Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar, a partir dos estudos de gênero e de suas interseccionalidades, reflexões sobre as diferentes formas de ingresso das mulheres no Cangaço e sobre o que a entrada delas representou para a sociedade. Para isso, foram usados livros, artigos, documentários e arquivos do Museu do Cangaço de Serra Talhada-PE, a fim de refletir sobre as contradições que envolvem as narrativas dessas mulheres: por um lado, foram um símbolo de transgressão, rompendo com o papel de gênero que lhes era esperado; por outro, foram acompanhadas constantemente pela violência dos cangaceiros, das forças policiais e da sociedade.
Cangaceiras; Gênero; Interseccionalidades
Abstract
This article presents a reflexive analysis on different ways in which women joined the ranks of the Cangaço and what their entrance meant for society, based on gender studies and their intersectionalities. The data analyzed in the study was collected from books, articles, documentaries, and archives at the Museu do Cangaço de Serra Talhada-PE and focused on contradictions found within the narratives about these women. On one hand, they were a symbol of transgression, breaking with the expected gender roles. But on the other they were constantly accompanied by the violence of the cangaceiros, the police and society.
Cangaceiras; Gender; Intersectionalities
Introdução
Este artigo resulta de uma das atividades propostas pelo projeto: “Um olhar interdisciplinar sobre o Cangaço”, que foi executado em 2021, com financiamento da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Nele, buscamos lançar novos olhares sobre o movimento do Cangaço por meio da troca de conhecimento de diversas áreas e, assim, produzimos conteúdos e reflexões acerca desse movimento que marcou a cultura e identidade nordestinas. Como parte do projeto mencionado, realizamos o subprojeto: “Um olhar de gênero sobre o Cangaço”1 1 O subprojeto foi idealizado e coordenado pela Prof.ª Dr.ª Lorena Lima de Moraes e contou com Aimê Felix Pordeus, como bolsista de extensão (FACEPE), e Roseane Amorim da Silva, como professora integrante da equipe de pesquisa. , que teve como objetivo compreender o fenômeno do Cangaço a partir da perspectiva dos estudos de gênero e suas interseccionalidades.
A noção de gênero, que, em um primeiro momento, foi desenvolvida e utilizada em oposição ao sexo, para descrever o que é socialmente construído em referência ao masculino e ao feminino, rejeitou a ideia de justificar, a partir da biologia, as raízes das diferenças entre mulheres e homens. Consideramos que a categoria gênero implica que as desigualdades existentes entre mulheres-homens, mulheres-mulheres e homens-homens são perpassadas por processos históricos que caracterizam um padrão de relações de poder (Scott, 1990SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade (2), Porto Alegre, 1990, pp.5-22 [https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 – acesso em: 20 jul. 2021].
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). Assim, sendo uma construção social, as relações de gênero não somente são diversas entre as sociedades ou em distintos momentos históricos, mas também podem se diferenciar no interior de uma mesma sociedade, quando se consideram os diferentes grupos (religiosos, raciais, de classe, entre outros) que a constituem. Dessa forma, buscamos observar as questões de gênero no Cangaço no intuito de compreender as relações estabelecidas entre homens-mulheres e mulheres-mulheres, problematizando a participação delas nesse movimento.
Interessou-nos também observar as relações de gênero a partir da interseccionalidade de classe, raça, sexualidade e território. O debate sobre as convergências entre gênero e outros sistemas de opressão teve como pioneiras Flora Tristan e Sojourner Truth, e, a partir dos anos 1960, a questão foi estabelecida de forma incontornável para o pensamento progressista. No entanto, o conceito foi cunhado e difundido a começar pelo texto da jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, que fez uso da ideia de interseccionalidade para designar a interdependência dos marcadores sociais de raça, gênero e classe nas dinâmicas de poder. As autoras Brah (2006)BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329- 376. Disponível em: [https://www.scielo.br/j/cpa/a/B33FqnvYyTPDGwK8SxCPmhy/?format=pdf⟨=pt – acesso em: 15 fev. 2022].
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e Crenshaw (2002)CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estudos feministas (1), 2002, pp.171-188 [https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf⟨=pt - acesso em: 22 de nov. de 2020].
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, assim como outras, recorreram ao conceito para abordar os marcadores gênero, raça, etnia, classe e outros, de modo articulado, pois, segundo elas, esses estão entrelaçados na constituição das desigualdades sociais.
Silveira e Nardi (2014)SILVEIRA, Raquel da Silva; NARDI, Henrique C. Interseccionalidade gênero, raça e etnia e a lei Maria da Penha. Psicologia & Sociedade (spe), 2014, pp.14-24 [https://lume.ufrgs.br/handle/10183/147307 – acesso em: 12 ago. 2022].
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ressaltam que a interseccionalidade busca compreender as consequências da interrelação dos eixos de poder, gênero, classe e raça na constituição das estruturas e dinâmicas sociais. Ademais, destacam a importância de priorizar a experiência na forma como as pessoas vão se constituindo no jogo de forças a que estão expostas. A partir de um olhar interseccional de gênero, realizamos algumas reflexões sobre a(s) sertaneja(s), o ingresso delas no Cangaço e a subversão dessas mulheres às normas e regras da sociedade da época.
O movimento do Cangaço surgiu entre os séculos XIX e XX no sertão nordestino. Inicialmente, o movimento só contava com a participação de homens dispostos a sequestrar fazendeiros e coronéis e a enfrentar a polícia. Eram motivados por questões sociais e relacionadas à terra, mas, também, por questões pessoais e vingança.
Em seu formato mais conhecido, o Cangaço surgiu como uma reação aos sistemas políticos da época, como o coronelismo (Sá, 2020SÁ, Sarah. Ritchelle Cristovão de. A mulher no cangaço: um olhar para além de Maria bonita (1930-1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2020 [https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/6796 - acesso em: 5 maio 2021].
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). Wilson dos Santos (2018)SANTOS, Wilson Alvares dos. Cangaço: um movimento social. Revista Caribeña de Ciencias Sociales, febrero, 2018 [https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/4026/cangaco-movimento-social.pdf?sequence=1&isAllowed=y - acesso em: 22 jul. 2021].
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caracteriza o Cangaço como um movimento social armado, contextualizado por disputas políticas, por terras e a luta pela honra. A desigualdade social e a miséria, além do isolamento socioespacial e a falta de comunicação com outras regiões do país, são consideradas como as principais motivações para o movimento. Santos (2018)SANTOS, Wilson Alvares dos. Cangaço: um movimento social. Revista Caribeña de Ciencias Sociales, febrero, 2018 [https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/4026/cangaco-movimento-social.pdf?sequence=1&isAllowed=y - acesso em: 22 jul. 2021].
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, diferente de Sá (2020)SÁ, Sarah. Ritchelle Cristovão de. A mulher no cangaço: um olhar para além de Maria bonita (1930-1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2020 [https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/6796 - acesso em: 5 maio 2021].
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ressalta que o Cangaço teve seu início na própria origem do Brasil colônia, no qual a colonização exigia violência para dominar os povos indígenas que viviam no local e, essa violência não desapareceu com a dominação dos povos nativos, ela só foi redirecionada. Apesar de atribuir a motivação do Cangaço à violência sistêmica e ao resultado de uma colonização, Wilson dos Santos (2018)SANTOS, Wilson Alvares dos. Cangaço: um movimento social. Revista Caribeña de Ciencias Sociales, febrero, 2018 [https://dspace.unila.edu.br/bitstream/handle/123456789/4026/cangaco-movimento-social.pdf?sequence=1&isAllowed=y - acesso em: 22 jul. 2021].
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concorda que o controle excessivamente autoritário dos coronéis também é uma das causas de revolta da população, desencadeando assim o Cangaço nos moldes em que ficou mais conhecido.
O coronelismo foi um modelo político vigente no sertão nordestino durante o período de 1930 a 1938 (Sá, 2020SÁ, Sarah. Ritchelle Cristovão de. A mulher no cangaço: um olhar para além de Maria bonita (1930-1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2020 [https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/6796 - acesso em: 5 maio 2021].
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), marcado pela dominação social e econômica dos coronéis. No coronelismo havia uma aliança entre os fazendeiros mais ricos da região, os coronéis, líderes políticos e também contava com o apoio de militares. Tinha como base o autoritarismo excessivo. Segundo Sarah de Sá (2020)SÁ, Sarah. Ritchelle Cristovão de. A mulher no cangaço: um olhar para além de Maria bonita (1930-1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2020 [https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/6796 - acesso em: 5 maio 2021].
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, o autoritarismo desse sistema desagradava a população que era constantemente explorada, desencadeando na formação de grupos de cangaceiros determinados a transgredir e subverter as lógicas de poder no interior do sertão nordestino. O Cangaço, então, apresentava-se como uma forma de vingança e de resistência contra os governos locais.
Seja por motivos de enfrentamento à desigualdade social ou por motivos pessoais de vingança, o Cangaço tem como característica as disputas de poder, regado por violência e dominação. Neste sentido, para os cangaceiros, as mulheres encontravam-se na condição de objeto a ser roubado, conquistado, vingado. Independentemente da classe social, as mulheres estavam subjugadas à cultural patriarcal, seja sob o poder do pai, do dono ou do marido, e no Cangaço essa lógica também regia suas leis. Ainda que o papel das mulheres no movimento fosse distinto das mulheres sertanejas “de família”, veremos que as mulheres cangaceiras também eram tratadas como objeto de posse e tinham suas funções bem definidas no Cangaço.
Para a realização deste artigo, fizemos uso de materiais produzidos sobre a vida dessas mulheres, como livros, artigos, documentários, registros das próprias cangaceiras e o material disponível no acervo do Museu do Cangaço de Serra Talhada-PE.
Neste artigo, objetivamos apresentar algumas reflexões sobre as diferentes formas de ingresso das mulheres no Cangaço, a representação da entrada delas para a sociedade da época, assim como quais aspectos foram transgredidos e rompidos pela coragem das cangaceiras. As contradições que envolvem as narrativas e a memória dessas mulheres significaram, por um lado, uma transgressão de gênero, ao fugirem do casamento e da maternidade; mas, por outro, foram acompanhadas constantemente pela violência dos cangaceiros, das forças policiais e da sociedade que as hostilizava.
Todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, mas outros fatores relacionados às suas identidades sociais, tais como classe e território, são diferenças que repercutem na forma como grupos de mulheres vivenciam as opressões (Crenshaw, 2002CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estudos feministas (1), 2002, pp.171-188 [https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf⟨=pt - acesso em: 22 de nov. de 2020].
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). Isso foi possível observar entre as cangaceiras: a maioria delas, filhas das famílias menos favorecidas economicamente, moradoras das áreas rurais, algumas indígenas, outras levadas de forma violenta para o Cangaço, sem a família ter o direito de negar a retirada delas de suas casas.
Ao observarmos a intersecção entre gênero, classe e território para refletir sobre as formas de opressão vivenciadas tanto pelas sertanejas que não entraram para o Cangaço como para as cangaceiras, vimos que as relações são permeadas pelo poder, e o território se define como um primeiro campo no qual esse poder2
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O poder é uma categoria polissêmica, que originalmente foi pensado em termos de exercício de comando, comumente articulado à ideia de política, ou melhor, de governo. No entanto, o conceito de poder que nos interessa e que se encaixa no debate moderno e contemporâneo da vida social compreende-o a partir das relações sociais entre parceiros individuais e coletivos, e que vão muito além da política institucional. Para Foucault (1987), o poder se estabelece nas relações sociais, não estando enraizado em uma dimensão ou esfera específica, mas, sim, ramificado por toda a sociedade. Dessa forma, o poder é tido como um “modo de ação” (Foucault, 1987:312) inerente à sociedade e que também estimula a resistência. A resistência, por sua vez, pode ser reprimida e controlada por aparatos, instituições de dominação.
se articula (Rui, 2020RUI, Simone Léia. Gênero, empoderamento e território: construindo relações e estabelecendo perspectivas teóricas. Revista Geografia em Atos (16), 2020, pp.45-60 [https://revista.fct.unesp.br/index.php/geografiaematos/article/view/7334 – acesso em: 12 set. 2022].
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). Em relação à definição de território, compreendemos que ele “[...] é o lugar […] onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência.” (Santos, 1999SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. GEOgraphia (1), 1999, pp.7-13.:7). É o lugar da realização das ações, das expressões dos diversos sentimentos, dos poderes, das forças e das fraquezas (Santos, 1999SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. GEOgraphia (1), 1999, pp.7-13.); é o lugar da produção de existência.
Diante da ampla discussão e definição acerca do conceito de território, é importante destacar a definição de Saquet (2007)SAQUET, Marcos Aurelio. As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul (43), Florianópolis, 2007, pp.55-76 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/12646 – acesso em: 01 jul. 2021].
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, que afirma que a produção do território é constituída pelo movimento histórico e multiescalar, ou seja, esse movimento “[...] é fruto de determinações territoriais, materiais e imateriais, ao mesmo tempo; de contradições sociais; das forças econômicas, políticas e culturais que condicionam os saltos” (Saquet, 2007SAQUET, Marcos Aurelio. As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul (43), Florianópolis, 2007, pp.55-76 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/12646 – acesso em: 01 jul. 2021].
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:71, grifo do autor). Dessa forma, o autor reconhece que o entrelaçamento de aspectos econômicos, políticos, culturais e da natureza são fundamentais para a produção do território.
Dialogamos com Saquet (2007)SAQUET, Marcos Aurelio. As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul (43), Florianópolis, 2007, pp.55-76 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/12646 – acesso em: 01 jul. 2021].
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a partir da sua percepção de considerar a produção do território como um movimento constante, em que há superações e contradições internas e externas, cujo “[...] velho é recriado no novo, num movimento concomitante de descontinuidade e continuidade” (Saquet, 2007SAQUET, Marcos Aurelio. As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul (43), Florianópolis, 2007, pp.55-76 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/12646 – acesso em: 01 jul. 2021].
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:71, grifo do autor). Ainda para esse autor, o território se funda na diversidade e na unidade, nas desigualdades e nas diferenças, produzindo identidade como fruto de interações recíprocas e no âmbito das relações entre sociedade e natureza. É a partir dessa compreensão que refletimos sobre as mulheres no Cangaço, diante do paradoxo expressado pela transgressão do papel de gênero e da opressão de gênero, raça e classe, que, fincadas no território sertanejo e nordestino, marcado por características patriarcais, escassez econômica local e pela distância dos grandes centros urbanos, marcaram a história das mulheres no Brasil.
Observamos que as histórias transgressoras das cangaceiras são permeadas pela negação da trajetória de vida que lhes estava reservada enquanto mulheres do sertão nordestino. Imbuídas pela ambição financeira, pela aventura cotidiana, pela possibilidade de amor escolhido e pela vida livre (de pelo menos algumas de suas amarras), algumas mulheres pobres e de classes mais abastadas se renderam ao Cangaço. O Cangaço, para elas, era tido como a possibilidade de negar o destino do casamento arranjado, da vida pacata (reservada ao âmbito doméstico), da vida recatada e sem vaidade. Ao mesmo tempo em que contrariaram expectativas culturais de gênero bem estabelecidas para a jovem sertaneja com poucas possibilidades de encontrar outros caminhos, a vida bruta do Cangaço se mostrou como uma alternativa para essas “mulheres-macho”, que se constituíram corajosas e insubmissas à vida comum no território sertanejo.
O papel social da mulher sertaneja durante o início do século xx
A base social do(a) sertanejo(a), segundo Mello (2004 apud Lima, 2016), pautava-se por valores patriarcais e cristãos, ressaltando o compromisso com a palavra que se materializava por meio da honra, ou seja, notas provisórias valiam menos que a palavra de honra de alguém. O sertão e o modo de vida evidenciavam a necessidade do uso da força física, da honra e dos códigos de conduta próprios, que, muitas vezes, não correspondiam aos modos de vida em outros lugares. Por meio dessas características, percebemos como tudo isso contribuiu com a construção de uma imagem das mulheres nordestinas como “fortes”, de “boa índole”, “honradas” e, acima de tudo, “masculinizadas”, pela necessidade de assumirem características socialmente esperadas do papel masculino, a fim de se fazerem respeitáveis.
Falci (2004)FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290. afirma que essa imagem nasceu devido à dificuldade de sobrevivência na região, graças às secas e à geografia local. Conforme a autora, no sertão nordestino, desde o nascimento, a mulher era considerada “mininu fêmea” e, à medida que crescia, a “mininu fêmea” se tornava a “mulher-macho”:
Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas do sertão. Não importa a categoria social: o feminino ultrapassa a barreira das classes. Ao nascerem, são chamadas “mininu fêmea”. A elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos, mas também viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas (Falci, 2004FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290.:251).
Julgava-se que apenas essas mulheres seriam capazes de sobreviver na realidade do sertão nordestino, marcado por uma sociedade miscigenada e patriarcal, sob códigos de honra e força. Paiva (2013)PAIVA, Carla Conceição da Silva. Mulheres-macho ou sensuais? Apontamentos sobre a representação das mulheres nordestinas no cinema brasileiro da década de 1980. Comunidade e Sociedade (2), São Bernardo do Campo, 2013, pp.261-281 [https://xdocz.com.br/doc/mulheres-macho-ou-sensuaisapontamentos-sobrea-representaao-das-mulheresnordestinas-no-cinemabrasileiro-da-decada-de-1980-gdokzjvjwmoy – acesso em: 20 fev. 2022].
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descreve a “mulher-macho” como a mulher nordestina que exerce tarefas de homens na ausência do marido. Isso porque, no sertão nordestino, existiam muitas mães solteiras e viúvas, e as mulheres precisavam ir para o roçado plantar e pegar em armas para defender a família. O que também é ressaltado pela autora supracitada é que “[...] essa condição não elevava as mulheres a um patamar mais alto. Na verdade, acontecia o contrário: essa postura as deixava à margem da sociedade” (Paiva, 2013PAIVA, Carla Conceição da Silva. Mulheres-macho ou sensuais? Apontamentos sobre a representação das mulheres nordestinas no cinema brasileiro da década de 1980. Comunidade e Sociedade (2), São Bernardo do Campo, 2013, pp.261-281 [https://xdocz.com.br/doc/mulheres-macho-ou-sensuaisapontamentos-sobrea-representaao-das-mulheresnordestinas-no-cinemabrasileiro-da-decada-de-1980-gdokzjvjwmoy – acesso em: 20 fev. 2022].
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:266).
No sertão nordestino, as mulheres recebiam uma educação diferenciada dos homens; a elas era destinado o ensino das “prendas domésticas”, como a responsabilidade com o casamento e a maternidade, o cuidado com a família, a costura, o bordado e a cozinha. Essa educação restrita servia para determinar o espaço (privado/doméstico) de atuação das sertanejas (enquanto que, para os homens, era reservada a vida pública). Contudo, não eram todas as mulheres que podiam viver realizando os cuidados com a casa, bordando e cuidando das(os) filhos(as), pois algumas precisavam desempenhar outras funções, como ir para a roça, usar armas, trabalhar nas casas de outras mulheres. Isso fazia com que a ideia de ser mulher fosse vivenciada de forma diferente; as opressões em relação às mulheres também aconteciam de modo diferente a depender das performances de gênero e de classe. Sobre essa questão, Nascimento, Miguel e Sombrio (2021:66) ressaltam:
As performances de gênero produzem materializações, nem o corpo, nem o sexo, existem a priori, a produção de ambos ocorre na performance. A materialidade do corpo não é natural, é ela também um processo de produção a partir dos sentidos performados. Assim, o modo pelo qual designamos sexos aos corpos é uma materialização de normas que produzem corpos e performances de gênero.
Mesmo com a fama de “masculinizadas”, as sertanejas buscavam um bom casamento para se tornar mães, pois representava a principal forma de ascensão social para essas mulheres. Falci (2004)FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290. ressalta que a preocupação com o casamento era algo comum entre as moças do início do século XX. Eram internalizadas por elas noções que favorecessem um casamento vantajoso, como a amenidade e a suavidade do comportamento e do temperamento, a valorização da vida matrimonial e a angústia de não se casarem antes dos 25 anos de idade, temendo ganhar a fama de “solteironas”.
No final do século XIX, a república brasileira construiu o “projeto de modernidade burguesa”, no qual se estabeleceu a imagem da mulher solteira como “solteirona”: uma mulher amargurada, arrependida e fora de controle, já que, durante o Código Civil de 1916, o casamento representava, perante a lei, a submissão da mulher ao poder masculino do marido. Conforme Maia (2007)MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral - Minas Gerais (1890-1948). Tese (Doutorado em História), Departamento de Pós Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2007 [https://repositorio.unb.br/handle/10482/2331 - acesso em: 21 set. 2022].
https://repositorio.unb.br/handle/10482/...
, a mulher solteira era, portanto, “livre”, ou seja, fora do controle desse poder. Assim, foi necessário criar uma imagem pejorativa dessas mulheres como forma de incentivar o casamento. A “solteirona”, portanto, era vista como uma mulher triste, amargurada, feia e deformada, já que seu corpo não estava a serviço da maternidade.
Lima (2018)LIMA, Caroline de Araújo. Cangaceiras em um click: imagens e representações do feminino no cangaço. Ponta de lança (22), 2018, pp.107-123 [https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/9160 -acesso em: 7 maio 2021].
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defende que a feminilidade foi construída a partir das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora, ou seja, o valor e o papel social das mulheres se dão pela maternidade. A criação desse estereótipo se constitui como uma forma de terror moral para conduzir as mulheres ao casamento e a se tornarem mães. Dentro do modelo dessa modernidade, as mulheres eram divididas em três tipos: a esposa, a prostituta e a “solteirona” — essa última considerada a mais desvalorizada das mulheres (Maia, 2007MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral - Minas Gerais (1890-1948). Tese (Doutorado em História), Departamento de Pós Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2007 [https://repositorio.unb.br/handle/10482/2331 - acesso em: 21 set. 2022].
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).
Outro ponto importante de se salientar sobre a imagem da “solteirona” é que esse estereótipo foi direcionado quase particularmente para mulheres brancas e, comumente, ricas. Podemos observar as diversas opressões da intersecção de gênero, classe e raça na vida das sertanejas. As mulheres negras estavam associadas aos estereótipos da ama de leite ou da mulata ardente, e nenhum desses dois estereótipos era relacionado ao celibato (Maia, 2007MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral - Minas Gerais (1890-1948). Tese (Doutorado em História), Departamento de Pós Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2007 [https://repositorio.unb.br/handle/10482/2331 - acesso em: 21 set. 2022].
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). As mulheres pobres muitas vezes trabalhavam com a prostituição, o que também rejeitava a ideia de solteirice e indisposição à maternidade.
Assim, na sociedade sertaneja, ser uma mulher branca “solteirona” era estar em uma posição de inferioridade, mas era ainda pior ser uma branca pobre — pois estava sujeita a várias outras violências — e, se fosse negra, essa situação ainda se agravava — porque nem dentro desse estereótipo ela era classificada: era objetificada, não vista como mulher e nem como humana. Isso nos faz lembrar da Sojourner Truth, mulher afro-americana que foi escravizada e, em seu discurso proferido em 1851, na Convenção dos Direitos das Mulheres, mostrou que as mulheres negras vivem suas experiências e opressões de maneira diferente das mulheres brancas, conforme podemos observar no relato a seguir:
Aquele homem lá diz que uma mulher precisa ser ajudada ao entrar em carruagens, e levantada sobre as valas, e ficar nos melhores lugares onde quer que vá. Ninguém me ajuda em lugar nenhum! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço. Eu arei, eu plantei e eu recolhi tudo para os celeiros. E nenhum homem pode me auxiliar. E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem [...] e suportar o chicote tão bem quanto! E eu não sou uma mulher? Eu dei à luz a crianças e vi a maior parte delas ser vendida como escravas. E quando eu chorei com o sofrimento de uma mãe, ninguém além de Jesus me ouviu. E eu não sou uma mulher? (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas (3), Florianópolis, 2014, pp.935-952 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755 – acesso em: 12 ago. 2021].
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref... :939).
A resposta à pergunta da Sojourner Truth: “e eu não sou uma mulher?” é não! “Diferentemente da colonização, a colonialidade3
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A colonialidade designa os fenômenos que são consequência do colonialismo em si e sobrevivem a ele, uma vez que a dominação cultural rouba dos sujeitos, sobretudo, das mulheres pobres, negras, sua própria subjetividade, colocando-as em lugar de inferioridade frente às/aos brancos(as) e ricos(as) considerados(as) civilizados(as). A colonialidade se desdobra na colonialidade do saber, do poder, do ser e de gênero (Quijano, 2005; Lugones, 2014). A colonialidade do poder é concebida como a continuidade das formas coloniais de dominação, no âmbito material e subjetivo, mesmo com o fim da colonização, para além da opressão concreta, implicou a subjugação das tradições dos povos originários e daqueles que foram trazidos como escravos, seja pelo extermínio das tradições, seja pelo seu forte rebaixamento valorativo, colocadas em um nível de inferioridade diante da tradição europeia (Alves; Delmondez, 2015). Na colonialidade do saber, opera a subjugação histórica dos seres humanos, a partir da criação da diferença colonial epistêmica, eurocêntrica e geopolítica do conhecimento, em articulação com o racismo, sexismo e universalismo (Ballestrin, 2013); a colonialidade do ser configura-se nas subjetivações do sujeito colonial na modernidade (Maldonado-Torres, 2019); e a colonialidade de gênero (Lugones, 2014) é a introdução capitalista eurocêntrica de diferenças de gênero nas colônias, onde anteriormente não havia diferenças. Assim, as mulheres pobres, negras, indígenas, rurais e sertanejas foram categorizadas como fêmeas, em virtude do processo de redução ou eliminação de suas humanidades.
do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial” (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas (3), Florianópolis, 2014, pp.935-952 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755 – acesso em: 12 ago. 2021].
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:934). Na colonialidade de gênero, as mulheres negras pobres nunca foram consideradas seres humanos e, assim, o mesmo acontecia com as sertanejas negras (situação que permanece na atualidade), sobretudo as mulheres rurais, que continuam sendo oprimidas, tendo pouco ou nenhum acesso a uma vida digna, com educação, saúde, lazer, entre outros direitos.
O casamento arranjado com vizinhos ou primos era parte significativa da realidade das mulheres sertanejas brancas, pois era a maneira mais simples de evitar a desmoralização da família, além de ser um dos poucos meios de garantir certo conforto no cotidiano já escasso do sertão. Claudino (2013CLAUDINO, Nadja Claudinale da Costa. Entre o punhal e o afeto: imagens de Maria Bonita na historiografia e no cordel (1930/1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Campina Grande, Campinas Grande, 2013 [http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/10707 - acesso em: 31 jan. 2022].
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:27) aponta que, sem “[...] um pai, um irmão ou um marido para defendê-la, a mulher estava desprotegida, podendo ser ofendida por outros homens.” A possibilidade restante para essas mulheres muitas vezes era a prostituição.
É relevante destacar a condição econômica dessas mulheres, que não possuíam renda própria, e, nas poucas vezes que recebiam permissão para que trabalhassem, tinham que se voltar para a produção de doces e alimentos, rendas, costuras, ou para o trabalho como lavadeiras e fiadeiras, recebendo apenas o suficiente para ajudar a completar o rendimento do marido (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.; Falci, 2004FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290.). Falci (2004)FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290. ressalta que o trabalho feminino era mal visto socialmente, pois perdurava a noção de que as mulheres não precisavam nem deveriam trabalhar, de forma que o trabalho feminino era considerado marcador da decadência econômica da família. Assim, quando era necessário que trabalhassem, a sociedade local acusava a família de incapacidade pela parte do “homem da casa”, que deveria ser capaz de sustentar a família sem auxílio da esposa.
Em pesquisa recente no sertão de Pernambuco, Lorena Lima de Moraes e Nathália Nascimento (2020) entrevistaram mulheres rurais solteiras, acima de 40 anos e de origem pobre, e identificaram que o casamento, também para mulheres pobres, era tido pela família como base para a manutenção das relações sociais produtivas e reprodutivas no meio rural. A vida de solteira se baseava nos seguintes argumentos: as pressões pelo aumento do patrimônio; a negação do trinômio mulher-esposa-mãe; o interesse em projetos políticos e comunitários; a não divisão do patrimônio alcançado depois de muito trabalho familiar e a garantia de autonomia por não ter um marido controlador. Contudo, essas mulheres compartilhavam o estigma de “solteirona”, “encalhada”, “moça veia” ou “puta veia”, marcando um perfil de mulheres que não cumpriram a função social do casamento e que se desviaram de uma trajetória tida como “normal” para a reprodução da lógica social e cultural dos territórios interioranos e rurais.
É importante que estejamos atentas aos estereótipos e julgamentos que eram e são ainda direcionados às mulheres, na medida em que constituíam grupos sociais e raciais diversos. O Cangaço em sua complexidade abrigou mulheres com perfis distintos e com diferentes motivos de ingresso, atravessando elementos que buscavam transgredir as leis da sociedade patriarcal que condicionava as mulheres à esfera privada e à vida pacata e de submissão.
A subversão representada pelo ingresso das mulheres no cangaço
A incorporação das mulheres aos bandos de cangaceiros aconteceu em 1930, quando Lampião, líder dos bandoleiros, aceitou o ingresso de Maria Gomes ou Maria de Déa (conhecida postumamente como Maria Bonita), com quem passaria a viver maritalmente, e de Mariquinha, ex-cunhada de Maria e companheira do cangaceiro Angelo Roque (vulgo Labareda) (Freitas, 2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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; Santos, 2005SANTOS, Flávia Santana dos. Cangaceiras: rebeldia, romantismo e liberdade. Monografia (Especialização em História), Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005 [https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/3511/2/20165566.pdf - acesso em: 01 jul. 2021].
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; Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.). A partir desse momento é que foi concedida aos cangaceiros a possibilidade de assumirem companheiras e levá-las para a vida no Cangaço. É válido ressaltar que mesmo quando a presença feminina era proibida no Cangaço, os cangaceiros ainda mantinham relações românticas, visitando suas namoradas quando passavam pelas cidades onde elas residiam. Sendo assim, a novidade não provém da possibilidade de os homens terem companheiras, mas das mulheres ingressarem como membros efetivos dos bandos e compartilharem com eles a vida nômade.
Mesmo vivendo em uma sociedade que lhes dava pouca liberdade e possibilidades de ascensão, essas mulheres romperam com os papéis de gênero que lhes eram impostos em diversos aspectos da visão de mundo vigente no sertão nordestino do início do século XX. Vale ressaltar que durante os anos 1930 e 1940 ainda vigorava o Código Civil de 1916, que institucionalizou o lugar da mulher. Assim, as cangaceiras não transgrediram apenas seus papéis sociais, mas também a legislação.
O ingresso dessas mulheres no Cangaço se deu de três maneiras principais: i) entrada voluntária; ii) entrada como resultado de uma ação violenta dos cangaceiros; e iii) entrada como uma alternativa de fuga das violências das forças volantes4
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As forças volantes eram fileiras policiais designadas para perseguir e combater os(as) cangaceiros(as).
. Temos como exemplos do primeiro grupo de mulheres: Maria Bonita, Mariquinha, Enedina, Adília, Lili, Cristina, Antônia, entre outras — mencionamos aqui as que ficaram mais conhecidas e das quais conseguimos encontrar registros. Os fatores que motivaram a entrada dessas mulheres são os mais diversos: algumas se apaixonaram por algum cangaceiro e resolveram entrar no Cangaço para acompanhá-lo; outras compreendiam o Cangaço como uma forma de ascensão social e econômica, ludibriadas pelas imagens ostentadoras e luxuosas dos cangaceiros, sempre cheios de cordões e anéis de valor — logo, portadores de muito dinheiro; outras desejavam se livrar das amarras e limitações impostas às sertanejas; algumas desejavam a liberdade de escolher a altura de seus vestidos, de usar maquiagem e joias (Freitas, 2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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; Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.).
No ingresso das mulheres a partir de diferentes situações, é possível perceber em suas experiências de vida como os marcadores sociais de gênero estavam interseccionados com a classe social, visto que essas mulheres viviam situações financeiras difíceis no período em que a seca no sertão castigava os(as) sertanejos(as) pobres. Logo, a ideia de ingressar no Cangaço era também a possibilidade de melhorar a vida, através do que o dinheiro poderia proporcionar, ou seja, o Cangaço era uma possibilidade de ascensão econômica. Dessa forma é possível refletir sobre a intersecção de gênero e classe, já que essa última não se refere apenas ao poder aquisitivo, mas também à posição ocupada na sociedade. Importante ressaltar ainda o papel do território nas experiências das mulheres sertanejas, pois o sertão nordestino na época era uma região precária, que além das difíceis condições climáticas agravava-se pelo modelo político coronelista que explorava as pessoas e a terra, sem nenhum investimento na qualidade de vida das pessoas, no sentido de garantir bens e serviços.
Já o segundo grupo era decorrente de raptos, abusos e coerção, tendo como representantes: Dadá, Inacinha, Sila, Otília, Adelaide e Rosinha como as cangaceiras mais conhecidas. Freitas (2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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:117) afirma que o ingresso no Cangaço por esse grupo “[...] se baseava no uso do terror e da coerção [...]”. Essas mulheres eram forçadas a abandonar suas famílias, a cidade em que moravam e toda a sua rotina para acompanhar um cangaceiro que sequer conheciam, submetendo-se aos riscos inerentes da vida errante do Cangaço, com as perseguições das forças volantes e as dificuldades de se viver dentro da caatinga, e suportando as violências dos próprios companheiros.
Os casos dessas mulheres mostram um movimento de violência no qual elas eram usadas para punir os homens de suas famílias, como pais, esposos e outros, tal como foi o caso de Dadá. Sá (2020)SÁ, Sarah. Ritchelle Cristovão de. A mulher no cangaço: um olhar para além de Maria bonita (1930-1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2020 [https://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/6796 - acesso em: 5 maio 2021].
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relaciona esse movimento aos conceitos de propriedade, dominação e também violência simbólica. As mulheres eram vistas como uma propriedade dos homens — primeiramente de seus pais e, posteriormente, de seus maridos. Quando uma mulher era violentada, raptada ou alvo de alguma violência, não era contra a mulher que se praticava a violência, mas contra o homem a qual ela “pertencia”, manchando a honra dele e da família. Foi exatamente esse motivo que motivou o rapto de Dadá. Nessas situações, observamos que, além da opressão de gênero vivenciada por essas mulheres, o gênero estava interseccionado com a classe social, pois não era qualquer moça raptada, era sobretudo, as das famílias pobres, que os sertanejos ameaçados de morte não tinham como protegê-las, diferente dos fazendeiros ricos que alguns, inclusive, eram coiteiros dos cangaceiros.
Segundo Freitas (2005)FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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, Corisco tinha cerca de 20 anos quando sequestrou Dadá, em meados de 1930/1931. As informações sobre a idade de Dadá na ocasião diferem entre si: Negreiros (2018)NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018. aponta que a cangaceira tinha 12 anos; já na obra de Dias (1989)DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989., a cangaceira afirma ter sido raptada com 13 anos. Negreiros (2018)NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018. conta que Sérgia (Dadá) e o pai, seu Vicente, eram muito apegados um ao outro, o que fica evidente no relato da própria cangaceira. Quando Corisco chegou à casa da família, com outros dois cangaceiros, planejando castigar seu Vicente por ter entregue seu amigo às autoridades, ele já tinha em mente levar Dadá consigo. A cangaceira reconheceu que o motivo de seu sequestro foi a vingança de Corisco contra seu pai: “Aí mandaram ir me carregar, que era a vingança que podia ter de meu pai era me carregando. Meu pai me queria muito bem a mim. Ele me queria muito bem…” (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:17).
É significativo salientar que as mulheres que despertavam o desejo dos cangaceiros se encontravam sem direito de negar suas vontades; se não os acompanhassem, poderiam ser agredidas, sofrer retaliação, colocar suas famílias em risco ou serem raptadas. De toda forma, acabavam tendo que entrar no Cangaço para preservar sua própria segurança e de seus entes queridos, seja por violência direta (sequestros e abusos sexuais) ou pela coerção (ameaças).
O terceiro grupo, que compreendia as mulheres que entraram como uma alternativa de fuga das forças volantes — assim como no grupo anterior — é permeado pela violência. Os homens que ingressaram nessa atividade recebiam um salário fixo e ainda podiam manter as posses dos cangaceiros mortos durante os confrontos. Desse modo, as forças volantes também configuraram uma maneira de ascensão econômica e certo prestígio social por combaterem os(as) cangaceiros(as). Os dois grupos eram submetidos a deslocamentos constantes por meio da caatinga, à fome, à sede, ao calor, à falta de assistência médica quando necessária e a longos períodos de afastamento da família.
Assim como os cangaceiros, as forças volantes portavam e utilizavam armas — de forma que também configuravam um risco —, farda (poder simbólico5
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De acordo com Bourdieu (2010), o poder simbólico é uma forma que todo poder assume quando é compreendido e reproduzido como legítimo. É um poder quase “mágico”, que obtém o equivalente ao poder exercido pela força física ou econômica. Contudo, uma vez legítimo na relação entre aqueles que o “exercem” e aqueles que lhe estão sujeitos, o poder se perpetua na estrutura do campo social por meio das relações de conhecimento e da comunicação. Nesse sentido, o poder simbólico atua de modo que as relações de desigualdade, hierarquia e dominação reproduzidas no ambiente social não sejam percebidas como relações arbitrárias de força, mas como uma ordem natural e evidente das coisas, tanto para dominados quanto para dominantes.
) e poder bélico para coagir a população. A principal diferença, de onde surge o espelhamento entre os dois grupos, era o lado em que se colocavam diante da lei. Santos (2005)SANTOS, Flávia Santana dos. Cangaceiras: rebeldia, romantismo e liberdade. Monografia (Especialização em História), Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005 [https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/3511/2/20165566.pdf - acesso em: 01 jul. 2021].
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considera a relação mantida pelos dois grupos como baseada em uma tentativa de dominação de um sobre o outro.
Para Freitas (2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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:31), “[...] as práticas de violência cometida por policiais não se diferenciavam daquelas cometidas pelos cangaceiros e [...] ambos alimentavam um sentimento de vingança e ambição.” Negreiros (2018)NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018. comenta que as violências provocadas pelas forças volantes — como saques, incêndios e depredações — faziam com que elas fossem tão ou até mais temidas pela população que os próprios cangaceiros. Além disso, em decorrência da simpatia que os grupos de bandoleiros ganhavam da população, as forças volantes se faziam ainda mais violentas, pois sentiam inveja dos cangaceiros e raiva do apoio que recebiam dos populares (Santos, 2005SANTOS, Flávia Santana dos. Cangaceiras: rebeldia, romantismo e liberdade. Monografia (Especialização em História), Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005 [https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/3511/2/20165566.pdf - acesso em: 01 jul. 2021].
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).
Um traço que diferenciou os dois grupos, além do lado ocupado diante da lei, foi que os cangaceiros poderiam vivenciar o romance mesmo com as perseguições e as dificuldades vivenciadas no Cangaço, graças à inserção das mulheres no movimento (Santos, 2005SANTOS, Flávia Santana dos. Cangaceiras: rebeldia, romantismo e liberdade. Monografia (Especialização em História), Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005 [https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/3511/2/20165566.pdf - acesso em: 01 jul. 2021].
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). Os soldados que participavam das forças volantes não poderiam ser acompanhados por suas companheiras, pois estavam em dever oficial de combater os cangaceiros. Essa impossibilidade talvez tenha tornado os soldados tão violentos para com os(as) sertanejos(as) comuns quanto para os(as) cangaceiros(as).
Considerando isso tudo, as mulheres sertanejas estavam à mercê da violência desses dois grupos, temendo os atos violentos dos cangaceiros e os abusos de poder exercidos pelos soldados. Essas mulheres sofriam com violências simbólicas e/ou físicas, entre as quais Freitas (2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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:190) aborda:
[...] o rapto de meninas/moças e a consequente violação de seus corpos; o espancamento praticado pelo companheiro ou pelas volantes quando prisioneiras; a brevidade da vida e o imediatismo da morte (em função dos confrontos com as volantes) e a pena de morte para a mulher que ousasse praticar o sexo livre, ou se recusasse à união a outro cangaceiro quando da morte do companheiro. Além de sofrerem com a violência interna, as cangaceiras também estavam sujeitas às práticas das volantes: espancamentos, estupros, decapitação de órgãos, enfim, a ameaça da morte era constante.
Apesar de as forças volantes voltarem sua angústia e frustração para os(as) cangaceiros(as), também faziam de vítimas sertanejas comuns, de forma que, em alguns casos, a única maneira de escapar do assédio dos soldados era ingressando no Cangaço. Foi o que aconteceu com as seguintes cangaceiras: Aristéia, Eleonora, Joana Gomes (vulgo Moça), entre outras, citando aqui as mais conhecidas (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.; Nascimento, 2015NASCIMENTO, Geraldo. Maia. Amantes guerreiras: a presença da mulher no cangaço. 2ªed. Natal, 2015.).
De toda maneira, independentemente de como ingressaram no Cangaço, uma vez que se tornaram cangaceiras, não representavam o modelo de mulher e nem de feminilidade construída na modernidade, por isso a mídia as rechaçava, quando não as invisibilizava. Freitas (2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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:130) relata como as cangaceiras “[...] foram qualificadas de forma homogênea como criminosas e bandoleiras construindo, assim, um estereótipo masculino, belicoso e violento de mulher [...]”, e os “[...] cuidados femininos com o embelezamento do corpo, com a aparência, foram anulados pela construção de uma identidade belicosa e marginal.” Esse movimento de invisibilizar a presença feminina no Cangaço pode representar uma tentativa de esconder a subversão que essas mulheres representavam e que podiam influenciar o restante das sertanejas; já a construção dessa imagem belicosa, que mais parece apenas a versão feminina do cangaceiro, invalidando suas individualidades, interpretamos como uma tentativa de demonizar essas mulheres para desestimular a entrada de outras no Cangaço.
Quando refletimos sobre o sistema colonial de gênero (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas (3), Florianópolis, 2014, pp.935-952 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755 – acesso em: 12 ago. 2021].
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) e pensamos na realidade dessas mulheres, que eram violentadas, rechaçadas e invisibilizadas, vemos que dentro da colonialidade essas mulheres não eram consideradas humanas, e sim as “fêmeas”, e por isso pouco importava o que com elas acontecia: se eram raptadas, abusadas sexualmente ou mortas, nada era feito a respeito, pois mulheres pobres e sertanejas eram vidas que não importavam – assim como acontece com as mulheres pobres, negras, rurais atualmente.
Em resposta à construção desse imaginário acerca das cangaceiras, é possível notar o movimento de cangaceiras como Dadá, que, com base em seus relatos, tenta mostrar que as mulheres que participavam do Cangaço eram de boa índole e decentes, talvez como uma forma de indicar que elas não eram diferentes do restante das sertanejas e, principalmente, que não se enquadravam no perfil declarado pela mídia. Dadá conta que as cangaceiras eram boas companheiras para os cangaceiros: “Todas as mulheres de cangaceiro obedeciam seus maridos. Não tinha mulher que fosse devassa e o quê. Se não fosse direita, já sabia, não podia. Eles não aceitavam ruínas; tudo era naquela ordem. Elas eram companheiras ótimas, todas elas” (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:34). Depois, ainda comenta como a maioria das mulheres provinha de boas famílias:
A maioria das mulheres era gente de bem, gente de família, filhas de fazendeiros, tudo moça, mas teve também mulher casada que foi pro grupo. Maria de Lampião e Mariquinha de Anjo Roque eram casadas e se apaixonaram e fugiram pro bando. As outras eram tudo moças, menininhas, filhas de gente de recurso (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:35).
Por outro lado, Santos (2005)SANTOS, Flávia Santana dos. Cangaceiras: rebeldia, romantismo e liberdade. Monografia (Especialização em História), Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2005 [https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/3511/2/20165566.pdf - acesso em: 01 jul. 2021].
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comenta que o Cangaço pode ter sido uma alternativa de ascensão econômica para moças pobres, pois o assédio, tanto das forças volantes quanto dos próprios cangaceiros, era mais intenso para com a população mais pobre. Contudo, não se pode afirmar que o Cangaço representasse apenas isso, pois, em menor número, moças provindas de famílias mais abastadas também integraram os grupos de bandoleiros.
Dadá também se coloca contra os rumores sobre as mulheres dos grupos e também sobre as relações entre os cangaceiros e as cangaceiras:
Tem muito fuxico por aí dos costumes dos grupos - meus não! -, das mulheres não terem marido, que era umas devassas, gente sem respeito, agarrando, mordendo. Virgem! Teve um filme que era agarrando os pedaços, arrancando, pegando, levando p’rá dentro das locas. Qual nada! É a maior raiva que tenho da minha vida. O quê eu conheci p’ra o que vejo no cinema. Aquele negócio no Cangaceiro de beijar o anel, puxar o punhal, uns lamber-lamber... aquilo é uma coisa esquisita (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:19, grifo do autor).
Apesar da tentativa de Dadá de mostrar que as cangaceiras não eram mulheres desonradas, mas submissas (obedientes) aos seus companheiros cangaceiros, é preciso realçar que as cangaceiras foram múltiplas e que, devido a isso, é extremamente difícil encaixá-las em apenas um estereótipo ou definir um tipo de conduta comum a todas. O mais válido a destacar é que as cangaceiras não representavam o perfil de mulher e nem de feminilidade estabelecido na modernidade, e é por isso que as mídias as retratavam de formas tão pejorativas. Lima (2018LIMA, Caroline de Araújo. Cangaceiras em um click: imagens e representações do feminino no cangaço. Ponta de lança (22), 2018, pp.107-123 [https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/9160 -acesso em: 7 maio 2021].
https://seer.ufs.br/index.php/pontadelan...
:118), sobre as mulheres no Cangaço, comenta que: “[...] sua participação no cangaço as empoderaram, atuaram e lideraram ao lado dos companheiros, constituíram outro modelo de família, escolheram seus amantes, romperam com o modelo de feminino instituído pela sociedade moderna.”
Além disso, as cangaceiras também representam uma transgressão performativa. Durante o início do século XX, era esperado das mulheres um movimento corporal recatado, um “corpo dócil” que pretendia alcançar a perfeição a partir da leveza e do recato (Lima, 2018LIMA, Caroline de Araújo. Cangaceiras em um click: imagens e representações do feminino no cangaço. Ponta de lança (22), 2018, pp.107-123 [https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/9160 -acesso em: 7 maio 2021].
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). As mulheres que participaram do Cangaço não performaram esse “corpo dócil”; o movimento de seus corpos era livre. Faziam uso de armas e punhais, muitas joias e sorrisos abertos.
Ainda em relação à construção da modernidade burguesa do final do século XIX, é necessário falar que esse modelo foi pautado no modelo feminino e familiar disciplinado, com a privatização das relações familiares e institucionalização de modelos de homens e mulheres marcados pelas diferenças de gênero; as mulheres tendo seu destino definido pelo casamento (social) e maternidade (biológico). Assim, o modelo de mulher esperado por essa sociedade era a mulher esposa-mãe-dona de casa.
As cangaceiras não se enquadraram nesse modelo construído pela sociedade. Elas também não exerciam o papel de mães zelosas e cuidadoras exigido pelo modelo posto pela sociedade, tendo em vista que, na vida da cangaceira, não lhes era permitido maternar, contrariando os papéis de gênero. A vivência entre cangaceiros e cangaceiras e a forma como essas relações se deram não corresponde ao arquétipo familiar esperado por esse modelo. As relações entre esses sujeitos se davam de maneira diferenciada do que acontecia na sociedade sertaneja. Eles eram obrigados a deixar suas famílias para trás e vê-los com pouca frequência, o que acabava por aumentar a estima entre os cangaceiros e as cangaceiras, gerando, até mesmo, simbólicos laços familiares entre eles.
Dadá comenta que, apesar das dificuldades enfrentadas na caatinga, “[...] nós éramos uma família de gente grande” (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:20). Ainda conta do carinho que os outros membros tinham com ela:
Os cangaceiros, muito tempo depois disseram. Em São Paulo, já proletários, que Dadá foi uma Mãe-Menina p’rá nos. Eu era uma chefe porque vestia aqueles homens, dividia comida, enfeitava os trabalhos deles, tudo numa dedicação que nem todas as mães do mundo foram para eles. Lampião era um amigo, um chefe, era um pai, uma coisa… A fala daquele homem valia por tudo. O grupo todo respeitava, ele como muito chefe [...] (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:19, grifo do autor).
Dentro de uma sociedade patriarcal como a do sertão nordestino do século XX, era imposto às mulheres a maternidade e a maternagem6
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Compreende-se maternagem para além dos laços sanguíneos, pois considera-se o vínculo afetivo desenvolvido pelo cuidado de uma mãe com seu/sua filho(a), papel que também foi negado às cangaceiras (Milfont, 2019).
, mas esse papel da forma tradicional também foi negado pelas cangaceiras. Milfont (2019MILFONT, Camila Rodrigues. Aspectos subjetivos da maternidade: o mito do amor materno. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia), Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, Juazeiro do Norte, 2019 [https://leaosampaio.edu.br/repositoriobibli/tcc/TCC%20Camila.pdf - acesso em: 14 fev. 2022].
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:12) afirma que “[...] a única função valorizada socialmente que cabia a mulher era a maternidade.” No interior desse modelo social, o papel das mulheres era sempre voltado para o cuidado com a casa, com os filhos e com o marido, trabalho que era invisibilizado e desvalorizado. A mulher era vista como um corpo reservado quase exclusivamente para a reprodução.
Importante ressaltar que, embora esse fosse o papel esperado para as mulheres no geral, as das famílias pobres, em algumas situações, precisavam trabalhar para ajudar na renda familiar, mesmo que fosse em trabalhos manuais, no plantio, em suas casas ou na casa de outras mulheres – ainda que o trabalho realizado por elas não fosse considerado trabalho, mas sim uma ajuda à família, ou seja, mais uma opressão do sistema capitalista e de gênero. Ressaltamos também a raça, pois conforme já abordamos nesse artigo, para as mulheres pobres e negras a situação ainda era mais difícil.
Vale também considerar que, quando a mulher é vista como um corpo para a reprodução, sendo essa uma das suas principais funções sociais, os sistemas de poder, gênero e sexualidade, se interseccionam para oprimi-las, já que estas não podiam vivenciar a sexualidade da forma como desejassem, sob o jus de serem punidas, de ficarem mal faladas, de serem rejeitadas socialmente.
No interior da dinâmica do Cangaço, é importante destacar que as mulheres não ocupavam cargos de guerrilha nem de cuidados. O papel das cangaceiras não era voltado para os conflitos — elas apenas portavam armas e punhais para autodefesa — nem para os serviços domésticos, tendo em vista que costurar, lavar, cozinhar e cuidar dos feridos eram trabalhos assumidos pelos cangaceiros desde o início do Cangaço. Portanto, a entrada das mulheres não modificou essas instâncias. Lampião e Corisco, por exemplo, manuseavam a máquina de costura com excelência e todos dividiam as tarefas domésticas (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.). É verdade que as cangaceiras costuravam e bordavam quando se encontravam na segurança dos coitos usando máquinas de costura emprestadas dos coiteiros, mas isso era considerado uma atividade de lazer e uma maneira de dar vazão à sua própria criatividade, e não um trabalho doméstico, como era considerado dentro do modelo social da época. Nesse sentido, é possível perceber que as funções esperadas para as cangaceiras divergiram um pouco do que era imposto para as mulheres na sociedade da época, embora estas não estivessem livres da imposição do sistema de gênero, pois eram, inclusive, consideradas proprietárias dos cangaceiros que eram seus companheiros.
Sendo assim, o papel desempenhado pelas cangaceiras era prioritariamente afetivo-sexual, e elas deveriam acompanhar seus parceiros. Aparentemente, parecia uma vida perfeita, distante das normas de gênero que aprisionavam as mulheres às atividades domésticas e ao mundo privado do lar. No entanto, as cangaceiras tinham que estar, a todo momento, disponíveis sexualmente para os parceiros (Freitas, 2005FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2005 [https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93408 - acesso em: 12 jul. 2021].
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; Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.), e ainda que utilizassem métodos contraceptivos naturais, a partir de plantas da caatinga, as chances de engravidar eram altas. Nesse sentido, elas não tinham direito sobre seus corpos, como pensavam as sertanejas comuns; o exercício da sexualidade das cangaceiras e o desejo ou não de engravidar não estava em negociação. Logo, havia transgressões para uma vida longe das amarras sociais das expectativas de gênero, mas os limites eram bem definidos. Dessa forma, a violência de gênero nunca deixou de ser uma constante, independentemente de qual espaço a mulher estivesse ocupando, seja em casa, com sua família, ou na vida “livre” de cangaceira.
A gravidez no Cangaço era permeada por inúmeras dificuldades: as gestantes tinham que acompanhar o ritmo do restante do bando mesmo quando já estavam em estado avançado de gravidez. Assim, era necessário que enfrentassem longas caminhadas, altas temperaturas, sede, fome — e, muitas vezes, sem descanso. Além disso, ainda tinham que enfrentar as dificuldades próprias da gestação, como os enjoos, sensibilidade olfativa, dores e cansaço. Ademais, as gestantes ainda corriam imensos riscos ao dar à luz de maneira improvisada, em tendas no meio da caatinga ou debaixo de árvores, sem o auxílio de parteiras ou assistência médica.
Durante o fim da gestação e dos primeiros dias da criança, os(as) cangaceiros(as) preferiam se abrigar em coitos de maior segurança e qualidade, numa tentativa de assegurar à puérpera um parto seguro e com assistência e conforto. Contudo, não era sempre que podiam se dar a esse luxo, pois muitas vezes era necessário que fugissem rapidamente dos coitos devido à aproximação das forças volantes.
Segundo Negreiros (2018)NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018., Dadá engravidou cinco vezes durante o tempo que esteve no Cangaço. Contudo, segundo o relato da própria cangaceira, ela teve sete gestações: “Tive sete, morreram quatro, fiquei com três. Tenho Sílvio, Maria do Carmo e Celeste.” (Dias, 1989DIAS, José Umberto. Dadá. Salvador, EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.:20). Durante a primeira gravidez, a cangaceira ficou no Raso da Catarina-BA, com a tribo indígena Pankararé. Interessante também ressaltar algo que é pouco comentado nas obras sobre o Cangaço: a relação dos(as) cangaceiros(as) com os povos indígenas, que também mantinham uma postura de coiteiros.
Também há o caso de Adelaide. A cangaceira engravidou logo depois de entrar no Cangaço e descansava no coito durante o final de sua gravidez, mas, devido a um susto e à desconfiança da aproximação das forças volantes, teve que deixar a segurança do coito e partir em retirada. Durante a fuga, a cangaceira entrou em trabalho de parto, mas não podia parar para dar à luz. Ao tempo que chegou em outro coito, já tinha gasto todas as suas energias na caminhada e não teve forças para parir. Adelaide acabou falecendo com o bebê ainda no ventre (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.).
Sila também engravidou nas primeiras relações com Zé Sereno, aos 12 anos (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.). Durante toda a gravidez, teve que fugir da força volante de Zé Rufino e, devido às fugas, teve o bebê em uma gruta. O bebê nasceu saudável e foi batizado por Maria Bonita e Lampião. No mesmo dia, foi enviado para a família que o criaria, mas faleceu poucos dias depois.
Negreiros (2018)NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018. também relata a gravidez de Adília, que, como odiava o companheiro e não queria ter um filho dele, tentou de tudo para expelir o feto, incluindo chá de folhas de anis, juazeiro, macela e pereira. Contudo, o bebê nasceu saudável. De acordo com Nascimento (2015)NASCIMENTO, Geraldo. Maia. Amantes guerreiras: a presença da mulher no cangaço. 2ªed. Natal, 2015., ela teve um filho no ano seguinte de sua entrada, que foi entregue aos cuidados de terceiros; em seguida, engravidou novamente.
Inacinha, segunda companheira do cangaceiro Gato, estava no oitavo mês de gravidez quando foi baleada na nádega. A bala foi parar no abdômen, foi presa e levada para a prisão em Piranhas-AL. Inacinha teve o filho na cadeia e foi solta pouco tempo depois; já em liberdade, a cangaceira se casou com um ex-soldado apelidado de Pé na Tábua (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.).
Podemos observar que, devido às grandes dificuldades e à falta de assistência médica, não era incomum que os bebês e as mães morressem no momento do parto ou pouco depois. As mães não tinham a oportunidade de cuidar dos(as) filhos(as) recém-nascidos(as) e nem de cumprir o resguardo de forma segura. Eles(as), assim como as suas mães, eram submetidos(as) às intemperanças da vida no Cangaço até que pudessem ser entregues aos seus coiteiros responsáveis.
Considerando que a maternidade é permeada pelo laço sanguíneo entre mãe e criança, enquanto a maternagem é o vínculo afetivo desenvolvido pelo cuidado de uma mãe com seu/sua filho(a), podemos dizer que, apesar de gerar e parir seus/suas bebês, as cangaceiras não os(as) maternavam. A vida cangaceira não permitia bebês e crianças pelo risco em potencial que representavam: crianças necessitam de cuidados específicos e de bastante dedicação; o choro podia revelar a posição do bando para as forças volantes e ainda podiam deixar rastros para trás, como as fraldas. Em decorrência disso, era costume dos(as) cangaceiros(as) encaminharem seus/suas filhos(as) o mais rápido possível para famílias que seriam responsáveis pela criação e proteção. Normalmente eram escolhidas famílias capazes de garantir educação e certo conforto para as crianças, ou então pessoas de posse, como juízes e padres (Negreiros, 2018NEGREIROS, Adriana. Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2018.). É importante ressaltar que nem sempre essas famílias tinham vínculo sanguíneo com os(as) progenitores(as).
Venâncio (2004)VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2004, pp.196-231. relata que o “abandono” parental era comum desde os tempos do Brasil Colonial, e se configura como “[...] uma forma paradoxal de se proteger a criança” (Venâncio, 2004VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2004, pp.196-231.:208). Diversas eram as motivações que levavam as mulheres a entregar seus/suas filhos(as), e as mais comuns eram: a falta de recursos para criá-los(as); uma forma de controlar o número de crianças da família; filhos(as) ilegítimos(as); desejo de livrar os(as) filho(as) de algum sofrimento que vivenciariam se permanecessem no núcleo familiar; desejo de um futuro melhor para a criança; entre outras. O autor aponta que, do “[...] ponto de vista oficial, mães ‘que davam os filhos a criar’ pareciam desalmadas e egoístas. No dia a dia, porém, a realidade era outra e o abandono podia representar um verdadeiro gesto de ternura [...]” (Venâncio, 2004VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade Negada. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2004, pp.196-231.:209).
Percebemos que as cangaceiras estavam inseridas em outro tipo de violência, não mais naquela que restringia seus desejos, seus planos e suas ambições devido às amarras das expectativas sociais de gênero que as condicionavam à tríade de esposa-mãe-dona de casa. Apesar da sensação de liberdade, as cangaceiras, assim como as sertanejas que viviam longe do Cangaço, não possuíam autonomia sobre seus corpos. Assim, estavam condicionadas a satisfazer sexualmente os cangaceiros e, decorrente disso, tinham que lidar com os perigos e desgostos da gestação não planejada e de uma maternidade não continuada.
Ao abordar esses acontecimentos com as mulheres que entraram no Cangaço, observamos que elas não tinham os direitos humanos garantidos. Nessa época, ainda não se falava em Direitos Sexuais e Reprodutivos7 7 Os Direitos Reprodutivos são os “Direitos das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência.” (Brasil, 2009:4). Os Direitos Sexuais são os “Direitos de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições e com respeito pleno pelo corpo do(a) parceiro(a).” (Brasil, 2009:4). , mas, se existissem, nada dessa ordem estava ao alcance delas. Na atualidade, as mulheres pobres, negras, sobretudo as rurais, continuam diante dessa realidade, desprovidas do direito sobre seus corpos, sofrendo com a violência obstétrica por serem julgadas fortes para aguentar qualquer procedimento.
Para ilustrar o contexto atual vivenciado por mulheres rurais negras e sertanejas, Lima (2022)LIMA, Nathália Diórgenes Ferreira. Educação para sexualidade: o aprendizado como valor. In: MORAES, Lorena Lima de; CAVALCANTI, Larissa de Pinho (org.). Deslocamentos e permanências: trabalho, educação e interseccionalidades. Campinas, Pontes Editores, 2022, pp.181-201. defende que processos repressivos são recorrentes durante o atendimento do planejamento familiar. A autora, que acompanhou o planejamento de 30 mulheres em equipamentos públicos de saúde no sertão pernambucano, observou situações de desconfiança, constrangimento e falta de paciência das profissionais de saúde junto às usuárias. Para a pesquisadora, o aprendizado da sexualidade — e acrescentamos aqui, dos direitos sexuais e reprodutivos — é marcado pela naturalização da violência dos corpos das mulheres negras, rurais e sertanejas pelos detentores do saber/poder médico, assim como nos tempos da colonização.
Observamos também, por meio dos materiais consultados, que, apesar de algumas cangaceiras relatarem que sofreram imensamente com a separação logo após o nascimento dos(as) filhos(as), elas não contestaram essa decisão – talvez por terem consciência do perigo que as crianças correriam se fossem criadas no cenário do Cangaço e também pelo risco que elas representariam para os bandos. Claudino (2013CLAUDINO, Nadja Claudinale da Costa. Entre o punhal e o afeto: imagens de Maria Bonita na historiografia e no cordel (1930/1938). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal de Campina Grande, Campinas Grande, 2013 [http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/10707 - acesso em: 31 jan. 2022].
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:30) aponta que “A separação mãe e filho no contexto do Cangaço geralmente não era questionada pelas cangaceiras, pois ao entrar no bando a mulher rompia com quase todas as tradições e costumes ligados ao seu sexo (sic), inclusive aos que diziam respeito à maternidade.”.
É perceptível que as cangaceiras vivenciaram diversos tipos de violência, mas elas conseguiram romper com diversos aspectos do papel social imposto às mulheres no sertão nordestino. Era esperado dessas mulheres plena dedicação e consideração com o casamento, família, filhos(as) e prendas domésticas (Falci, 2004FALCI, Miridan Knox. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2004, pp.251-290.), de maneira que as cangaceiras transgrediram ao deixar para trás o modelo familiar dessa sociedade, além de acompanharem um símbolo de violência impresso pelo movimento do Cangaço. A maternidade compulsória marginaliza mulheres que, por vontade própria, escolhem não procriar, mas também empurra para as margens mulheres que não conseguem engravidar.
A discussão acima nos remete ao que Nascimento (2021)NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo, Jandaíra, 2021. aborda quando chama atenção para os discursos existentes na sociedade que querem considerar “a mulher” a partir de uma condição universal, afirmando, por meio de diferentes meios, quem é e quem pode ser mulher. Dentro desses discursos, todas aquelas que não seguem os padrões da feminilidade e das performances de gênero de acordo com o imposto pelo “patriarcado capitalista imperialista supremacista branco” (hooks, 2021HOOKS, bell. Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo, Elefante, 2021.:14) são colocadas fora, à margem da sociedade, e estão sujeitas a sofrer diferentes tipos de violação de seus direitos.
Considerações finais
Como foi possível observar, algumas mulheres ingressaram no Cangaço por vontade própria, a exemplo de Maria Bonita, mas essa não foi a realidade para muitas cangaceiras que sofreram violências como raptos, abusos sexuais e foram obrigadas a permanecer no bando. Muitas dessas mulheres raptadas eram pobres, moradoras de áreas rurais, e as famílias não conseguiam defendê-las, pois eram ameaçadas de morte, sendo possível observar a intersecção do sistema opressor de gênero, como classe e território.
O estigma em torno das cangaceiras era tão forte que a sociedade costumava não aceitar de volta essas mulheres. E, por não serem virgens ou submissas às leis do patriarcado, dificilmente conseguiriam um casamento após a marca do Cangaço em sua trajetória8 8 As trajetórias das cangaceiras não foram homogêneas, e Inacinha e Dadá, por exemplo casaram-se novamente após deixarem o movimento. . Isso diz muito sobre a sociedade da época, machista e patriarcal, que apontava para as opressões permeadas pelas desigualdades de gênero. O gênero interseccionado com as vivências sexuais dizia quem servia ou não para casar, e ficar solteira era estar sujeita a outras violências e a ser malvista na sociedade. A “solteirona”, que não tinha “dono”, era considerada feia, amargurada, sem função social, já que não exerceria a maternidade, uma das principais funções destinadas às mulheres.
Outra questão ainda é presente nos dias atuais: as desigualdades e opressões, sobretudo em relação às mulheres negras, pobres e interioranas, que não têm direitos sobre seus corpos e suas vidas e que sofrem várias violências cotidianamente, como o julgamento social (que muitas vezes também define seus destinos). Mas, assim como as mulheres negras construíram e constroem estratégias de resistência, de sobrevivência, as cangaceiras também foram encontrando meios para sobreviver no Cangaço e lidar com a vida difícil que enfrentavam.
Importante lembrar também que algumas mulheres entraram no Cangaço de forma voluntária, buscando conquistar sua liberdade, pois suas vidas na sociedade sertaneja do século XX eram tão controladas que algumas viam o Cangaço como uma possibilidade de transgressão, mesmo não sabendo o que as esperava quando se tornassem cangaceiras. Estas foram consideradas mulheres que subverteram as regras e normas destinadas a elas e ficaram taxadas negativamente na sociedade. Muitas não se importaram com isso e seguiram os cangaceiros, pois consideravam a vida que possuíam tão difícil que aceitaram enfrentar outras opressões para construir suas trajetórias de modo diferente daquele que estavam habituadas a testemunhar.
Com a história dessas mulheres, foi possível observar as dificuldades, as violências e as resistências das cangaceiras. O sistema opressor de gênero, interseccionado com outros marcadores sociais, produziu e produz desigualdades de diversas ordens na vida das mulheres há séculos. Se fora do Cangaço elas eram controladas, destinadas ao casamento e à maternidade quase que compulsoriamente, dentro do Cangaço eram vistas como objeto sexual dos seus companheiros, e a esses deviam obediência e dedicação, ou seja, também não estavam livres. As experiências das mulheres nos levam a refletir sobre a importância de continuarmos na luta por uma sociedade igualitária, em que todas elas possam escolher e decidir o rumo de suas trajetórias.
É importante refletir sobre a coragem dessas mulheres na sociedade nordestina patriarcal, sexista, opressora. Se antes as cangaceiras eram mal vistas e retratadas de forma pejorativa pela mídia e pela sociedade, hoje podemos olhar para as suas jornadas e reconhecer a força, a coragem e a resistência dessas mulheres que continuam relevantes para a história.
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O subprojeto foi idealizado e coordenado pela Prof.ª Dr.ª Lorena Lima de Moraes e contou com Aimê Felix Pordeus, como bolsista de extensão (FACEPE), e Roseane Amorim da Silva, como professora integrante da equipe de pesquisa.
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O poder é uma categoria polissêmica, que originalmente foi pensado em termos de exercício de comando, comumente articulado à ideia de política, ou melhor, de governo. No entanto, o conceito de poder que nos interessa e que se encaixa no debate moderno e contemporâneo da vida social compreende-o a partir das relações sociais entre parceiros individuais e coletivos, e que vão muito além da política institucional. Para Foucault (1987)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987., o poder se estabelece nas relações sociais, não estando enraizado em uma dimensão ou esfera específica, mas, sim, ramificado por toda a sociedade. Dessa forma, o poder é tido como um “modo de ação” (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987.:312) inerente à sociedade e que também estimula a resistência. A resistência, por sua vez, pode ser reprimida e controlada por aparatos, instituições de dominação.
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A colonialidade designa os fenômenos que são consequência do colonialismo em si e sobrevivem a ele, uma vez que a dominação cultural rouba dos sujeitos, sobretudo, das mulheres pobres, negras, sua própria subjetividade, colocando-as em lugar de inferioridade frente às/aos brancos(as) e ricos(as) considerados(as) civilizados(as). A colonialidade se desdobra na colonialidade do saber, do poder, do ser e de gênero (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org. ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005, pp.227-278.; Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas (3), Florianópolis, 2014, pp.935-952 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755 – acesso em: 12 ago. 2021].
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref... ). A colonialidade do poder é concebida como a continuidade das formas coloniais de dominação, no âmbito material e subjetivo, mesmo com o fim da colonização, para além da opressão concreta, implicou a subjugação das tradições dos povos originários e daqueles que foram trazidos como escravos, seja pelo extermínio das tradições, seja pelo seu forte rebaixamento valorativo, colocadas em um nível de inferioridade diante da tradição europeia (Alves; Delmondez, 2015ALVES, Cândida Beatriz; DELMONDEZ, Polianne. Contribuições do pensamento decolonial à Psicologia Política. Revista Psicologia Política, 15(34), 2015, pp.647-661 [https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7434404 - acesso em: 20 fev. 2021].
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti... ). Na colonialidade do saber, opera a subjugação histórica dos seres humanos, a partir da criação da diferença colonial epistêmica, eurocêntrica e geopolítica do conhecimento, em articulação com o racismo, sexismo e universalismo (Ballestrin, 2013BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras. de Ciênc. Polít, v.11, Brasília, 2013, pp.89-117 [https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-33522013000200004&script=sci_abstract&tlng=pt - acesso em: 03 maio 2021].
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s01... ); a colonialidade do ser configura-se nas subjetivações do sujeito colonial na modernidade (Maldonado-Torres, 2019MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte, Autêntica, 2019, pp.27-53.); e a colonialidade de gênero (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas (3), Florianópolis, 2014, pp.935-952 [https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755 – acesso em: 12 ago. 2021].
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref... ) é a introdução capitalista eurocêntrica de diferenças de gênero nas colônias, onde anteriormente não havia diferenças. Assim, as mulheres pobres, negras, indígenas, rurais e sertanejas foram categorizadas como fêmeas, em virtude do processo de redução ou eliminação de suas humanidades. -
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As forças volantes eram fileiras policiais designadas para perseguir e combater os(as) cangaceiros(as).
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De acordo com Bourdieu (2010)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2010., o poder simbólico é uma forma que todo poder assume quando é compreendido e reproduzido como legítimo. É um poder quase “mágico”, que obtém o equivalente ao poder exercido pela força física ou econômica. Contudo, uma vez legítimo na relação entre aqueles que o “exercem” e aqueles que lhe estão sujeitos, o poder se perpetua na estrutura do campo social por meio das relações de conhecimento e da comunicação. Nesse sentido, o poder simbólico atua de modo que as relações de desigualdade, hierarquia e dominação reproduzidas no ambiente social não sejam percebidas como relações arbitrárias de força, mas como uma ordem natural e evidente das coisas, tanto para dominados quanto para dominantes.
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Compreende-se maternagem para além dos laços sanguíneos, pois considera-se o vínculo afetivo desenvolvido pelo cuidado de uma mãe com seu/sua filho(a), papel que também foi negado às cangaceiras (Milfont, 2019MILFONT, Camila Rodrigues. Aspectos subjetivos da maternidade: o mito do amor materno. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia), Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, Juazeiro do Norte, 2019 [https://leaosampaio.edu.br/repositoriobibli/tcc/TCC%20Camila.pdf - acesso em: 14 fev. 2022].
https://leaosampaio.edu.br/repositoriobi... ). -
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Os Direitos Reprodutivos são os “Direitos das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Direito a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. Direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência.” (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais. Brasília, Ministério da Saúde, 2009.:4). Os Direitos Sexuais são os “Direitos de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições e com respeito pleno pelo corpo do(a) parceiro(a).” (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais. Brasília, Ministério da Saúde, 2009.:4).
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As trajetórias das cangaceiras não foram homogêneas, e Inacinha e Dadá, por exemplo casaram-se novamente após deixarem o movimento.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Jun 2023 -
Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
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Recebido
28 Jun 2022 -
Aceito
21 Out 2022