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As temporalidades do cuidado: autismo, parentesco e pandemia

The temporalities of care: autism, kinship and pandemic

Resumo

Tomando como ponto de partida o cenário da pandemia em suas dimensões disruptivas da temporalidade do cotidiano, este artigo visa analisar os entrelaçamentos entre deficiência, cuidado e parentesco. Partimos de duas pesquisas realizadas de modo independente para traçar reflexões conjuntas sobre os efeitos das medidas de isolamento social entre famílias de pessoas com autismo. Argumentamos que, para além da excepcionalidade, uma questão fundamental que emerge do evento crítico é a reflexão que promove tanto em direção ao passado, isto é, aos modos de se organizar o cotidiano antes da pandemia, quanto às projeções sobre o futuro. Abordamos, assim, as temporalidades do cuidado em uma variedade de acepções: as distintas demandas do cuidado ao longo do curso de vida, os impactos da deficiência em relação à presunção da intergeracionalidade do cuidado e o amplo espectro de efeitos das medidas de isolamento social em torno da organização temporal da vida cotidiana.

Palavras-chave:
deficiência; parentesco; cuidado; pandemia

Abstract

Taking as a starting point the pandemic scenario in its disruptive dimensions of the temporality of everyday life, this article aims to analyze the intertwinings between disability, care and kinship. We started from two research carried out independently to draw joint reflections on the effects of social isolation measures among families of people with autism. We argue that, beyond exceptionality, a fundamental issue that emerges from the critical event is a reflection that promotes both towards the past, that is, towards the ways of organizing daily life before the pandemic, as well as projections about the future. Thus, we approach the temporalities of care in a variety of meanings: the different demands of care throughout the life course, the impacts of disability in relation to the presumption of intergenerational care and the broad spectrum of effects of social isolation measures around the temporal organization of everyday life.

Keywords:
disability; kinship; care; pandemic

Pandemia, reorganização do cotidiano e autismo1 1 O autismo é um conceito disputado e cercado de controvérsias que perpassam saberes médicos, entraves políticos e sociais. Pela perspectiva biomédica, de acordo com o CID-11, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado como um transtorno de neurodesenvolvimento com questões comunicacionais, sociais e sensoriais. Em 2012, no Brasil, a partir da promulgação da Lei nº 12.764, o autismo passa a ser reconhecido como uma deficiência para todos os efeitos legais, assegurando direitos específicos a essa população (Brasil, 2012). Mas há também movimentos sociais e políticos ao redor do mundo que têm reivindicado outras concepções sobre a condição dando visibilidade às subjetividades e ao reconhecimento das diferentes experiências, constituídas nas interseccionalidades que atravessam as pessoas autistas. A exemplo desses movimentos, o movimento da neurodiversidade tem advogado uma identidade autista, como demonstrado por Ortega (2008, 2009), sobre esse ativismo autista, e Adriano, Lugon e Aydos (2021), que apresentam as particularidades do movimento da neurodiversidade no contexto brasileiro. Neste artigo, articulamos essas diferentes e disputadas concepções, considerando os múltiplos acionamentos do autismo que nossos(as) interlocutores(as) fazem em seus cotidianos e no ativismo político empreendido. Da mesma forma, as terminologias associadas às pessoas diagnosticadas com autismo estão imersas nesses campos de disputas políticas e identitárias. Em nossos campos etnográficos os termos “pessoa com autismo”, “pessoa autista” ou “autista” eram utilizados de modo intercambiável, assim, utilizamos essas diferentes terminologias ao longo do artigo.

Março de 2020, a última reunião de planejamento de eventos sobre autismo, promovidos por um coletivo de associações na cidade de Belo Horizonte, é adiada. Desde o início do mês, com as notícias sobre o novo coronavírus circulando nos noticiários e ganhando proporção nas conversas informais, a possibilidade de cancelamento dos eventos promovidos no mês de conscientização sobre o autismo, em abril, já trazia angústia e gerava maior movimento nas redes sociais virtuais entre mães e pais que compunham o coletivo. O campo de pesquisa da primeira autora, antes constituído por reuniões de acolhimento das associações de familiares de pessoas autistas e suas atuações em espaços públicos, ganhou composição junto a mensagens de voz, câmeras ligadas, notificações, lives, publicações e trocas digitalizadas. Nas reuniões virtuais realizadas por uma das associações2 2 Optamos por não citar os nomes das associações pesquisadas e por trocar os nomes das pessoas que foram nossas interlocutoras nas pesquisas visando garantir a privacidade e o anonimato. acompanhada durante a pesquisa, mães e pais questionavam: “E o acolhimento que fazíamos? A escuta das famílias? Como faremos isso agora?”

As dúvidas diante do cenário inédito não estavam restritas a esse grupo ou ao campo da primeira autora. Desde a declaração feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em março de 2020, reconhecendo uma pandemia com alcance global, e as consequentes medidas de isolamento social tomadas desde então por governos locais, temos vivido não só a experiência do medo da contaminação e da morte, e as consequências econômicas e sociais mais amplas, mas tivemos também nossos cotidianos inexoravelmente afetados. O fechamento de instituições de suporte ao cuidado, como as escolas, e a imposição do trabalho em home office para algumas pessoas - condição que não atingiu todos os grupos de trabalhadores, sendo avaliada como um privilégio restrito às pessoas mais escolarizadas de alguns grupos profissionais -, trouxe também novos elementos na configuração das relações desenvolvidas no espaço doméstico. A espacialidade de muitas casas passou, assim, a combinar rotinas de trabalho remunerado e os variados trabalhos domésticos e de cuidado não remunerados.

Nesse ínterim, tornou-se lugar comum, no jornalismo e nas pesquisas acadêmicas, destacar as enormes desigualdades que a pandemia de covid-19 escancarou: desemprego, perda de renda, possibilidades e restrições de cumprimento do isolamento social, acesso à internet e a equipamentos que possibilitassem a continuidade de trabalho, estudo e comunicação; tudo desigualmente distribuído. Se as consequências da pandemia foram heterogêneas entre regiões, países, classes sociais e grupos étnicos, essa desigualdade também se expressou dentro de uma mesma família ou de uma mesma casa. Dentre as análises dos impactos da pandemia, uma das conclusões frequentes é que o evento reforçou normas de gênero relativas ao cuidado: é sobre as mulheres que recaem os encargos pelo cuidado de crianças, de parentes com algum grau de dependência e pela maioria dos trabalhos domésticos não pagos.3 3 Não pretendemos nos estender em uma revisão bibliográfica sobre o período, mas vale destacar que, durante a pandemia, ainda em curso enquanto escrevemos este artigo, nas ciências sociais brasileiras, a questão tem sido tematizada em lives, dossiês, números especiais e boletins de revistas acadêmicas, tais como: Boletim Ciências Sociais (Anpocs), Horizontes Antropológicos (n. 59), Tomo (n. 38), Dilemas (seção excepcional Reflexões na Pandemia), entre vários outros. Nessas produções, o aspecto da desigualdade foi largamente tematizado, inclusive no que diz respeito à dimensão de gênero nas relações de cuidado. A produção internacional indica conclusões similares. Mesmo em contextos considerados historicamente mais igualitários em termos de gênero, as desigualdades reveladas pela pandemia foram enfatizadas; ver, por exemplo, Valgerður Bjarnadóttir e Andrea Hjálmsdóttir (2021) sobre a Islândia. Diante desse cenário, a segunda autora, ao realizar uma série de entrevistas, em 2021, com uma de suas interlocutoras de pesquisa, mãe solo4 4 A terminologia “mãe solo” refere-se à experiência monoparental feminina, e a popularização da expressão se deu especialmente a partir de publicações nas redes sociais, nos anos de 2010, por mães ativistas com inspirações feministas buscando problematizar a relação entre parentalidade e conjugalidade, as desigualdades de gênero no exercício do cuidado de filhos(as) e a dimensão social da maternidade. de duas crianças, uma delas com autismo, surpreendeu-se com as avaliações pessoais que ela teceu sobre as medidas de isolamento social. A despeito de destacar todos os desafios enfrentados com a suspensão das escolas e dos serviços de terapia e na adaptação ao home office, ela enfatizou, como um dos inesperados efeitos positivos5 5 Acionamos o termo “positivo” como noção nativa que contrasta no discurso narrado, de modo mais categórico, experiências positivas e negativas. A intenção não é, no entanto, contrapor analiticamente experiências positivas e negativas, como boas e más, mas enfatizar justamente as ambiguidades da experiência e a complexidade do mundo social. da pandemia, a reorganização temporal do cotidiano que lhe possibilitava outras formas de cuidado em relação às crianças e, em particular, às demandas específicas de maternar um filho com autismo.

Tomando, assim, como ponto de partida o cenário da pandemia em suas dimensões disruptivas da temporalidade do cotidiano, este artigo visa analisar os entrelaçamentos entre deficiência, cuidado e parentesco. Partimos de duas pesquisas realizadas de modo independente6 6 A pesquisa da primeira autora foi realizada com bolsa Capes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAn) da UFMG e resultou na dissertação de mestrado Autismo em movimento: a mobilização da família no reconhecimento do autismo (Carvalho, 2022). A pesquisa da segunda autora “Maternidade solo: parentalidades, conjugalidades e noções de família” foi financiada pelo CNPq. para traçar reflexões conjuntas sobre os efeitos das medidas de isolamento social entre famílias de pessoas com autismo, considerando tanto seus impactos nas formas de ativismo como também no cotidiano das relações. Argumentamos que, para além da excepcionalidade, uma questão fundamental que emerge do evento crítico (Das, 1995DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press, 1995.)7 7 Veena Das (1995) apresenta a ideia de evento crítico como uma ruptura no cotidiano que produz novas disposições para ações que mudam categorias nas quais as pessoas operam. Para a autora, o conceito aproxima os processos políticos, históricos e sociais às trajetórias particulares e à vida cotidiana. Acionamos o conceito de evento crítico para pensar o contexto de pandemia da covid-19, que trouxe essas rupturas em nossos cotidianos, assim como disposições sociais, políticas e econômicas em todo o mundo. No trabalho de Veena Das e Lori Leonard (2007), as autoras retomam o conceito de evento crítico para analisar situações de diagnóstico clínico, que também empreendemos neste artigo para refletir acerca das trajetórias familiares diante do diagnóstico de autismo de filhos(as). é a reflexão que promove tanto em direção ao passado, isto é, aos modos de se organizar o cotidiano antes da pandemia, quanto às projeções sobre o futuro. Abordamos, assim, as temporalidades do cuidado em uma variedade de acepções: as distintas demandas do cuidado ao longo do curso de vida, os impactos da deficiência em relação à presunção da intergeracionalidade do cuidado e o amplo espectro de efeitos das medidas de isolamento social em torno da organização temporal da vida cotidiana.

A pesquisa da primeira autora é resultado de uma etnografia, realizada desde 2019, acompanhando mães e pais de pessoas com autismo e o envolvimento desses familiares em associações e esferas do poder público, apontando para as complexas articulações entre diagnóstico, deficiência e a experiência familiar na efetivação de direitos. A partir da etnografia, a primeira autora passa a reconhecer a centralidade da experiência familiar no contexto de reivindicação de direitos e reconhecimento do autismo. Nesses entrelaçamentos entre o domínio do doméstico e do público, da intimidade e do político, discursos e práticas acerca de parentesco, deficiência, direitos, cuidado e justiça social são reelaborados. Assim, são reunidos os sentidos e práticas sobre deficiência nas vivências cotidianas dessas famílias e, principalmente, nas mobilizações políticas concebidas por elas, entendendo, em um duplo sentido, como deficiência e família são mutuamente escritas. As reelaborações acerca do cuidado, tomado como elemento central nesta análise, apresentam as minúcias e ambiguidades das práticas de cuidado, como, por exemplo, os tensionamentos em relação às questões de autonomia e independência; mas abarcam também redes relacionais de acolhimento e suporte, através de estratégias coletivas de organização, como as associações.

As reflexões dessa pesquisa também são motivadas e reverberam no próprio contexto particular da pesquisadora, com a presença de pessoas com deficiência em seu meio familiar, ainda que não sejam experiências relativas à parentalidade, como é o caso das mães e pais de autistas que contribuem com sua pesquisa. A posição da pesquisadora ora se aproxima das experiências de suas interlocutoras, ao compartilhar a dimensão da maternidade, ora se distancia diante das particularidades de uma parentalidade atípica. Sendo a pesquisadora mãe de uma criança pequena,8 8 Nossas referências às crianças pequenas no texto referem-se, muito genericamente, à primeira infância, período do curso de vida definido entre o nascimento e os 6 anos de idade. e com engajamento político na questão da maternidade, não raras foram as vezes que essa posição foi relevante no estabelecimento de relações dentro do campo de pesquisa, ainda que as mães e pais ativistas estivessem em outra etapa do curso da vida, tendo, em sua maioria, filhos e filhas já adultos.

A segunda autora se aprofundou no debate acadêmico e político sobre deficiência por meio da orientação da pesquisa da primeira autora, embora pessoalmente já tivesse adentrado essas discussões por conviver, em sua família, com pessoas com deficiência, o que a levou, em muitos momentos, a refletir sobre a reciprocidade de cuidados intergeracionais. De modo mais direto, contudo, foi a partir da realização de uma história de família (Pina Cabral; Lima, 2005PINA CABRAL, J.; LIMA, A. P. Como fazer uma história da família: um exercício de contextualização social. Etnográfica, Lisboa, v. 9, n. 2, p. 355-388, 2005.) com uma interlocutora, inicialmente convidada a participar da pesquisa por se autointitular “mãe solo” e abraçar um ideário feminista, que a deficiência como marcador crucial das relações de parentesco veio à tona mais fortemente em seu trabalho. No curso da composição dessa história de família, o diagnóstico de autismo do filho e as dúvidas em relação a um possível diagnóstico da filha espraiaram por todos os aspectos da narrativa de vida de sua interlocutora denotando a centralidade da intersecção entre parentesco e deficiência. A segunda autora compartilha, ainda, com sua interlocutora não só uma relação de pesquisa estritamente, mas também experiencial e política, por ser mãe de uma criança pequena e por ter alguma atuação política em relação à maternidade. Ao mesmo tempo, contudo, a alteridade experiencial em relação à maternidade envolve ainda a deficiência como marcador crucial.

Em concordância com as críticas feministas (Haraway, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995.) de que as pesquisadoras também estão localizadas e posicionadas frente ao campo de pesquisa, e que essa posicionalidade impacta as relações estabelecidas, consideramos a dimensão experiencial da maternidade como uma forma de acesso ao conhecimento. Menos do que uma diretriz para a verdade, tomamos a noção de experiência como uma “prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente” (Brah, 2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jun. 2006. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332006000100014 . Acesso em: 30 out. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200600...
, p. 360). Nessa direção, o fato de sermos mães não apenas possibilita, em muitos momentos, a abertura de canais de diálogo, mas também coloca em destaque dimensões específicas da parentalidade no contexto do autismo, bem como os tensionamentos das práticas de cuidado frente à pandemia.

As distintas metodologias mobilizadas por cada autora trazem diferentes enfoques sobre o cotidiano das famílias ao longo da pandemia. No caso da primeira autora, é a partir da etnografia das associações e de suas atuações políticas e públicas que vai se conformando um retrato ampliado das articulações entre deficiência, cuidado e a temporalidade da pandemia nos cotidianos das famílias que compõem tais coletivos. Já no caso da segunda autora, é por meio da singularidade de uma vida e das minúcias desse relato que são levantadas questões mais amplas sobre as práticas de cuidado. As pesquisas, realizadas de modo independente, acabam por se aproximar nas reflexões sobre cuidado, temporalidade, deficiência e relações de parentesco, trazendo uma análise situada no contexto da pandemia, mas que dialoga com debates mais amplos sobre deficiência.

Parentesco, cuidado, deficiência e curso da vida

Foi um choque, é sempre um choque [sobre o diagnóstico de autismo]. Porque qualquer notícia que a gente tenha em relação aos nossos filhos que difere daquilo que a gente pensa e sonha e planeja, não que você tenha tudo costurado, mas nenhuma mãe pensa em ter um filho com deficiência. Se isso não é sinalizado em nenhum momento nas consultas de pré-natal, a gente já pensa que a criança vai nascer e a gente vai continuar a vida da forma linear que a gente acha que é. (Isabela, em entrevista à segunda autora, em 2021).

Se a pandemia e as consequentes medidas de isolamento social colocaram em relevo as práticas de cuidado e promoveram um efeito disruptivo na temporalidade do cotidiano em uma variedade de contextos, nas histórias das pessoas que foram nossas interlocutoras de pesquisa, mães e pais de pessoas no espectro autista, essa não foi a primeira vez que a temporalidade do curso da vida e as demandas de cuidado no contexto do parentesco se tornaram proeminentes em suas reflexões.

O momento do diagnóstico, tal qual apresentado na fala de Isabela, marca também para muitas famílias uma inflexão em relação às projeções sobre o futuro de seu filho ou filha, sua prática parental e sobre as expectativas em torno das demandas do cuidado. Dentre as famílias interlocutoras, em ambas as pesquisas, o diagnóstico é visto como um momento disruptivo do ordenamento da vida familiar, ainda que o reconhecimento das diferenças já se apresente antes do diagnóstico. A classificação biomédica concretiza um acontecimento para essas famílias,9 9 Essa análise também é feita por outras produções, ao abordar como o diagnóstico clínico impacta a vida das pessoas, ao mesmo tempo que é transformado por essas experiências. Ver, por exemplo, Hacking (2006), Grinker (2010), Nunes (2014), Campoy (2015), Rios (2017), Aydos (2017), Valtellina (2019). transformando perspectivas sobre o curso da vida. A semiótica clínica passa a atravessar a vida dessas pessoas, autistas e suas famílias, criando uma ruptura do cotidiano e apresentando novos rearranjos das trajetórias familiares e das práticas de cuidado. Seja através de terapias, medicamentos, consultas médicas, ou mesmo nas práticas domésticas e rotineiras, o repertório da deficiência passa a compor essas subjetividades e experiências. Não raro, a expressão “maternidade atípica”10 10 Maternidade/paternidade atípica, expressão acionada por interlocutores(as) das pesquisas, e carregada de controvérsias dentro do movimento autista, refere-se à particularidade da experiência de parentalidade em relação a pessoas neuroatípicas, como as diagnosticadas com autismo. O termo “atípico” ou “neuroatípico” advém do debate sobre neurodiversidade, que, em linhas gerais, defende que a diversidade neurológica não deveria ser abordada como doença ou transtorno, mas como uma diferença mais estritamente (Ortega, 2008, 2009). é evocada para expressar essa reordenação da trajetória subjetiva, do cuidado, do cotidiano e da própria prática parental.

Baseadas na premissa antropológica e histórica de que famílias são construções sociais que variam transculturalmente, Rayna Rapp e Faye Ginsburg (2011)RAPP, R.; GINSBURG, F. Reverberations: disability and the new kinship imaginary. Anthropological Quarterly, [s. l.], v. 84, n. 2, p. 379-410, 2011. propõem, com perspicácia, a terminologia “imaginário de parentesco” (kinship imaginary, no original) para enfatizar como as famílias tanto são feitas de carne e osso como também são parte de uma imaginação cultural. Parafraseando Marx, elas afirmam que “as pessoas fazem suas próprias famílias, mas elas não as fazem como bem entendem, mas sob circunstâncias preexistentes, dadas e transmitidas pelo passado” (Ginsburg; Rapp, 2015GINSBURG, F.; RAPP, R. Family. In: ADAMS, R.; REISS, B.; SERLIN, D. (ed.). Keywords for disability studies. New York: New York University Press, 2015. Disponível em: Disponível em: https://keywords.nyupress.org/disability-studies/essay/family/ . Acesso em: 29 out. 2021.
https://keywords.nyupress.org/disability...
, tradução nossa). Tratando, em específico, de famílias com crianças com deficiência, Rapp e Ginsburg (2011)RAPP, R.; GINSBURG, F. Reverberations: disability and the new kinship imaginary. Anthropological Quarterly, [s. l.], v. 84, n. 2, p. 379-410, 2011. apontam que, conforme essas crianças crescem, suas experiências atípicas reverberam nas vidas dessas famílias reenquadrando assunções prévias sobre parentesco. Para as autoras, é na arena íntima do parentesco que os entendimentos e práticas sobre a deficiência são frequentemente manejados pela primeira vez (Rapp; Ginsburg, 2011RAPP, R.; GINSBURG, F. Reverberations: disability and the new kinship imaginary. Anthropological Quarterly, [s. l.], v. 84, n. 2, p. 379-410, 2011.). Mães e pais passam a reconhecer e reorganizar expectativas tácitas sobre relações familiares e, nesse processo, segundo as autoras, “o desdobramento culturalmente organizado de um curso de vida normativo já não pode mais ser presumido” (Rapp; Ginsburg, 2011RAPP, R.; GINSBURG, F. Reverberations: disability and the new kinship imaginary. Anthropological Quarterly, [s. l.], v. 84, n. 2, p. 379-410, 2011., p. 380, tradução nossa). O diagnóstico como momento disruptivo, portanto, agrega um novo marcador às trajetórias dessas famílias, que passam a apreender e habitar o autismo de diferentes formas (Aydos, 2017AYDOS, V. “Não é só cumprir as cotas”: uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.). Assim, as diferenças, incorporadas e reordenadas no espaço cotidiano das famílias, fornecem um novo vocabulário para a construção de uma narrativa inteligível do parentesco no contexto da deficiência. É nesse sentido que a expectativa temporal do curso de vida tem seus desdobramentos e é elaborada no cotidiano das famílias, mas não se restringe apenas à arena íntima do parentesco, está entrelaçada às representações sociais sobre deficiência, família, práticas de cuidado e constituição de direitos.

Tamara Hareven (1977)HAREVEN, T. Family time and historical time. Daedalus, [s. l.], v. 106, n. 2, p. 57-70, 1977. propõe pensar as famílias a partir das variadas temporalidades que as constituem: o tempo individual, o tempo da família e o tempo histórico. Temporalidades que se entrecruzam, misturando dimensões individuais, expectativas em torno do curso da vida, configurações de gênero, contextos sociais e econômicos, tanto quanto forças políticas. As expectativas em torno das demandas do cuidado nas relações de parentesco são balizadas por marcos temporais do curso da vida definidos no contexto de uma normatividade social que pressupõe não apenas que filhos e filhas sejam receptores de cuidados na infância e que cuidem de suas mães e pais na velhice, mas que demarca diferentes demandas de cuidado no curso da vida.

No contexto de um diagnóstico de deficiência, a presunção da intergeracionalidade do cuidado, assim como as expectativas em torno das demandas do cuidado, são, muitas vezes, afetadas. No belo trabalho de Helena Fietz (2018FIETZ, H. Habitando incertezas: reflexões sobre deficiência e práticas de cuidado na luta moradias assistida. Mediações, Londrina, v. 23, n. 3, p. 103-131, 2018., 2020FIETZ, H. Construindo futuros, provocando o presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão cotidiana da deficiência intelectual no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.), essa dimensão é abordada por meio da reivindicação de mães de pessoas com deficiência cognitiva por moradia assistida para seus(uas) filhos(as) adultos(as). Mirando um futuro cada vez mais próximo, essas mães empreendem suas lutas preocupadas com o provimento de cuidado para os(as) filhos(as) num momento em que elas não poderão mais exercê-lo. Essa é também uma questão pungente nos campos aqui apresentados, tanto pela reflexão que mães e pais de crianças pequenas com autismo traçam sobre o futuro de seus(uas) filhos(as) como também nas lutas políticas empreendidas em torno do direito de filhos(as) já adultos(as). As associações acompanhadas pela primeira autora têm forte atuação na proposição de políticas que buscam ampliar a independência e a autonomia, fometando práticas de inclusão em instituições de ensino, ensino profissionalizante e acesso ao mercado de trabalho. No campo da segunda autora, sua interlocutora, Isabela, expressou particular preocupação na condução da educação de suas duas crianças gêmeas, das quais apenas uma tem o diagnóstico de autismo, de modo a não colocar sobre a filha o “peso” da responsabilização futura sobre o irmão.

Se a temporalidade é central em contextos familiares de pessoas com deficiência no que diz respeito ao curso de vida e às expectativas prévias que temos sobre ele, a dimensão temporal do cuidado cotidiano não é menos importante, sendo preciso também refazer continuamente um imaginário sobre o que constitui o cuidado em relação à deficiência. As controvérsias dessa relação têm sido tema de debate e reflexão dentro dos estudos feministas da deficiência há muitos anos. Uma série de problematizações, em paralelo ao ativismo do campo da deficiência, têm sido feitas relativas à multiplicidade do cuidado na experiência da deficiência (Fietz; Mello, 2018FIETZ, H. M.; MELLO, A. G.. A multiplicidade do cuidado na experiência da deficiência. Revista AntHropológicas, Recife, v. 29, n. 2, p. 114-141, 2018.), da concepção de interdependência (Kittay, 1999KITTAY, E. Love’s labor: essays on women, equality and dependency. New York: Routledge, 1999.), da autonomia e do capacitismo (Mello, 2014MELLO, A. G. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, observações e narrativas sobre violências contra mulheres com deficiência. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.), assim como nas questões de direitos e cidadania das pessoas com deficiência (Aydos, 2017AYDOS, V. “Não é só cumprir as cotas”: uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.; Fietz; Aydos, 2016FIETZ, H.; AYDOS, V. Por uma vida assistida: reflexões sobre cuidado, autonomia e cidadania. In: REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA, 5.; REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE, 14., 2015, Maceió. Anais […]. [S. l.]: REA: ABANNE, 2016. Disponível em: Disponível em: https://evento.ufal.br/anaisreaabanne/gt19_a.php#gt . Acesso em: 29 out. 2021.
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). O que grande parte dessas produções têm revelado é a profusão de sentidos e negociações a respeito das práticas de cuidado em relação às pessoas com algum grau de suporte necessário. Nesse mesmo sentido, demonstram como o cuidado é constitutivo das relações, é pautado em práticas sociais, emocionais e morais.

Ao fazer uma análise acerca das práticas de cuidado pelo viés do movimento das pessoas com deficiência e do movimento feminista, Bill Hughes et al. (2019)HUGHES, B. et al. Trabalhos de amor perdidos? Feminismo, Movimento de Pessoas com Deficiência e éticas do cuidado. In: DEBERT, G. G.; PULHEZ, M. M. (org.). Desafios do cuidado: gênero velhice e deficiência. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019. p. 101-124. demonstram como o cuidado é parte das pragmáticas da intimidade, mas também está atrelado a questões políticas e sociais mais amplas. O cuidado, feito de “fluxos, fluidos, multiplicidade, diferença, ritmos, corpos, trânsito de limites, contingência e maternagem” (Hughes et al., 2019HUGHES, B. et al. Trabalhos de amor perdidos? Feminismo, Movimento de Pessoas com Deficiência e éticas do cuidado. In: DEBERT, G. G.; PULHEZ, M. M. (org.). Desafios do cuidado: gênero velhice e deficiência. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019. p. 101-124., p. 114), é experimentado com ainda mais intensidade no contexto da pandemia de covid-19. Se, antes, as perspectivas analíticas sobre o cuidado já revelam uma ampla trama entre suas éticas e práticas (Debert; Pulhez, 2019DEBERT, G. G.; PULHEZ, M. M. (org.). Desafios do cuidado: gênero velhice e deficiência. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019.; Hirata; Debert, 2016HIRATA, H.; DEBERT, G. G. Apresentação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 46, p. 7-15, 2016.; Hirata; Guimarães, 2012HIRATA, H.; GUIMARÃES, N. (ed.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.), diante do contexto pandêmico, essas conexões são escancaradas em um cenário em que as relações sociais são afetadas, assim como a própria manutenção das práticas de saúde, sustento e sobrevivência. Os fluxos, fluidos, ritmos e corpos estiveram nas manchetes de jornais, em artigos acadêmicos, em histórias e relatos, nas práticas cotidianas, na reivindicação pelas vidas de tantas pessoas. No âmbito desse cuidado, que ganhou destaque frente a um evento crítico (Das, 1995DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press, 1995.) de magnitude global, estratégias políticas de luta por direitos tanto quanto o cotidiano íntimo das relações de parentesco, foram revistos e rearranjados.

Redes de suporte foram estendidas ou limitadas, o cuidado foi reordenado e, em alguns casos, pessoas antes vistas como destinatárias do cuidado passaram também a cuidar de outras. Uma miríade de novos arranjos veio à tona e o medo da iminência da morte teve impactos importantes. A lógica do cuidado (Mol, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge, 2008.)11 11 Mol contrasta lógica da escolha a lógica do cuidado. A primeira estaria pautada ora no mercado, ora na cidadania, mas em ambos os casos regrada pela dimensão da escolha individual informada por fatos e confinada a uma temporalidade linear; a lógica do cuidado, por sua vez, é marcada por uma interação, uma relacionalidade, mais do que por uma transação, é um processo aberto, não uma simples transferência de produto com começo e fim. A lógica do cuidado supõe ajustes contínuos ao que Mol denomina como viscosidades da vida, como condições materiais, pessoas, hábitos que não necessariamente se conformam aos nossos desejos. Acionamos essas discussões para pensar o cuidado na prática, conforme propõe a autora. trouxe ao primeiro plano as diversidades relacionais nas quais nossas interlocutoras de pesquisa e nós estamos imersas, bem como a centralidade em refletirmos sobre a amplitude das práticas de cuidado no contexto da deficiência.

O reordenamento temporal do cotidiano e os movimentos sociais

Em contrapartida às análises sobre cuidado e família que tiveram extensiva atenção midiática e resultaram em debates acerca das experiências perpassadas por diferentes marcadores sociais, as reflexões sobre deficiência foram pontuais e escassas nos discursos oficiais e na mídia. Éverton Pereira et al. (2021)PEREIRA, É. L. et al. Invisibilidade sistemática: pessoas com deficiência e Covid-19 no Brasil. Interface, Botucatu, v. 25, supl. 1, e200677, 2021., ao abordarem as perspectivas sobre pessoas com deficiência em relação à covid-19, afirmam como o histórico de discriminação, a falta de informações e dados oficiais acerca dessa população específica, bem como a ausência de espaços de participação efetiva, geram uma “invisibilidade sistemática” que foi acentuada na pandemia. As mudanças experienciadas pelas pessoas com deficiência e suas famílias nesse contexto foram pouco consideradas, principalmente, diante de políticas públicas que mitigassem os entraves impostos pela crise sanitária. Políticas e programas relativos ao enfrentamento do vírus e das consequências sociais mais amplas deram ênfase em políticas generalistas, nas quais as práticas e dinâmicas das pessoas com deficiência e suas famílias não eram abarcadas nessas estratégias de controle (Schuch; Saretta, 2020SCHUCH, P.; SARETTA, M. Deficiências, coronavírus e políticas de vida e morte. Boletim Cientistas Sociais, São Paulo, n. 35, 7 maio 2020. Disponível em: Disponível em: http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2349-boletim-n-35-cientistas-sociais-e-o-coronavirus . Acesso em: 29 out. 2021.
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). Parte da discussão a esse respeito tem repercutido os impactos negativos da pandemia, como a própria ameaça do vírus para essa parcela da população que, em graus diferentes e através de inúmeras particularidades, requer cuidados e assistências específicas diante de barreiras e disposições sociais. Para além dos entraves das políticas públicas, a complexidade das experiências revela um plano de práticas e agenciamentos que são menos intransigentes e mais rearranjadas no espaço cotidiano das famílias.

O coletivo de familiares integrantes de uma associação na cidade de Belo Horizonte, acompanhado pela primeira autora, se mobiliza tanto para o acolhimento de outras famílias quanto para ações de reivindicação de direitos e políticas públicas no âmbito municipal. A associação, iniciada e composta majoritariamente por mulheres mães, é uma das mais atuantes em uma rede de associações com representação junto ao poder público. Sendo, em sua maioria, pessoas brancas, de camada popular e média, com ensino superior e especializações, esses familiares atuam na efetivação de direitos e em processos representativos da sociedade civil em relação ao autismo no contexto local. A associação, ainda que caracterizada pela maioria dos familiares de autistas em idade adulta, advogam o reconhecimento do espectro autista nas diferentes fases da vida. Esses marcadores sociais evidenciam vivências específicas em relação ao autismo, contrastando como experiências interseccionais também apresentam distintas realidades diante da deficiência e das práticas de cuidado.

O fato já mencionado do cancelamento de uma reunião de planejamento de eventos promovidos por esse movimento familiar no contexto da pandemia ocasionou um deslocamento da organização do coletivo para o meio virtual. Foram decididas artes gráficas, comunicações dos eventos, programações, e tudo passou a ser mobilizado de forma remota visando garantir o isolamento social, em decorrência de alguns participantes da associação se enquadrarem no grupo de risco afetado pelo vírus - tanto autistas com comorbidades quanto mães e pais cuidadores já idosos e/ou com problemas de saúde. Mas em meio às comunicações de planejamento, e às discussões a respeito de legislação e direitos que são comuns no cotidiano da associação, a temática do cuidado era lembrada e relembrada todos os dias. O cuidado com o outro e o cuidado de si ganhou proeminência e criou uma nova dinâmica de interação no grupo.

Escolas fechadas, terapias canceladas, serviços públicos de atendimento à saúde temporariamente desativados, instituições restringindo o acesso; a rede de atenção e assistência, antes entremeada a serviços do Estado e da comunidade, ficou reduzida ao espaço doméstico. A escola, o trabalho, o hospital, a terapia, o lazer, o esporte, todas as dimensões da vida social passaram a ocupar as paredes de casa e a ter como seus coadjuvantes os familiares mais próximos. Informações acerca da pandemia, a busca por ajuda em situações específicas do cotidiano referentes ao autismo, indicações de serviços online, ofertas de acolhimentos psicológicos, dentre outros serviços, passaram a ganhar ainda mais relevância nas trocas entre os participantes da associação. As conquistas do cotidiano de seus filhos e filhas autistas, antes exaltadas na espera do início de uma reunião ou mesmo nas despedidas calorosas, passaram a ser comemoradas nessa rede que envolve mães, pais, autistas, e alguns profissionais da área. Em certa ocasião, ao discorrer sobre as relações estabelecidas diante desse contexto que estende mas também estreita laços, a primeira autora ouviu de uma interlocutora que outras famílias de pessoas autistas passaram a ser sua “família de verdade”, por entender suas demandas e necessidades. Se vivenciamos esse estreitamento de laços pelos meios virtuais ao redor de todo mundo, em decorrência da restrição social ocasionada pelo cenário pandêmico, os coletivos de familiares de pessoas com autismo passaram a assumir não apenas uma relação de trocas de experiências, mas constituíram-se como promotores de utilidades sociais e públicas ao buscar a efetivação de direitos e assistências invisibilizadas diante de questões tidas como mais urgentes no enfrentamento ao vírus. Dessa forma, a mobilização também passou a ser feita de dentro das casas.

Em abril de 2020, em nota publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU), o secretário-geral destacou como a pandemia de covid-19 aprofundava as vulnerabilidades das pessoas com autismo, colocava-as “em risco desproporcional” (Em dia…, 2020EM DIA mundial, chefe da ONU alerta para ameaças a direitos de pessoas com autismo. ONU News, [s. l.], 2 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/04/1709242 . Acesso em: 29 out. 2021.
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). Esse risco apontado não está atrelado apenas às questões de saúde, mas às ameaças aos direitos dos autistas. Tal como apontado pelo secretário-geral, o colapso dos sistemas e redes vitais de suporte às pessoas autistas e suas famílias, em decorrência da crise sanitária, aprofunda os obstáculos enfrentados por essa parcela da população, assim como traz resistências ao exercício de direitos. Exemplar dessa obstrução em situações locais foram casos referentes à situação vacinal, em que foi necessária a mobilização para a efetivação da aplicação da vacina em autistas, devido à violação do reconhecimento da condição como uma deficiência. Ou, ainda, casos específicos de escolas que alegaram não ter as ferramentas e recursos necessários para garantir o pleno atendimento de crianças com deficiência em ambiente remoto de ensino, tendo como consequência a evasão escolar dessas crianças. Cabe refletir, portanto, como essas ameaças a efetivação de direitos de pessoas com deficiência, muitas vezes, recaem como responsabilidade das famílias, espaço moral da manutenção da vida e do bem- estar social, tendo se tornado ainda mais marcante no decurso da pandemia. Entretanto, para além de uma instituição e valor moral, a politização da família (Schuch, 2013SCHUCH, P. Como a família funciona em políticas de intervenção social? Civitas: revista de ciências sociais, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 309-325, 2013.) se torna evidente na articulação desses familiares em coletivos que viabilizam a promoção e efetivação de direitos, assim como constituição de planos de reconhecimento sobre o autismo em seus contextos locais de agenciamento.

Para além da permanência na atuação com o poder público municipal, os fragmentos de histórias cotidianas dessas mães e pais revelavam um cuidado reconfigurado nas novas temporalidades do cotidiano constituídas no evento da pandemia. As trocas de experiências também perpassavam discussões sobre isolamento social, questões acerca das comorbidades decorrentes da restrição, e práticas de cuidado referentes à saúde mental das pessoas autistas. Consequente a essas demandas, profissionais parceiros passaram a contribuir com um compilado de orientações, materiais e ferramentas para o suporte às pessoas com autismo e suas famílias nesses “tempos de incertezas”. A temporalidade do cuidado, refeita no convívio familiar diante da ruptura do cotidiano pela pandemia, também é constituída nas ambiguidades das experiências. Se, por um lado, algumas famílias enfatizavam a dificuldade de domiciliarização das situações sociais, outras famílias evidenciavam as construções positivas decorrentes do período, tal como exposto na pesquisa da segunda autora. Um movimento que ganhou força e visibilidade no decorrer da pandemia, por exemplo, foi o ativismo de autistas em redes sociais, passando a falar sobre a deficiência e estabelecendo espaços de autonomia e reconhecimento através dessas redes. Outras situações relatadas à primeira autora destacavam os efeitos “positivos” da pandemia, como um autista que, em regime de trabalho remoto, teve grande parte das barreiras de acessibilidade mitigadas do seu cotidiano.12 12 Em relação a esse exemplo específico, é preciso destacar que ainda que revele possíveis transformações futuras acerca do acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, também traz controvérsias quanto à efetivação de espaços acessíveis e à mitigação de barreiras sociais nos ambientes laborais. Para uma ótima discussão sobre os paradoxos do trabalho remoto entre pessoas com deficiência tendo em vista as dimensões da acessibilidade e inclusão, ver o artigo de Aydos, Navarini e Oliveira (2021). A primeira autora também teve contato com relatos de mães e pais que exaltavam os êxitos em habilidades e interesses de seus filhos(as), tanto desenvolvimento de interesses pessoais, por exemplo, produções artísticas e acadêmicas, quanto habilidades que contribuíam para a sua autonomia, como cozinhar as próprias refeições, possíveis pelo tempo outro acarretado pela pandemia e pelas novas disposições das relações de cuidado.

Concernente a essas reconfigurações dos “arranjos de cuidado” (Fazzioni, 2018FAZZIONI, N. Nascer e morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado. 2018. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.), diante da emergência sanitária, também não foram raras as trajetórias de famílias que passaram a conviver e residir com outros membros da família extensa para suplementar redes de apoio, antes providas por instituições de suporte ao cuidado. Famílias que também se viram diante da morte de seus membros, vendo-se obrigadas a reescrever as práticas e relações do convívio familiar. Tal como Rapp e Ginsburg (2001)RAPP, R.; GINSBURG, F. Enabling disability: rewriting kinship, reimagining citizenship. Public Culture, [s. l.], v. 13, n. 3, p. 533-556, 2001. exploram a arena íntima do parentesco como o lugar onde os dramas sociais contemporâneos são vividos e onde os entendimentos sobre a deficiência são manipulados, aqui é a reconfiguração do tempo do cuidado e do tempo da vida no cenário da pandemia que opera novas reescritas.

O reordenamento temporal do cotidiano no microcontexto

Passado um ano do início da pandemia, com as políticas de isolamento social ainda em vigor, a segunda autora realizou uma série de entrevistas com uma de suas interlocutoras de pesquisa, Isabela, que se define como uma mulher negra, mãe solo de um casal de gêmeos, Helena e Tadeu, este último diagnosticado com autismo. Cursando mestrado numa universidade pública, ela tinha 42 anos no momento das entrevistas, trabalhava em sua área de formação e não teve seu emprego ameaçado no contexto da pandemia, podendo continuar a desempenhar suas funções em home office. Numa das conversas, iniciada com uma pergunta sobre sua rotina antes e depois da pandemia, os olhos de Isabela brilharam ao responder: “Nossa, essa é a pergunta de ouro que eu meio que estava esperando”, relatando, na sequência, que o ganho de um tempo de qualidade com as crianças havia sido um inesperado efeito positivo da pandemia.

Se quase todas as publicações acadêmicas e jornalísticas produzidas no curso da pandemia destacavam suas consequências profundas ao acentuar desigualdades das mais variadas, no campo de pesquisa da segunda autora, centrado na maternidade solo, esses efeitos eram ainda mais aterradores. A despeito da implantação pelo governo federal, em abril de 2020, do auxílio emergencial13 13 Dispositivo de proteção social que visava abranger pessoas com trabalhos informais ou desempregadas, com renda familiar de até três salários mínimos. e da inclusão de uma distinção que favorecia entre seus beneficiários as “mulheres provedoras de família monoparental”, que, nos termos da lei,14 14 Lei nº 13.982/2020 (Brasil, 2020). teriam direito ao recebimento de duas cotas do auxílio, esse grupo foi fortemente penalizado pelas medidas de isolamento social. A maioria de suas interlocutoras enfatizava os aspectos negativos da pandemia em seus cotidianos, sendo os fatos mais impactantes o desemprego e a perda de uma rede de suporte, ocasionada tanto pelo fechamento das escolas como também pelo temor em circular com crianças pelas casas de outras cuidadoras, especialmente pessoas mais velhas - notadamente, mães e avós que também se responsabilizavam pelas crianças.

Foi desse modo, a um só tempo inesperada e instigante, a avaliação de Isabela sobre os efeitos positivos das medidas de isolamento social. Residente em um bairro periférico da região metropolitana de Belo Horizonte, Isabela vivia em uma casa emprestada de um parente com a mãe, o irmão, a cunhada e os dois sobrinhos, além de sua filha e seu filho, que tinham 6 anos, no momento das entrevistas. Sua trajetória pode ser lida nos termos de um processo de autoafirmação, tal como Luiz Fernando Dias Duarte e Edlaine de Campos Gomes (2008)DUARTE, L. F. D.; GOMES, E. de C. Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008. propõem pensar trajetórias de pessoas provenientes de camadas populares que estão entre os grupos menos pauperizados e tiveram acesso a condições de reprodução que permitiram a ascensão às classes médias. Esse processo de autoafirmação está ligado à classe, idade, desenvolvimento de unidade doméstica e circunstâncias históricas conjunturais (Duarte; Gomes, 2008DUARTE, L. F. D.; GOMES, E. de C. Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008.). Isabela formou-se em uma universidade particular - avaliada como a escolha possível naquele momento, ainda que não com a qualidade almejada -; posteriormente, ingressou num curso tecnológico, na universidade pública, seguindo na sequência para a pós-graduação profissional na mesma área. No momento de nossas entrevistas, estava realizando mais um mestrado profissional, também em uma universidade pública.15 15 Vale destacar alguns aspectos macroestruturais que levaram à ascensão social por meio do acesso ao ensino universitário nas primeiras décadas do século XXI, especialmente após a implementação das políticas de ação afirmativa, da ampliação do financiamento estudantil e da expansão dos câmpus universitários para variadas regiões do país. No caso de Isabela, ela destaca também a importância dos movimentos estudantis de ação afirmativa em sua trajetória, tributando seu ingresso no mestrado na universidade pública à participação em um curso preparatório, organizado por estudantes veteranos, ingressos via ação afirmativa, que oferecia formação para aspirantes à pós-graduação. A despeito de seu grau de formação, da estabilidade no emprego, da participação em movimentos sociais e na academia, Isabela se descreveu em mais de um momento como pobre.

Ao responder, animadamente, à pergunta sobre as mudanças de rotina na pandemia, Isabela explicou, na sequência, que a maternidade solo de gêmeos e o processo de diagnóstico do autismo em uma das crianças foi algo extremamente difícil. Afirmou ainda que uma das culpas que sempre carregou está atrelada à falta de tempo para o cuidado com as crianças, o fato de estar sempre cansada e a impossibilidade de “dar um tempo de qualidade pra eles”. O que a pandemia possibilitou foi justamente essa reelaboração da temporalidade.

Apesar do alívio e da empolgação de Isabela em tematizar essa experiência, considerada como uma imprevista consequência positiva da pandemia, ela emendou muito rapidamente sua avaliação com uma ponderação de que não estava “fazendo discurso romântico de maternidade nem de isolamento social”. Na mesma conversa em que destacou aspectos positivos em sua vida propiciados pela mudança de rotina, Isabela não deixou de enfatizar as dimensões mais estruturais ao acentuar desigualdades. Ela ponderou sobre as dificuldades pessoais que enfrentou para dar continuidade ao trabalho em regime remoto, como estabelecer um espaço de trabalho numa casa em que vivem mais três adultos e quatro crianças, a manutenção do seu computador pessoal convertido em ferramenta de trabalho, os custos com a conexão de internet, o fato de ter horário pra iniciar, mas não para encerrar a jornada, além dos mais variados mecanismos de controle criados para monitorar sua produção. Ela concluía a esse respeito que passava mais tempo provando que estava trabalhando do que efetivamente cumprindo as tarefas.

Apesar de todas essas dificuldades, é a dimensão da temporalidade e da flexibilidade em organizar sua rotina com os filhos que Isabela destacou ao falar sobre a mudança no seu cotidiano. Para além do tempo usado no trabalho de cuidado, Isabela também destacou as possibilidades que tinha tido para o autocuidado, por meio da oferta de serviços gratuitos ou de baixo custo, que lhe possibilitaram começar a praticar exercícios físicos e a fazer terapia psicológica. Ao descrever os cuidados com as crianças, ela avaliou:

É um tempo que se eu estivesse no trabalho presencial eu não teria como fazer todas as coisas que a gente está fazendo hoje, fazer esse acompanhamento, eu precisaria fazer tudo isso num tempo megacondensado, possivelmente mais nos finais de semana do que durante a semana. Essa é uma das vantagens, esse tempo que eu estou passando com eles. (Isabela, em entrevista à segunda autora, em 2021).

No dia em que destacou o tempo como o grande ganho da pandemia, Isabela iniciou a conversa com papel e tesoura em punho, pedindo licença para recortar figuras enquanto conversávamos. De cara, declarou que estava usando intencionalmente o tempo de nossa conversa para realizar essa atividade, não só porque era uma tarefa que ela tinha que cumprir, mas para mostrar, visualmente, o que, para ela, significava desempenhar outras funções no cuidado com as crianças, que não estariam restritas à maternidade, mas que teriam também um fundo pedagógico.

Ao longo do período de isolamento social não foi incomum a avaliação de mães e pais sobre o valor da escola e sobre o exercício das funções pedagógicas no acompanhamento de aulas online como parte da sobrecarga de trabalhos que vivenciaram no período. No caso de mães de crianças com deficiência, no entanto, essa não é uma experiência nova propiciada pelo contexto da pandemia. A aquisição de uma expertise particular relacionada à deficiência é empreendida, muitas vezes, pelas mães ao buscarem formações específicas que podem culminar, inclusive, para algumas delas, em mudanças para campos profissionais relacionados às demandas de determinados diagnósticos ou a lutas políticas particulares empreendidas pelos direitos de seus filhos, em profissões como terapia ocupacional, psicologia, direito (Carvalho, 2020CARVALHO, B. R. Pensando emoções: reflexões sobre emoções, gênero e movimentos sociais. Caderno Espaço Feminino, [s. l.], v. 33, n. 2, p. 36-55, 2020.; Fietz, 2018FIETZ, H. M.; MELLO, A. G.. A multiplicidade do cuidado na experiência da deficiência. Revista AntHropológicas, Recife, v. 29, n. 2, p. 114-141, 2018.; Rios, 2017RIOS, C. “Nada sobre nós sem nós”? O corpo na construção do autista como sujeito social e político. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 25, p. 212-230, 2017.). Além disso, o exercício cotidiano do cuidado traduz-se também, em alguma medida, nas palavras da interlocutora, em algo que vai além das funções usuais da maternidade.

Para Isabela, foi apenas no contexto da pandemia, por contraditório que pareça, que o exercício do cuidado em relação ao filho com autismo se deu na temporalidade e na intensidade que intencionou. Ao se remeter à temporalidade como um ganho, ela falou também da temporalidade dos deslocamentos na cidade, das demandas do trabalho, da burocracia legal e das exclusões sofridas. Antes das medidas restritivas de circulação social, ela já era a encarregada de levar o filho às terapias, mas, para isso, tinha que compensar as horas ficando até mais tarde no trabalho com regularidade, o que a deixava sempre cansada e com sensação de nunca ter, nas palavras dela, um tempo de qualidade com as crianças. Detalhadamente, ela contou que, nesse período pandêmico, o rearranjo de seu horário de trabalho e o ganho das horas perdidas no transporte público entre a casa, o trabalho e os serviços de terapia possibilitaram outro exercício do cuidado. Como os serviços de terapia ficam próximos de sua residência, ela reorganizou o horário do trabalho, de modo a tornar possível auxiliar as duas crianças nas tarefas enviadas pela escola e levar o filho nos dias de terapia antes do início de sua jornada.

Ela não deixou de ponderar que essa reordenação temporal do cotidiano só tinha sido possível porque pôde contar com a mãe para dividir os trabalhos de cuidado. Isabela mantinha um trabalho remunerado, que garantia as contas da casa, se encarregando também da educação formal das duas crianças e das terapias do filho. Esse cuidado se materializava não apenas nas escolhas em relação à escola e aos tipos de terapia, mas estava também presente nas formações que busca e no modo como implementava esses conhecimentos na educação diária. A mãe de Isabela era, no entanto, uma figura central tanto para o cotidiano pré-pandemia como também para as possibilidades de maior dedicação às atividades pedagógicas com as crianças durante o período de home office, era ela que se encarregava das tarefas de limpeza, do preparo de refeições, auxiliando também no cuidado com as crianças. Tratava-se de uma divisão de tarefas do cuidado entre mulheres. O pai das crianças sempre teve uma relação bastante distanciada com a filha e o filho, participando mais exclusivamente por meio do pagamento de uma pequena pensão acordada judicialmente do que na divisão do cuidado cotidiano. No curso da pandemia, esse distanciamento apenas se acentuou.

Delineando o processo de diagnóstico, a inserção do filho na escola e a relação de cuidado que a irmã gêmea estabelece com ele, Isabela contou sobre seu próprio aprendizado em relação ao autismo e em como a temporalidade do último ano foi crucial para agregar mais de perto as abordagens que tinha aprendido. Destacou, com orgulho, os ganhos de aprendizagem das crianças no período, o modo como tinha exercido essas funções que vão além da maternidade e em como tinha transformado esse conhecimento em um tipo de ativismo ao propagar esses saberes produzindo conteúdos virtuais sobre a educação de crianças autistas.

María Puig de la Bellacasa (2017)PUIG DE LA BELLACASA, M. Matters of care: speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017., ao abordar o cuidado a partir de uma variedade de dimensões, inclusive as ecológicas, propõe pensar as recalcitrâncias das temporalidades do cuidado aos ritmos produtivistas e sobre como o tempo do cuidado está baseado em diferentes modos de “fazer tempo” (make time, no original) por meio de experiências que são marginalizadas e colocadas de lado como improdutivas. O tempo do cuidado estaria baseado em “fazer tempo” para se envolver em uma variedade de linhas temporais. Desse modo, o ato de “arrumar tempo para cuidar” rompe, segundo ela, com temporalidades centradas no tempo capitalista produtivista. O relato de Isabela mostra os efeitos desse modelo capitalista-produtivista que precede à pandemia e que, em dimensões e graus variados, atinge tanto pessoas com deficiência como suas figuras cuidadoras. Assim, ao se remeter aos aspectos positivos da reorganização temporal do cotidiano, ela referiu-se também a precariedades estruturais, que atingem tanto os direitos das pessoas cuidadoras quanto das pessoas com autismo. Ao longo da pandemia, não foi incomum que familiares de pessoas com deficiência, diante das medidas de isolamento social, tenham relatado que sempre viveram, de algum modo, em isolamento (Finamori; Carvalho, 2020FINAMORI, S.; CARVALHO, B. R. Maternidades, cuidados e cuidadoras: a desprivatização do cuidado. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 44., 2020. Evento online. Anais […]. [S. l.]: Anpocs, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.anpocs2020.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjQzNTgiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiODFiN2Q3YjM0YmE3ODE3NjEyODI3YzM3OTVlMmQ5NzEiO30%3D . Acesso em: 29 out. 2021.
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). Durante as entrevistas, Isabela também se remeteu a esses múltiplos e contínuos isolamentos vivenciados fora da pandemia, especialmente em relação a espaços sociais dos quais ela e as crianças foram ativamente excluídas ou autoexcluídas. Falou também sobre as dificuldades, no período pandêmico, em acessar os serviços de terapias, que remotamente não foram bem-sucedidos, ou mesmo do desafio do ensino remoto para crianças que estão ingressando numa nova etapa da vida escolar. Ao mesmo tempo, sua ponderação sobre a reorganização temporal da rotina doméstica durante a pandemia em seus aspectos positivos traz elementos instigantes para pensarmos sobre as temporalidades da vida cotidiana e dos trabalhos de cuidado no contexto do parentesco e da deficiência. Nessa direção, é fundamental lembrar que a associação do cuidado ao feminino, ao doméstico, tanto quanto a naturalização de que se trata de uma questão das famílias, mais do que de uma questão social, é central a esse debate. Se a temporalidade do home office foi vista como benéfica à organização dos cuidados e, em certo sentido, trouxe aspectos positivos em um contexto aterrador como uma pandemia global, o relato de Isabela proporciona também uma reflexão sobre os limites de restringirmos o cuidado a uma questão das famílias e também sobre a importância de refletirmos sobre os direitos sociais das figuras cuidadoras. Em suma, sobre a centralidade de pensarmos o cuidado enquanto uma questão de justiça social (Kittay, 1999KITTAY, E. Love’s labor: essays on women, equality and dependency. New York: Routledge, 1999.).

Reflexões finais

As temporalidades que atravessam as famílias são produzidas num entrecruzamento entre transições normativas da vida e mudanças críticas que operam como “pontos de inflexão” (turning points, no original), alterando o curso da vida e demandando novas estratégias e escolhas (Hareven; Masaoka, 1988HAREVEN, T.; MASAOKA, K. Turning points and transitions: perceptions of the life course. Journal of the Familly History, [s. l.], v. 13, n. 3, p. 271-289, 1988.). Eventos de larga escala tanto quanto mudanças experienciadas no nível micro, como mortes ou diagnósticos, podem atuar como turning points, como são os casos, nas histórias que apresentamos, do diagnóstico de autismo e da pandemia.

Nessa direção, é fundamental sublinhar que, longe de haver uma homogeneidade no modo como esses eventos e transições do curso da vida são vivenciados, há uma multiplicidade de fatores que se interseccionam e afetam as percepções e práticas, inclusive marcadores sociais, como raça, classe, gênero, sexualidade, geração e religião. Argumentamos, no entanto, que os aspectos íntimos dessas histórias estão também conectados a contextos mais amplos, relacionados às variadas concepções históricas, sociais, políticas e biomédicas sobre deficiência em geral, e autismo em particular, bem como às dimensões mais estruturais em torno da relação cuidado, gênero e família.

Tal como Rapp e Ginsburg (2001)RAPP, R.; GINSBURG, F. Enabling disability: rewriting kinship, reimagining citizenship. Public Culture, [s. l.], v. 13, n. 3, p. 533-556, 2001. argumentam, as experiências em relação à deficiência recriam narrativas dentro do contexto familiar, que, em consequência, corroboram novas disposições da temporalidade do curso da vida, assim como das práticas de cuidado. Portanto, pensar o autismo dentro das famílias e como o diagnóstico produz transformações dentro das práticas e vivências do cotidiano também é analisar como é constituído o reconhecimento do autismo e da deficiência, de forma mais ampla. Percorrer essas trajetórias habitadas pelas práticas cotidianas e reescritas na vida diária familiar é fundamental para compreender as minúcias de um acionamento social mais amplo em prol da diversidade e da inclusão, perpassando por práticas de cuidado cotidianas, assim como posições de ativismo, tais como nossas interlocutoras de pesquisa nos apresentam em suas trajetórias pessoais. Assim como Rapp e Ginsburg, argumentamos que essa análise da família, termo que é convencionalmente associado ao íntimo e doméstico, é crucial para o entendimento das dinâmicas culturais e para a criação de um “terreno estrutural em que a deficiência não é apenas acomodada na legislação […], mas é positivamente incorporada no corpo social” (Rapp; Ginsburg, 2001RAPP, R.; GINSBURG, F. Enabling disability: rewriting kinship, reimagining citizenship. Public Culture, [s. l.], v. 13, n. 3, p. 533-556, 2001., p. 535, tradução nossa).

Exploramos aqui o curso da pandemia como cenário de nossas pesquisas e as novas ponderações que traz a nossos campos. Diante desse evento disruptivo, que produziu consequências econômicas, políticas e sociais mais amplas, apontamos que, longe de os efeitos da pandemia na temporalidade do cotidiano terem sido intrinsecamente bons ou ruins, eles enfatizaram aspectos complexos das relações de cuidado no contexto da deficiência, trazendo à tona reordenamentos possíveis da vida cotidiana tanto quanto salientando aspectos estruturais de desigualdades preexistentes.

Referências

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  • AYDOS, V. “Não é só cumprir as cotas”: uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
  • AYDOS, V.; NAVARINI, D.; OLIVEIRA, B. The paradox of “remote working” in COVID-19 pandemic times: disability, inclusion, and accessibility in Brazil. Disability Studies Quarterly, [s. l.], v. 41, n. 3, 2021. Disponível em: Disponível em: https://dsq-sds.org/article/view/8359/6189#endnote01 Acesso em: 29 out. 2021.
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  • 1
    O autismo é um conceito disputado e cercado de controvérsias que perpassam saberes médicos, entraves políticos e sociais. Pela perspectiva biomédica, de acordo com o CID-11, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado como um transtorno de neurodesenvolvimento com questões comunicacionais, sociais e sensoriais. Em 2012, no Brasil, a partir da promulgação da Lei nº 12.764, o autismo passa a ser reconhecido como uma deficiência para todos os efeitos legais, assegurando direitos específicos a essa população (Brasil, 2012BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Brasília: Presidência da República, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm . Acesso em: 29 out. 2021.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ). Mas há também movimentos sociais e políticos ao redor do mundo que têm reivindicado outras concepções sobre a condição dando visibilidade às subjetividades e ao reconhecimento das diferentes experiências, constituídas nas interseccionalidades que atravessam as pessoas autistas. A exemplo desses movimentos, o movimento da neurodiversidade tem advogado uma identidade autista, como demonstrado por Ortega (2008ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008., 2009ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 67-77, 2009.), sobre esse ativismo autista, e Adriano, Lugon e Aydos (2021)ADRIANO, L.; LUGON, R.; AYDOS, V. Autismo, deficiência e neurodiversidade: provocações para pensar um conceito disputado e seus efeitos em pesquisas no/a partir do Sul Global. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 45., 2021. Evento online. Anais […]. [S. l.]: Anpocs, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.anpocs2021.sinteseeventos.com.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=3654 . Acesso em: 29 out. 2021.
    https://www.anpocs2021.sinteseeventos.co...
    , que apresentam as particularidades do movimento da neurodiversidade no contexto brasileiro. Neste artigo, articulamos essas diferentes e disputadas concepções, considerando os múltiplos acionamentos do autismo que nossos(as) interlocutores(as) fazem em seus cotidianos e no ativismo político empreendido. Da mesma forma, as terminologias associadas às pessoas diagnosticadas com autismo estão imersas nesses campos de disputas políticas e identitárias. Em nossos campos etnográficos os termos “pessoa com autismo”, “pessoa autista” ou “autista” eram utilizados de modo intercambiável, assim, utilizamos essas diferentes terminologias ao longo do artigo.
  • 2
    Optamos por não citar os nomes das associações pesquisadas e por trocar os nomes das pessoas que foram nossas interlocutoras nas pesquisas visando garantir a privacidade e o anonimato.
  • 3
    Não pretendemos nos estender em uma revisão bibliográfica sobre o período, mas vale destacar que, durante a pandemia, ainda em curso enquanto escrevemos este artigo, nas ciências sociais brasileiras, a questão tem sido tematizada em lives, dossiês, números especiais e boletins de revistas acadêmicas, tais como: Boletim Ciências Sociais (Anpocs), Horizontes Antropológicos (n. 59), Tomo (n. 38), Dilemas (seção excepcional Reflexões na Pandemia), entre vários outros. Nessas produções, o aspecto da desigualdade foi largamente tematizado, inclusive no que diz respeito à dimensão de gênero nas relações de cuidado. A produção internacional indica conclusões similares. Mesmo em contextos considerados historicamente mais igualitários em termos de gênero, as desigualdades reveladas pela pandemia foram enfatizadas; ver, por exemplo, Valgerður Bjarnadóttir e Andrea Hjálmsdóttir (2021)BJARNADÓTTIR, V.; HJÁLMSDÓTTIR, A. “I have turned into a foreman here at home”: families and work-life balance in times of COVID‐19 in a gender equality paradise. Gender Work and Organization, [s. l.], v. 28, n. 1, p. 268-283, Jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1111/gwao.12552 . Acesso em: 29 out. 2021.
    https://doi.org/10.1111/gwao.12552...
    sobre a Islândia.
  • 4
    A terminologia “mãe solo” refere-se à experiência monoparental feminina, e a popularização da expressão se deu especialmente a partir de publicações nas redes sociais, nos anos de 2010, por mães ativistas com inspirações feministas buscando problematizar a relação entre parentalidade e conjugalidade, as desigualdades de gênero no exercício do cuidado de filhos(as) e a dimensão social da maternidade.
  • 5
    Acionamos o termo “positivo” como noção nativa que contrasta no discurso narrado, de modo mais categórico, experiências positivas e negativas. A intenção não é, no entanto, contrapor analiticamente experiências positivas e negativas, como boas e más, mas enfatizar justamente as ambiguidades da experiência e a complexidade do mundo social.
  • 6
    A pesquisa da primeira autora foi realizada com bolsa Capes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAn) da UFMG e resultou na dissertação de mestrado Autismo em movimento: a mobilização da família no reconhecimento do autismo (Carvalho, 2022CARVALHO, B. R. Autismo em movimento: a mobilização da família no reconhecimento do autismo. 2022. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.). A pesquisa da segunda autora “Maternidade solo: parentalidades, conjugalidades e noções de família” foi financiada pelo CNPq.
  • 7
    Veena Das (1995)DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press, 1995. apresenta a ideia de evento crítico como uma ruptura no cotidiano que produz novas disposições para ações que mudam categorias nas quais as pessoas operam. Para a autora, o conceito aproxima os processos políticos, históricos e sociais às trajetórias particulares e à vida cotidiana. Acionamos o conceito de evento crítico para pensar o contexto de pandemia da covid-19, que trouxe essas rupturas em nossos cotidianos, assim como disposições sociais, políticas e econômicas em todo o mundo. No trabalho de Veena Das e Lori Leonard (2007)DAS, V.; LEONARD, L. Kinship, memory, and time in the lives of HIV/AIDS patients in a North American city. In: CARSTEN, J. Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness. Malden: Blackwell Publishing, 2007. p. 194-217., as autoras retomam o conceito de evento crítico para analisar situações de diagnóstico clínico, que também empreendemos neste artigo para refletir acerca das trajetórias familiares diante do diagnóstico de autismo de filhos(as).
  • 8
    Nossas referências às crianças pequenas no texto referem-se, muito genericamente, à primeira infância, período do curso de vida definido entre o nascimento e os 6 anos de idade.
  • 9
    Essa análise também é feita por outras produções, ao abordar como o diagnóstico clínico impacta a vida das pessoas, ao mesmo tempo que é transformado por essas experiências. Ver, por exemplo, Hacking (2006)HACKING, I. Making up people: clinical classifications. London Review of Books, London, n. 16, v. 28, 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.lrb.co.uk/the-paper/v28/n16/ian-hacking/making-up-people . Acesso em: 10 jul. 2021.
    https://www.lrb.co.uk/the-paper/v28/n16/...
    , Grinker (2010)GRINKER, R. R. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010., Nunes (2014)NUNES, F. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas para o campo da saúde. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., Campoy (2015)CAMPOY, L. C. Autismo em ação: reflexões etnográficas, sem aprovação de comitês de ética sobre a clínica e o cuidado de crianças autistas. Politica & Trabalho, [s. l.], n. 42, p. 155-174, jan./jun. 2015., Rios (2017)RIOS, C. “Nada sobre nós sem nós”? O corpo na construção do autista como sujeito social e político. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 25, p. 212-230, 2017., Aydos (2017)AYDOS, V. “Não é só cumprir as cotas”: uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017., Valtellina (2019)VALTELLINA, E. S.A: classificação, interpelação. In: RIOS, C.; FEIN, E. (org.). Autismo em tradução: uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019. p. 259-286..
  • 10
    Maternidade/paternidade atípica, expressão acionada por interlocutores(as) das pesquisas, e carregada de controvérsias dentro do movimento autista, refere-se à particularidade da experiência de parentalidade em relação a pessoas neuroatípicas, como as diagnosticadas com autismo. O termo “atípico” ou “neuroatípico” advém do debate sobre neurodiversidade, que, em linhas gerais, defende que a diversidade neurológica não deveria ser abordada como doença ou transtorno, mas como uma diferença mais estritamente (Ortega, 2008ORTEGA, F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 477-509, 2008., 2009ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 67-77, 2009.).
  • 11
    Mol contrasta lógica da escolha a lógica do cuidado. A primeira estaria pautada ora no mercado, ora na cidadania, mas em ambos os casos regrada pela dimensão da escolha individual informada por fatos e confinada a uma temporalidade linear; a lógica do cuidado, por sua vez, é marcada por uma interação, uma relacionalidade, mais do que por uma transação, é um processo aberto, não uma simples transferência de produto com começo e fim. A lógica do cuidado supõe ajustes contínuos ao que Mol denomina como viscosidades da vida, como condições materiais, pessoas, hábitos que não necessariamente se conformam aos nossos desejos. Acionamos essas discussões para pensar o cuidado na prática, conforme propõe a autora.
  • 12
    Em relação a esse exemplo específico, é preciso destacar que ainda que revele possíveis transformações futuras acerca do acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, também traz controvérsias quanto à efetivação de espaços acessíveis e à mitigação de barreiras sociais nos ambientes laborais. Para uma ótima discussão sobre os paradoxos do trabalho remoto entre pessoas com deficiência tendo em vista as dimensões da acessibilidade e inclusão, ver o artigo de Aydos, Navarini e Oliveira (2021)AYDOS, V.; NAVARINI, D.; OLIVEIRA, B. The paradox of “remote working” in COVID-19 pandemic times: disability, inclusion, and accessibility in Brazil. Disability Studies Quarterly, [s. l.], v. 41, n. 3, 2021. Disponível em: Disponível em: https://dsq-sds.org/article/view/8359/6189#endnote01 . Acesso em: 29 out. 2021.
    https://dsq-sds.org/article/view/8359/61...
    .
  • 13
    Dispositivo de proteção social que visava abranger pessoas com trabalhos informais ou desempregadas, com renda familiar de até três salários mínimos.
  • 14
    Lei nº 13.982/2020 (Brasil, 2020BRASIL. Lei nº 13.982/2020, de 2 de abril de 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília: Presidência da República, 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm . Acesso em: 2 dez. 2020.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ).
  • 15
    Vale destacar alguns aspectos macroestruturais que levaram à ascensão social por meio do acesso ao ensino universitário nas primeiras décadas do século XXI, especialmente após a implementação das políticas de ação afirmativa, da ampliação do financiamento estudantil e da expansão dos câmpus universitários para variadas regiões do país. No caso de Isabela, ela destaca também a importância dos movimentos estudantis de ação afirmativa em sua trajetória, tributando seu ingresso no mestrado na universidade pública à participação em um curso preparatório, organizado por estudantes veteranos, ingressos via ação afirmativa, que oferecia formação para aspirantes à pós-graduação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
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