmente visto como superior ao dinheiro. Um exemplo da natureza sublime do amor pode ser encontrado na canção norte-americana Something that money can’t buy (letra de Charles Horwitz, música de Frederick V. Bowers, direitos autorais de 1900):
Gold has its power / O ouro tem seu poder
Sages will say / Os sábios diriam
Riches in life / As riquezas da vida
Hold a wonderful sway / Têm muito apelo
But there’s a power / Mas há um poder
Hails from above / Que emana de cima
Greater and better / Maior e melhor
Power of love / O poder do amor
There strolls a noble / Há um nobre
Money and land / Dinheiro e terras
Lives in a mansion / Vive numa mansão
Costly and grand / Cara e grandiosa
Still he’s unhappy / Ainda assim, ele é infeliz
No one knows why / Ninguém sabe por quê
Love is the power / Amor é o poder
Money can’t buy / Que o dinheiro não pode comprar
Love of a mother / O amor de uma mãe
For her darling child / Por seu filho querido
Love for a son / O amor por um filho
Tho’ he’s wayward and wild / Ainda que voluntarioso e truculento
Love that brings joy / Amor que traz alegria
And a tear to the eye / E lágrimas aos olhos
This love is something / Esse amor é algo
That money can’t buy / Que o dinheiro não pode comprar
There sits a maiden weary at heart / Há uma dama com o coração apertado
Sighing for one who had / Suspirando por alguém que
Vow’d ne’er to part / Prometeu nunca partir
Two lives were happy / Duas vidas eram felizes
Till one sad day / Até que num triste dia
There came a message / Veio uma mensagem
He’d pass’d away / De que ele havia falecido
Still she is constant / Mas ela é constante
Never will wed / Nunca vai se casar
True to the one who lies buried / Fiel àquele que está enterrado
‘tis said / Dizem
Rich men to win her / Homens ricos querem ganhá-la
One and all try / Todos tentam
Her love is something money can’t buy / Seu amor é algo que o dinheiro não pode comprar
Love of a soldier / O amor de um soldado
His flag to defend / Na defesa da sua bandeira
Loving Old Glory / A querida “Old Glory”
He fights to the end / Ele luta até o fim
True to these colors and for it he’d die / Fiel às cores, disposto a morrer por elas
This love is something that money can’t buy / Esse amor é algo que o dinheiro não pode comprar
A canção é uma afirmação inequívoca da superioridade do amor com relação ao dinheiro. Sinhô, um compositor negro brasileiro do início do século XX, conhecido como o “Rei do Samba”, descobriu que “fazer samba podia dar dinheiro, prestígio e até boas polêmicas, três coisas muito do seu agrado. […] Seus temas preferidos eram a crônica do cotidiano e as histórias de amor, com ênfase especial nos assuntos ‘dinheiro’ e ‘mulher’, suas principais preocupações na vida real” (Severiano, 198811. SEVERIANO, J. [Texto na contracapa do disco]. In: NOSSO SINHÔ DO SAMBA e outras bossas. Rio de Janeiro: Funarte, 1988. 1 LP.).
Em 1918, ele escreveu Quem são eles, seu primeiro sucesso de carnaval. Em seus versos, diz:
Não precisa pedir
Que eu vou dar
Dinheiro não tenho
Mas vou roubar
O tema do dinheiro aparece incidentalmente nessa música em meio a outros temas, como se fosse algo de menor importância. O sujeito não tem dinheiro, e para consegui-lo ele não se valerá do trabalho, considerado indigno, mas do furto. Na medida em que ele se apresenta como desinteressado de preocupações materiais, fica implícito que é a mulher que lhe pede dinheiro, e que ela não é indiferente a questões financeiras.
A canção O Pé de Anjo, marcha de carnaval, gravada em 1920,3 3 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=JboqkLrrI8U. foi um dos grandes sucessos de Sinhô. Em seus versos, o “Rei do Samba” canta sobre mulher e dinheiro:
A mulher e a galinha
São dois bichos interesseiros
A galinha pelo milho
E a mulher pelo dinheiro
A mulher é comparada à galinha, que está sempre ciscando; ela é vista como uma criatura egoísta, ávida por dinheiro. A ideia é que enquanto o homem se situa acima de interesses materiais, as mulheres estão constantemente levantando o tópico ignóbil do dinheiro. Xisto Bahia, um dos precursores da Música Popular Brasileira, concluiu Isto é bom, marcha escrita em 1880,4 4 Disponível em: http://www.youtube.com.watch?v=iUqorvESjQI. numa performance num teatro dizendo: “Quem quiser coisas boas/ Não deve amar o dinheiro.”
Na marcha Amor sem dinheiro, um dos sucessos do carnaval de 1926, Sinhô discute a relação entre dinheiro e amor, argumentando pela impossibilidade de amar em toda plenitude sem as condições financeiras adequadas:
Amor, amor
Amor, sem dinheiro, amor
Não tem valor
Amor sem dinheiro
É fogo de palha
É casa sem dono
Em que mora a canalha
Amor, amor, etc.
Amor sem dinheiro
É flor que murchou
São quadras sem rima
Me leva que eu vou
Amor, amor, etc.
Amor sem dinheiro
É cana sem caldo
É sapo no brejo
Que canta cansado
O argumento da canção é claro: o amor precisa de uma base financeira, sem a qual ele é simplesmente fogo de palha. É interessante notar que o mesmo Sinhô lançou em 1928 outro samba, Que vale a nota sem o carinho da mulher, que vai no sentido contrário. No primeiro verso, ele proclama a supremacia do amor sobre o dinheiro:
Amor! Amor!
Não é pra quem quer
De que vale a nota, meu bem
Sem o puro carinho de uma mulher
(quando ela quer)
O título condensa o significado da canção. Ele afirma o valor do amor sobre o dinheiro, que não valeria nada sem os carinhos de uma mulher. Há uma tensão que perpassa as canções desse período que lidam com o dinheiro. Por um lado, todos sabem que numa sociedade cada vez mais monetarizada como a do Brasil naquela época se precisa de dinheiro para satisfazer os desejos. Mas como é difícil para homens pobres ganhar muito por meio do trabalho manual, eles expressam suas uvas verdes alegando que o afeto é muito mais importante do que a riqueza. Essas composições do início do século XX são marcadas pela copresença da consciência de que o dinheiro é cada vez mais importante e da crença de que soluções afetivas e mágicas poderiam minimizar a escassez. Essa contradição aparece em alguns momentos nas canções de um mesmo compositor, como é o caso de Sinhô.
IV
As relações de gênero formam parte da temática das canções brasileiras e norte-americanas sobre dinheiro compostas no final do século XIX e início do século XX. Embora a maioria dos compositores fosse homens, eles não raro construíam uma narradora feminina. As mulheres podem ser ou sublimes no amor que oferecem, ou malvadas porque pedem dinheiro. Nas composições da época, o dinheiro é cada vez mais associado à figura da mulher (Oliven, 19876. OLIVEN, R. G. A mulher faz (e desfaz) o homem. Ciência Hoje, São Paulo, v. 7 n. 37, p. 54-62, 1987.). Entramos aqui no domínio das expectativas e queixas entre homens e mulheres – temas que abundam nas composições daquele período. As canções trazem o ponto de vista tanto masculino como feminino (tal qual expresso por meio da imaginação masculina). Como as relações amorosas são feitas de expectativas, sempre confrontamos uma tensão entre o que é esperado ou demandado do sexo oposto e o que se obtém dele. Também estão sempre presentes aquilo que fazemos para atender às expectativas dos outros e a gratidão ou ingratidão geradas pela ação. A música popular daquela época reflete esse mundo de expectativas e queixas num registro às vezes humorístico, às vezes marcado por ressentimento.
Em canções norte-americanas, as mulheres também aparecem fazendo demandas constantes por dinheiro. Em Money blues, composta por D. Leader e H. Ellers e gravada por Bessie Smith em 1926,5 5 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=sVvFaB389cs. temos uma referência direta ao dinheiro:
Daddy, I need money / Querido, preciso de dinheiro
Give it to your honey / Dê algum pro seu benzinho
Daddy, I need money now / Querido, preciso de dinheiro agora
All day long I hear that song / O dia inteiro escuto essa música
Daddy, it’s your fault / É sua culpa
If I go wrong / Se eu saio da linha
I need a small piece of money now / Eu preciso de um trocado agora
I can use a small piece now / Eu preciso de um trocado agora
Várias outras músicas cantadas por Bessie Smith falam diretamente do dinheiro ou da sua falta: Hard times blues, Homeless blues, Poor man blues, Washwoman blues, Nobody knows you when you are down and out, Why don’t you do right (Get me some money, too!) (direitos autorais de 1941 por Joe McCoy, um músico de blues e compositor afro-americano do Delta nascido no Mississippi),6 6 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=z_lnE_L_E8M. também traz uma mulher exigindo dinheiro de seu homem. Ela se queixa da insolvência financeira do parceiro:
You had plenty money / Você tinha muito dinheiro
Nineteen twenty two / Mil novecentos e vinte e dois
You let other people / Você deixou que outras pessoas
Make a fool of you / O fizessem de tolo
Why don’t you do right / Por que não faz direito
Like some other men do? / Como outros homens?
Get out of here and / Saia já daqui e
Get me some money too / Me traga algum dinheiro também
Yo’ sittin’ down / Você fica sentado
Wond’ring / Pensando
What it’s all about / Na vida
If you ain’t / Se você não
Got no money / Tem dinheiro
They will / Eles vão
Put you out / Te enxotar
Why don’t you do right … / Por que você não faz direito…
If you had prepared twenty years ago / Se você tivesse se preparado há vinte anos
You wouldn’t be / Você não estaria
Wandering now / Perambulando por aí
From do’ to do’ / De bico em bico
Why don’t you do right … / Por que você não faz direito...
A canção trata de temas comuns dos blues depois da Grande Depressão. A mulher se queixa de que seu companheiro está quebrado porque gasta seu dinheiro com outras mulheres, as quais deixaram de ter interesse nele quando ficou pobre. Seu refrão é que ele deve “fazer o certo” como outros homens fazem, insistindo que ele deve ter uma renda para sustentá-la. Mas quando o homem é o provedor, as relações de poder entre os sexos baseadas no dinheiro afloram, o que pode ser visto em Paying the cost to be the boss, uma canção de 1968 com letra e música de B. B. King, guitarrista de blues e cantor-compositor afro-americano nascido no Mississippi:7 7 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=0MuBIOmGFHM.
You act like you / Você age como se
Don’t wanna listen / Não quisesse ouvir
When I’m talking to you / Quando falo com você
You think you ought to do, baby / Você acha que pode fazer, baby
Anything you want to do / Tudo o que quiser
You must be crazy, baby / Você deve estar louca, baby
You just got to be out of your mind / Você deve estar fora de si
As long as I’m paying the bills, woman / Enquanto eu estiver pagando as contas, mulher
I’m paying the cost / Eu banco o custo
To be the boss / De ser chefe
I’ll drink if I want to / Eu bebo se eu quiser
And play a little poker, too / E jogo algum pôquer também
Don’t you say nothing to me / Não me diga nada
As long as I’m taking care of you / Enquanto eu estiver tomando conta de você
As long as I’m working, baby / Enquanto eu estiver trabalhando, baby
And paying all the bills / E pagando as contas
I don’t want no mouth from you / Não quero ouvir palavra sua
About the way I’m supposed to live / Sobre como eu deveria viver
You must be crazy, woman / Você deve estar louca, mulher
You just gotta be out of your mind / Deve estar for a de si
Now that you’ve got me / Agora que você me tem
You act like / Age como se
You’re ashamed / Sentisse vergonha
You don’t act like any woman / Não age como uma mulher normal
You’re just using my name / Só está usando meu nome
I tell you I’m gonna handle all the money / Eu lhe digo que vou cuidar de todo o dinheiro
And I don’t want no back talk / E não quero que você me afronte
‘Cause if you don’t like / Porque se você não gosta
The way I’m doing / Do que eu faço
Just pick up your things and walk / Pegue suas coisas e saia
You gotta be crazy, baby / Você deve estar louca, baby
You must be out of your mind / Deve estar fora de si
As long as I’m footing the bills / Enquanto eu estiver cobrindo as contas
I’m paying to the cost / Eu banco o custo
To be the boss / De ser chefe
Se tomarmos as canções brasileiras, notamos que as mulheres tampouco estão satisfeitas com seus homens. Em É o que ele quer, uma composição de Oswaldo Santiago e Paulo Barbosa de 1938, encontramos a imagem de um sonho masculino supostamente vista pela mulher:
Boa casa e boa roupa
E comida de mulher
É o que ele quer
É o que ele quer
Uma vida de orgia
Com o dinheiro da mulher
É o que ele quer
É o que ele quer
Isso é demais
Não pode ser
Quem não trabalha
Não deve viver
Esse rapaz chega querer
Que eu mastigue
Pra ele comer
Na música popular brasileira da primeira metade do último século, as mulheres insistiam cada vez mais com os homens que eles deveriam trabalhar e ganhar dinheiro, como no samba Vai trabalhar, de 1942, de Cyro de Souza:
Isso não me convém
E não fica bem
Eu no lesco-lesco
Na beira do tanque
Pra ganhar dinheiro
E você no samba
O dia inteiro, ai
O dia inteiro, ai
O dia inteiro, ai
Você compreende
E faz que não entende
Que tudo depende de boa vontade
Pra nossa vida endireitar
Você deve cooperar
É forte e pode ajudar
Procure emprego
Deixe o samba
E vá trabalhar
Embora composta por um homem, o narrador da canção é uma mulher (que lava roupa para ganhar dinheiro). Ela se queixa do seu homem, que ao invés de trabalhar dança o samba e é sustentado pelo trabalho dela. Mas viver por meio do trabalho é difícil, como mostrado em Vida apertada, um samba de 1940 do mesmo compositor:8 8 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=k-yruButp-A.
Meu Deus, que vida apertada
Trabalho, não tenho nada
Vivo num martírio sem igual
A vida não tem encanto
Para quem padece tanto
Desse jeito eu acabo mal
Ser pobre não é defeito
Mas é infelicidade
Nem sequer tenho direito
De gozar a mocidade
Saio tarde do trabalho
Chego em casa semimorto
Pois enfrento uma estiva
Todo o dia lá no cais do porto
O sujeito da composição se mata trabalhando como estivador, mas percebe que além de não ganhar muito, ele não tem nem o direito de desfrutar da sua juventude. Um tema similar é encontrado em Será possível?, de Rubens Campos e Henricão, de 1941:
Ai, ai, ai… já estou cansado
De querer me controlar
O meu dinheiro nunca deu
Pra outra coisa
É pra comer mal e vestir
Pagar o barraco e olhe lá
Eu já ando desanimado
Que desse jeito
Eu sei que vou me acabar
Trabalhei o ano inteiro
Pra ver se endireitava
Eu fiz tanta economia
Até em casa cozinhava sem gordura
Pra viajar de bonde esperava o
Caradura
Um tema recorrente na época era o interesse da mulher pelo dinheiro e a pressão que ela exercia sobre o homem para obtê-lo. A resposta invariável do homem é que ele vai conseguir algum, mas que isso é secundário perto do afeto que ele tem para oferecer. Isso fica claro em Dinheiro não há, de Benedito Lacerda e H. Alvarenga, gravado em 1932:9 9 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=nB0_tvcAxe0.
Lá vem ela chorando
O que ela quer?
Pancada não é
Já sei
Mulher da orgia
Quando começa a chorar
Quer dinheiro
Dinheiro não há
Não há
Carinho eu tenho demais
Para vender e dar
Pancada não há de faltar
Dinheiro, isto não
Eu não dou à mulher
Mas prometo na terra
O céu e as estrelas
Se ela quiser
Mas dinheiro não há
A mulher (nesse caso, da orgia) é vista como sempre querendo dinheiro. A música afirma a escassez de dinheiro e a abundância de amor que pode tomar a forma até mesmo de agressão física, como em outras canções da época. Nessas canções, as mulheres se queixam que seus homens não estariam desempenhando seu papel básico na sociedade: o de provedores. O melhor que os homens podem dizer é que, embora incapazes de oferecer dinheiro, eles têm muito amor a dar.
Uma das poucas “soluções” à mão para esses homens era sonhar que um dia se tornariam ricos de repente, como em If I had a million dollars (letra de Johnny Mercer, música de Matt Mallneck, direitos autorais de 1934:10 10 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=0yJ4MD_1W_E.
Castles with their thrones / Castelos com seus tronos
Ships up on the sea / Navios ao mar
Gold and precious stones / Ouro e pedras preciosas
All belong to me / Tudo me pertence
Foolish though it seems / Embora pareça tolice
Ev’ry word is true / Cada palavra é verdadeira
Though they’re only / Embora eles sejam meus
Mine in dreams / Apenas nos sonhos
My dreams belong to you / Meus sonhos pertencem a você
If I had a million dollars / Se eu tivesse um milhão de dólares
I know just what I would do / Sei exatamente o que eu faria
I’d tie a string around the world / Eu amarraria uma fita em volta do mundo
And bring all of it to you / E traria ele todo para você
Those little things you pray for / Aquelas pequenas coisas pelas quais você ora
Whatever they may be / Quaisquer que fossem
I’d have enough to pay for them all. / Eu teria o suficiente para pagar por todas elas
If I spent the million dollars / Se eu gastasse o milhão de dólares
I know I would never care / Eu sei que não ligaria
Because as long as you were mine / Porque contanto que você fosse minha
I’d still be a millionaire / Eu seria ainda milionário
That’s why I’m always dreaming / É por isso que eu estou sempre sonhando
Dreaming of what I’d do / Sonhando com o que eu faria
If I had a million dollars and you / Se tivesse um milhão de dólares e você
Em Acertei no milhar, um samba escrito por Wilson Batista e Geraldo Pereira, gravado em 1940,11 11 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=2eOpqjyjX6I. tirar a sorte grande representa um ideal de salvação:
Etelvina, minha filha!
Jorginho? Que há, Jorginho?
Acertei no milhar
Ganhei 500 contos
Não vou mais trabalhar
E me dê toda roupa velha aos pobres
E a mobília podemos quebrar
Isso é pra já
Passe pra cá
Etelvina
Vai ter outra lua de mel
Você vai ser madame
Vai morar num grande hotel
Eu vou comprar um nome não sei onde
De marquês, Dom Jorge de Veiga
De Visconde
Um professor de francês, mon amour
Eu vou trocar seu nome
Para Madame Pompadour
Até que enfim agora eu sou feliz
Vou percorrer Europa toda até Paris
E os nossos filhos, hein?
Oh, que inferno!
Eu vou pô-los num colégio interno
Me telefone pro Mané do armazém
Porque não quero ficar
Devendo nada a ninguém
Eu vou comprar um avião azul
Pra percorrer a América do Sul
Aí de repente, mas de repente
Etelvina me chamou
Está na hora do batente
Etelvina me acordou
Foi um sonho, minha gente
O pano de fundo da canção é a prontidão (a escassez de dinheiro) e as dificuldades de quem não tem trabalho, tem dívidas a pagar, etc. A saída se dá no mundo dos sonhos. O narrador sonha que ganhou uma bolada de dinheiro no jogo e rapidamente declara que não vai mais trabalhar. Um mundo de fantasias se segue, como uma nova lua de mel, viagens internacionais, viver num hotel, filhos num colégio interno, mobília nova, saldar as dívidas, etc. De trabalhador, o narrador sobe a escada social para se tornar um membro da burguesia, mas um homem nobre. Tudo isso será propiciado pelo dinheiro. Mas muito dinheiro só é possível acertando no milhar, e, como ele revela no final, foi tudo um sonho. A mulher é o objeto dessa fantasia: é a ela que o sonho vai ser contado, é ela que se torna uma madame, e é também ela que o chamará de volta à realidade – ou seja, ao trabalho. A aversão ao batente que caracteriza o malandro perpassa toda a composição.
Um tema semelhante aparece em Saquinho de papel, de Cyro Monteiro e Lilian Bastos:12 12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=MK9GRnpSqqs.
Se a vida fosse como a gente queria
Ah que bom seria
Que bom seria
A gente só cantava
De noite e de dia
Ninguém trabalhava
Só gastava
Numa casa grande a gente morava
A gente comia, dormia e sonhava
E a felicidade com a gente ficava
E todas as noites no terreiro
Tinha samba firme de pandeiro
Quem tinha viola tocava
Quem era de cantar cantava
E a felicidade com a gente ficava
E todo o fim de mês
Um saquinho de dinheiro no terreiro
Pra gente pagar o que gastou
Pagar comida, pagar bebida
Pagar a roupa que vestiu
E o aluguel
Esse dinheirinho viria todinho lá do céu
Ah, que sonho bom
Como é bom sonhar
Ah, se eu pudesse jamais
Desse sonho acordar
Big rock candy mountain, de Harry Kirby McClintock, foi composta em 1928,13 13 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ovKk_kPmAk4. mesmo ano em que Sinhô gravou Que vale a nota sem o carinho da mulher. Ela canta sobre uma “terra que é bonita e brilhante/ A esmola cresce em arbustos/ E você dorme a noite toda”. Não apenas o dinheiro cresce em arbustos, mas esta é uma terra “onde se dorme o dia todo/ Onde se enforca o idiota/ Que inventou o trabalho”. É interessante notar que em nenhum momento a palavra dinheiro é pronunciada nessa música.
Logo depois que a canção foi composta, ocorreu a quebra de Wall Street. A Grande Depressão se fez sentir na música. O dinheiro, ou a falta dele, aparece em diversas canções do período. O clássico Brother, can you spare a dime? (letra de E. Y. Harburg, música de Jay Gorney, direitos autorais de 1932),14 14 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4F4yT0KAMyo. é um exemplo. A expressão “irmão, pode me dar um trocado?” é não apenas uma referência direta ao dinheiro, mas também uma admissão de que é difícil consegui-lo numa terra a qual prometeu que qualquer um poderia se tornar rico se trabalhasse. The gold diggers’ song (We’re in money) (letra de Al Dubin, música de Harry Warren, direitos autorais de 1933 renovados)15 15 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=UJOjTNuuEVw. expressa a esperança de que os tempos sombrios da Depressão tivessem chegado ao fim e faz referência direta ao dinheiro já no subtítulo:
Gone are my blues / Minha tristeza se foi
And gone are my tears / E também minhas lágrimas
I’ve got good news / Tenho boas notícias
To shout in your ears / Para gritar nos seus ouvidos
The silver dollar / O dólar prateado
Has returned to the fold / Voltou
With silver you / Com a prata você
Can turn your dreams to gold / Pode transformar seus sonhos em ouro
We’re in the money / Estamos com dinheiro
We’ve got lot of / Temos muito
What it takes / Do que é preciso
To get along! / Para nos darmos bem
We’re in the money / Estamos com dinheiro
The skies are sunny / O céu está ensolarado
Old man depression / Depressão do homem velho
You are through / Você está no fim
You done us wrong! / Você nos prejudicou
We never see a headline / Não vimos nenhuma manchete
‘bout a breadline today / Sobre filas para ganhar pão hoje
And when we see the landlord / E quando vemos o proprietário
We can look that / Podemos olhar para
Guy right in the eye / Esse cara bem nos olhos
We’re in the money / Estamos com dinheiro
Come on, my honey / Vamos lá, querida
Let’s spend it / Vamos gastá-lo
Lend it / Emprestá-lo
Send it rolling along! / Despachá-lo
A canção termina com a mensagem de que o dinheiro deve circular para que se reproduza, devendo ser, portanto, gasto ou emprestado.
With plenty of money and you (Gold diggers’ lullaby), escrita para o musical Gold diggers de 1937,16 16 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Xiz8OgDQ9oE. também lida com a questão do amor e do dinheiro:
I have never envied folks with money / Nunca invejei pessoas com dinheiro
Millionaires don’t get along so well / Milionários não se dão tão bem
I have you, but haven’t any money / Tenho você, mas não tenho dinheiro
Still the combination would be swell / Mas essa combinação seria legal
Oh, baby, what I couldn’t do-oo-oo / Oh baby, o que eu não faria
With plenty of money and you-oo-oo / Com muito dinheiro e você
In spite of the worry that money brings / Apesar das preocupações que o dinheiro traz
Just a little “filthy lucre” buys a lot of things / Só um pouco do “vil metal” compra muitas coisas
And I could take you to places you’d like to go / E eu poderia te levar a lugares que você quisesse ir
But outside of that, I’ve no use for dough / Mas fora isso, não preciso de grana
It’s the root of all evil / É a raiz de todo mal
Of strife and upheaval / Da discórdia e da revolta
But I’m certain, honey / Mas tenho certeza, meu bem
That life could be sunny / Que a vida seria ensolarada
With plenty of money and you / Com muito dinheiro e você
A canção faz referência direta à ideia do Novo Testamento do dinheiro como “vil metal”. Mas ela o faz de modo engenhoso. Não nega que o dinheiro é a “raiz de todo mal” (1 Timóteo, 6:10), mas tudo o que o narrador quer é ter muito dele para gozar da afeição da mulher que ele ama. Não fosse por isso, pensa ele, o dinheiro não teria valor. Isso significa que o amor seria capaz de cancelar os aspectos negativos associados ao dinheiro.
O dilema amor versus dinheiro é uma constante durante esse período. Como na década de 1920, muitas canções da década de 1930 enfatizam que o amor é muito mais importante que o dinheiro e que este não traz felicidade. É melhor ser pobre e feliz do que rico e infeliz. É essa a ideia do samba de 1940 de Benedito Lacerda e Herivelto Martins, E o vento levou,17 17 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CgQHoBJlmM4. nome de um conhecido filme norte-americano:
Onde está o dinheiro?
O vento levou…
Suas joias, sua casa?
O vento levou…
E a mulher que você tinha?
Bateu asas e voou…
Tudo que eu possuía
O vento levou…
Já fui rico, já fui nobre
Fui grã-fino e gastador
Todos me cumprimentavam assim:
Olá, seu doutor
Até esse apelido o ventou levou…
Quem já foi um milionário
Quem já teve, hoje não tem
Onde eu passo
Todos gritam assim:
Olá, João-ninguém
Qualquer dia a ventania
Me leva também
A música mostra o quão bajulado é um homem rico e como ele acaba abandonado quando perde sua fortuna. Ser rico sempre envolve o risco de perda e sofrimento. Mas os compositores tornam-se cientes da importância do dinheiro na construção de uma relação emocional positiva. Romance without finance (Charlie Parker, 1944)18 18 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=_BnFRd11sMk. fala exatamente dessa questão:
Romance without finance is nuisance / Romance sem finanças é chateação
Baby, you know I need me some gold / Baby, você sabe como preciso de algum ouro
Romance without finance just don’t make sense / Romance sem finanças não faz sentido
Mama, mama, please give up that gold / Mama, mama, por favor desista desse ouro
You so great and you so fine / Você é tão incrível e bela
You ain’t got no money you can’t be mine / Se não tem dinheiro não pode ser minha
It ain’t no joke to be stone broke / Não tem graça estar liso
Baby, you know I’d lie when I say / Baby, você sabe que eu mentiria se dissesse
Romance without finance is a nuisance / Romance sem finanças é chateação
Please please baby give me some gold / Por favor, baby, me dê algum ouro
Romance without finance is nuisance / Romance sem finanças é chateação
Oh baby, I must have me some gold / Oh baby, preciso ter algum ouro
Romance without finance just don’t make sense / Romance sem finanças não faz sentido
Oh baby, mama, mama, give up that gold / Oh baby, mama, me dê aquele ouro
You so great and you so fine / Você é tão incrível e bela
You ain’t got no money you can’t be mine / Se não tem dinheiro não pode ser minha
It ain’t no joke to be stone broke / Não tem graça estar liso
Baby, you know I’d lie when I say / Baby, você sabe que eu mentiria se dissesse
Romance without finance is a nuisance / Romance sem finanças é chateação
Temos aqui uma mensagem clara de que é impossível desenvolver uma relação amorosa satisfatória na ausência de uma base financeira. Em If you’ve got the money, I’ve got the time (Lefty Frizzell e Jim Beck, 1950),19 19 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=f2x0fMszj58. essa ideia é elaborada de modo ainda mais direto: “Se você tem dinheiro, eu tenho tempo/ Mas se seu dinheiro acabar meu tempo acaba/ Pois você sem dinheiro, meu bem, eu fico sem tempo” (If you got the money, I’ve got the time/ But if you run short of money I’ll run short of time/ Cause you with no more money honey I’ve no more time).
Busted (Ray Charles), canção composta em 1963,20 20 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=VLWoiC-3b60. trata da realidade material:
My bills are all due and the baby needs shoes and I’m busted / Minhas contas estão todas vencidas, o bebê precisa de sapatos, e eu estou quebrado
Cotton is down to a quarter a pound, but I’m busted / O algodão caiu para vinte e cinco centavos a libra, mas estou quebrado
I got a cow that won’t dry and a hen that won’t lay / Tenho uma vaca que não dá leite e uma galinha que não põe ovos
A big stack of bills that gets bigger each day / Uma pilha de contas, que aumenta a cada dia
The county’s gonna haul my belongings away cause I’m busted / O condado vai levar meus pertences, porque estou quebrado
I went to my brother to ask for a loan cause I was busted / Fui ao meu irmão pedir um empréstimo porque estou quebrado
I hate to beg like a dog with his bone, but I’m busted / Odeio mendigar como um cão sem osso, mas estou quebrado
My brother said there ain’t a thing I can do / Meu irmão disse que não há nada que possa fazer
My wife and my kids are all down with the flu / Minha mulher e filhos estão todos doentes
And I was just thinking about calling on you ‘cause I’m busted / E eu estava pensando em te pedir, porque estou quebrado
Well, I am no thief, but a man can go wrong when he’s busted / Eu não sou ladrão, mas um homem pode sair da linha quando está quebrado
The food that we canned last summer is gone and I’m busted / A comida que enlatamos no verão passado já se foi, e eu estou quebrado
The fields are all bare and the cotton won’t grow / Os campos estão nus, e o algodão não cresce
Me and my family got to pack up and go / Minha família e eu temos que fazer as malas e partir
But I’ll make a living, just where I don’t know cause I’m busted / Mas vou ter um ganha-pão, só não sei onde porque estou quebrado
I’m broke, no bread, I mean like nothing / Estou quebrado, sem pão, nada mesmo
Embora a canção não esconda a peleja pela qual passa o narrador, ela não menciona a palavra dinheiro. Uma situação bem semelhante pode ser encontrada em Pode guardar as panelas, samba de 1979 de Paulinho da Viola:21 21 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zoZqHMzfsl8.
Você sabe que a maré
Não está moleza não
E quem não fica dormindo de touca
Já sabe da situação
Eu sei que dói no coração
Falar do jeito que falei
Dizer que o pior aconteceu
Pode guardar as panelas
Que hoje o dinheiro não deu
(você sabe que a maré)
Dei pinote adoidado
Pedindo empréstimo e ninguém emprestou
Fui no seu Malaquias
Querendo fiado, mas ele negou
Meu ordenado, apertado, coitado, engraçado
Desapareceu
Fui apelar pro cavalo, joguei na cabeça
Mas ele não deu
(você sabe que a maré)
Para encher nossa panela, comadre
Eu não sei como vai ser
Já corri pra todo lado
Fiz aquilo que deu pra fazer
Esperar por um milagre
Pra ver se resolve a situação
Minha fé já balançou
Eu não quero sofrer outra decepção
(você sabe que a maré)
A canção, que traz uma mudança radical com relação à questão do dinheiro, expressa a perda de ilusões passadas. O refrão se repete a todo o tempo, como uma pintura de pano de fundo, a situação econômica das classes populares e suas dificuldades. Ainda que reconheça o fato de isso poder ferir os sentimentos de alguém, o narrador prefere ser honesto e direto. O impacto é forte, pois o dinheiro é associado diretamente à comida. Ao contrário de sambas de outras épocas, nos quais a palavra “dinheiro” tende a ser evitada, aqui ele é citado de modo explícito. O narrador é um trabalhador assalariado cuja renda não é suficiente para cobrir os gastos mensais. Ele é assim obrigado a buscar formas alternativas de conseguir dinheiro. Mas os métodos utilizados em outras épocas (tomar emprestado, comprar fiado, jogar) não funcionam mais, e ele não acredita mais em milagres – daí sua profunda desilusão. O próprio título do samba, Pode guardar as panelas, sugere um recuo, uma ausência de solução no horizonte.
V
A música popular é um lócus-chave de comparação entre sociedades. Ela expressa mudanças ocorridas em diferentes sociedades e permite compreender como elas são interpretadas e representadas por seus membros. É interessante comparar os imaginários sociais da música popular no Brasil e nos Estados Unidos porque, apesar de serem países bastante diferentes, também têm muito em comum. As letras das músicas populares representam um importante espaço social para compreender as transformações pelas quais essas duas sociedades passaram durante o século XX, em especial a construção da nação, urbanização e industrialização. Durante esse período, as cidades foram palco de um rearranjo das relações de trabalho, de disseminação do trabalho assalariado, de redefinição dos papéis de gênero e de novas formas de organização familiar. As relações tornaram-se mais monetarizadas, e o dinheiro (ou sua falta) tornou-se uma realidade crucial da vida quotidiana. Essas mudanças são expressas de modo rico nas letras da música popular.
Há um paralelismo entre as músicas brasileiras e norte-americanas analisadas neste artigo. As canções da década de 1920 representam um período no qual as pessoas ainda podiam sonhar em sobreviver sem trabalhar e imaginar uma sociedade na qual a ociosidade e o amor fossem possíveis e preferíveis ao trabalho assalariado e à necessidade de dinheiro. As músicas da segunda metade do século passado, por outro lado, são muito mais “realistas”. Os narradores são pobres, em sua maioria de descendência africana, e falam da dificuldade de ganhar dinheiro por meio do trabalho assalariado. Diferente das letras dos anos 1920, nas quais a palavra dinheiro é frequentemente evitada, aqui ela é mencionada explicitamente. As canções são testemunhas do fim de uma era. O período começa com os compositores afirmando a desimportância do dinheiro adquirido por meio do trabalho assalariado e o sonho de obtê-lo de forma mágica e termina com o reconhecimento de sua importância e das enormes dificuldades para obtê-lo. O dinheiro torna-se cada vez mais parte da realidade quotidiana. Como afirma o título de uma das canções do musical da Broadway Cabaret, de 1966, “o dinheiro faz o mundo girar” (Money makes the world go round).22 22 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rkRIbUT6u7Q.
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- 11. SEVERIANO, J. [Texto na contracapa do disco]. In: NOSSO SINHÔ DO SAMBA e outras bossas. Rio de Janeiro: Funarte, 1988. 1 LP.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2016
Histórico
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Recebido
30 Abr 2015 -
Aceito
05 Out 2015