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Entre ilhas fabulosas: etnografia, autismo e demência em relação

Within fabulous islands: ethnography, autism and dementia in relation

Resumo

A partir de um conjunto heterogêneo de materiais (relatos autobiográficos, textos e reflexões produzidas por autistas e pessoas com demência, cenas e conversas em pesquisa de campo, imagens), este artigo mapeia relações entre formas expressivas dos modos de ver, mostrar e escrever processos neurológicos-mentais-cognitivos demenciais e neurodivergentes enquanto experiências que abrem possibilidades para pensar linguagem, pessoa, corpo, mente, mundo. Os materiais que transitam do pré-verbal ao verbal evidenciam tensões do fazer e da escrita etnográficos. Falas truncadas, palavras embaralhadas, desaparecidas, palavras-imagens, movimentos corporais em silêncio trazem desafios metodológicos, epistemológicos, ontológicos e éticos. Destacamos momentos que autistas e pessoas com demência nos falam de um mundo-outro e exploramos conceitualmente a experiência do entre para ficarmos no “limiar do entendimento”, traçar “linhas de fuga” ou “de errância” e aí transbordar o autismo e a demência da biomedicina para outras direções: da patologia ao páthos, do sintoma à experiência e a outro mundo possível.

Palavras-chave:
etnografia; autismo; demência; linguagem

Abstract

From a heterogeneous set of materials (autobiographical accounts, texts and reflections produced by autistics and people with dementia, scenes and conversations in field research, images), this article maps relations between expressive forms of the ways of seeing, showing and writing neurological-mental-cognitive dementia and neurodivergent processes as experiences that open possibilities for thinking language, person, body, mind, world. The materials that transition from pre-verbal to verbal highlight tensions of ethnographic doing and writing. Truncated speech, scrambled and missing words, word-images, silent body movements bring methodological, epistemological, ontological, and ethical challenges. We highlight moments when autistics and people with dementia tell us about a world-other and we conceptually explore the experience of the in-between to stay at the “threshold of understanding”. We trace “lines of escape” or “of wandering” and then overflow autism and dementia from biomedicine to other directions: from pathology to pathos, from symptom to experience and to another possible world.

Keywords:
ethnography; autism; dementia; language

[…] nosso mundo, ao contrário do que se supõe, é parecido com sistema de antenas de segurança nascido de ilhas fabulosas.

Birger Sellin

“A natureza é vodka”, suspirou Maria ao observar o canto de um pássaro. Enquanto aguardava a consulta médica, João viu peixes nadarem entre os pés. Em um passeio no sítio, disse que “o rio tá cabeçudo”. Ao avistar um trator, máquina que operou boa parte da vida, abriu um sorriso, apalpou-o, checou cada pedaço, e concluiu: “O trator anda que nem casa.” A embalagem brilhante do biscoito, na grama, era uma borboleta. A semente de uma árvore, no chão, era “a beira daquele lá”, apontando para a sarjeta.

Olga guardou o ferro de passar na geladeira, colocou o vestido ao avesso, não encontrou o banheiro em sua própria casa e adoçou o café com o pote inteiro de açúcar. Guilherme vestiu a camisa como se fosse calça. Mudou o canal da televisão com um chinelo de dedo, deitou-a para as pessoas não caírem e, numa cena de pessoas brigando, começou a xingar, pegou um pedaço de pau e só não bateu na tela porque foi impedido pela esposa.

Célia agarrou o cobertor, aflita, porque o macaco da novela ia invadir a sala. Rosa usou cal para fazer biscoito de polvilho e detergente para cozinhar. José comeu ração de cachorro, entrou vestido para tomar banho, tomou água do vaso sanitário e confundiu a lixeira com a máquina de lavar. Joe fechou a geladeira com força porque os alimentos queriam atacá-lo. Jussara conversou com o reflexo no espelho, convidando-o para passear.

Augusto experimentou o gosto da grade do portão. Heitor encostou o ouvido perto da dobradiça da porta e ouviu, profundamente, o rangido do movimento de abrir e fechar que ele provocava. Carlos entoava uma melodia que criava uma espécie de tecido sonoro de fundo, preenchendo todo o espaço. A melodia contínua só se quebrava com outro som agudo que se ouvia aqui e ali.

Mia interagiu, a maior parte do tempo, com objetos como papéis, brinquedos e as câmeras instaladas para os registros de campo. Produzia sonoridades que carregavam entonações conhecidas para perguntas, indignações, atenção compartilhada, mas não traziam nenhum léxico reconhecível a uma primeira e, talvez desatenta, escuta. Luiza repetiu para sua irmã Clara que ela, ao sentar-se, derrubou uma pipoca que estava na poltrona. A narrativa de Luiza carregava uma sintaxe-gesto: ela enunciava tsau e fazia um gesto de lançar a mão no ar, depois enunciava pam, seguido do gesto de bater a mão no ar. Clara e Luiza riram da situação e seguiram a conversa em suas línguas facilmente intercompreensíveis.

Essas foram algumas frases e cenas que encontramos no campo com pessoas em processo demencial e com autistas. Como vê-las? O que fazer com elas?1 1 Aqui vale descrever brevemente o campo e as pesquisas de cada autora. Daniela Feriani é antropóloga e estuda a composição da demência como diagnóstico (Feriani, 2017b), experiência e estética (Feriani, 2019) - entendida, aqui, como pensamento sensível, intuitivo, imagético -, com atenção especial para questões como memória (Feriani, 2017c), noção de pessoa (Feriani, 2020) e linguagem. Em sua pesquisa de doutorado (Feriani, 2017a), frequentou as reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) para cuidadores (sobretudo familiares, como cônjuges e filhos), acompanhou as consultas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de um hospital universitário e fez visitas domiciliares às famílias. A pesquisa se desdobrou em um projeto de pós-doutorado (2017-2020), no qual analisou autobiografias e blogs escritos por pessoas com doença de Alzheimer e recolheu imagens sobre o tema, como ensaios fotográficos, vídeos, metáforas, gestos, bordados, além de produzir registros audiovisuais. Atualmente, realiza um segundo pós-doutorado, ampliando a investigação das formas expressivas em torno dos processos demenciais, como romances, filmes, peças de teatro, fotografias, vídeos, etc. As pessoas com as quais conviveu ao longo das pesquisas são os próprios enfermos e seus cuidadores-familiares, moradores do estado de São Paulo e provenientes, sobretudo, de classes sociais menos favorecidas. Neste artigo, a autora traz uma parte dos materiais recolhidos ao longo das pesquisas, principalmente conversas e cenas com as pessoas em processo demencial, presenciadas em campo, e a produção autoral das mesmas. Fernanda Cruz é linguista e seus trabalhos de pesquisa estão concentrados na descrição das interações cotidianas que acontecem com sujeitos autistas e com doença de Alzheimer. Suas pesquisas se realizam por meio de: a) registros audiovisuais de interações cotidianas das quais participam sujeitos autistas, realizadas em ambientes como casas, escolas, instituições clínico-terapêuticas (Cruz, 2017b, 2018b) com o propósito de descrever como tais interações se organizam e como se (des)coordenam distintas sociabilidades; c) registros audiovisuais de interações das quais participam sujeitos com Alzheimer (Cruz, 2010, 2015, 2017c); c) processos de criação e consultoria artística envolvendo as relações sem palavras (Cruz, 2017a, 2018a). Os materiais presentes neste artigo derivam então desse campo de observações e interações com sujeitos autistas, profissionais de saúde e pais de sujeitos autistas.

Metodologicamente, assumimos um risco. As pistas do que propõem as teorias sobre self, mente, humano, demência, autismo, linguagem foram temporariamente suspensas para experimentarmos algo menos claro e mais fabuloso. Partimos de algumas pistas de experiências de campo que consideramos similares. Como materiais, debruçamo-nos sobre um conjunto heterogêneo deles: relatos autobiográficos, textos e reflexões teóricas produzidas por autistas e pessoas com demência, cenas e conversas em pesquisa de campo, imagens. Em seguida, mapeamos as relações entre formas expressivas dos modos de ver, mostrar, experimentar e escrever processos neurológicos-mentais-cognitivos enquanto fenômenos que deslocam, torcem palavras e coisas, abrindo outras possibilidades para pensar linguagem, corpo, pessoa, mente e mundo.

Como território, nos situamos na esteira dos estudos antropológicos da deficiência, mais particularmente da antropologia no Brasil que se debruça sobre essa temática percorrendo as narrativas e experiências das pessoas com deficiência, dos familiares e profissionais de assistência, cruzadas com artefatos textuais, como normativas e leis que definem o que é deficiência, redes e serviços de assistência, estabelecimento e luta por políticas públicas voltadas para os direitos daquelas pessoas, passando pelas disputas entre paradigmas e campos do saber. Desses estudos, vale mencionar os trabalhos em torno do tema do autismo, como López e Sarti (2013)LÓPEZ, R. M. M.; SARTI, C. Eles vão ficando mais próximos do normal… considerações sobre normalização na assistência ao autismo infantil. Ideias, Campinas, n. 6, nova série, p. 77-98, 1. sem. 2013. DOI: https://doi.org/10.20396/ideias.v4i1.8649399.
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; Nunes (2014)NUNES, F. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o campo da saúde. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.; Aydos (2016)AYDOS, V. Agência e subjetivação na gestão de pessoas com deficiência: a inclusão no mercado de trabalho de um jovem diagnosticado com autismo. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 46, p. 329-358, jul./dez. 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832016000200012.
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; Rios (2017)RIOS, C. “Nada sobre nós, sem nós”? O corpo na construção do autista como sujeito social e político. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 25, p. 212-230, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.11.a.
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; Rios e Costa Andrada (2015)RIOS, C.; COSTA ANDRADA, B. The changing face of autism in Brazil. Culture, Medicine and Psychiatry, [s. l.], v. 39, n. 2, p. 213-234, Apr. 2015. DOI: https://doi.org/10.1007/s11013-015-9448-5.
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, para citar alguns, e, no tema das demências, Engel (2017aENGEL, C. Corpos e experiências com demências: seguindo emaranhados de subjetividades e substâncias. Anuário Antropológico, Brasília, v. 42, n. 2, p. 301-326, 2017a., 2017bENGEL, C. Doença de Alzheimer: o cuidado como potencial partilha de sofrimento. Estudos Interdisciplinares sobre Envelhecimento, Porto Alegre, v. 22, n. 3, p. 9-27, 2017b., 2020ENGEL, C. Partilha e cuidado das demências: entre interações medicamentosas e rotinas. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2020.), Leibing (1999LEIBING, A. Olhando para trás: os dois nascimentos da doença de Alzheimer e a senilidade no Brasil. Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, Porto Alegre, v. 1, p. 37-56, 1999., 2006LEIBING, A. Divided gazes: Alzheimer’s disease, the person within, and death in life. In: COHEN, L.; LEIBING, A. (ed.). Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. London: Rutgers University Press, 2006. p. 240-268., 2009LEIBING, A. From the periphery to the center: treating noncognitive, especially behavioral and psychological symptoms of dementia. In: BALLENGER, J. et al. Treating dementia: do we have a pill for it? Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009. p. 74-97.), Vianna (2013)VIANNA, L. Fragmentos de pessoa e a vida em demência: etnografia dos processos demenciais em torno da Doença de Alzheimer. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013..

Com as pistas em mão e situadas no crescente território dos estudos antropológicos sobre autismo e demência, percorremos tais situações tanto em um sentido literal quanto metafórico, em que categorias médicas, filosóficas, políticas e sociais se sobrepõem. Atentamo-nos para o que identificamos como experiências de entre mundos, que nos inscreve em uma permeabilidade como modo de engajamento no mundo e “de profunda vulnerabilidade existencial à ordem das coisas à nossa volta” (Fein, 2019FEIN, E. Autismo como um modo de engajamento. In: RIOS, C.; FEIN, E. (org.). Autismo em tradução: uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. p. 167-194., p. 168). Nesse lugar, autistas e pessoas com demência nos mostram o que entendem e fazem como linguagem, corpo, doença, pessoa, mente, mundo. O diálogo entre tais neuroemergências (Pinar; So, 2021PINAR; SO. Dreampunk: escritos trans(eco)futuristas de Queer Nature. [S. l.]: Fecundações Cruzadas, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/50841659/Dreampunk_escritos_trans_eco_futuristas . Acesso em: 10 jul. 2022.
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) permite vislumbrar aproximações e distanciamentos; analogias e contrapontos “bons para pensar”, que fazem aparecer correspondências inusitadas para ver o que normalmente não se vê diante de tais experiências.

A nossa sintaxe será a primeira a encontrar alguma diferença e, portanto, abrir nossas possibilidades de paralelo. Se diz que alguém é autista, mas se diz que alguém tem doença de Alzheimer. Também se diz que alguém tem autismo, mas essa sintaxe disputa um campo discursivo: não se tem autismo. Reivindica-se o cérebro, uma realidade neurológica para o autismo. Paradoxalmente, essa biologização ou neurologização “leva a um distanciamento subjetivo da doença, que é tratada mais ou menos como qualquer doença física” (Ortega, 2008ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008., p. 486).

Nos processos demenciais, o cérebro também é acionado, no discurso biomédico, tanto para definir a doença como uma patologia que afeta tal órgão quanto para embasar a noção de pessoa enquanto indivíduo autônomo, coerente e independente. Por isso a ideia recorrente de que as demências, ao afetarem o cérebro - ou os domínios cognitivos -, indicariam “dissolução do self”,2 2 “Dissolução do self” é uma expressão usada pelos médicos para indicar “uma perda da noção de realidade”, um “sintoma psicótico”, como não se reconhecer ao se olhar no espelho, indicando um estágio avançado da demência. Feriani (2020) problematiza tal expressão ao mostrar como ela se fundamenta em uma determinada noção de pessoa. “não pessoa”, perda da identidade, deixando de ser quem ela era/é. “Não é a pessoa, é a doença” foi uma frase dita com frequência pelos médicos aos cuidadores-familiares diante das mudanças comportamentais (ficar agressivo, não querer tomar banho, fazer as necessidades na calça ou no chão, etc.).

Já em uma perspectiva neuroemergente, a própria noção de pessoa é mobilizada como categoria a ser redefinida. Se, no autismo, a reivindicação de um cérebro diferente é incorporada enquanto identidade, nas demências a alteração cerebral passa a ser tida como patológica e, com isso, um obstáculo à identidade. Talvez isso explique as diferentes abordagens: da neurodiversidade, um movimento organizado principalmente por autistas de alto funcionamento que toma a variação neurológica como sujeita à mesma dinâmica social que outras formas de diversidade, como raça, gênero, etnia, orientação sexual, apostando na radicalidade da experiência de outra organização mental e cognitiva, sem buscar ajustes compensatórios com um possível self ou identidade já delineada;3 3 Nick Walker (2021) recupera a história do desenvolvimento do conceito de neurodiversidade (Judy Singer, 2017) que se desdobra em outros conceitos como neurominoria (Nick Walker, 2022), neurodivergente, neurocosmopolita e neuroqueer. e do personhood, nos processos demenciais, em que pesquisas centradas na valorização da experiência subjetiva dos enfermos, no ambiente interacional e sociocultural, buscam, a despeito das alterações cognitivas e comportamentais da doença, resgatar/manter um self, servindo, assim, como contraponto ao discurso biomédico.4 4 Ainda que o movimento personhood seja de grande importância para a problematização do discurso biomédico da “dissolução do self”, a abordagem que pretendemos trazer neste artigo vai em outra direção: ao invés de tentarmos resgatar/manter um self, mostrando o que permanece, apesar das perdas e transformações da doença, buscamos ver como essas experiências deslocam/complexificam pessoa, mundo, linguagem, corpo, mente. Para uma revisão crítica da abordagem do personhood, ver O’Connor et al. (2007), Halewood (2016) e Leibing (2018).

Vale ressaltar as diferentes trajetórias dessas experiências: enquanto as demências são diagnosticadas na fase adulta ou na velhice, causando uma ruptura biográfica de uma vida antes e depois da demência, o autismo pode ser percebido na infância. Nesses casos, o antes e o depois não se referem a uma vida prévia ou posterior à condição, mas a um antes e depois do diagnóstico, em que os pais podem ser confrontados com as projeções futuras da vida social da criança, com mais ou menos dependência de suporte. Mas o diagnóstico de autismo pode ter múltiplas significações, incluindo o alívio relatado por autistas que o receberam na fase adulta, uma vez que daria um nome, uma legibilidade à percepção de ser diferente.

Para além do descrito acima, há muitas outras diferenças importantes entre autismo e demência. A despeito delas, tanto autistas quanto pessoas em processo demencial nos falam de um mundo-outro, com suas experiências com linguagem, corpo, mente e mundo, e é nessa direção, percorrendo as confluências entre ambos, que este texto irá seguir. Com essas pessoas e a partir do que elas nos mostram, propomos fazer um exercício de ter olhos diferentes: “Ter olhos diferentes não significa ver ‘as mesmas coisas’ de ‘modos’ diferentes: significa que você não sabe o que o outro está vendo quando ele ‘diz’ que está vendo a mesma coisa que você” (Viveiros de Castro, 2011VIVEIROS DE CASTRO, E. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 54, n. 2, p. 885-917, 2011., p. 897). Não se trata de outra visão de mundo, mas de outro mundo - “Welcome to my World”, convida-nos Joe, o mundo maravilhoso da demência, tal como ele denomina, em referência ao romance de Lewis Carroll.5 5 Autor do blog Living with Alzheimer’s. Gerda Saunders chama a doença de Alzheimer de Dona Quixote, esse personagem icônico que luta com moinhos de vento.6 6 Autora do blog Gerda Saunders - Living with Dementia (ver https://www.gerdasaunders.com/).

Na autobiografia sobre a vida com demência, Richard Taylor (2007TAYLOR, R. Alzheimer’s from the inside out. Baltimore: HPP, 2007.. p. 16) descreve:

Right now, I feel as if I am sitting in my grandmother’s living room, looking at the world through her lace curtains. From time to time, a gentle wind blows the curtains and changes the patterns through which I see the world. There are large knots in the curtains and I cannot see through them.

Ou como afirma Birger Sellin (1998, p. 61 apudCosta; Grinker, 2019COSTA, J. F.; GRINKER, R. R. Autismo e relatos em primeira pessoa: o problema cognitivo. In: RIOS, C.; FEIN, E. (org.). Autismo em tradução: uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. p. 197-219., p. 215): “Quero enfatizar os absurdos autistas, mas vou interpretá-los e explicá-los às pessoas […] nosso mundo, ao contrário do que se supõe, é parecido com sistema de antenas de segurança nascido de ilhas fabulosas.”

A experiência com linguagem

A escrita é nossa ferramenta comum: uma linguista e uma antropóloga, interessadas nas experiências com linguagem, pensamento e alteridade, compartilhadas com sujeitos autistas7 7 Um pouco após termos finalizado e submetido este artigo, tivemos contato com o livro Linguagem e autismo: conversas transdisciplinares (Magnani; Ruckert, 2021) e, através dele, com o projeto “Traduzir-se: autismo em primeira pessoa na prática acadêmica”, que reúne pesquisadores autistas e não autistas que pesquisam conjuntamente a relação entre linguagem e autismo. Como apresentam seus organizadores, esse livro não seria exclusivamente uma coletânea de artigos sobre linguagem e autismo (tema central), mas ele seria também “linguagem em ação, linguagem em movimento. É uma obra cuja concepção, proposta, organização e curadoria foi realizada por pessoas autistas que, atualmente, estão inseridas e em articulação com redes de conversas da coletividade autista” (Magnani; Ruckert, 2021, p. 11). Assim, esta versão do artigo, datada, carece, de partida, da conversa com esse material, que não podia, todavia, deixar de ser mencionado, ao menos em uma nota pós-escrita. e com demência. A fala que não existe ou que sai truncada, de difícil acesso e compreensão, palavras que se embaralham e desaparecem, palavras-imagens, movimentos corporais em silêncio trazem desafios metodológicos, epistemológicos, ontológicos e éticos.

É na experiência da escrita que nos encontramos. “A escrita só funciona se ela for uma recriação imaginativa de alguns dos efeitos da própria pesquisa de campo” (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 345-405., p. 346). Este texto pretende buscar e experimentar os efeitos, afetos, alargamentos que os campos - da demência e do autismo, como da antropologia e da linguística - provocaram em nós, enquanto pesquisadoras que se permitiram hipnotizar, viver a imersão etnográfica, para acionar novamente Strathern.

Aqui nos encontramos às voltas com as palavras e os gestos de pessoas com demência e autistas e com a suspensão temporária de certas categorias teóricas. Assumimos que palavras não apenas descrevem: elas também criam mundos, multiplicam versões (Mol, 2007MOL, A. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, J.; ROQUE, R. (org.). Objetos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2007. p. 63-78.). Assim como, para as pessoas com demência e autismo, “o problema com as palavras” - e também com os silêncios, gestos e ruídos - é um problema de ver e estar no mundo, o problema de escrever, para nós enquanto pesquisadoras do tema, é um problema de ver, ouvir e dizer (Deleuze, 2011DELEUZE, G. A literatura e a vida. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-17.).

Durante décadas de convívio com crianças autistas, Fernand Deligny e colaboradores aboliram a linguagem verbal de suas interações. Tal acontecimento não advinha de um método científico ou terapêutico, mas vinha da experiência de “estar em estado de presença” a crianças autistas e de um profundo desconfiar da linguagem. Tal experiência os levaram a fazer um deslocamento do lugar de seres falantes, a se apoiar no corpo e a experimentar um estado de “para nada” altamente desestruturante para “nós”, seres linguísticos, funcionais e de sentido, como oporá́ Deligny (Toledo, 2007TOLEDO, S. A. (ed.). Fernand Deligny: oeuvres. Paris: L’Arachnéen, 2007.).

Emerge, dessa experiência sensível,

uma reflexão aguda sobre o modo de existência anônimo […] refratário a toda domesticação simbólica, […] um mundo prévio à linguagem ou ao sujeito, não no sentido de uma anterioridade cronológica, mas de uma existência regida por outra coisa que não aquilo que a linguagem supõe, carrega e implica: a vontade e o objetivo, o rendimento e o sentido. (Pelbart, 2013PELBART, P. P. O avesso do niilismo. São Paulo: N-1 Edições, 2013., p. 261).

Surge, com isso, o método do traçar. Em 1969, mapas com os deslocamentos espaciais das crianças autistas começam a ser traçados nas comunidades de convívio. Eis uma abordagem não pela palavra, ausente naquelas crianças autistas, mas através de algo primordial (Deligny, 2007DELIGNY, F. Fernand Deligny: oeuvres. Paris: L’Arachnéen, 2007.): os movimentos.

“Rabiscar no ar” é o movimento que Taussig (2011)TAUSSIG, M. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press, 2011. sugere que não percamos com/na escrita. Didi-Huberman (2018bDIDI-HUBERMAN, G. Imagens-ocasiões. São Paulo: Fotô Editorial, 2018b., p. 36) fala em “capturar em voo e logo soltar a presa (que deixa, então, de ser uma), sem decidir pela importância que este pássaro que passava aqui neste instante se reveste”. Vitória, ao contar o processo de escrita do livro sobre sua experiência autista, diz que rascunha sua vida; ela precisa de uma escrita visual para as coisas que vão acontecer.8 8 No evento Visibilidade Autista, abril de 2020, organizado pelo Laboratório de Linguagem e Cognição (LabLinC), Universidade Federal de São Paulo. É antes o corpo que escreve do que a escrita para outro - a escrita como gesto e experiência.

Em uma instituição com crianças autistas que faziam pouco uso da fala,9 9 Quando caracterizamos essas crianças como autistas que fazem pouco uso da fala, estamos nos referindo ao fato de, nos momentos que pudemos observar e estar presentes naquela instituição, a fala (ou atividade verbal) não fora acionada por aquelas crianças. Esse perfil sociointeracional e linguístico também se confirma nas fichas que contém relatos dos responsáveis e na história diagnóstica. Estima-se que cerca de 30% das crianças autistas não fazem o chamado uso funcional da fala e permanecem minimamente verbais, mesmo após receber anos de intervenções e uma série de oportunidades educacionais (Tager-Flusberg; Kasari, 2013). Do ponto de vista da definição do que seria pouco, minimamente verbal ou não verbal, alguns estudiosos do campo das pesquisas clínicas (Posar; Visconti, 2022; Tager-Flusberg; Kasari, 2013) têm apontado a necessidade de maior precisão sobre esses termos e sobre a própria caracterização linguística do que seria pouco verbal ou não verbal. Do ponto de vista das formas de se comunicar e das formas de linguagem, Mel Baggs, autista, problematiza, no documentário In my language (2007), concepções de linguagem e comunicação em voga em uma perspectiva neurotípica. Magnani e Rückert (2021, p. 10), pesquisadores da linguagem e autistas, nos advertem sobre o fato de que a linguagem autista é “um acontecimento complexo, envolve formas divergentes do padrão hegemônico de se relacionar consigo, com o outro, com os objetos, com o mundo”, problematizando também o enfoque sobre os déficits e lacunas, o que pode favorecer uma invisibilidade das formas complexas como a linguagem se apresenta no autismo. Fernanda, uma das autoras, percebeu que sua linguagem verbal era um obstáculo para ver outros modos de engajamento no mundo. Sem sucesso, no início buscou nexos, conexões, relações semânticas, ordenamentos sintáticos. Precisou aprender a não falar com as crianças, mas vê-las se mover de um lado para outro e interagir com as câmeras de vídeo; precisou abaixar-se, olhar, esquivar, aproximar e distanciar quando necessário (Cruz, 2018aCRUZ, F. M. O adeus de Augusto: as interações entre crianças autistas e a emergência de uma pesquisadora-artista em estado de presença próxima. Veredas: revista de estudos linguísticos, Juiz de Fora, v. 22, n. 1, p. 130-149, 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2018/08/Artigo_8_Veredas2018_1.pdf . Acesso em: 20 set. 2021.
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). “Precisamos nos desvencilhar, de tempos em tempos, da linguagem e estarmos mais próximos da presença do corpo”, sugere Kuniichi Uno (2012UNO, K. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: N-1 Edições, 2012., p. 70). Na pesquisa com processos demenciais, em que as palavras vão se apagando, Daniela, também autora, teve que lançar mão de outras estratégias comunicacionais, prestar atenção aos gestos: uma mão que aperta um cobertor, um dedo que aponta o objeto, a pupila que dilata quando está feliz, braços que ora se estendem ora se cruzam, olhos que se fecham, brilham, miram o chão.10 10 Tentativas de ir além da linguagem verbal resultaram em mostrar os materiais de campo de outros modos. Assim, Daniela desenvolveu um site (www.soproseassombros.com.br), com vídeos, fotografias, fotomontagens, GIFs, frases e objetos recolhidos ao longo da pesquisa. Fernanda desenvolveu uma coreografia em parceria com a artista e mãe de um autista não verbal, Deise Miranda, a partir da experiência dela com o filho e da proposta deligniana de traçar os gestos e as linhas. A pesquisa compôs o espetáculo Entre o céu e o chão, criado pelo grupo C O R P O e m T. E. I. A (Território de Encontros Intensivos Artísticos), dirigido por Lu Favoreto e exibido em novembro de 2019 no Estúdio Oito Nova Dança (São Paulo).

A relação entre Gisele Durand, uma das presenças próximas da rede de Deligny, e Janmari, um autista que viveu por 35 anos em uma das localidades da rede, possibilita modos de ver mais próximos da presença do corpo, por uma breve suspensão da linguagem verbal. Gisele propõe a Janmari traçar, oferecendo-lhe grafite e papel. As mãos de Janmari fazem círculos em linhas retas, uns após os outros, o que se tornaria o Journal de Janmari. Seu diário são traços de uma existência esquiva da linguagem verbal.

Figura 1
Fotografia de Janmari por Jacques Lin, extraída do livro Journal de Janmari (Jonquet; Durand-Ruiz, 2013JONQUET, J.-M.; DURAND-RUIZ, G. Le journal de Janmari. Paris: L’Arachnéen, 2013.), e imagem de uma das páginas do mesmo livro (versão publicada a partir de fac-símile que pertence à Gisele Durand).

Percebemos as linhas retas, as margens, a organização gráfica, o enquadramento do caderno, as páginas. A forma é reconhecida. Mas o que quer dizer aquela escrita de círculos? “O que quer dizer” é um projeto altamente linguístico, com expectativas significantes. O sentido dos círculos e ondas está no próprio gesto de produzir tais círculos, criado pela interação com Gisele.

Um estalo de língua poderia fazê-lo mudar de um sinal para outro; então, um dia, quando ele estava desenhando círculos, fiz aquele som e ele parou para traçar ondulações até a extremidade direita da folha; então ele voltou para os círculos, para a esquerda, e eu fiz o som novamente e ele fez ondulações. (Jonquet; Durand-Ruiz, 2013JONQUET, J.-M.; DURAND-RUIZ, G. Le journal de Janmari. Paris: L’Arachnéen, 2013., tradução nossa).

Diante de algumas situações, uma não palavra ou a própria palavra assume outros contornos.

Lévi-Strauss (2001)LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. conta que, durante a convivência com os Nambiquara, distribuiu folhas de papel e lápis, ainda que esses não soubessem escrever e tampouco desenhassem. De início, nada fizeram com o material fornecido. Um dia, porém, viu-os “[…] muito atarefados em traçar no papel linhas horizontais onduladas. Que queriam fazer, afinal? Tive de me render à evidência: escreviam, ou, mais exatamente, procuravam dar a seu lápis o mesmo uso que eu, o único que então podiam conceber […]” (Lévi-Strauss, 2001LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 280). Um dia, o chefe do grupo exigiu um bloco e traçou no papel linhas sinuosas. Mostrou ao antropólogo, o qual fingiu as decifrar. Ao reunir seu pessoal, o chefe pegou o papel e leu a lista de objetos que deveriam ser dados em troca aos presentes oferecidos. Ele tinha compreendido, afinal, a “função da escrita”: a leitura encenada de palavras-traços servia a uma finalidade mais sociológica do que intelectual, ou seja, “não se tratava de conhecer, reter ou compreender, mas de aumentar o prestígio e a autoridade de um indivíduo - ou de uma função - às custas de outrem” (Lévi-Strauss, 2001LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 281).

Peter Gow (1990)GOW, P. Could Sangama read? The origin of writing among the Piro of Eastern Peru. History and Anthropology, [s. l.], v. 5, p. 87-103, 1990. conta a história de Sangama, o primeiro Piro que pôde ler, mesmo sem nunca ter aprendido ou frequentado o curso de alfabetização dado pelos missionários. Através do uso ritual da ayahuasca, Sangama pôde ver a escrita não como um conjunto de componentes gráficos que representam palavras, mas como um conjunto de metáforas desenhadas. Sangama lia porque o texto falava com ele, tinha corpo de mulher e lábios vermelhos que contavam as notícias. A escrita deixa de estar na ordem da representação para entrar na dimensão de replicação de mundos. Ao vincular a escrita ao xamanismo, Sangama faz uma defesa importante deste último como modo de conhecimento equivalente, em um momento de violência exacerbada, ataque aos rituais e outras tradições de seu povo. Xamanismo e escrita estão, aqui, numa relação de analogia, como abertura do ver, transformação do campo visual.11 11 A escrita, na modernidade, em sociedades ditas ocidentais, se separou do desenho, como nos mostra Ingold (2007). Em contraposição, temos Davi Kopenawa, que chama as páginas escritas de “peles de imagens” ou “peles de papel”; Bruce Albert explica que, para os Yanomami, “escrever é ‘desenhar traços’, ‘desenhar pontos’ ou ‘desenhar sinusoides’, e a escrita é um ‘desenho de palavras’” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 610).

Na escrita como gesto, traço, movimento e distorção, temos ainda as palavras-espirais do diário de Walter Benjamin, sob efeito de haxixe (Taussig, 2011TAUSSIG, M. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press, 2011.), e a escrita que desaba (Didi-Huberman, 2013bDIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.) de Aby Warburg, quando ficou internado com o diagnóstico de esquizofrenia. A escrita é “uma espécie de fluxo indecifrável, uma tempestade de palavras, uma tormenta”, “um rendilhado inextricável”, uma “destruição pela loucura”, mas também uma “construção pela loucura” (Didi-Huberman, 2013bDIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b., p. 322). O delírio se torna um “estilo estético” (Didi-Huberman, 2013bDIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.).

Figura 2
As palavras-espirais de Walter Benjamim (Taussig, 2011TAUSSIG, M. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press, 2011.).

Figura 3
A escrita que desaba, de Aby Warburg (Didi-Huberman, 2013bDIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.).

Para Severi (2007)SEVERI, C. Le principe de la chimère: une anthropologie de la mémoire. Paris: Éditions Rue d’Ulm-musée du quai Branly, 2007., a articulação entre imagens e palavras - seja em cantos xamânicos, desenhos indígenas ou situações de doença - permite olhar para a linguagem para além do linguístico: as palavras e as imagens deixam de ser signos representando algo, com significados específicos, mas traços mnemônicos, (re)construções mentais. Ao mostrar como um grupo de autistas - para os quais os sons seriam desprovidos de sentidos - pôde ser analisado por um psiquiatra italiano, Gaetano Roi, Severi chama a atenção para outros elementos da comunicação, como entonação, repetição, ruídos, lacunas, já que os sons não são meros auxiliares das palavras e dos sentidos, mas têm uma existência própria e, se formos capazes de percebê-los, veremos que certas configurações sonoras regulares e significados emergem.

Ao fazer uma etnografia com pacientes numa instituição de longa permanência, Kontos (2006)KONTOS, P. Embodied selfhood: an ethnographic exploration of Alzheimer’s Disease. In: COHEN, L.; LEIBING, A. (ed.). Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. London: Rutgers University Press, 2006. p. 195-217. percebe que gestos, ruídos, mal-entendidos também comunicam. Mesmo com um discurso incoerente e sem significado linguístico ou qualquer possibilidade de uma interpretação, a comunicação pode ser feita e se tornar eficaz quando vista de maneira relacional/contextual, como na cena que ela descreve entre dois pacientes:

Abe sat down in the dining room and shouted, “Bupalupah”. Anna twisted around in her chair so that she could see Abe (his table was behind hers). Abe’s face opened up. His eyes grew wider, his mouth eased into a broad smile, and he shouted, “Brrrrrrrrr!” with a rising and then falling pitch. Anna imitated him, shouting back, “Brrrrrrrr!” following the same change in pitch. Abe then shouted, “Bah!” and paused while looking at Anna. Anna shouted, “Shah!” and then waited for Abe’s response. Abe shouted, “Bah!” and Anna, “Shah!” as they established a repetitious pattern of exchange. Anna eventually turned back around in her chair, with her back to Abe. Abe shouted, “Bupalupah!” as if wanting to initiate another exchange with Anna, but instead of responding verbally, she raised one arm above her head and lowered it in a swift motion with a sharp flick of her wrist. With this gesture, she terminated their interaction, and they both began to eat their breakfast quietly. (Kontos, 2006KONTOS, P. Embodied selfhood: an ethnographic exploration of Alzheimer’s Disease. In: COHEN, L.; LEIBING, A. (ed.). Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. London: Rutgers University Press, 2006. p. 195-217., p. 206).

A eficácia terapêutica, ao contrário do que pensamos comumente, está, muitas vezes, relacionada a uma comunicação difícil, incompreensível. No canto xamânico, o paciente não se cura porque compreende as palavras do xamã: ele não as compreende; os sentidos vêm quando o paciente preenche os espaços em branco pela projeção das palavras orientadas pelo xamã. De forma semelhante, poderíamos pensar nos rituais católicos em latim. Os espaços em branco, as palavras incompreensíveis tocam a imaginação do paciente e permitem o fluxo de pensamentos que acompanham a experiência da dor. Para Severi, é essa linguagem - uma linguagem que ameaça a existência mesma da linguagem, ou seja, uma linguagem que se dá nas diferenças evidentes, naquilo que a linguagem comum normalmente não simboliza - que está presente nos casos de dor extrema, como uma doença. Uma linguagem-devir, incompreensível, para alguns, que, mesmo quando aciona o verbal, extrapola-o para além dele, fazendo repercutir em outras expressões estéticas.

Nos limites da linguagem ou a linguagem como limite

Como ler essas palavras-círculos, palavras-espirais, palavras-imagens, palavras que desabam? O que pode a palavra quando ela antecede o verbal? Ou quando o verbal se desloca de um referente, sacode a sintaxe, torce as convenções linguísticas? As palavras desenhadas ou palavras que se tornam imagens deixam perceber similaridades onde se menos espera através de correspondências não óbvias, inusitadas. “A natureza é vodka”; “O trator anda que nem casa”; “O rio tá cabeçudo”. Quando a linguagem não é para ser decifrada ou interpretada, o que ela se torna? “A palavra não chegou”, “engoli um pedaço da frase”, “saiu isso, mas queria dizer outra coisa”, “eu tô em branco” foram cenas presenciadas na pesquisa de campo. Quando a palavra se apaga, o que resta?

A dificuldade de encontrar as palavras e expressá-las é uma das principais queixas encontradas nas autobiografias escritas e nas falas de pessoas em processo demencial. “The jumble of words”, nomeia Bryden (2012BRYDEN, C. Who will I be when I die?. London: Jessica Kingsley Publishers, 2012., p. 84). “Soap box”, para Rose (1996ROSE, L. Show me the way to go home. San Francisco: Elder Books, 1996. p. 76). “The words get tangled very easily and I get frustrated when I can’t think of a word” (Henderson, 1998HENDERSON, C. Partial view: an Alzheimer’s journal. Dallas: Southern Methodist University Press, 1998., p. 18). “Every day, every hour, every few minutes, I lose my train of thought” (Taylor, 2007TAYLOR, R. Alzheimer’s from the inside out. Baltimore: HPP, 2007., p. 65); “I pause to fish for a word” (Taylor, 2007TAYLOR, R. Alzheimer’s from the inside out. Baltimore: HPP, 2007., p. 192); “I have to wait like a hunter to capture a thought” (DeBaggio, 2003DeBAGGIO, T. Losing my mind: an intimate look of life with Alzheimer’s. New York: Free Press, 2003., p. 48); “I am spending a lot of time at my computer, not doing things just looking at it and wondering why and what I am doing or supposed to be doing. […] That is becoming harder, finding the words that fit we play guessing games with me as to what I am trying to say, I guess I am refining my language, joenese, to a more pure form, which I do not understand” (Joe);12 12 As citações de Joe não foram referenciadas e o blog não está mais disponível online. “My ‘word’ problems are really annoying me. I have posted before that I am having problems finding the right words, understanding things I read and using the wrong words” (Kris, 2007KRIS. This and that. In: KRIS. Dealing with Alzheimer’s blog. [S. l.], 3 Aug. 2007. Disponível em: Disponível em: https://creatingmemories.blogspot.com/2007/08/this-and-that.html . Acesso em: 22 jul. 2022.
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); “It is as if my shelves of neatly filed words have been swept off onto the floor, and I have to search among untidy heaps to find the word I am looking for” (Bryden, 2005BRYDEN, C. Dancing with dementia: my story of living positively with dementia. London: Jessica Kingsley Publishers, 2005., p. 118).

Ten to fifteen percent of the words I write are misspelled in crazy ways. Watching my spelling, especially when it goes out of control, is a way I keep tabs on Ol’ Alzheimer’s. The disease produces a literary trash pile of butchered words, once recognizable but now arranged in combinations neither I nor the spell-checker has ever seen. I have watched this syllabic exercise for months and I use it as a fingerprint of what is happening in my brain. (DeBaggio, 2003DeBAGGIO, T. Losing my mind: an intimate look of life with Alzheimer’s. New York: Free Press, 2003., p. 125).

Para DeBaggio (2003DeBAGGIO, T. Losing my mind: an intimate look of life with Alzheimer’s. New York: Free Press, 2003., p. 134), a doença de Alzheimer instaurou um alfabeto disléxico: “will” se tornou “still”; “ride” virou “rice”; “save” foi substituído por “say”. Diante das “lacunas no fluxo das palavras” (Bryden, 2005BRYDEN, C. Dancing with dementia: my story of living positively with dementia. London: Jessica Kingsley Publishers, 2005., p. 118, tradução nossa), palavras e coisas trocam de lugar: “Let’s go and plant the horses”, disse Cristine para a filha. Ou palavras - e coisas - são inventadas, como assoada e respidar, nas conversas com Maria.

Frases são repetidas, não se concluem, pulam de um assunto a outro. “I read recently that those who have Alzheimer’s can occasionally collect their thoughts, and occasionally they can… oops, I forgot what I was going to say.” (Lee, 2003LEE, J. L. Just love me: my life turned upside-down by Alzheimer’s. West Lafayette: Purdue University Press, 2003., p. 33). “I just had a brilliant idea, but before I could push down the little recording mechanism, it was absolutely totally gone” (Henderson, 1998HENDERSON, C. Partial view: an Alzheimer’s journal. Dallas: Southern Methodist University Press, 1998., p. 7).

A designer Rita Maldonado Branco, ao conviver com os avós diagnosticados com doença de Alzheimer, produziu um livro com pedaços faltando, personagens que vão sendo apagados, que se repetem inúmeras vezes e nunca finalizam, seja uma frase ou uma atividade. “São metáforas da doença. Tentei pensar em como seria um livro com falta de memória. Estes exercícios permitiram-me perceber melhor o que era a doença”, explicou (Pinto, 2014PINTO, M. C. Rita pôs o design ao serviço dos doentes com Alzheimer. P3, [s. l.], 23 abr. 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.publico.pt/2014/04/23/p3/noticia/rita-pos-o-design-ao-servico-dos-doentes-com-alzheimer-1819807 . Acesso em: 22 jul. 2022.
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).

Figura 4
“Livro com falta de memória”, de Rita Maldonado Branco (Pinto, 2014PINTO, M. C. Rita pôs o design ao serviço dos doentes com Alzheimer. P3, [s. l.], 23 abr. 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.publico.pt/2014/04/23/p3/noticia/rita-pos-o-design-ao-servico-dos-doentes-com-alzheimer-1819807 . Acesso em: 22 jul. 2022.
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).

Algumas experiências nos convidem a uma escrita e investigação lacunar. O jovem escritor japonês autista Higashida (2014HIGASHIDA, N. O que me faz pular. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 49) nos adverte sobre o mistério das palavras desaparecidas. “Nós que temos autismo nunca usamos palavras suficientes e são essas palavras perdidas que podem fazer toda diferença”. Em sua autobiografia, Higashida (2014HIGASHIDA, N. O que me faz pular. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 49) reproduz a conversa entre três amigos sobre uma outra colega de classe autista:

- Ei, ela acabou de dizer “Todos nós!”

- Então… quer dizer que ela quer ir junto com a gente, né?

- Sei não. Talvez ela só queira saber se todo mundo vai.

Mas o todos nós era um fragmento da frase “Amanhã, todos nós vamos ao parque”, dita mais cedo por um professor. O que a colega de classe queria saber era quando todos iriam ao parque. Para Higashida (2014HIGASHIDA, N. O que me faz pular. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 49), “as palavras que faltam podem cutucar sua imaginação e gerar uma busca pelo o que não existe, aqui, ali e em qualquer lugar”.

As lacunas de partes de um livro ou as lacunas das palavras que desaparecem misteriosamente, cutucando a imaginação a ponto de buscar o que não existe, nos interessam como exercício para uma escrita etnográfica que acontece na “extremidade do saber” (Deleuze, 1988DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.).

Em pesquisa de campo, Juliana, mãe de Caio, um menino autista, narrou sua luta para conseguir entender o que seu filho tinha, já que não falava, nem interagia e “parecia não estar ali”. Certa vez, após voltar de mais um dia em que corria de lá pra cá entre os serviços de saúde na busca de um diagnóstico, Juliana voltou para casa sem resposta. Enquanto dirigia o carro, olhava pelo retrovisor e via seu filho sentado atrás, em silêncio. “Eu me dizia, não é possível, tem alguém ali, ele está ali.” Em meio a seus pensamentos, se pôs a cantar durante o trajeto e a “balançar as mãos no ar durante o tralalá”. “E nada.” Depois de chegarem em casa, “muito tempo depois”, Caio fez o mesmo gesto de mãos do tralalá feito por ela no carro. “Ali eu tive certeza, eu sabia, meu filho estava ali.” Juliana não precisou de uma frase inteira ou de uma conversação convencional, com turnos de fala seguidos um do outro para conectar os gestos tardios de mãos de seu filho à cena do carro. Bastaram fragmentos dispostos em uma temporalidade expandida para que ela confirmasse sua sensação de que seu filho, afinal, “estava ali”, mesmo sem os sinais de presença identificados em gestos interacionais (olhar no olho, falar, voltar-se ao chamado do próprio nome…). Estaria Juliana, assim como a designer Rita Maldonado, nos mostrando como capturar sinais nas lacunas?

Juliana nos falava de como ver a presença na ausência do que era conhecido e, então, de ver a emergência de “algo” no campo do que não se sabe. Caio talvez estivesse nos limites da linguagem e, para a relação entre mãe e filho acontecer, Juliana também precisou experimentar esse limite. Para Deleuze (1988DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988., p. 18), “só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro”.

Dumortier (2006)DUMORTIER, D. Autismo na primeira pessoa. Kungsängen: Intermedia Books, 2006., autista, nos dirá: “Ainda não consigo exprimir-me adequadamente, não consigo explicar na íntegra o que é o autismo para mim, o que ele significa. Procuro palavras e não as encontro. Parece não haver palavras que sirvam.” “Eu escrevo para mostrar que há vários tipos de autistas” (Dumortier, 2006DUMORTIER, D. Autismo na primeira pessoa. Kungsängen: Intermedia Books, 2006., p. 34). A extremidade do próprio saber e a insuficiência da linguagem verbal levam-nos, como as palavras desaparecidas, a cutucar a imaginação, multiplicar versões e biografias como maneiras de criar mundos. “Words not only describe my world, they create my world”, na experiência de Taylor (2007TAYLOR, R. Alzheimer’s from the inside out. Baltimore: HPP, 2007., p. 158) com a doença de Alzheimer.

O “problema com as palavras”, como define Kris, também é um problema de ver. “[…] the way I ‘see’ things in my brain has changed. I used to ‘see’ things with words - if I had a thought I was trying to say or get a point across it was words that I was forming in my brain and almost reading them back in order to explain something or even with a regular conversation. Now, I see more images in my mind rather than words”, descreve Kris (2009)KRIS. Concentration - thoughts - words - images. In: KRIS. Dealing with Alzheimer’s blog. [S. l.], 20 May 2009. Disponível em: Disponível em: https://creatingmemories.blogspot.com/2009/05/concentration-thoughts-words-images.html . Acesso em: 22 jul. 2022.
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, que diz notar um storyboard de imagens na mente. Joe diz que se encontra cada vez mais desenhando dentro da mente. “Often I draw little pictures in the air when words fail me”, na autobiografia de Christine Bryden (2012BRYDEN, C. Who will I be when I die?. London: Jessica Kingsley Publishers, 2012., p. 83).

A linguagem se afasta da sintaxe em direção à imagem, ao gesto. Não conseguir se comunicar, tomar banho, vestir-se, fazer supermercado, lembrar, trabalhar; a escrita em círculos, o varrer em forma espiralar, a fala que não se entende: tudo isso nos obriga a desativar os códigos semânticos e acionar outros acessos. É como se precisássemos aprender a “ler o que nunca foi escrito” (Didi-Huberman, 2018aDIDI-HUBERMAN, G. Atlas ou o gaio saber inquieto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018a.), a “ver com as palavras” (Didi-Huberman, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Falenas: ensaios sobre a aparição 2. Lisboa: KKYM, 2015.).

Mas como aprender a ver com as palavras? E, reciprocamente, o que pode uma composição de palavras ensinar-nos sobre o ato de ver? Rilke responde, primeiro, que ver, no sentido radical, consiste em aceitar a experiência - o risco, o desafio, a cedência - de ser olhado por aquilo que se vê. De ser visado, transformado, implicado, ferido, revelado, resumindo, aberto até ao “âmago”. (Didi-Huberman, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Falenas: ensaios sobre a aparição 2. Lisboa: KKYM, 2015., p. 158).

Ser visado, transformado, implicado, ferido, revelado, aberto até ao âmago - afetações que atravessam as vidas de autistas e pessoas com demência. “They [pessoas com Alzheimer] wonder how things happen, why things happen the way they are, and it’s a mystery”; “It’s supposed to keep you in suspense, and everything you see is a revelation that you’ve not quite seen before” (Henderson, 1998HENDERSON, C. Partial view: an Alzheimer’s journal. Dallas: Southern Methodist University Press, 1998., p. 21). É recorrente, nos relatos autobiográficos, a experiência de estranheza, confusão, embaraço, desencaixe, espanto ou sobressalto constante, como se se estivesse em um mundo alienígena. “A maior parte do tempo, eu me sinto como um antropólogo em Marte”, disse Temple Grandin ao neuropsiquiatra Oliver Sacks (2006SACKS, O. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 260) para explicar o quanto ficava confusa com as emoções mais complexas e os jogos em que as pessoas se envolviam. “Eu ficava sempre irritada, porque meu namorado não me entendia […] era como se eu estivesse em um planeta e ele noutro”, diz Dumortier (2006DUMORTIER, D. Autismo na primeira pessoa. Kungsängen: Intermedia Books, 2006., p. 34).

Uma língua estrangeira: imagens, metáforas e traduções

Se, para Taussig (2011)TAUSSIG, M. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press, 2011., recorrer à imagem é uma maneira de lidar com nossa afasia enquanto pesquisador - de como as palavras estão apartadas do mundo e não dão conta de contar nossa experiência em campo -, aqui, para a experiência demencial e autista, isso é ainda mais evidente, urgente.13 13 Sobre o lugar que as imagens assumem na pesquisa com processos demenciais e a proposta de uma etnografia assombrada que surge a partir disso, ver Feriani (2019). Ver as palavras, o cérebro se tornar mais imagético, um pensamento visual são algumas mudanças percebidas por eles. E, com isso, uma nova maneira de ver - e viver - as coisas.

Alzheimer’s has given me something wonderful. I hear and see things nobody else experiences. They are my truly unique experiences because they occur totally inside my mind and I am unable to define them or describe them. A few of them can be duplicated with my throat, but like a singer, not everybody can sing the notes. (DeBaggio, 2003DeBAGGIO, T. Losing my mind: an intimate look of life with Alzheimer’s. New York: Free Press, 2003., p. 152).

“É como se as instruções estivessem escritas em uma língua estrangeira”, diz Kris (2013KRIS. Meltdown Monday. In: KRIS. Dealing with Alzheimer’s blog. [S. l.], 16 May 2013. Disponível em: Disponível em: https://creatingmemories.blogspot.com/2013/05/meltdown-monday.html . Acesso em: 22 jul. 2022.
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, tradução nossa) ao não conseguir ligar a máquina de lavar roupa.14 14 Kris é autora do blog Dealing with Alzheimer’s Blog. O chinelo como controle remoto, a natureza como vodka, a camisa que se veste como calça, o detergente como óleo de cozinha, a embalagem brilhante como borboleta indicam uma sobreposição entre o literal e o metafórico, tornando ambígua a diferença entre a função referencial e a função poética (Cesarino, 2011CESARINO, P. de N. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.), numa torção de significado que leva a linguagem - e o mundo - para além - ou seria aquém? - do sentido a ser decifrado, em um processo de metamorfose que muda a posição entre os seres, desloca palavras e coisas, tal como ocorre na poesia, quando o poeta diz “eu escuto a cor dos passarinhos” ou “vi a tarde correndo atrás de um cachorro” ( Manoel de Barros, 2011BARROS, M. de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2011.).

Certamente, usar metáforas de modo opcional, como no fazer artístico e literário, ou em práticas linguísticas cotidianas, é distinto do uso de metáforas imbuídas em um processo demencial. Névoa, jornada, viagem, labirinto, furacão, tempestade, Terra do Nunca, universo paralelo, slow-motion, areia movediça, caleidoscópio, caverna de Platão, curto-circuito, quebra-cabeça, mundo de ponta-cabeça, máquina do tempo, escuridão, peixe no anzol, rolha no oceano são algumas expressões usadas para descrever as sensações de estranheza, espanto, desorientação, confusão, nonsense, embaçamento que rondam a experiência com a enfermidade. Olhar o mundo através de uma janela, na qual uma cortina de renda se mexe e muda os padrões e enquadramentos do que é visto; ter um algodão na cabeça; as sementes de um dente-de-leão que saem voando; o cérebro mandar procurar por óculos dos quais os olhos não precisam; as instruções escritas numa língua estrangeira.

Já entre os autistas, é comum a percepção dos neurotípicos de serem “literais demais”. Em resposta, a autista e pesquisadora Dawn Price-Hughes (2019PRICE-HUGHES, D. Alegria. In: RIOS, C.; FEIN, E. (org.). Autismo em tradução: uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. p. 337-356., p. 348) comenta: “Mas não há nada mais literal do que esta vida, este dia, esta sobrevivência, esta oportunidade para uma velha e profunda conexão com esta Terra-ilha em que vivemos neste momento.” Passar do literal à metáfora não parece uma fronteira linguística tão clara assim. Ailton Krenak (2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45), em suas ideias para adiar o fim do mundo, pergunta “por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo?”. Para ele, “a gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair.” E sugere que aproveitemos nossa capacidade criativa “para construir e despencar no cosmo em paraquedas coloridos”. O que seria metafórico e o que seria literal?

Temple Grandin conta que ao ler, em um livro, que devíamos buscar uma porta que nos leva ao céu, entendeu aquilo não no sentido metafórico, de uma busca por algo que nos motiva, mas no sentido literal e, com isso, passou um bom tempo andando pelos lugares à procura de tal porta. Diante dessa dificuldade, revela sua estratégia: “When I think about abstract concepts such as human relationships, I use visual similies - for example, relationships between people are like a sliding glass door that must be opened gently or it may shatter” (Grandin, 1996GRANDIN, T. Emergence: labeled autistic - a true story. New York: Warner Books, 1996., p. 139).

Higashida (2014HIGASHIDA, N. O que me faz pular. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014., p. 10), ao descrever a dificuldade de se lembrar dos acontecimentos e, portanto, fazer sempre as mesmas perguntas sobre o que acabou de ouvir, faz uso de uma bela metáfora:

Imagino que a memória de uma pessoa normal seja organizada de forma contínua, como uma linha. Minha memória, no entanto, é mais como uma piscina de pontos. Estou sempre “pegando” esses pontos - ao fazer as minhas perguntas - assim posso voltar às memórias representadas por eles.

É como se a metáfora, enfim, tomasse o lugar do literal - ou seria o contrário? Diante da dificuldade de abstração, a metáfora pode ser uma estratégia para lidar justamente com a literalidade de seu mundo.15 15 O literal é uma metáfora que se obviou (Wagner, 1989) - a metáfora da metáfora que obvia o referente ou quando a metáfora se torna o próprio referente, como Hamlet, que revela a verdade fingindo-se de louco, revela a verdade através da encenação do teatro ou, como vimos, da escrita.

Na produção audiovisual da autista não verbal Mel Baggs, In my language (2007)IN MY LANGUAGE. Roteiro e produção: A. M. Baggs. [S. l.: s. n.], 2007. Publicado pelo canal silentmiaow. 1 vídeo (8min36s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JnylM1hI2jc . Acesso em: 22 jul. 2022.
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, durante 3’15”, ouvimos um canto monótono que vai se seguindo de distintas sonoridades: objetos, mãos e dedos friccionando superfícies; um livro aberto diante dos olhos sendo cheirado, lambido e folheado; a pressão da ponta dos dedos sobre a ponta das folhas sendo passadas rapidamente. Na segunda parte do vídeo, surge uma tela preta em que lemos - A TRANSLATION. Enfim, vemos e escutamos movimentos dos dedos no teclado e uma voz sintética metálica, em inglês, saída do computador. Esses elementos compõem sua performance ciborgue (Haraway; Kunzru, 2009HARAWAY, D.; KUNZRU, H. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Trad. e org. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.), para traduzir aos neurotípicos a primeira parte do vídeo, que, segundo Baggs, está em sua língua nativa.

But my language is not about designing words or even visual symbols for people to interpret. Its about being in constant conversation with every aspect of my environment. Reacting physically to all parts of my surroundings. […] failure to learn your language is seen as a deficit, but failure to learn my language is seen so natural that people like me are officially describe as mysterious and puzzling rather than anyone admitting that is themselves who are confused not autistic people […] who are inherently confused. (In my…, 2007IN MY LANGUAGE. Roteiro e produção: A. M. Baggs. [S. l.: s. n.], 2007. Publicado pelo canal silentmiaow. 1 vídeo (8min36s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JnylM1hI2jc . Acesso em: 22 jul. 2022.
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).

Mel Baggs sintoniza a frequência para outros ouvidos. No vídeo, sua mão encontra a água caindo de uma torneira e ali permanece, em flaps. Baggs adverte-nos do risco de supersignificantes: a água não é uma metáfora, não simboliza nada, sendo apenas um meio de interação, um modo de estar no mundo. Nem tudo acontece, afinal, para ter um sentido. “Não perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido” (Deleuze, 2015DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 23).

Tradução é traição, dizem. E se a gente “trair a própria língua” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.)? Na experiência de traduzir, do português para o inglês, as falas das pessoas em processo demencial para compor o site da pesquisa,16 16 Ver www.soproseassombros.com.br. a tradutora confessou se encontrar em apuros. Como traduzir “pra vir é fácil, pra ir embora é que são elas… e araras”, dito por dona Maria? O que fazer com as frases incompreensíveis, as associações inusitadas, a conversa “sem pé nem cabeça”, as palavras inventadas, a sobreposição entre metáfora e literal, o verbal que se desloca do referente e sacode as convenções linguísticas?

[Maria] Hoje em dia não passa mais filme na televisão. Vão regaçando cada vez mais.

[Tradutora] Qual é o significado de “regaçando”?

[Daniela] Boa pergunta! Eu acho que aqui ela erra a palavra… Porque ela está falando de filme, talvez seja regravando. Ela faz um movimento com as mãos indicando um movimento contínuo, um atrás do outro. Mas, pra não perder a ideia de algo delirante, acho que é o caso de traduzir pra regaçando mesmo. Não sei se isso é possível…

[Maria] A gente está assoada numa coisa, de repente você sossega e fica aqui.

[Tradutora] Não sei o que significa “assoada”…

[Daniela]Eu também não… Talvez presa, confinada?

[Maria] Uma pensão lá… A pessoa que cuida tinha que respidar…

[Tradutora] “Respidar”?

[Daniela] Palavra que não existe… Acho que é o caso de deixar entre aspas, em português mesmo…

Na tentativa de buscar um sentido, não há equivalência possível entre as línguas - nem mesmo, talvez, numa própria língua - e os mundos.

[Fernanda] Na mediação de uma mesa com três jovens autistas, a não compreensão do português entre falantes nativos ficou evidente. Na dinâmica proposta pelos organizadores do evento, eu deveria lhes fazer algumas perguntas, previamente elaboradas em torno do diagnóstico e da vida profissional. A certa altura, fiz uma pergunta sobre o autismo e a relação com as coisas cotidianas. A pergunta era vaga, tanto que ela me foge. Mas a reação dos três jovens autistas foi a mesma: levantaram seus ombros, fizeram pequenos movimentos de face que me fizeram ver que minha pergunta não fazia o menor sentido. “Esta pergunta não faz muito sentido, né?” Em uníssono e com sorriso solidário a uma neurotípica, os três disseram “não”. Na brecha da incompreensão entre nós, fui ao mundo deles por um instante. Não era um problema de português. A língua nativa do mundo neurotípico, plena (ou pretensa) de sentidos e propósitos claros, ficou turva e obsoleta. Abandonei aquela pergunta e sorri.

Diante de situações como essas que tivemos em campo, podemos não traduzir sentido algum.17 17 Viveiros de Castro (2002) propõe a “ignorância epistemológica” para a entrada no campo, ou seja, não saber o que se vai encontrar, e lembra que, muitas vezes, as nossas perguntas dizem respeito apenas a nós; os “nativos” terão outras. Não se trata, portanto, de buscar diferentes respostas para perguntas supostamente gerais ou universais - as próprias perguntas mudam. Deleuze (1992)DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. defende a linguagem como desequilíbrio heterogêneo, o qual prescinde de significante. A pergunta “o que isso quer dizer?” não quer dizer nada; o significante é um tirano que nos impede de ver o que realmente importa: como as coisas funcionam?18 18 Essa é uma pergunta fundamental para as experiências de autismo e demência, já que, além de acionarem outro modo de interação com o mundo, a noção de funcionalidade é muito importante para o delineamento do diagnóstico. Sobre a complexidade do diagnóstico na demência, ver Feriani (2017b), Cruz e Morato (2005).

Assim talvez fosse possível manter a estranheza, o incômodo, o mistério, o intraduzível das falas. Fazer a palavra regurgitar o sentido (Deligny, 2007DELIGNY, F. Fernand Deligny: oeuvres. Paris: L’Arachnéen, 2007.). A tradução deixa de ser identificação e equivalência para ser metamorfose, alteridade, divergência (Cesarino, 2011CESARINO, P. de N. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.), relação e transformação entre pontos de vista (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.), uma investigação pragmática de disjunturas conceituais (Da Col; Graeber, 2011DA COL, G.; GRAEBER, D. Foreword: the return of ethnographic theory. HAU: journal of ethnographic theory, [s. l.], v. 1, n. 1, p. vi-xxxv, 2011.) - assim como a etnografia que se pretende fazer aqui. As frases e cenas não são, enfim, para serem compreendidas e comunicadas, mas servem para expressar uma experiência, acompanhar um gesto, desenhar um rabisco, um esboço, um traço. O que está em jogo - entre erros, titubeios, adivinhações, apostas - é o valor testemunhal. E não se deve retocar a fala de uma testemunha (Didi-Huberman, 2013aDIDI-HUBERMAN, G. Georges Didi-Huberman fala sobre imagens e memórias do Holocausto. entrevista a Guilherme de Freitas. O Globo, Rio de Janeiro, 16 mar. 2013a. Disponível em: Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/georges-didi-huberman-fala-sobre-imagens-memorias-do-holocausto-489909.html . Acesso em: 10 jul. 2022.
http://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post...
).

Eis um problema de representação e tradução, um paradoxo tanto da escrita quanto da demência e do autismo. Como transcrever a falta de coerência, os lapsos, os escorregões da linguagem, a torção de sentidos, sem que o texto seja tão caótico que ninguém irá querer lê-lo? Para Berger (2014BERGER, J. Writing is an off-shoot of something deeper. The Guardian, London, 12 Dec. 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/dec/12/john-berger-writing-is-an-off-shoot-of-something-deeper . Acesso em: 20 set. 2021.
https://www.theguardian.com/books/2014/d...
, tradução nossa), uma verdadeira tradução “exige um retorno ao pré-verbal”:

Ler e reler as palavras do texto original e penetrar nelas para chegar até a visão ou experiência que as motivou. Em seguida, reunir o que encontrou lá e pegar essa “coisa” trêmula quase sem palavras e a colocar atrás da língua para a qual ela precisa ser traduzida. E agora a principal tarefa é convencer a língua anfitriã a acolher e dar as boas-vindas à “coisa” que está esperando para ser articulada.

Como penetrar o véu mantendo sua qualidade alucinatória? (Taussig, 1993TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993.). Ao invés de limpar, deixar as incoerências, os ruídos, as falhas, a fala que não se entende. Não maquiar, mas deixar as verrugas expostas. Levar a língua a delirar (Deleuze, 2011DELEUZE, G. A literatura e a vida. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-17.), pois “é através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve. Beckett falava em ‘perfurar buracos’ na linguagem para ver ou ouvir ‘o que está escondido atrás” (Deleuze, 2011DELEUZE, G. A literatura e a vida. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-17., p. 9).

É como fez Didi-Huberman (2012)DIDI-HUBERMAN, G. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012., que, ao invés de descartar o borrão na fotografia do prisioneiro por ser esteticamente inviável para uma exposição, viu a potencialidade do borrão, o borrão como importante em si, como um contexto de enunciação, uma testemunha do absurdo, do assombro, do perigo da guerra.19 19 Foram encontradas quatro fotografias feitas por um judeu, que, para não ser visto, precisou se esconder nas câmaras de gás para fotografar. As fotos mostravam fragmentos do mundo lá fora (pilhas de corpos, mulheres nuas conduzidas ao crematório, algumas árvores), sendo que uma delas, tida como um borrão, não foi levada em conta para a exposição feita posteriormente por ser esteticamente inviável. Didi-Huberman, porém, defende que devemos considerar a fotografia do borrão justamente por mostrar o contexto de aprisionamento e horror em que foi produzida. Ser “apenas um borrão” diz muito. O borrão é o que fica quando se trata de perceber uma realidade incerta, num misto entre delírio e realidade - um “realismo alucinatório” (Taussig, 1993TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993.).

Como usar a linguagem quando ela parece “se torcer” (Cesarino, 2011CESARINO, P. de N. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.), “abrir” (Taussig, 2011TAUSSIG, M. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago: The University of Chicago Press, 2011.), “sair de seus sulcos costumeiros” (Deleuze, 2011DELEUZE, G. A literatura e a vida. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-17.)?

Algumas condições neurocognitivas parecem desafiar uma suposta lógica (auto)biográfica. Como assumir uma autoria e fazer uso da linguagem verbal em meio a um processo progressivo e inexorável de uma doença que vai apagando tais domínios? A maioria das autobiografias de pessoas com demência faz uso de uma sintaxe e narrativa convencionais. Assim, ainda que o conteúdo delire através da descrição de situações como guardar o ferro de passar na geladeira e a carteira, no pote de açúcar; não encontrar o banheiro de casa; perder-se na rua; vestir a roupa do avesso; esquecer onde guardou os óculos dez vezes ao dia; não saber como colocar a chave no buraco; escovar os dentes e cuspir no chão; parar de escovar os dentes no meio para comer biscoito; escovar apenas metade dos dentes, a forma linguística, porém, não delira, mas rompe binômios, como conteúdo/forma e racional/não racional. Então, como aponta Basting (2015BASTING, A. Why the arts are key to dementia care: This form of communication can engage intuition and imagination. Next Avenue, [s. l.], 23 Apr. 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.nextavenue.org/why-arts-are-key-dementia-care/ . Acesso em: 20 set. 2021.
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, tradução nossa), são convocadas outras formas de acesso à narrativa que não dependam, talvez, “da memória linear e da linguagem racional” que vacilam.

Os textos autobiográficos de pessoas em processo demencial, ao escolherem a linguagem normativa, podem ser tidos como um contraponto importante ao discurso biomédico de “dissolução do self”. Por outro lado, ao limpar os textos de possíveis vacilos, lacunas, repetições, lapsos, talvez deixem passar a chance de explorar a potencialidade criativa de uma linguagem-outra trazida pela demência.20 20 Foram 12 autobiografias e três blogs lidos até o momento, de pessoas diagnosticadas com doença de Alzheimer e moradoras de países como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá - todos, portanto, estão em língua inglesa. Vale mencionar que as autobiografias, publicadas como livros, passaram por revisão e editoração. Alguns dos autores contam um pouco sobre esse processo, normalmente feito pelo cônjuge - a esposa ou o marido revisam o material antes de ir à editora e alguns chegam a reescrever trechos considerados muito caóticos. Joe, autor de um blog, brinca que não sabe o que seria dele sem o corretor automático. Como já dito, esse é um ponto importante: os textos precisam, afinal, ter alguma inteligibilidade caso queiram ser lidos por outras pessoas. De qualquer modo, o uso de uma estrutura narrativa convencional por pessoas com demência nos mostra o quão complexa é a experiência com a enfermidade, a qual oscila entre lucidez e delírio. Em alguns momentos, ser coerente, fazer uso das normas linguísticas e sociais pode soar como um “intruso” ou obstáculo à própria experiência. Christine Bryden (2005)BRYDEN, C. Dancing with dementia: my story of living positively with dementia. London: Jessica Kingsley Publishers, 2005. conta que, depois de uma palestra sobre sua história de vida, ela foi questionada como alguém sem credibilidade para falar em nome das pessoas com demência, por ser alguém articulada linguisticamente, o que a deixou perplexa. Kris, ao escrever um blog, também percebe o dilema: ela quer se comunicar principalmente com as pessoas que, assim como ela, têm a doença de Alzheimer, mas reconhece que não são elas que leem os posts. Assim, o blog é sobre alguém diferente daquele que o lê. Uma diferença não só textual/linguística, mas também ontológica. Um entremundos.

Experimentar o entre

A dificuldade de estabelecer comunicação faz alguns se perguntarem quem, afinal, tem o problema: se é o autista e a pessoa com demência ou aquele que não compartilha daqueles mundos, que não consegue acessá-los. Mel Baggs questiona essa relação: se os autistas não conseguem acessar ou expressar uma certa linguagem, tida como hegemônica, normativa - a linguagem, enfim, dos neurotípicos -, isso é visto como falha, erro, deficiência, patologia; porém, se os não autistas não conseguem compreender essa linguagem-outra, a linguagem que foge das convenções, isso é tido como natural. Joe também vai nessa direção:

According to the wife I have developed my own language, not heard on this Earth is billions of years. It seems that when I cannot get out what I want to say, let alone remember what it is, I express myself in sort of a babble type language. She seems to understand me, I sure the hell don’t, I wonder who has the problem. Her or me? Since she can remember days, what to do and what she is talking about, she has the problem, those types of people do not live in my World. (Joe).

A sensação de Joe é a de viver no entre mundos ou realidades. “I was in a state of, in betweenness, between here and there”. Para ele, nem sempre é possível o “não demente” compartilhar desse mundo, o que faz com que o problema, em alguns momentos, seja dessas pessoas que, tidas como “saudáveis”, não conseguem compreender aquelas que têm a doença. Ao mesmo tempo, quando não doentes tentam trazer os doentes para o mundo deles, isso causa confusão, frustração, raiva e amargura naqueles que a sofrem. Ao invés de ficar dizendo que estão errados ou tentar incluí-los em tudo, Joe pede para deixar as pessoas com demência serem elas mesmas, ouvi-las, rir com elas. Estamos no limite visível entre os mundos experimentados.

Como Joe, Temple Grandin nos fala sobre sair e entrar de mundos.

Durante as refeições, aprendi a me comportar à mesa e não me deixavam girar o garfo no ar acima da cabeça. O único momento em que podia regressar ao autismo era uma hora a cada dia, após o almoço. No resto do dia, tinha de viver num mundo que não balançava nem girava. (Grandin, 2018GRANDIN, T. O cérebro autista. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018., p. 12).

Para Pinar e So (2021PINAR; SO. Dreampunk: escritos trans(eco)futuristas de Queer Nature. [S. l.]: Fecundações Cruzadas, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/50841659/Dreampunk_escritos_trans_eco_futuristas . Acesso em: 10 jul. 2022.
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, p. 19-20), atravessar entre mundos é uma habilidade necessária, uma forma de misticismo que abriga não apenas os “estados alterados e neurodivergentes/emergentes”, mas também a arte, o xamanismo, a modificação corporal, a poesia, rituais que funcionam como um “caminho” ou um “buraco em nossas maneiras de ver o mundo para que o imprevisto possa surgir e não ser considerado herético, e até mesmo que possa ser considerado sagrado”. Misticismo, aqui, é percebido como outra subjetividade, outra percepção das coisas, outro modo de estar no mundo. Para além do assombro, algumas pessoas com demência percebem se tornar mais emocionais/espirituais e passam a prestar atenção em coisas que nunca tinham prestado até então: o cair de uma folha; uma criança brincando; o ninho de um pássaro; as nuvens. Na experiência autista, Mel Baggs também convoca outras relações sensoriais possíveis ao cheirar e lamber o livro, tocar a água, friccionar os dedos em diferentes objetos e superfícies. Birger Sellin compara o seu mundo com um sistema de antenas de segurança nascido de ilhas fabulosas.

Há, nesses modos de existir, gestos ornados (Deligny, 1977DELIGNY, F. Nous et l’innocent: textes choisis et présentés par Isaac Joseph. Paris: Maspero, 1977.) e sintaxes estranhas que desafiam o reducionismo da vida à razão, à funcionalidade, à produtividade ou aos sentidos compreensíveis. Como lembra Krenak (2020)KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., “a vida não é útil”. A vida é feita por buracos e lacunas, rabiscos no ar, palavras-círculos, desmoronamentos e delírios.

É isto que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas comportam, as lacunas, por vezes dramáticas, mas às vezes nem isso. Catalepsias ou uma espécie de sonambulismo por vários anos, é isto que a maioria das vidas comporta. É talvez nesses buracos que se faz o movimento. A questão é justamente como fazer o movimento, como perfurar a parede para não dar mais cabeçadas. (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 176).

“Não se é demente o tempo todo”, disse um neurologista numa consulta. A demência flutua, oscila, movimenta-se entre os chamados “dias bons” e “dias ruins” (ou “foggy days”). Ser vaidoso, preocupar-se com as regras de etiqueta ao receber uma visita, desculpar-se de alguma bagunça, fazer comentários lúcidos, dançar, cantar, dar conselhos, ponderar, mentir, contar piadas ou ter humor - capacidades que exigem domínios cognitivos refinados - coexistem, de maneira tensa, com a falta de controle para as necessidades (fazer xixi e cocô na calça, no chão), a perda da memória, a dificuldade para manter uma conversa, o empobrecimento da linguagem, a desorientação e confusão. Tais “simultaneidades contraditórias”, na expressão de Warburg (cf. Didi-Huberman, 2013bDIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.), não permitem uma saída fácil: nem a oposição nem a harmonização, mas uma coexistência dinâmica e não resolvida desses polos. Se a independência, lucidez, autonomia, subjetividade são características valorizadas e tidas como constituintes do humano, elas são, aqui, desconcertantes, intrusos, obstáculos para uma boa compreensão e um bom manejo dessas condições. Falar, apresentar-se numa palestra, ter um trabalho, namorar, ser funcional acabam por colocar em xeque as próprias definições de autismo e demência.

Uma sobreposição entre pessoa e não pessoa, demência e lucidez, rotina e criatividade, normal e patológico, terror e humor, lembrança e esquecimento, funcional e não funcional e as várias versões propostas na multiplicação das biografias nos convidam a adotar uma perspectiva não binária, como um pêndulo que vai de um lado para outro, sempre em movimento, sem se fixar em nenhum deles: permanece como passagem, no entre. “I am becoming”; “I am a verb”, uma “constante inconsistência”, como nos conta Taylor sobre sua vida com doença de Alzheimer. “Eu não sou inerentemente confusa”, diz Mel Baggs. Ou como o self aparece na demência, enquanto paradoxo, ambivalência, deslize entre perda, manutenção e transformação: “ainda estou aqui”, “ainda sou eu” e “não é mais a mesma pessoa”; “não é ele/ela, é a doença”, “I have others in my mind now” (Joe), “eu vivo em um múltiplo de realidades” (Joe).

Para Veena Das (2015)DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015., situações limiares, como a doença e a feitiçaria, geram incoerência, já que, por mais que estejam incorporadas na vida cotidiana, parecem estar fora do alcance das categorias que estão disponíveis. A linguagem gera mal-entendido, rasura, ruído e não existe a possibilidade de uma posição neutra. Ao problematizar o paradigma psiquiátrico de perda do self para pessoas com doença mental, cujas falas fogem de uma estrutura narrativa contínua e linear, Veena Das pergunta: o que exatamente tem sido perdido ou, se um self está perdido, quem o perdeu? Ao reconhecer que descontinuidades também estão presentes em narrativas de pessoas tidas como saudáveis, a autora argumenta que, quando alguém diz que perdeu algo no curso da doença, não significa algo visível, como se olhássemos dentro da pessoa para ver o que perdeu, mas o que se perde é um modo de ser no mundo. É preciso, portanto, contar a história como se a pessoa não estivesse localizada dentro de um corpo, mas numa rede de relações, afetos, encontros. Assim, para entender a narrativa de uma pessoa com doença mental, nós devemos perguntar quais palavras podem emergir a partir de quais formas de vida e como essas palavras dizem para nós não apenas sobre como a experiência ganha forma, mas também como podemos ler os caminhos dessas outras vidas.

Ao discutir uma narrativa aparentemente contraditória de uma senhora com demência grave, McLean (2006)McLEAN, A. Coherence without facticity in dementia: the case of Mrs. Fine. In: COHEN, L.; LEIBING, A. (ed.). Thinking about dementia: culture, loss, and the Anthropology of senility. London: Rutgers University Press, 2006. p. 157-179. defende que a antropologia adote uma posição fenomenológica - em detrimento da hermenêutica - ao privilegiar a construção de coerência dos próprios sujeitos, mudando a busca de “coerência dentro do texto” para “coerência dentro da pessoa”. O desafio em ouvir a narrativa de Mrs. Fine, de 85 anos, repleta de lacunas e afetos, exigiu da pesquisadora uma performance para que a comunicação fosse possível: quando a fala parecia truncada, McLean lançava mão de fotos e expressões corporais, escolhia as palavras com cautela, evitava algumas perguntas, sugeria outras e aprendeu a ouvir silêncios e a ver gestos como dimensões fundamentais da dinâmica do diálogo. As “distorções” na narrativa de Mrs. Fine eram tentativas de dar um sentido para a situação atual, uma busca por explicação do porquê, afinal, ela se encontrava como interna de uma instituição.

João Biehl (2008)BIEHL, J. Antropologia do devir: psicofármacos - abandono social - desejo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 413-449, 2008. mostra como o dicionário inventado por Catarina, moradora de rua e interna de um manicômio, revelava o contexto institucional no qual vivia. Tomadas pelos especialistas como sinal de sua demência, as palavras de Catarina eram testemunhas de sua realidade, incorporando as suas experiências de fraturas e dor, como um registro do abuso que sofreu, numa luta por conexão, por sobreviver ao intolerável e não se submeter ao impossível. “Para mim, a fala e a escrita da Catarina condensavam o que o seu mundo havia se tornado - um mundo desorganizado, confuso, cheio de novas verdades e de nós que ela não conseguia desfazer, ainda que desesperadamente quisesse entender o que se passava, pois ‘se a gente não entender, a doença no corpo piora’” (Biehl, 2008BIEHL, J. Antropologia do devir: psicofármacos - abandono social - desejo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 413-449, 2008., p.419), o que exigiu do autor suspender o trabalho conceitual, deixá-lo em aberto para seguir o fluxo - nem sempre coerente - do pensamento de Catarina.

“Que tipo de subjetividade é possível quando não se é mais marcado pela dinâmica do reconhecimento e pela temporalidade? Quais são os limites do pensamento humano que Catarina continuava expandindo?”, pergunta Biehl (2008BIEHL, J. Antropologia do devir: psicofármacos - abandono social - desejo. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 413-449, 2008., p. 418) - uma pergunta fundamental também em relação ao que fazem pessoas com demência e autismo quando nos mostram os vários mundos, linguagens, pessoas e mentes possíveis.

Neste artigo, diante de algumas frases e cenas que encontramos em nossas pesquisas de campo com pessoas em processo demencial e com autistas, nossas perguntas disparadoras foram: como vê-las? O que fazer com elas?

A estranheza que percorreu os materiais, do pré-verbal ao verbal que se desloca de um referente possível, da sobreposição entre literal e metafórico, do intraduzível, da dúvida no ato da percepção, parece ser refratária à explicação, a uma tentativa de análise ou interpretação dos mesmos. Talvez esses materiais - e essas pessoas, enfim - estejam pedindo outra coisa de nós: não se trata de decifrá-los, mas de experimentar com eles, pensar o pensamento do outro para alargar o nosso próprio (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.), levar a língua a delirar (Deleuze), traçar linhas de fuga (Deleuze) ou de errância (Deligny), ficar de boca aberta (Didi-Huberman).

O “efeito de deslumbramento” que esses materiais nos proporcionam nos leva a ficar no “limiar do entendimento” (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 345-405.), estar à deriva, acolher o imprevisível, apostar no erro, no lapso, no desmoronamento, no espanto como valores heurísticos da pesquisa e potencialidades criativas para o fazer antropológico. A imersão, quando nos deixamos hipnotizar em campo, possibilita que tais momentos etnográficos se tornem paradigmas, categorias de conhecimento, pontos de passagem teórica (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 345-405., p. 353), meios de fazer aparecer relações para ver, ouvir, conhecer essas pessoas por outras vias, aprender com elas, e reinventar os próprios referenciais, tanto de mundo quanto dos modos de fazer pesquisa.

Como bem alertou Eduardo Viveiros de Castro (2002)VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002., não basta dizer que se trata de outro sujeito - esse pressuposto já está bem delineado na antropologia -, mas a questão é mostrar que se trata de um sujeito outro. A pesquisadora e autista Temple Grandin, ao recusar a mente humana em defesa de multiplicidades de mentes e cérebros, nos dá uma pista: é importante “compreender o tipo de pensador que você é”. É possível multiplicar as mentes humanas e multiplicar os tipos de pensador, não na direção dO pensamento humano, mas nos limites do pensamento, como os expandidos por Catarina - e pelas pessoas com autismo e demência, que são, aqui, tanto sujeitos de pesquisa (os “interlocutores”, os “nativos”) quanto teóricos, produtores de conhecimento e reflexão sobre as questões que nos interessam.

Se a separação entre “nós” e “eles” tem seus riscos, como toda dicotomia que não dá conta da complexidade de um campo relacional-dialógico, a aglutinação das diferenças através da aproximação com os nossos parâmetros do que seja linguagem, pessoa, mente e mundo também tem sérios problemas ao negar a singularidade e potencialidade dessas experiências. Para nós, a estratégia de pensar em “nós” e “eles”, “mundo de lá” e “mundo de cá” foram “ficções persuasivas” (Strathern, 2013STRATHERN, M. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.) acionadas para ajudar a mapear uma cartografia de relações, bem como levar a sério o convite de Joe e outros - “bem-vindo ao meu mundo”. Para Strathern (1999)STRATHERN, M. No limite de uma certa linguagem. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 157-175, 1999., exagerar a diferença entre “nós” e “eles” funciona como uma estratégia analítica, um “parar para pensar”, ao invés de uma posição conservadora do tipo “não há nada de novo para ver”.

Muitos autistas e pessoas com demência reforçam essa diferença ao mostrarem outro modo de estar no mundo e, com isso, tornar evidente a nossa própria normatividade, o logocentrismo, a dificuldade comunicacional, os limites daqueles que estão do lado de cá. Assim, apostar na diferença entre “nós” - neurotípicos - e “eles” - neurodivergentes - é nos encontrar em um lugar ético (Fonseca, 2017FONSECA, C. Lá onde, cara pálida? Pensando as glórias e os limites do campo etnográfico. Revista Mundaú, [s. l.], n. 2, p. 96-118, 2017. DOI: https://doi.org/10.28998/rm.2017.n.2.3148.
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), estabelecer um acordo pragmático com nossos interlocutores. Na relação entre o repertório de textos do etnógrafo e o campo, aqueles serviriam, por vezes, “como conectores entre um ‘dentro’ e ‘fora’ do campo, ajudando a redesenhar fronteiras e pontes entre quaisquer ‘nós’ e ‘eles’” (Fonseca, 2017FONSECA, C. Lá onde, cara pálida? Pensando as glórias e os limites do campo etnográfico. Revista Mundaú, [s. l.], n. 2, p. 96-118, 2017. DOI: https://doi.org/10.28998/rm.2017.n.2.3148.
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, p. 115).

Ao tomarmos o não saber como lugar de conhecimento - ou a trama entre o saber e o não saber (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, G. Imagens-ocasiões. São Paulo: Fotô Editorial, 2018b.) -, escrevemos para enfrentar a nebulosidade de algo, apostando que “a escrita irá situar-se exatamente num limite vertiginoso, no fio do risco a se correr: escrever para conter, desenhar os limites daquilo que não os tem, mortificar o sem-limite? Ou então escrever para deixar fugir, desenhar a ausência mesma - ou a porosidade - de todo limite?” (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, G. Imagens-ocasiões. São Paulo: Fotô Editorial, 2018b., p. 44). Diante dessa encruzilhada, escolhemos a segunda opção, numa tentativa de transbordar o autismo e a demência para outras direções: da patologia ao páthos, do sintoma à experiência, ao acontecimento, a outro mundo possível.

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    » http://doi.org/10.1089/aut.2020.29014.njw
  • WALKER, N. Throw away the master’s tools: liberating ourselves from the pathology paradigm. In: NEUROQUEER: the writings of Dr. Nick Walker. [S. l.]: Nick Walker, 2022. Disponível em: Disponível em: https://neuroqueer.com/throw-away-the-masters-tools/ Acesso em: 22 jul. 2022.
    » https://neuroqueer.com/throw-away-the-masters-tools/
  • 1
    Aqui vale descrever brevemente o campo e as pesquisas de cada autora. Daniela Feriani é antropóloga e estuda a composição da demência como diagnóstico (Feriani, 2017bFERIANI, D. Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer. Ponto Urbe, São Paulo, v. 20, 2017b.), experiência e estética (Feriani, 2019FERIANI, D. Da alucinação na clínica ao ver alucinatório da imagem: um percurso etnográfico. GIS - Gesto, Imagem, Som: revista de antropologia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 14-49, 2019.) - entendida, aqui, como pensamento sensível, intuitivo, imagético -, com atenção especial para questões como memória (Feriani, 2017cFERIANI, D. Rastros da memória na doença de Alzheimer: entre a invenção e a alucinação. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 60, n. 2, p. 532-561, 2017c.), noção de pessoa (Feriani, 2020FERIANI, D. Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis). Mana, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, e262207, 2020.) e linguagem. Em sua pesquisa de doutorado (Feriani, 2017aFERIANI, D. Entre sopros e assombros: estética e experiência na doença de Alzheimer. 2017. Tese (Doutorado em antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017a.), frequentou as reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) para cuidadores (sobretudo familiares, como cônjuges e filhos), acompanhou as consultas nos ambulatórios de neurologia e psiquiatria geriátrica de um hospital universitário e fez visitas domiciliares às famílias. A pesquisa se desdobrou em um projeto de pós-doutorado (2017-2020), no qual analisou autobiografias e blogs escritos por pessoas com doença de Alzheimer e recolheu imagens sobre o tema, como ensaios fotográficos, vídeos, metáforas, gestos, bordados, além de produzir registros audiovisuais. Atualmente, realiza um segundo pós-doutorado, ampliando a investigação das formas expressivas em torno dos processos demenciais, como romances, filmes, peças de teatro, fotografias, vídeos, etc. As pessoas com as quais conviveu ao longo das pesquisas são os próprios enfermos e seus cuidadores-familiares, moradores do estado de São Paulo e provenientes, sobretudo, de classes sociais menos favorecidas. Neste artigo, a autora traz uma parte dos materiais recolhidos ao longo das pesquisas, principalmente conversas e cenas com as pessoas em processo demencial, presenciadas em campo, e a produção autoral das mesmas. Fernanda Cruz é linguista e seus trabalhos de pesquisa estão concentrados na descrição das interações cotidianas que acontecem com sujeitos autistas e com doença de Alzheimer. Suas pesquisas se realizam por meio de: a) registros audiovisuais de interações cotidianas das quais participam sujeitos autistas, realizadas em ambientes como casas, escolas, instituições clínico-terapêuticas (Cruz, 2017bCRUZ, F. M. Interação corporificada: multimodalidade, corpo e cognição explorados na análise de conversas envolvendo sujeitos com Alzheimer. Alfa: revista de linguística, São Paulo, v. 61, n. 1, p. 55-80, jan./mar. 2017b. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5794-1704-3.
    https://doi.org/10.1590/1981-5794-1704-3...
    , 2018bCRUZ, F. M. Documentação e investigação multimodal de interações envolvendo crianças com autismo: corpo, linguagem e mundo material. Calidoscópio, São Leopoldo, v. 16, n. 2, p. 179-193, 2018b. Disponível em: Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/view/cld.2018.162.01 . Acesso em: 20 set. 2021.
    https://revistas.unisinos.br/index.php/c...
    ) com o propósito de descrever como tais interações se organizam e como se (des)coordenam distintas sociabilidades; c) registros audiovisuais de interações das quais participam sujeitos com Alzheimer (Cruz, 2010CRUZ, F. M. Verbal repetitions and echolalia in Alzheimer’s discourse. Clinical Linguistics & Phonetics, [s. l.], v. 24, n. 11, p. 848-858, 2010. DOI: https://doi.org/10.3109/02699206.2010.511403.
    https://doi.org/10.3109/02699206.2010.51...
    , 2015CRUZ, F. M. Beyond neurological structures: Signs of Alzheimer’s disease and other possible cartographies. Pragmatics and Society, [s. l.], v. 6, n. 2, p. 240-260, 2015., 2017cCRUZ, F. M. Corpos cotidianos: matéria, movimento e ornamento. Anais da ReACT, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 25-46, 2017c.); c) processos de criação e consultoria artística envolvendo as relações sem palavras (Cruz, 2017aCRUZ, F. M. Elementos para uma análise multimodal da interação: um exemplo de correlação linguístico-gestual no autismo. In: GONÇALVES-SEGUNDO, P. R. et al. (org.). Texto, discurso e multimodalidade: perspectivas atuais. São Paulo: Editora Paulistana, 2017a. p. 158-179., 2018aCRUZ, F. M. O adeus de Augusto: as interações entre crianças autistas e a emergência de uma pesquisadora-artista em estado de presença próxima. Veredas: revista de estudos linguísticos, Juiz de Fora, v. 22, n. 1, p. 130-149, 2018a. Disponível em: Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2018/08/Artigo_8_Veredas2018_1.pdf . Acesso em: 20 set. 2021.
    https://www.ufjf.br/revistaveredas/files...
    ). Os materiais presentes neste artigo derivam então desse campo de observações e interações com sujeitos autistas, profissionais de saúde e pais de sujeitos autistas.
  • 2
    “Dissolução do self” é uma expressão usada pelos médicos para indicar “uma perda da noção de realidade”, um “sintoma psicótico”, como não se reconhecer ao se olhar no espelho, indicando um estágio avançado da demência. Feriani (2020)FERIANI, D. Doença de Alzheimer e xamanismo: diálogos (im)possíveis). Mana, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, e262207, 2020. problematiza tal expressão ao mostrar como ela se fundamenta em uma determinada noção de pessoa.
  • 3
    Nick Walker (2021)WALKER, N. Toward a neuroqueer future: an interview with Nick Walker. Entrevista com Dora M. Raymaker. Autism in Adulthood, [s. l.], v. 3, n. 1, Mar. 2021. DOI: http://doi.org/10.1089/aut.2020.29014.njw.
    http://doi.org/10.1089/aut.2020.29014.nj...
    recupera a história do desenvolvimento do conceito de neurodiversidade (Judy Singer, 2017SINGER, J. Neurodiversity: the birth of an idea. [S. l.]: Amazon Digital Services, 2017.) que se desdobra em outros conceitos como neurominoria (Nick Walker, 2022WALKER, N. Throw away the master’s tools: liberating ourselves from the pathology paradigm. In: NEUROQUEER: the writings of Dr. Nick Walker. [S. l.]: Nick Walker, 2022. Disponível em: Disponível em: https://neuroqueer.com/throw-away-the-masters-tools/ . Acesso em: 22 jul. 2022.
    https://neuroqueer.com/throw-away-the-ma...
    ), neurodivergente, neurocosmopolita e neuroqueer.
  • 4
    Ainda que o movimento personhood seja de grande importância para a problematização do discurso biomédico da “dissolução do self”, a abordagem que pretendemos trazer neste artigo vai em outra direção: ao invés de tentarmos resgatar/manter um self, mostrando o que permanece, apesar das perdas e transformações da doença, buscamos ver como essas experiências deslocam/complexificam pessoa, mundo, linguagem, corpo, mente. Para uma revisão crítica da abordagem do personhood, ver O’Connor et al. (2007)O’CONNOR, D. et al. Personhood in dementia care: developing a research agenda for broadening the vision. Dementia, [s. l.], v. 6, n. 1, p. 121-142, 2007., Halewood (2016)HALEWOOD, M. Do those diagnosed with Alzheimer’s disease lose their souls? Whitehead and Stengers on persons, propositions and the soul. The Sociological Review, [s. l.], v. 64, n. 4, p. 786-804, 2016. e Leibing (2018)LEIBING, A. On heroes, Alzheimer’s, and fallacies of care: stories of utopia and commitment. In: ZIMMERMANN, H.-P. (Hg.). Kulturen der Sorge: wie unsere Gesellschaft ein Leben mit Demenz ermöglichen kann. Frankfurt: Campus, 2018. p. 177-194..
  • 5
    Autor do blog Living with Alzheimer’s.
  • 6
    Autora do blog Gerda Saunders - Living with Dementia (ver https://www.gerdasaunders.com/).
  • 7
    Um pouco após termos finalizado e submetido este artigo, tivemos contato com o livro Linguagem e autismo: conversas transdisciplinares (Magnani; Ruckert, 2021MAGNANI, L. H.; RUCKERT, G. H. Linguagem e autismo: conversas transdisciplinares. Catu: Bordô Grená, 2021.) e, através dele, com o projeto “Traduzir-se: autismo em primeira pessoa na prática acadêmica”, que reúne pesquisadores autistas e não autistas que pesquisam conjuntamente a relação entre linguagem e autismo. Como apresentam seus organizadores, esse livro não seria exclusivamente uma coletânea de artigos sobre linguagem e autismo (tema central), mas ele seria também “linguagem em ação, linguagem em movimento. É uma obra cuja concepção, proposta, organização e curadoria foi realizada por pessoas autistas que, atualmente, estão inseridas e em articulação com redes de conversas da coletividade autista” (Magnani; Ruckert, 2021MAGNANI, L. H.; RUCKERT, G. H. Linguagem e autismo: conversas transdisciplinares. Catu: Bordô Grená, 2021., p. 11). Assim, esta versão do artigo, datada, carece, de partida, da conversa com esse material, que não podia, todavia, deixar de ser mencionado, ao menos em uma nota pós-escrita.
  • 8
    No evento Visibilidade Autista, abril de 2020, organizado pelo Laboratório de Linguagem e Cognição (LabLinC), Universidade Federal de São Paulo.
  • 9
    Quando caracterizamos essas crianças como autistas que fazem pouco uso da fala, estamos nos referindo ao fato de, nos momentos que pudemos observar e estar presentes naquela instituição, a fala (ou atividade verbal) não fora acionada por aquelas crianças. Esse perfil sociointeracional e linguístico também se confirma nas fichas que contém relatos dos responsáveis e na história diagnóstica. Estima-se que cerca de 30% das crianças autistas não fazem o chamado uso funcional da fala e permanecem minimamente verbais, mesmo após receber anos de intervenções e uma série de oportunidades educacionais (Tager-Flusberg; Kasari, 2013TAGER‐FLUSBERG, H.; KASARI, C. Minimally verbal school‐aged children with autism spectrum disorder: the neglected end of the spectrum. Autism Research, [s. l.], v. 6, n. 6, p. 468-478, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/aur.1329.
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    ). Do ponto de vista da definição do que seria pouco, minimamente verbal ou não verbal, alguns estudiosos do campo das pesquisas clínicas (Posar; Visconti, 2022POSAR, A.; VISCONTI, P. Update about “minimally verbal” children with autism spectrum disorder. Revista Paulista de Pediatria, [s. l.], n. 40, e2020158, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-0462/2022/40/2020158.
    https://doi.org/10.1590/1984-0462/2022/4...
    ; Tager-Flusberg; Kasari, 2013TAGER‐FLUSBERG, H.; KASARI, C. Minimally verbal school‐aged children with autism spectrum disorder: the neglected end of the spectrum. Autism Research, [s. l.], v. 6, n. 6, p. 468-478, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/aur.1329.
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    ) têm apontado a necessidade de maior precisão sobre esses termos e sobre a própria caracterização linguística do que seria pouco verbal ou não verbal. Do ponto de vista das formas de se comunicar e das formas de linguagem, Mel Baggs, autista, problematiza, no documentário In my language (2007)IN MY LANGUAGE. Roteiro e produção: A. M. Baggs. [S. l.: s. n.], 2007. Publicado pelo canal silentmiaow. 1 vídeo (8min36s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JnylM1hI2jc . Acesso em: 22 jul. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=JnylM1hI...
    , concepções de linguagem e comunicação em voga em uma perspectiva neurotípica. Magnani e Rückert (2021MAGNANI, L. H.; RUCKERT, G. H. Linguagem e autismo: conversas transdisciplinares. Catu: Bordô Grená, 2021., p. 10), pesquisadores da linguagem e autistas, nos advertem sobre o fato de que a linguagem autista é “um acontecimento complexo, envolve formas divergentes do padrão hegemônico de se relacionar consigo, com o outro, com os objetos, com o mundo”, problematizando também o enfoque sobre os déficits e lacunas, o que pode favorecer uma invisibilidade das formas complexas como a linguagem se apresenta no autismo.
  • 10
    Tentativas de ir além da linguagem verbal resultaram em mostrar os materiais de campo de outros modos. Assim, Daniela desenvolveu um site (www.soproseassombros.com.br), com vídeos, fotografias, fotomontagens, GIFs, frases e objetos recolhidos ao longo da pesquisa. Fernanda desenvolveu uma coreografia em parceria com a artista e mãe de um autista não verbal, Deise Miranda, a partir da experiência dela com o filho e da proposta deligniana de traçar os gestos e as linhas. A pesquisa compôs o espetáculo Entre o céu e o chão, criado pelo grupo C O R P O e m T. E. I. A (Território de Encontros Intensivos Artísticos), dirigido por Lu Favoreto e exibido em novembro de 2019 no Estúdio Oito Nova Dança (São Paulo).
  • 11
    A escrita, na modernidade, em sociedades ditas ocidentais, se separou do desenho, como nos mostra Ingold (2007)INGOLD, T. Lines: a brief history. Abingdon: Routledge, 2007.. Em contraposição, temos Davi Kopenawa, que chama as páginas escritas de “peles de imagens” ou “peles de papel”; Bruce Albert explica que, para os Yanomami, “escrever é ‘desenhar traços’, ‘desenhar pontos’ ou ‘desenhar sinusoides’, e a escrita é um ‘desenho de palavras’” (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 610).
  • 12
    As citações de Joe não foram referenciadas e o blog não está mais disponível online.
  • 13
    Sobre o lugar que as imagens assumem na pesquisa com processos demenciais e a proposta de uma etnografia assombrada que surge a partir disso, ver Feriani (2019)FERIANI, D. Da alucinação na clínica ao ver alucinatório da imagem: um percurso etnográfico. GIS - Gesto, Imagem, Som: revista de antropologia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 14-49, 2019..
  • 14
    Kris é autora do blog Dealing with Alzheimer’s Blog.
  • 15
    O literal é uma metáfora que se obviou (Wagner, 1989WAGNER, R. Symbols that stand for themselves. Chicago: The University of Chicago Press, 1989.) - a metáfora da metáfora que obvia o referente ou quando a metáfora se torna o próprio referente, como Hamlet, que revela a verdade fingindo-se de louco, revela a verdade através da encenação do teatro ou, como vimos, da escrita.
  • 16
    Ver www.soproseassombros.com.br.
  • 17
    Viveiros de Castro (2002)VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002. propõe a “ignorância epistemológica” para a entrada no campo, ou seja, não saber o que se vai encontrar, e lembra que, muitas vezes, as nossas perguntas dizem respeito apenas a nós; os “nativos” terão outras. Não se trata, portanto, de buscar diferentes respostas para perguntas supostamente gerais ou universais - as próprias perguntas mudam.
  • 18
    Essa é uma pergunta fundamental para as experiências de autismo e demência, já que, além de acionarem outro modo de interação com o mundo, a noção de funcionalidade é muito importante para o delineamento do diagnóstico. Sobre a complexidade do diagnóstico na demência, ver Feriani (2017b)FERIANI, D. Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de Alzheimer. Ponto Urbe, São Paulo, v. 20, 2017b., Cruz e Morato (2005)CRUZ, F. M.; MORATO, E. M. Os embates da memória. Horizontes, Jundiaí, v. 23, p. 29-38, 2005..
  • 19
    Foram encontradas quatro fotografias feitas por um judeu, que, para não ser visto, precisou se esconder nas câmaras de gás para fotografar. As fotos mostravam fragmentos do mundo lá fora (pilhas de corpos, mulheres nuas conduzidas ao crematório, algumas árvores), sendo que uma delas, tida como um borrão, não foi levada em conta para a exposição feita posteriormente por ser esteticamente inviável. Didi-Huberman, porém, defende que devemos considerar a fotografia do borrão justamente por mostrar o contexto de aprisionamento e horror em que foi produzida. Ser “apenas um borrão” diz muito.
  • 20
    Foram 12 autobiografias e três blogs lidos até o momento, de pessoas diagnosticadas com doença de Alzheimer e moradoras de países como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá - todos, portanto, estão em língua inglesa. Vale mencionar que as autobiografias, publicadas como livros, passaram por revisão e editoração. Alguns dos autores contam um pouco sobre esse processo, normalmente feito pelo cônjuge - a esposa ou o marido revisam o material antes de ir à editora e alguns chegam a reescrever trechos considerados muito caóticos. Joe, autor de um blog, brinca que não sabe o que seria dele sem o corretor automático. Como já dito, esse é um ponto importante: os textos precisam, afinal, ter alguma inteligibilidade caso queiram ser lidos por outras pessoas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
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