Resumos
Este artigo apresenta como se dá a construção da corporalidade de uma drag queen no processo de female impersonation pelo qual passam esses sujeitos quando "se montam", ou seja, quando efetuam um tipo de cross-dressing. Discuto como se deu o aprendizado de "se montar" e a construção da personagem a partir da descrição do processo de montaria e seu significado para o grupo pesquisado. Os dados aqui apresentados advêm de trabalho etnográfico realizado acerca da inserção, corporalidade e performance de drag queens em espaços de sociabilidade GLS da Ilha de Santa Catarina, entre 2000 e 2002.
Corporalidade; Cross-Dressing; Gênero; Drag Queens; Etnografia
This paper presents how the construction of corporeality takes place when a drag queen is passing through a "female impersonation" process, which may be seen as cross-dressing. Some aspects of the discussion proposed here are the construction of the character, the learning of a female impersonation process, the process of making the changes required to the character and the construction of a drag corporeality, and their meanings for this group. The data presented here comes from my ethnographic fieldwork about drag queens which was done in gay and lesbian sociability places in the island of Santa Catarina, Brazil, from 2000 to 2002.
Corporeality; Cross-Dressing; Gender; Drag Queens; Ethnography
ARTIGOS
Fora do armário, dentro do closet: o camarim como espaço de transformação* * Trabalho apresentado na Mesa Redonda "Homossexualidade e política" no Encontro Internacional Fazendo Gênero 5: Feminismo como política, UFSC, 2002, embasado em minha dissertação de mestrado (VENCATO, Anna Paula. Fervendo com as drags: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, Antropologia, UFSC, 2002), orientada pela Prof. Dra. Sônia Weidner Maluf. Agradeço a Giselle Cavati pela revisão das normas para apresentação do texto.
Out of and inside the closet: the dressing-room as a place for transformation
Anna Paula Vencato
Doutoranda em Sociologia e Antropologia pelo IFCS-UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. apvencato@hotmail.com
RESUMO
Este artigo apresenta como se dá a construção da corporalidade de uma drag queen no processo de female impersonation pelo qual passam esses sujeitos quando "se montam", ou seja, quando efetuam um tipo de cross-dressing. Discuto como se deu o aprendizado de "se montar" e a construção da personagem a partir da descrição do processo de montaria e seu significado para o grupo pesquisado. Os dados aqui apresentados advêm de trabalho etnográfico realizado acerca da inserção, corporalidade e performance de drag queens em espaços de sociabilidade GLS da Ilha de Santa Catarina, entre 2000 e 2002.
Palavras-chave: Corporalidade, Cross-Dressing, Gênero, Drag Queens, Etnografia.
ABSTRACT
This paper presents how the construction of corporeality takes place when a drag queen is passing through a "female impersonation" process, which may be seen as cross-dressing. Some aspects of the discussion proposed here are the construction of the character, the learning of a female impersonation process, the process of making the changes required to the character and the construction of a drag corporeality, and their meanings for this group. The data presented here comes from my ethnographic fieldwork about drag queens which was done in gay and lesbian sociability places in the island of Santa Catarina, Brazil, from 2000 to 2002.
Key words: Corporeality, Cross-Dressing, Gender, Drag Queens, Ethnography.
You are born naked and the rest is drag.
Ru Paul
Para freqüentadores/as de casas noturnas catarinenses dirigidas ao público homossexual, o camarim sempre foi e é um território impregnado de um certo ar de mistério.1 1 O trocadilho do título deste artigo, que poderia ser traduzido como "fora do armário, dentro do armário", deve-se ao fato de que trabalho ao longo do texto com a dimensão não-acessível ao público da experiência drag, ou seja, com o processo de montaria (termo que explicarei mais adiante), que se dá usualmente dentro do camarim. Afinal, mesmo que a drag, sua personagem, seja um sujeito bastante visível por onde quer que passe, e se faça notar, há uma dimensão de sua experiência que permanece geralmente fora do alcance do público que a assiste em performance. O acesso restrito a ele possivelmente sublinha o mistério que lhe é costumeiramente atribuído. Muitas pessoas gostariam de entrar para ver o que acontece ali, ver como as drags se montam, o que fazem os/as go go's2 2 Go go boys ou Go go girls (estas bem menos comuns nesses espaços) são pessoas contratadas para dançar seminuas de forma sensual/erotizada em locais determinados, usualmente os chamados "queijinhos" ou o palco, dispostos em torno da pista de dança de casas noturnas dirigidas ao público homossexual. , ver se acontece alguma coisa bafão3 3 Basfond é definido pelo "Glossário Gay" como "[fazer] bagunça, confusão, baixaria, bochicho, barra pesada" (texto on-line, disponível em http://www2.uol.com.br:800/mixbrasil/id/glossar.htm). Em francês significa submundo, subterrâneo. A definição de bafão é contextual, pode ter sentido positivo ou negativo conforme o termo é empregado numa situação específica. Fazer bafão quer dizer, usualmente, chamar a atenção de forma ostensiva para o que se está fazendo. Bafão é um termo bastante empregado pelas informantes deste trabalho e, pelo que venho observando, usado entre homossexuais de outras cidades brasileiras. Nos últimos anos, esse termo é também utilizado por outros segmentos sociais, talvez sua popularização se deva ao seu uso por personalidades que aparecem na TV brasileira. , ver as pessoas nuas ou seminuas ou se são exercidas atividades eróticas. Neste local se opera uma transformação, e no caso das drags, isso é mais acentuado: o acesso restrito a essa transformação talvez seja fundamental no devir drag, uma forma de garantir a surpresa fora do camarim. Expor essa dimensão não-pública do tornar-se drag pode fazer com que todo o brilho e a fantasia que advêm dessas figuras se desmanchem no ar. Poderia dizer, então, que aquilo que sublinha o mistério do devir drag é a própria inquietude e curiosidade criada a partir do ocultamento do espaço de transformação (tendo aqui como pressuposto que há vários territórios sendo ocultados concomitantemente: o temporal, o espacial e o corporal).
Eu sabia que negociar com os donos dos bares e boates a minha entrada nos lugares "restritos ao público" seria muito difícil e pouco proveitoso; assim, pensei que o momento do camarim poderia ser contemplado apenas através das entrevistas. Imaginava que não teria acesso a essa instância privada de se tornar drag4 4 "Tornar-se" porque neste texto minha proposta é muito mais discutir o processo de metamorfose pelo qual passam esses sujeitos- drag do que o produto final desse processo. , sendo tomada de surpresa quando, na primeira entrevista que realizei, Céia Pentelhuda me convidou para entrevistá-la enquanto se montava. Foi a primeira vez que vi o processo e a primeira vez que estive num camarim de boate gay. Saí de lá convencida de que deveria tentar conseguir ver mais drags se montando, que a observação e as perguntas acerca desse momento seriam importantes para que pudesse entender os processos por que passam esses sujeitos. O acesso a camarins continuou sendo restrito, mesmo após as conversas com os proprietários das casas noturnas acerca de minha pesquisa. Ainda que me apresentasse como pesquisadora, eu era tida antes como freqüentadora e essa segunda posição tem um grande peso na construção da minha identidade e do que me era permitido ou não fazer em campo. Os outros espaços5 5 Não que esses outros espaços não sejam também camarins, mas eu os colocaria em outro nível: haveria um camarim como espaço fixo e institucionalizado, previamente estabelecido, dentro de uma casa noturna, e outro enquanto espaço improvisado para atender a uma demanda específica em determinadas situações. em que pude assistir drags se montando (e desmontando) foram o Mercado Mundo Mix (os de fevereiro e julho de 2001) e o carnaval de 2001 (em que aluguei um apartamento com duas drags e uma travesti, perto da rua em que o carnaval gay ilhéu acontece todos os anos no centro da cidade). No carnaval, a observação do processo de se tornar drag se deu com mais intensidade, e foi na possibilidade de ter acesso ao espaço do camarim (independente de qual deles) e ao momento da montaria que percebi que minha "corrida da polícia"6 6 Referência ao momento de aproximação entre o antropólogo e os sujeitos pesquisados, ver GEERTZ, Clifford. Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989, pp.278-321. com as drags tinha se dado.
"Corpo se fabrica": o corpo sendo montado
Referindo-se a Agrado7 7 Personagem travesti do filme "Tudo sobre minha mãe", de Pedro Almodóvar, 1999. , Maluf afirma que "quando lhe é dado o palco, ela apresenta o caráter fabricado de seu corpo", um corpo que, conforme sua narrativa, foi construído aos poucos, num processo cujo aspecto central é o poder estar em metamorfose.8 8 MALUF, Sônia Weidner. Corpo e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero nas margens. Revistas de Estudos Feministas, vol.10, nº 1, Jan. 2002, pp.143-153 (trabalho apresentado originalmente na Mesa Redonda "Corpo, cultura e textualidade", Seminário Internacional Fazendo Gênero 4, Florianópolis, UFSC, maio de 2000). Em relação às drags, o processo de construção de uma personagem também é gradativo e constantemente passa por refazeres, sendo iniciado quando se decide pela primeira vez "sair montada" e reelaborado a cada vez que é necessário por em ação qualquer um dos aspectos inerentes à experiência drag.
Uma dessas dimensões é sem dúvida aquela que se mantém mais afastada dos olhos do público: a que se passa entre as quatro paredes de um camarim, ou seja, em termos drag, "se montar". De acordo com Jatene,
drag queens são homens que se "montam" de mulher para encenarem... (...) [montar é] um verbo constantemente usado no vocabulário dos drag queens, que significa o ato de montar a personagem, criando todos os aspectos que irão compô-la, desde seu codinome, sua indumentária, maquiagem, comportamento, modo de falar, etc. Ao se montar, o drag transforma-se em sua personagem.9 9 JATENE, Izabela da Silva. Tribos urbanas em Belém: Drag queens - rainhas ou dragões? Belém, 1996, mimeo, p.9, grifo meu.
Pautada em minhas observações de campo, discordaria da autora em alguns pontos como, por exemplo, o fato de referir-se às drags como os drags.10 10 VENCATO, Anna Paula. Fervendo com as... Op.cit. Também não me parece que as drags se montem "de mulher". O fato de não quererem ficar parecidas com mulheres, inclusive, é apontado por elas como um aspecto que as distingue das travestis e dos transformistas. Não são todas as drags que se transformam em sua personagem: a transformação se dá em escalas com grande grau de variação entre uma drag e outra e, mesmo, entre um momento e outro em que se montam. De qualquer modo, concordo com a autora quando diz que, ao se montar, a drag monta sua personagem e, acrescentaria, é através de uma corporalidade drag que essa personagem pode ser representada e apresentada para o público. Assim, este "outro lado da performance drag" torna-se fundamental na compreensão daquilo que fazem quando estão "em ação", em performance.
A partir das falas das drags e daquilo que observei em campo, penso que é necessário diferenciar o que é entendido por esses sujeitos como maquiagem e como montaria. O termo maquiagem faz referência aos produtos usados para maquiar o rosto, e ao produto final da aplicação de cosméticos no rosto; enquanto a expressão montaria designa aquilo que se carrega na mala, ou seja, trajes e acessórios; trajes e acessórios já postos/montados sobre o corpo; maquiagem pronta somada a trajes e acessórios; todo o conjunto que se vê montado de/em uma drag.
Como para os/as transexuais e travestis trabalhados/as por Maluf11 11 MALUF, S. W. Corpo e desejo... Op. cit. , para as drags o território em que se opera a transformação é o corpo, não uma espécie de passagem da natureza para a cultura, mas uma passagem entre "dois corpos culturais" ("de um corpo cosmológico essencializado a um corpo cosmológico não-essencializado, de uma teoria de gênero a outra teoria de gênero") mediada pelo desejo de se tornar outro, de se tornar uma personagem, uma caricatura de um feminino que talvez nem mesmo exista numa suposta "natureza feminina".12 12 Agradeço à minha orientadora, Sônia Weidner Maluf, então professora da disciplina de Redação de Dissertação pelo argumento e às demais pessoas que fizeram esse curso pela discussão aqui proposta. Assim, pode-se dizer que
o corpo e os usos que dele fazemos, bem como as vestimentas, adornos, pinturas e ornamentos corporais, tudo isso constitui, nas mais diversas culturas, um universo no qual se inscrevem valores, significados e comportamentos, cujo estudo favorece a compreensão da natureza da vida sociocultural.13 13 OTTA, Emma e QUEIROZ, Renato Silva. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológicos na definição da estética corporal. In: QUEIROZ, Renato Silva. O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo, Ed. SENAC, 2000, pp.13-66.
Essa dimensão não-pública da experiência drag (que também deve ser apontada como apenas uma das dimensões não-públicas dessa experiência) é talvez a mais representativa na construção de sua personagem. Talvez pudesse se falar aqui numa espécie de ritual de passagem. Não quero com essa afirmação descartar o texto, a performance e a jocosa presença drag em espaços de sociabilidade. Argumento que a drag vai sendo montada, principalmente, dentro dos limites das quatro paredes de um camarim (que aqui pode ser considerado um espaço liminar, no qual a transformação pode e deve acontecer). É nesse espaço que, em alguns casos, muda-se completamente o registro de quem se é ou, ao menos, acentuam-se traços de uma personagem cuja base já está presente no rapaz desmontado.
Há diferentes graus de identificação entre pessoa e personagem no caso das drags que pesquisei: 1) rapaz que se identifica muito com sua personagem drag, chegando a assumir em sua vida cotidiana a personagem; 2) rapaz diferente de sua personagem drag, mas que não se preocupa com o fato de por vezes identificar-se ou ser identificado com ela; 3) rapaz diferente de sua personagem drag, que evita (chegando mesmo a excluir a possibilidade de) qualquer identificação. A maior parte das drags pertence ao segundo grupo. É possível que a vinculação direta com a homossexualidade tenha algum peso na escolha por viver ou não a experiência drag noutros momentos. Quando desmontado, mesmo que seja difícil não ser associado à personagem drag, ou reconhecido como "o cara que é/faz a drag tal", há drags que preferem que essas duas esferas de suas vidas mantenham-se completamente dissociadas. Certamente, o fato de esses sujeitos serem usualmente confundidos com travestis e transexuais também pode ter alguma influência nessa escolha de não tornar público o fato de se montar.
Nesse contexto, a confusão se constrói em torno do uso de acessórios usualmente atribuídos ao gênero feminino. Ao mesmo tempo, um dos traços diferenciadores de uma drag em relação a uma mulher, uma travesti ou uma transexual seria também como se enfeita, o que usa em termos de maquiagem, roupas, sapatos e acessórios, enfim, como se monta. Ou seja, na composição da corporalidade da drag, esses acessórios acabam sendo recolocados em termos do significado que adquirem no contexto da determinação do gênero das coisas.
Para as drags que compõem essa pesquisa, é determinante sua diferenciação de outras categorias de transgênero; me refiro aqui especificamente àquelas que se dão no sentido do masculino para o feminino. Afinal, conforme Otta & Queiroz, as vestimentas teriam um valor protetor (instrumental) tão relevante quanto sua forma (valor expressivo), sendo que "é por meio dos trajes e acessórios que os acompanham que se estabelece o primeiro estágio de reconhecimento social".14 14 OTTA, E. e QUEIROZ, R. S. A beleza em foco... Op.cit, pp.17-18. Assim, em relação às drags, pode-se dizer que é através de como se montam, não em termos instrumentais apenas, mas principalmente em termos expressivos - o produto final da montaria - que podem ser classificadas enquanto pertencentes a um ou outro estilo. É a montaria, mas não apenas ela, que parece dar os parâmetros para uma classificação - realizada primeiramente dentro do próprio grupo e depois levada ao público - como top-drag, caricata ou qualquer outra.15 15 Conforme o discurso das drags que observei e entrevistei durante a pesquisa de campo, há vários estilos de drags. Esses estilos são definidos da seguinte forma: " Top-drags - Têm postura bastante feminina, interagem com a moda, têm a obrigação de estar bonitas e sexy, devem se parecer um pouco com mulheres; Caricatas - Alegóricas, cômicas, engraçadas, exageradas; Ciber-drags - Relativamente semelhantes às tops, mas com um estilo bem mais 'futurista'; Andróginas ou go-go drags - Mais masculinas, sem pretensões de se aproximarem muito do feminino. Não se depilam, por vezes; Bonecas - Como Isabelita dos Patins, que possui um personagem único e cujos movimentos lembram um pouco uma boneca." VENCATO, Anna Paula. Fervendo com as... Op.cit., p.67. De qualquer modo, interessa uma descrição do processo de construção de uma montaria (e de uma personagem) drag, pois é este processo que as diferencia entre si, assim como performances narrativas e corporais. É a montaria, acrescida dos textos e das performances que diferencia um feminino-drag de outros femininos e um masculino-drag de outros masculinos. Além disso,
a indumentária é um elemento simbólico fundamental na definição das nossas identidades, não só de classe mas também de gênero. Como conseqüência, a moda irá manifestar padrões, limites, imposições tácitas de ordens diversas, estabelecendo projeções típicas de comportamento para todas as categorias de indivíduos, fixando um conjunto de significações e valores de um modo sistemático.16 16 TELES DOS SANTOS, Jocélio. Incorrigíveis, afeminados, desenfreados: indumentária e travestismo na Bahia do século XIX. Revista de Antropologia, vol. 40, nº 2, São Paulo, USP, 1997, p.147.
Revelar essa dimensão da construção de uma personagem drag é uma tarefa que requer algum cuidado. Não é qualquer pessoa que pode ver uma drag se montando, as drags preferem não ser vistas dessa forma. É provável que esse momento de transformação lhes confira uma espécie de fragilidade simbólica, afinal, é um corpo de homem, seminu, transformando-se em um feminino que não lhe foi dado o direito de uso. É apenas o produto final do que se processa no camarim que pode e precisa ser exposto. Por essa razão, tirar fotos desse momento poderia ser caracterizado como uma atitude indelicada em relação ao ethos desse grupo. Assim, as descrições que seguem não foram escritas de forma tranqüila, tendo passado por várias edições e cortes.
"Se montar dá um livro, não dá?", vira-se Kim Khadja para mim pouco após começar sua maquiagem, eu sentada no chão, ela numa cadeira, em frente ao espelho, num quarto que alugamos no centro da cidade com Vogue Star e Vitória (uma trava17 17 Trava (travesti) era a forma Vitória referia-se a si mesma na época. Em recente entrevista à TVCOM (exibida em 19/01/2002), denominou-se transexual. A TVCOM é um canal de televisão fechado do Grupo RBS, filiado à Rede Globo, que domina boa parte do mercado de comunicação do sul do país. ) para que elas pudessem se montar para o carnaval de rua de 2001. Fiz que sim com a cabeça... era o segundo dia de carnaval e já havia visto a outra drag se montando na noite anterior. Mais uma vez percebi que se montar não é só um exercício de criatividade e paciência, mas, sobretudo, é um trabalho de arte. Logo depois, esbaforindo-se e abanando-se com a mão, demonstrando sentir muito calor e estar se aborrecendo um tanto com aquilo tudo, olha novamente pra mim e diz: "É babado!".18 18 Babado, nesse contexto, é uma expressão que tem conotação negativa, indicando dificuldade em passar por uma situação específica e um tanto de falta de paciência. Antes disso ficou um longo período dizendo que não sabia se queria se montar naquela noite, enquanto Vogue insistia. Foi quando viu várias "bichas"19 19 O termo foi usado de modo a designar homens gays, como o termo "viado" a seguir. montadas despontando na rua que se decidiu por sair montada. Só saímos do prédio duas horas depois.
Era carnaval. Do apartamento, ouvia-se aquelas batidinhas cadenciadas típicas da música, o calor infernal de fevereiro, o céu estrelado que não garante que não haveria chuva. Ansiedade. Longos períodos de silêncio, entrecortados vez ou outra por alguma frase sobre a rua estar ou não enchendo de gente, sobre haver ou não "viados" montados lá embaixo. Sentada no chão ou em pé fumando na janela, eu observava atenta e silenciosamente as drags se montando, e lhes dizia de quando em quando como estava o movimento da rua. Havíamos alugado um apartamento cuja janela dava para o Roma, era o último andar do prédio e tínhamos ampla visão do resto do mundo dali, do mundo que existia para nós naquele momento. Lá embaixo, começavam a se delinear lentamente os traços de uma divisão territorial entre grupos sociais diversos. Fronteiras simbólicas claras, desenhadas por corpos que se espalhavam pela avenida Hercílio Luz.20 20 PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1987; Antropologia das sociedades complexas: identidade e territorialidade, ou como estava vestida Margaret Mead. RBCS, vol. 8, nº 22, jun. 1993, pp.137-144 e Territórios marginais. In: Saúde Loucura 4: Grupos e Coletivos. São Paulo, Hucitec, 1993. Das nove e meia da noite até uma da manhã, nossa participação no mundo era do alto, através daquilo que os/as antropólogos/as chamariam de olhar, observar.21 21 Naquele momento (como em vários outros relatados no decorrer desse trabalho), poderia dizer que havia um englobamento da pesquisadora no ethos do grupo, pois ao mesmo tempo em que as observava se montando, olhava o que acontecia lá embaixo, na rua, para poder relatar-lhes quando perguntassem, atendendo a uma demanda delas. Evidentemente, não havia muito de participante na observação que fazíamos, mas não havia necessidade disso naquele instante. A participação estaria guardada para quando elas estivessem montadas, quando estivessem prontas para mostrar ao "mundo" como é que se faz uma excelente montaria (sendo que nesses termos explicitavam o que fariam lá embaixo).
Ali, no camarim improvisado por Vogue, pude assistir, auxiliar e experienciar22 22 Experienciar não no sentido de "sentir o que elas sentem", mas embasada naquilo que vivenciei ao me montar atendendo a uma solicitação de Vogue. a montaria enquanto processo de female impersonation.23 23 Female impersonation seria uma transformação de gênero no sentido masculino para feminino intrinsecamente relacionada à vestimentas e teatralização, cuja base principal é a própria transformação demonstrada pelo performer. Ver BAKER, Roger. Drag: A History of Female Impersonation in the Performing Arts. New York, New York University Press, 1994. Para Newton, drag queens são chamadas de female impersonators, amenizando para o mundo hetero, a carga de homossexualidade que carregam, sendo que " female impersonators são performers muito especializados. A especialidade é definida pelo fato de que os membros deste grupo são homens que performam, exclusiva ou principalmente, dentro de atributos sociais das mulheres" NEWTON, Esther. Mother Camp: Female Impersonators in America. Chicago and London, The University of Chicago Press, 1979, p.5. De acordo com Baker, é um termo que tende a descrever qualquer homem que atue artisticamente vestindo-se como uma mulher, muito embora nem todos os homens que o tenham feito possam ser chamados de female impersonators. O palco, a rua ou qualquer outro espaço vem sempre depois desse processo e, evidentemente, a criação deste feminino adquire contornos que são construídos a cada pincelada de maquiagem, um feminino que não se pretende similar àquela fragilidade e submissão que cabem no estereótipo atribuído ao binômio feminino-mulher.
Na primeira noite, quando cheguei ao apartamento, Vogue já havia passado a base da maquiagem, o corretivo.24 24 O corretivo, como o nome indica, é usado como base de maquiagem para corrigir algumas imperfeições da pele, como espinhas, cicatrizes ou, mesmo, uma barba rala. No caso das drags, é um componente fundamental da maquiagem. O tempo que Vogue leva para se montar é de duas a três horas, às vezes mais. Ela é muito detalhista na produção. Havia trazido uma mala com a montaria (peruca, botas, cintos, chapéu, pulseiras, coleiras, toalha de banho, cremes, produtos de higiene pessoal), uma frasqueira25 25 A frasqueira é um bem simbólico importantíssimo a esse grupo. Ali estão guardadas algumas das partes mais caras de sua montaria, tanto no sentido sentimental como financeiro. A maquiagem é uma das partes mais valorizadas da montaria das drags, devendo estar sempre impecável. Além disso, é uma das mais difíceis de improvisar, pois como usam maquiagem pesada, os produtos devem ser de boa qualidade, o que implica em preços altos. Uma vez, ao sair do camarim do Mercado Mundo Mix com Tina Túnel, ela me pediu que a auxiliasse a carregar suas coisas até o táxi. Peguei uma das malas e ela rapidamente disse que sairia dali carregando a frasqueira, porque seria "chique" ser vista saindo do camarim carregando-a. (com a maquiagem, grampos de cabelos, lentes de contato, cílios postiços, etc.) e a roupa do corpo. Tudo posto de forma bastante organizada assim como é metódica ao fazer a maquiagem. Além disso, tem uma mão firme. Não me lembro de tê-la visto, em nenhuma das noites, errando um traço sequer do delineador líquido, que é um tipo de maquiagem que requer certa habilidade porque borra muito facilmente.26 26 Vogue é costumeiramente contratada para fazer a maquiagem dos/as modelos que desfilam no "Beira-Mar Fashion", uma versão local do "Morumbi Fashion" (que hoje é um evento de proporções bem maiores, chamado "São Paulo Fashion Week"), em que durante uma semana, a cada noite, no vão central do Beira-Mar Fashion, desfila uma loja diferente ali estabelecida. A última edição do Beira-Mar Shopping se deu em abril de 2001.
A primeira coisa que faz é tirar a roupa... ao menos tênis, meias, camiseta e calça, como de costume, muito preto nas roupas. Dobra as roupas, deixa-as em cima da cama. Põe as meias dentro dos tênis e os coloca sob a cama. Logo em seguida passa o corretivo e espalha. O cabelo está amarrado num rabo-de-cavalo e veste um top e um shortinho. Pernas peludas, sobrancelha finíssima, peito e axilas depiladas. Ela é magrinha, muito branca (não pega sol, assim como Céia, para manter a pele assim), tem seios pequenos, as pernas são finas (o que se modifica quando está sobre suas plataformas e com as seis meias-calças que veste sobrepostas). Uma das coisas que me disse é que não depila as pernas porque não tem um corpo muito feminino... caso tivesse, o faria. Quando ela se refere a não ter um corpo feminino não está falando de ser ou não efeminada ou do fato de possuir seios. Ela está se referindo a um corpo de mulher com "coxão", "pernão", quadril, bunda avantajada...
Há alguns boatos acerca da razão da existência de seios em Vogue e de como teriam surgido, assim como acerca de outras drags, que podem ter ingerido hormônios com o intuito de moldarem seu corpo a uma estética mais feminina. Muitas vezes, esses boatos revelam um certo discurso acusatório, que aponta e associa as drags a sujeitos a um passo de se tornarem travestis. Nunca perguntei a Vogue nada sobre a origem de seus seios, assim como ela jamais mencionou o tema. Contudo, deve-se ressaltar que boatos e rumores são comuns no circuito gay ilhéu. Eles permeiam quase todas as relações sociais que ali são estabelecidas. Geralmente, são acompanhados de uma certa dose de sarcasmo, como se o intuito por detrás da história fosse prejudicar as partes envolvidas, ou a pessoa de quem se fala. De qualquer modo, como é prática recorrente, nem sempre adquire o status de verdade, podendo não ir adiante. De modo geral, esse tipo de boato é repassado de forma jocosa, mas não é acompanhado de grande credibilidade.
Voltando ao processo de montaria de Vogue, assim que termina a maquiagem, sendo a parte dos olhos a mais demorada (leva mais de uma hora para ficar pronta, o que observei também quando vi outras drags se montando), começa a vestir-se com a montaria, sendo esta composta de seis meia-calças - para engrossar as pernas (reforço aqui que era carnaval, fevereiro e, conseqüentemente, verão) - um par de botas brancas com tachas, um shortinho que se assemelhava a uma calcinha de vinil branco, um corselet branco (estilo cinto modelador), uma espécie de top branco também em vinil, peruca sintética de cabelos negros longos (feita para ser usada com chapéu), chapéu branco com acessórios prateados e em strass. Com medo de que seu chapéu fosse roubado ou arrancado no meio do povo, criou uma estratégia para impedir que isso acontecesse: tirou o cadarço dos tênis, transpassou-o por orifícios do chapéu que existem para esse fim, colocou-o sobre a cabeça e amarrou o cordão sob o queixo. Perguntou-nos apenas se estava bem e se não estava muito "vagabunda" com aquela roupa. Respondemos que não, que estava linda. Naquele momento ela andava "fazendo uma linha" (ou seja, adotando um estilo) mais cowgirl (vaqueira), com influências claras da então nova fase vendida pela cantora pop Madonna. Havia um certo toque SM (sado-masoquista) na roupa, dados os materiais empregados na confecção - vinil, couro sintético e metal. Vogue usa com freqüência esse estilo.
O estilo SM brasileiro (talvez apenas ilhéu) adquire contornos próprios, mais brilhantes, menos carregados ou pesados que o americano (a estética sado-masoquista gay norte-americana é chamada leather) - um SM carnavalizado. No caso das drags, se comparadas aos punks estudados por Caiafa27 27 CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. 2ª ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1989. , o uso desses signos de forma bastante particularizada esvazia a associação entre prazer e dor. Por outro lado, em certa medida, o estar drag carrega um pouco dessa ambivalência, uma vez que para estar bela e divertida, enquanto drag, requer alguns sacrifícios por vezes dolorosos (esconder e amarrar do pênis, o uso de sapatos que não são confortáveis, entre outras coisas). Vale lembrar que não são todos os estilos de drag que usam esses acessórios SM, mais vinculados às top-drags e em nada lembram o estilo das caricatas (não que estas não possam usá-los ou usem, mas sobre seus corpos o acessório SM tem outras conotações êmicas).28 28 Confira a diferença destes estilos à nota 15.
Make up é o termo adequado para se referir ao processo de maquiagem e montaria drag, pois sublinha o caráter de que é algo feito, fabricado por alguém. Para Vogue, cada detalhe é fundamental, a perfeição é a meta, fora ser "belíssima" (utilizando aqui termos nativos), ela não tem muito interesse em se montar. A possibilidade de não "estar bem" (leia-se "perfeita") é suficiente para uma montaria deixar de acontecer. Mesmo que elas não estejam sendo remuneradas para "botar a montaria na avenida", em certo sentido, montar-se no carnaval advém mais de um desejo de aparecer publicamente do que de se montar "por prazer". Essa diferenciação aparece no discurso nativo, e é difícil explicar o que seria uma ou outra coisa. Parece que a queixa por se montar, com as dificuldades diversas de passar pelo processo, faz parte desse ethos drag. É evidente que se elas não quisessem não teriam obrigação de se montar nessas noites de carnaval. A reclamação talvez sirva para valorizar ainda mais a transformação que se passa no espaço do camarim. Há um componente político de tomada de espaço ao sair montada todas as noites do carnaval, que se ancora no dito popular "quem não é visto não é lembrado". O carnaval seria, assim, um espaço importantíssimo para aparecer, para mostrar-se.
De qualquer modo, as drags referem-se a dias em que se montam pelo prazer de se montar, diferenciado-os dos dias em que se montam a trabalho. É difícil encaixar o carnaval em um ou outro desses motivos. A questão gira em torno de aparecer - e aparecer bem -, de ser vista (na rua, um espaço diferenciado da habitual boate), de ser olhada com medo, admiração, ser elogiada, ser abordada e, em certos momentos, dar um "passa fora elegante" nessas pessoas.
Como pode ser observado, existem várias possibilidades de se montar: por trabalho (na boate ou outro espaço); por vontade própria (na boate, no carnaval, para um evento, entre outros). Montar-se no carnaval poderia, mesmo, ser visto como um exercício de militância. Seria uma forma de tomar espaço, se fazer presente, demarcar territórios. Ir ao carnaval se localizaria na dinâmica entre aparecer e comparecer, estar ali e ser vista faz muita diferença na consolidação de uma trajetória drag. Caso contrário, não haveria motivos de drags como Kim Khadja, por exemplo, que mora há alguns anos em São Paulo, voltar à Ilha nessa época para sair montada ou, também, no esforço empregado por algumas drags para conseguir um local próximo ao Roma para se montarem para a ocasião.
Voltando ao camarim e à montaria, o caráter fabricado e (re)elaborado da experiência drag é sublinhado pelas drags em conversas com os demais sujeitos com quem convivem. Vogue insistia para que eu me montasse desde a primeira noite (e ainda hoje me pede nas festas que promove), mas só na terceira noite de carnaval resolvi experimentar. Montei-me antes de Vogue chegar ao apartamento, não queria atrapalhar. Eu não tinha peruca, coisa que para ela e outras drags era apenas uma questão de pedir que elas emprestassem. Nessa noite, Vogue solicitou meu auxílio para colocar a peruca, pegando um ou outro acessório, e ajudando-a a colocá-los. Ao final do processo, pergunta a uma amiga dela que chegara há algum tempo: "A senhora não vai se montar, Karina?". Ao que a garota responde "Ahãm... se eu tivesse corpo ainda...". A resposta de Vogue foi rápida: "Corpo se fabrica... corpo se fabrica... eu, eu não fabriquei um agora?".
Nesse contexto, é importante citar Donna Haraway quando argumenta que
nem nossos corpos pessoais, nem nossos corpos sociais podem ser vistos como naturais, no sentido de existirem fora de um processo de auto-criação chamado trabalho humano (...), de modo que, enquanto traço da ideologia, o corpo natural universalizado é a base de ouro para o discurso social hegemônico.29 29 Apud CSORDAS, Thomas J. Introduction: the body as representation and being-in-the-world. In: CSORDAS, Thomas J. Embodiment and Experience. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.2. As referências a Donna Haraway aqui são as seguintes: HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the Reinvention of Nature. New York, Routledge, 1991, p.10 e Investment Strategies for the Evolving Portfoloio of Primate Females. In: JACOBUS, Mary, KELLER, Evelyn Fox, SHUTTLEWORTH, Sally. (eds.) Body/Politics: Women and the Discourses of Science. New York, Routledge, 1990, p.146.
Nesse sentido, pensar numa corporalidade drag dissociada de todas as relações que regulam a construção desse corpo seria naturalizar não apenas a construção do corpo, mas também a construção da personagem drag. É nas relações que estabelece com os outros sujeitos (quem as assiste, quem as contrata, quem as admira, quem não as suporta) que a drag delimita e delineia suas possibilidades de atuação, o que está muito ligado à forma como constrói sua personagem, com o produto final, mas não acabado, dessa construção. Além disso, é importante observar que se há um corpo usualmente dado como "biológico", muito embora nada tenha de natural, Vogue reconhece fazer uma construção voluntária sobre seu corpo "natural". Isso aponta para uma construção corporal "escolhida" sobreposta a outra construção corporal que se pretende reconhecer como da ordem do "natural".
Atendendo à provocação para que eu me montasse (o que não significa que eu tenha realmente me tornado uma drag) consegui maior proximidade (em termos físicos, mas não apenas) do processo de montaria. Ao mesmo tempo em que maquiagem, botas e roupas apontassem para algo drag em mim, o fato de eu não ter usado peruca me colocou em outro lugar. É como se me jogasse de volta à condição de mulher. Vogue, Céia e Bárbara Davis, em momentos distintos, me disseram que usar peruca não seria fácil para mim porque requer alguma habilidade (para a vestir e portar), além de ser bastante desconfortável e, no verão, esquentar demais a cabeça.
Minhas observações de campo apontam para a maquiagem como o recurso que acaba potencializando a possibilidade de haver uma transformação em outro alguém, a construção de um outro eu, de uma espécie de metamorfose de gênero.30 30 MALUF, Sônia Weidner. Antropologia, narrativas e a busca de sentido. Horizontes Antropológicos. vol.5, nº 12, Porto Alegre, dezembro 1999, pp.69-82; O dilema de Cênis e Tirésias: corpo, pessoa e as metamorfoses de gênero. In: LAGO, M; LEITE DA SILVA, A.; RAMOS, T. Falas de Gênero. Florianópolis, Ed. Mulheres, 1999, pp.261-275. Parece que pintar o corpo ritualmente é uma prerrogativa de transformar-se de pessoa em persona. É o que algumas drags relatam ao mencionarem a hora do batom ou o final da maquiagem dos olhos como o momento em que a drag "baixa" - que se tornam efetivamente a personagem.
A maquiagem, além disso, é fruto de todo um aprendizado que sublinha a experiência drag enquanto experiência de grupo, de acordo com o que as drags me disseram (em entrevista ou não) e minhas observações. Afinal, qualquer revista feminina traz dicas de maquiagem e não é preciso muito esforço para encontrar sugestões de como fazer um make up apropriado para determinadas ocasiões e que produtos usar. A existência dessas dicas não significa, per si, que são utilizadas ou utilizáveis. No caso das drags que venho pesquisando, de modo geral, o aprendizado de se maquiar se deu observando, perguntando, pedindo ajuda, sendo maquiadas pelas outras drags quando começaram, testando por si mesmas quando estavam em casa "desocupadas", conforme enfatizaram diversas vezes. Até aqui, nada de muito diferente da forma como, de modo geral, mulheres pertencentes à cultura ocidental aprendem a fazer maquiagem. De qualquer modo, esse aprendizado e também o de como se montar (em termos globais) e como se portar, ou seja, suas técnicas corporais (nos termos maussianos), são atribuídos com freqüência à convivência com drags ou transformistas com "mais experiência" ou "mais antigas" (seria, caso fosse feita uma análise durkheimiana, uma forma de socialização que enfatiza aspectos de ordem geracional, quase como um aprendizado "de mãe para filha") e às dicas e sugestões que partiram delas.
Voltando a questão das transformações pelas quais uma drag pode passar quando se monta, quando realizei a primeira entrevista para minha pesquisa, tive acesso ao camarim em que se montava Céia Pentelhuda (ou, talvez, poderia dizer, em que Maurício montava/criava sobre seu corpo um outro, o de Céia). Ele (Maurício) ficou falando e fazendo a maquiagem, enquanto eu observava atentamente como ele a fazia e tentava me organizar para lhe perguntar algumas coisas sem seguir roteiro. Um aspecto chamou-me a atenção, algo de que talvez ele/ela (nesse momento) não perceba: enquanto faz a maquiagem seu tom de voz torna-se menos grave e passa a aumentar de volume. Quando cheguei ao camarim ele estava de calça, sem camisa, já havia passado o corretivo facial e a base no rosto. Logo em seguida continuou fazendo olho, boca, colocando as lentes de contato, os cílios postiços, retocando o que não ficara direito e o que derretia com o calor (pois estávamos no auge do verão). Esse não é um processo rápido e requer o conhecimento de algumas técnicas. Enquanto Maurício/Céia ia seguindo passo a passo o trabalho de construção de sua personagem através de maquiagem e roupas, eu tinha a impressão de ver outra pessoa se materializando na minha frente: os gestos usualmente comedidos iam tornando-se mais expansivos e performáticos, a voz e o vocabulário também se modificavam. Maurício ia saindo de cena durante o processo, dando espaço à Céia e seu modo desbocado de ser. Quando acabou a maquiagem, ensinou-me como "aqüendar a neca"31 31 O termo "neca", referindo-se pênis, pode indicar uma espécie de feminilização do órgão sexual masculino. , ou esconder/prender o pênis, algo que, segundo ele, demanda algum cuidado e conhecimento porque, caso algo dê errado, a dor é insuportável. Após esconder o pênis, veste a cueca, a meia-calça, uma calcinha, sutiã com enchimento e, finalmente, roupas e sapatos. A última coisa a ser colocada e ajustada é a peruca. Terminado isso tudo, volta-se à maquiagem para retoques e correções. Céia estava montada. Era hora de sairmos do camarim e encontrarmos o seu público. É o tempo da drag. Terminada a montaria, é hora de mostrar ao mundo "como se faz", de sair do espaço fechado do camarim para ganhar o espaço (nem sempre aberto) do público.
Recebido para publicação em dezembro de 2003, aprovado em março de 2005.
- 6 Referência ao momento de aproximação entre o antropólogo e os sujeitos pesquisados, ver GEERTZ, Clifford. Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989, pp.278-321.
- 8 MALUF, Sônia Weidner. Corpo e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero nas margens. Revistas de Estudos Feministas, vol.10, nş 1, Jan. 2002, pp.143-153
- 13 OTTA, Emma e QUEIROZ, Renato Silva. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológicos na definição da estética corporal. In: QUEIROZ, Renato Silva. O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo, Ed. SENAC, 2000, pp.13-66.
- 16 TELES DOS SANTOS, Jocélio. Incorrigíveis, afeminados, desenfreados: indumentária e travestismo na Bahia do século XIX. Revista de Antropologia, vol. 40, nş 2, São Paulo, USP, 1997, p.147.
- 20 PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2Ş ed., São Paulo, Brasiliense, 1987;
- 27 CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. 2Ş ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1989.
- 29Apud CSORDAS, Thomas J. Introduction: the body as representation and being-in-the-world. In: CSORDAS, Thomas J. Embodiment and Experience. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.2.
- As referências a Donna Haraway aqui são as seguintes: HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the Reinvention of Nature. New York, Routledge, 1991, p.10 e Investment Strategies for the Evolving Portfoloio of Primate Females. In: JACOBUS, Mary, KELLER, Evelyn Fox, SHUTTLEWORTH, Sally. (eds.) Body/Politics: Women and the Discourses of Science. New York, Routledge, 1990, p.146.
- 30 MALUF, Sônia Weidner. Antropologia, narrativas e a busca de sentido. Horizontes Antropológicos. vol.5, nş 12, Porto Alegre, dezembro 1999, pp.69-82;
- O dilema de Cênis e Tirésias: corpo, pessoa e as metamorfoses de gênero. In: LAGO, M; LEITE DA SILVA, A.; RAMOS, T. Falas de Gênero. Florianópolis, Ed. Mulheres, 1999, pp.261-275.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Out 2005 -
Data do Fascículo
Jun 2005
Histórico
-
Recebido
Dez 2003 -
Aceito
Mar 2005