Resumo
Para os estudos sobre a memória, a lembrança e o esquecimento são processos sociais, sendo parte dos discursos de memória que condicionam as disputas sociais e políticas. Dentre os fatores que caracterizam as disputas de memória, pode-se acrescentar, nas últimas décadas, o surgimento das tecnologias digitais. Este artigo busca compreender a relação entre as novas tecnologias e os processos de lembrança e esquecimento na esfera pública contemporânea. Percebendo uma dissolução da esfera pública em torno a antagonismos diversos, muitos deles identitários, o estudo parte para o entendimento do impacto das tecnologias digitais sobre os discursos de memória. Seu argumento é que essas tecnologias aproximam e sobrepõem as categorias de ars e uis, que constituem os dois modos da memória, segundo a teorização de Aleida Assmann. Por fim, as duas vertentes da argumentação se encontram na abordagem das controvérsias nas redes sociais como disputas de memória. Procura-se compreendê-las a partir da problemática do perdão, propondo-se que o perdão e a controvérsia são homólogos estruturalmente, mas ocorrem em sentido inverso; dessa forma, se ambos demonstram a permanência do passado no presente, na controvérsia é a dificuldade da vítima conceder o perdão que lhe fornece a chance de retomar sua agência.
Palavras-chave:
memória; novas mídias; perdão
Abstract
For memory studies, remembering and forgetting are social processes, part of larger memory discourses that play a relevant role in social and political struggles. Among the factors that condition those memory claims, it is possible to mention the development of digital technologies. These contributions seek to understand the relation between digital technologies and the processes of remembering and forgetting in contemporary public sphere. It starts noticing the dissolution of the public sphere among various antagonisms, many of them identity issues, then analyzing the impact of digital technologies upon memory discourses. Its main argument here is that these technologies both bring together and juxtapose the concepts of ars and uis, storage and remembrance, as established by Aleda Assmann. It concludes studying social media controversies as memory claims, trying to understand them through the problem of forgiving. It proposes that forgiving and online controversies share a structural resemblance, but function in opposite directions; thus, if both demonstrate the permanence of the past in the present, in online controversies it is also the victim’s difficult in forgiving that gives her a chance to recouple her agency.
Keywords:
memory; new media; forgiving
"A internet não esquece, mas a cultura digital não nos deixa lembrar" (BEIGUELMAN, 2014BEIGUELMAN, Giselle. Reinventar a memória é preciso. In: BEIGUELMAN, Giselle; MAGALHÃES, Ana Gonçalves (Org.). Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais. São Paulo: Peirópolis/Itaú Cultural, 2014., loc. 336). Assim, com essa frase lapidar, Giselle Beiguelman inicia uma coletânea recente sobre a preservação da arte digital e o caráter dos arquivos dedicados a conservá-la. Extrapolando seu assunto imediato, essa sentença corrobora a impressão paradoxal de uma cultura na qual a obsessão pela memória é proporcional à acusação de amnésia (HUYSSEN, 2003HUYSSEN, Andreas. Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford: Stanford University Press, 2003. , p. 18), como se a preocupação com a memória fosse tão grande que se houve esquecido de recordar. Entretanto, ela é realmente uma descrição precisa de nossa situação?
Em maio de 2014, o Judiciário europeu consolidou a figura jurídica do "direito ao esquecimento", quando arbitrou em favor de Mario Costeja González em ação contra o Google. Como resultado, os sites de busca devem ocultar informações danosas aos indivíduos quando os prazos jurídicos e legais de sua avaliação por tribunais tenham expirado ou os réus de diferentes processos sejam homônimos. Dois anos mais tarde, a mesma decisão foi ratificada pelo Parlamento da União Europeia, que estendeu a obrigatoriedade da exclusão das informações a pedido dos usuários também às plataformas digitais, como Facebook e outras redes sociais. Antes disso, em 2009, Viktor Mayer Schönberger já defendera as virtudes do esquecimento contra os efeitos perniciosos da permanência das informações na rede. Para o autor, a transparência e a conectividade seriam semelhantes ao excesso de memória e levariam à incapacidade de conceder perdão, fazendo os indivíduos terem de carregar indefinidamente o fardo de suas falhas passadas (SCHÖNBERGER, 2009SCHÖNBERGER, Viktor Mayer. Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age. Princeton: Princeton University Press, 2009.). Para o jurista austríaco, então, a facilidade de recuperação dos dados proporcionada pelos equipamentos eletrônicos equivale a uma espécie de memória infinita. Por outro lado, o reconhecimento da fragilidade dos sistemas de armazenamento de dados lançou dúvidas sobre os projetos de preservação do nosso presente digital. E se a instabilidade das redes, a obsolescência dos formatos, a multiplicação dos endereços da informação, aliada a seu próprio excesso, resultarem num vazio onde antes havia a abundância?
Parece, portanto, que a internet esquece, e a nossa cultura está obcecada em lembrar.1 1 Entendo que "a internet" é um fenômeno muito mais amplo do que a World Wide Web, com a qual comumente se confunde, e tampouco se identifica necessariamente com as redes sociais. Para efeitos deste texto, no entanto, utilizarei a expressão como sinônimo de ambas, uma vez que o foco é a dinâmica social e política exposta nas redes sociais, possibilitadas a partir das alterações surgidas no bojo da chamada "Web 2.0" no começo dos anos 2000, as quais enfatizam o papel das plataformas online, a produção de conteúdo e a interação entre usuários, mimetizando a vivência social. Existe uma ampla bibliografia sobre o assunto, da qual mencionarei apenas a leitura crítica de Geert Lovink (2015). Ou, talvez, a permuta dos termos indique que os sentidos atribuídos aos verbos "lembrar" e "esquecer" se modificaram - e não podem ser pensados na contemporaneidade sem considerar o papel desempenhado pelos aparelhos responsáveis por guardar a informação que produzimos. Qual seria a importância da fácil recuperação de informações e registros que eles propiciam? E como essa operacionalidade técnica dos aparelhos técnicos altera a dinâmica social da memória?
Outro exemplo, bastante frequente, é a recuperação de publicações nas redes sociais que apontam ocasiões nas quais agentes políticos entram em contradição. Um caso bastante famoso é a recuperação de tweet de 2015 de Michel Temer, então vice-presidente, afirmando que se opunha a qualquer espécie de ruptura institucional na política nacional, impeachment incluído. Esse exemplo mostra uma dinâmica recorrente - uma decisão política, sua controversa repercussão e a recuperação de mensagens que negam ou contradizem a própria atuação contemporânea do indivíduo em questão -, a qual diz algo a respeito dos modos de lembrar e esquecer na internet, assim como do papel da memória, auxiliada pelas tecnologias digitais, na esfera pública. Apesar de sua efemeridade, a comunicação online através das ferramentas digitais é um dos principais articuladores do passado no debate social e político presente.
É interessante perceber como, na época que cunhou o termo "pós-verdade", a coerência seja um dos valores mais cobrados nas redes sociais (TURKLE, 1995TURKLE, Sherry. Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet. New York: Simon & Schuster, 1995.). Isso demonstra que a fluidez tão frequente mente associada ao mundo online é apenas parte de uma equação mais ampla que contém, como seus demais elementos, os meios de preservação e recuperação do conteúdo que é produzido na internet. Considerando que as disputas políticas atuais ocorrem muitas vezes sob o signo da identidade, entende-se que as redes sociais, por sua própria dinâmica, sejam um dos meios que reforçam o uso político da coerência - ou, inversamente, do esquecimento. A oscilação entre ambos mostra que a identidade política e ideológica é parte de um jogo mais amplo desempenhado através das ferramentas digitais.
Neste artigo, proponho-me debater a interrelação entre memória e tecnologia na esfera pública contemporânea. Num primeiro momento, revisarei alguns pressupostos do debate sobre a memória cultural, enfatizando o papel das novas tecnologias de armazenamento, transmissão e recuperação digitais. Depois, trabalharei as maneiras pelas quais os aparelhos digitais se relacionam com esse tema. Partindo da noção de "efêmero duradouro" (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008.), meu objetivo é mostrar que, na paisagem social e tecnológica contemporânea, a mediação dos aparelhos digitais desfaz a distinção entre ars e uis elaborada por Aleida Assmann (2011)ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011.. Mais do que nunca, lembramos (e esquecemos) com e através dos nossos aparelhos técnicos. Na sequência, aprofundo essa relação buscando qualificar a relação entre tecnologia e esfera pública, de modo a compreender o palco no qual ocorrem as controvérsias online. A argumentação culminará numa proposta de entendimento da controvérsia online através da problemática do perdão. Uma vez que os debates nas redes sociais frequentemente assumem dimensão identitária, eles encetam uma ofensa que, entretanto, muitas vezes elide o perdão. Essa dinâmica, presente no shaming ou na "lacração", resultando em diversos "cancelamentos", frequentemente é apontada como parte, senão a origem, da polarização política que vivemos. Nestas páginas, pretendo oferecer uma leitura ao mesmo tempo mais generosa e mais rigorosa do problema, de modo a compreender por que "a internet não perdoa" e, ao cabo, se ela deveria fazê-lo.
MEMÓRIA, MÍDIA E ESFERA PÚBLICA NA CONTEMPORANEIDADE
"A memória histórica não é mais o que era", já escreveu Andreas Huyssen, "ela costumava demarcar a relação de uma comunidade ou nação com seu passado, mas a fronteira entre passado e presente costumava ser mais forte e estável do que é hoje":
Passados não-contados e não tão recentes assim impingem o presente através dos meios modernos de reprodução como a fotografia, o filme, a música gravada e a internet, assim como pela explosão da pesquisa histórica e uma cultura museal cada vez mais voraz. O passado se tornou parte do presente de maneiras que eram simplesmente inimagináveis em séculos anteriores. Como resultado, as fronteiras temporais enfraqueceram da mesma forma que as dimensões experienciais do tempo encolheram como produto dos meios modernos de transporte e comunicação (HUYSSEN, 2003HUYSSEN, Andreas. Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford: Stanford University Press, 2003. , p. 1).
Desde que o crítico alemão escreveu essas linhas, as mídias digitais só fizeram aumentar em número e presença. Mais do que enumerar o aparecimento de aparelhos e ferramentas - uma tarefa sempre fadada à obsolescência -, é possível recolher uma série de fenômenos de forma a tornar ainda mais complexa a afirmação de Huyssen. Assim, a interrelação entre práticas e discursos de memória e as novas tecnologias é demonstrada pela interpenetração entre os ambientes digitais e a sociabilidade no geral, dissolvendo a unicidade e a autonomia do que para o crítico alemão, no início do século, ainda era "a internet"; a coexistência de um arquivo cada vez mais amplo de registros do passado e a velocidade crescente na sua produção; por fim, a simultaneidade entre gravação, reprodução e arquivamento nas mídias digitais, encurtando a distância entre passado e presente (ERNST, 2013ERNST, Wolfang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. ).
Tendo isso em mente, vale a pena recordar o tratamento que o YouTube recebe nas páginas de Retromania, do jornalista e crítico cultural britânico Simon Reynolds (2012)REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction To Its Own Past. London: Faber & Faber, 2012. , já que essa plataforma oferece o modelo para um tipo de relacionamento com o passado que invoca todos os aspectos elencados acima. Como destaca o autor, o YouTube serve de repositório para uma ingente quantidade de informação, muito maior que a macrotemporalidade do mundo social é capaz de absorver, para utilizar as categorias de Wolfgang Ernst (2013)ERNST, Wolfang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. , as quais apresentarei em maiores detalhes na segunda seção deste artigo. Contudo, apesar de ter começado a favorecer a produção de conteúdo original - algo que era incipiente no momento em que Reynolds escrevia seu livro -, a maior parte dos vídeos presentes no YouTube consiste em reproduções de material já existente, isto é, filmagens de arquivo ou excertos, edições e paródias de obras cinematográficas ou produções televisivas (REYNOLDS, 2012REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction To Its Own Past. London: Faber & Faber, 2012. , p. 59). Isso mostra a dependência das mídias digitais com relação às mídias tradicionais, ainda produtoras de conteúdo, enquanto aquelas ainda são utilizadas para comentá-lo; esse é um aspecto que se destaca nos espaços de discussão política contemporâneos, onde a manifestação das opiniões tece um comentário contínuo sobre as temáticas de relevo para cada um dos grupos interessados. Para além disso, escreve Reynolds, muitos dos "avanços em direção a aparelhos mais adaptados ao usuário (user friendly) na era digital estão relacionados ao controle do tempo", desde a "liberdade para não prestar atenção ou ser interrompido durante um programa de televisão (pausar, voltar), até reprogramar o calendário de transmissões para quando é mais conveniente", o que já se iniciara com o CD e o VHS (REYNOLDS, 2012, p. 71). O controle das condições de reprodução midiática é um sinal da ênfase colocada sobre a multiplicidade de escolhas disponíveis para o usuário, o que conduz tanto para uma atenção fragmentada quanto para uma deriva lateral que "não é apenas de artista para artista ou gênero para gênero mas também uma perambulação através do tempo, já que artefatos de vídeo de diferentes época se sobrepõem promiscuamente e são costurados numa trama de associações" (REYNOLDS, 2012, p. 62).
Por esse motivo, o autor reinterpreta a noção de "cauda longa" (long tail), de Chris Anderson (2006), em termos temporais. O editor da revista norte-americana Wired concebera a expressão para mostrar como as tecnologias digitais permitiam às empresas superarem as limitações espaciais em suas operações. Uma vez que a loja não possui localidade física, ela não está limitada pela quantidade de clientes que podem chegar até ela; da mesma forma, já que não é preciso manter as mercadorias no espaço limitado da loja, o armazenamento se torna mais barato, seja transferindo os galpões para áreas menos valorizadas, seja pela relativa desmaterialização do produto, como nos serviços de streaming; e, por último, as empresas "podem agregar nichos de audiência distanciados geograficamente, superando o problema de uma ‘audiência muito espalhada’" (REYNOLDS, 2012REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction To Its Own Past. London: Faber & Faber, 2012. , p. 67). Para Reynolds, no entanto, o conceito também mostra uma vitória do passado sobre o presente, pois a ausência de limitações físicas torna desnecessário renovar o estoque e, como resultado, o acervo cresce em direção ao passado, não ao presente.
Maior capacidade de escolha pelos usuários e consumidores, menores limitações no acesso e crescente armazenamento impactam a experiência do tempo. "Nós nos tornamos tão acostumados com a conveniência desse acesso", afirma Reynolds, "que é difícil lembrar que a vida nem sempre foi assim; que até recentemente, vivia-se a maior parte do tempo no presente cultural, com o passado confinado a zonas específicas, preso em objetos e lugares particulares" (REYNOLDS, 2012REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction To Its Own Past. London: Faber & Faber, 2012. , p. 57).
Essa sobreposição entre passado e presente tem recebido atenção pela reflexão histórica contemporânea. Ela é motivada não somente pela presença da mídia, mas também por outros tópicos que emergiram como tema de preocupação nas últimas décadas, como a ascensão da categoria de patrimônio histórico-cultural e as interrelações entre direito, trauma e história, para não mencionar suas ramificações no estudo da memória e a justiça de transição no contexto latino-americano e mundial. Associados à figura jurídica dos direitos humanos, os problemas levantados por esses processos vêm à tona sob a égide da imprescritibilidade, mostrando que o Ocidente teria substituído a construção de projetos alternativos de futuro pela reparação do passado (MUDROVCIC, 2014MUDROVCIC, María Inés. About lost futures or the political heart of history. Historein, v. 14, n. 21, p. 7-21, 2014.) - ou, ao menos, na transição do enquadramento partidário-ideológico da luta política para um baseado no reconhecimento e na identidade, concebendo a reparação do passado como etapa necessária à elaboração de novos futuros.
Tais debates se colocam no horizonte de uma série de formulações a respeito do tempo na contemporaneidade. Seja através dos conceitos de "presentismo", de François Hartog (2013)HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., ou "atualismo", na visão de Matheus Henrique Pereira e Valdei Lopes de Araujo (2019)ARAUJO, Valdei Lopes de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Milfontes; Mariana: SBTHH, 2019., seus críticos, percebe-se que a gramática do tempo que caracterizara o conceito moderno de história não mais estrutura a experiência temporal contemporânea. Outras sintaxes, como o neoliberalismo, ressaltado por Rodrigo Turin (2019)TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Copenhagen: Zazie, 2019., trazem o tempo como locus de disputa. Mais do que trabalhar com a temporalidade em si, no entanto, interessa-me a relação entre as novas mídias, os discursos de memória e a esfera pública contemporânea, uma vez que é a dissolução do sujeito histórico moderno, enquadrado em termos nacionais, que responde também pela falta de orientação do tempo histórico contemporâneo. Trata-se não apenas de uma nova interpenetração entre passado, presente e futuro, mas também de uma vivência social com outros - novos - agentes.
Dessa maneira, as relações entre memória, história e mídia se desdobram também no plano das comunidades de lembrança. Não obstante os mecanismos decisórios e, frequentemente, também os reparatórios serem nacionais, os discursos de memória circulam em escala global (ASSMANN; CONRAD, 2010ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian. Introduction. In: ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian (Eds.). Memory in a Global Age - Discourses, Practices and Trajectories. London: Palgrave Macmillan, 2010. p. 1-16.). No âmbito interno, contudo, a equação entre o Estado-nação e uma determinada comunidade de memória também é desafiada com a ascendência de memórias minoritárias, que não encontram espaço ou estão em confronto com a memória nacional. Os dois aspectos já foram apontados por Pierre Nora, em meados dos anos 1980, em sua reflexão pioneira sobre os "lugares de memória", e foi considerada por ele uma das causas da aproximação - que ele julga indevida - entre memória e história (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.). Mais do que o juízo sobre a situação, importa reconhecer, como faz Huyssen, que "qualquer que seja a resposta a estas questões, parece claro que abordagens socio lógicas mais antigas ao problema da memória coletiva", sobretudo abordagens "que concebem formações de memórias sociais e grupais relativamente estáveis (...) não são adequadas para captar a dinâmica decorrente da mídia e da temporalidade" (HUYSSEN, 2003HUYSSEN, Andreas. Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of Memory. Stanford: Stanford University Press, 2003. , p. 17).
Ainda que não concorde absolutamente com o conceito, a noção de "memória prostética", elaborada por Alison Landsberg, presta-se bem ao entendimento da questão. Segundo a autora, esse tipo de memória surge do encontro entre o indivíduo e uma representação midiática do passado (LANDSBERG, 2004LANDSBERG, Alison. Prosthetic Memory: The Transformation of American Remembrance in the Age of Mass Culture. New York: Columbia University Press , 2004., p. 9). Essas memórias não são, portanto, o resultado da experiência vivida, mas uma experiência vicária estabelecida através de uma representação. Para a autora, o cinema e o museu são exemplares enquanto catalisadores dessas memórias, embora se possa adicionar, desde que o livro foi lançado, em 2004, os grupos de fãs em torno a produtos televisivos, musicais ou culturais, no geral, além das formações identitárias, de caráter político, que têm na representação, inclusive midiática, um ponto de reconhecimento e articulação social.
Na opinião de Landsberg, o caráter "prostético" dessas memórias é resultado de uma apropriação, inclusive consciente ou pragmática, pela qual elas se tornam uma espécie de "apêndice" do sujeito (LANDSBERG, 2004LANDSBERG, Alison. Prosthetic Memory: The Transformation of American Remembrance in the Age of Mass Culture. New York: Columbia University Press , 2004., p. 20). Sendo assim, as memórias prostéticas desafiam a autenticidade associada à experiência do vivido, questionando o nexo essencialista proposto na relação entre memória e identidade - e, de fato, uma vez que elas podem se referir a recortes muito específicos ou, no caso de grupos de fãs, estabelecer identidades a partir do que não foi vivido, é possível pensar que elas se situam além dessa relação. Levando a reflexão mais adiante, é possível propor, com relação ao conceito de "memória prostética", o reconhecimento do quanto a experiência social atualmente já é uma experiência midiática; da mesma forma, não é possível afirmar que a autenticidade não desempenha qualquer papel na fixação e/ou relevância daquela memória. Pelo contrário, trata-se de uma autenticidade de segunda mão, obtida através da mobilização dos afetos pela representação, pré-requisito para que o não vivido se torne parte do repertório que articula a experiência vivida dos indivíduos e grupos sociais. Memória e afetos, portanto, tornam-se, com perdão da redundância, mediados pela mídia.
Tal configuração implica, para a formação de identidades a partir do encontro com representações midiáticas, uma constante negociação entre o que está sendo representado - os cenários, a ambientação, o vestuário de um filme, por exemplo - e a criação de um grupo motivado por essa ocorrência midiática - sua transmissão em determinado meio, os comentários posteriores, inclusive as paródias, entre outros. Se a existência da mídia sempre foi pressuposta no Estado-nação, caso se aceite a teorização de Benedict Anderson (2008)ANDERSON, Chris. The End of Theory: The Data Deluge Makes the Scientific Method Obsolete. In: Wired, 23 jun. 2008. Disponível em: < https://www.wired.com/2008/06/pb-theory/ >. Acesso em: 22 out. 2020.
https://www.wired.com/2008/06/pb-theory/...
, a principal alteração na atualidade é a existência de maior número de canais através dos quais essas representações circulam, assim como a maior diversidade de grupos aos quais eles atendem. Isso corresponde a uma mudança na lógica da difusão: antes centralizada; agora, customizada. Considero ser esse um dos motivos pelos quais não é possível denunciar qualquer "essencialismo mnemônico" ou identitário no geral, uma vez que é necessário reconhecer que memórias e experiências estão situadas num espaço público caracterizado pela presença das mídias, assim como do mercado. O conceito de "memória prostética", portanto, não denota memórias "secundárias", menos relevantes que as memórias em primeira mão; o conceito apenas explicita o caráter de parcela significativa da memória cultural numa sociedade saturada midiaticamente.
Nesse ponto, a reflexão sobre a memória, a temporalidade e a tecnologia apontam para a superação do influente conceito de esfera pública desenvolvido, ainda que criticamente, por Jürgen Habermas na década de 1960. Para o filósofo alemão, a esfera pública pode ser concebida como uma estrutura de debate coletivo a respeito das regras gerais que governam as relações no âmbito da sociedade civil (HABERMAS, 1984HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 42). A esfera pública é o mecanismo pelo qual se efetiva a transmissão da soberania do governante para o conjunto dos cidadãos, representantes da opinião pública. Historicamente, o conceito de esfera pública, sob o viés habermasiano, é dependente do processo de formação do Estado-nação e da democracia representativa. Por esse motivo, como ressalta Nancy Fraser, a esfera pública manifesta toda sua envergadura quando realiza a articulação entre legitimidade normativa e eficácia política, não uma ou outra (FRASER, 2014FRASER, Nancy. Transnationalizing the Public Sphere: on the Legitimacy and Efficacy of Public Opinion in a Post-Westphalian World. In: NASH, Kate (Ed.). Transnationalizing the Public Sphere. Cambridge: Polity Press, 2014. p. 8-42., p. 21). Entretanto, a emergência de organismos (e corporações) transnacionais aos quais é atribuída a governança global é um sinal da ruptura do acordo que garante participação no debate público e capacidade decisória aos cidadãos. Além disso, se a esfera pública somente existe em situações de igualdade e inteligibilidade mútua, então como considerá-la válida quando há amplo espectro de graus de cidadania, sendo o migrante sem direitos políticos o mais extremo em sua exclusão, para não mencionar uma extensa diversidade linguística no interior das sociedades nacionais (FRASER, 2014FRASER, Nancy. Transnationalizing the Public Sphere: on the Legitimacy and Efficacy of Public Opinion in a Post-Westphalian World. In: NASH, Kate (Ed.). Transnationalizing the Public Sphere. Cambridge: Polity Press, 2014. p. 8-42., p. 24-25)? O mesmo ocorre com as representações midiáticas atuais, as quais se dirigem - e formam - grupos políticos e comunidades de memória que não coincidem com o Estado-nação e a sociedade que o sustenta.
Logo, a dissolução da simultaneidade temporal moderna, a formação de novos arranjos políticos, inferiores e superiores ao Estado-nação, assim como a maior diversificação da paisagem midiática são todos elementos interrelacionados. Esses três elementos acompanharão o restante deste texto; antes, no entanto, é preciso compreender o funcionamento dos aparelhos digitais na sua relação - aí sim - intrínseca com a temporalidade.
TECNOLOGIA E MEMÓRIA SOCIAL
Em 6 de setembro de 2006, o Facebook, que contava somente três anos de existência, introduziu uma novidade em sua navegação, a qual alterou significativamente a maneira como os usuários o utilizavam: o feed de notícias. Era uma ideia que ganhava força na época, apoiando-se numa metáfora-mestra, o "rio de notícias". O aumento da informação na rede tornava necessária sua organização; no mesmo período, ganhava força o feed RSS, agregador de conteúdo que já estava disponível desde 2000, assim como o Google Reader, criado em 2005. Ao contrário desses, porém, o feed de notícias do Facebook não somente organizava o conteúdo em função do tempo automaticamente - ou de acordo com outra variação do algoritmo que a companhia desenvolveu posteriormente -, mas também retirava a informação de seu contexto inicial, dissolvendo a unidade da página como estrutura básica da navegação na Web e transferindo-a para a plataforma digital; no caso, o próprio Facebook. A introdução do feed alterou a maneira como o Facebook era utilizado, uma vez que, até então, a plataforma funcionava de maneira semelhante ao MySpace, requisitando que os usuários acessassem os perfis para ver suas publicações. Tratava-se de uma alteração menor, mas de grandes consequências, uma vez que também abria caminho para a monetização da experiência online proporcionada pelo Facebook através do custeio de publicações, tornando possível direcioná-las a públicos específicos.
Para além do papel do feed de notícias na esfera pública, assunto bastante explorado desde o escândalo da Cambridge Analytica nos últimos anos, gostaria de interrogar outra questão, sub-reptícia: qual a relação entre o feed e o entendimento da memória? Qual a dinâmica implícita na associação entre recuperação e dissolução da temporalidade realizada por esse mecanismo técnico?
Em seu Espaços da recordação, Aleida Assmann postula que, despida de sua função cultural, a memória refugiou-se na arte, um dos poucos campos da cultura contemporânea que se dedicaria a realizar o que ela denomina "balanço da perda" (ASSMANN, 2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011.; FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An Archive Impulse. October, v. 110, p. 3-22, 2004.). Os trabalhos artísticos que abordam a memória configuram o que ela chama uma arte sobre a memória, para se distinguir da arte da memória, no âmbito da mnemotécnica, relacionada ora à memória exercitada, ora à memória prodigiosa, ora à memória forçada (ASSMANN, 2011, p. 386; YATES, 2007YATES, Frances. A Arte da memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.; RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.). Ao invés da capacidade de recuperar informações como elas estavam no momento do seu depósito, uma arte sobre a memória traz como tema as falhas inerentes à recordação, implicando a passagem do tempo que constitui a distância entre o vivido e o lembrado - esse mesmo distanciamento, vale dizer, é o espaço no qual se forma a identidade.
Como destaca a autora, o armazenamento é uma função primária da memória humana, responsável por todo o "procedimento orgânico que objetiva a identidade entre o depósito e a recuperação de informações" (ASSMANN, 2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011., p. 33). Ou, para falar com Paul Ricoeur, via Aristóteles, a memória é do passado (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 33). Mesmo assim, armazenamento e recordação constituem dois modos distintos, senão opostos, da memória. Ao contrário do armazenamento, na recordação o tempo é um fator, pois existe uma diferença entre o que foi arquivado e o que foi lembrado; com isso, produz-se também a possibilidade do esquecimento. O ato de recordar ocorre no tempo e, como Assmann afirma, "o esquecimento é o oponente do armazenamento, mas cúmplice da recordação" (ASSMANN, 2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011., p. 34).
A recordação corresponde à memória como uis, isto é, "uma força imanente, como uma energia com leis próprias", enquanto a memória enquanto armazenamento indica sua compreensão como ars, uma técnica que garante a recuperação do registro do passado tal como no momento em que foi arquivada (ASSMANN, 2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011., p. 33). Ao contrário da recordação, o armazenamento abstrai a dimensão temporal do processo de memória e, como resultado, percebe-a como espaço de simultaneidade, uma vez que, no modo do armazenamento, todas as memórias são potencialmente recuperáveis. Toda memória, portanto, torna-se memória potencial e adquire caráter virtual, pois está à espera da atualização que será feita pelo ato de recuperação das informações. Além disso, uma vez que o armazenamento iguala memória e recuperação de informações, ela também não necessita estar inscrita num corpo e pode escapar à degenerescência neuronal humana. A memória pode ser externalizada não apenas em suas representações - os discursos de memória - mas em seus próprios elementos constitutivos, os registros, e está disponível para ser resgatada seja por um indivíduo, seja pelo computador - mas, mais frequentemente, por ambos em conjunto.
Vis e ars são dois modos da memória para Aleida Assmann, mas eles também apontam dois polos cuja valorização oscila ao longo do tempo - e que, na atualidade, parece pender para o segundo, graças aos dispositivos técnicos. Assim, se existe cada vez mais informação, tornando mais difícil a tarefa da memória individual, é necessário lembrar que a modernidade é pródiga em sistemas que classificam a informação de maneira personalizada. O feed de notícias é mais um deles.
Como ressalta Wolfgang Ernst, quando os computadores são associados à memória, normalmente é sublinhada sua capacidade de armazenamento ilimitada; entretanto, esquece-se que eles não favorecem o acúmulo de informações, mas a transferência permanente (ERNST, 2013ERNST, Wolfang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. , p. 98). Algo semelhante já foi dito por Aleida Assmann, para quem os arquivos digitais implicam a reescrita constante, não a durabilidade dos suportes (ASSMANN, 2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: UNICAMP, 2011., p. 24). Isso tem relevância não somente para o entendimento do que é efetivamente preservado, inviabilizando a categoria de original, mas também para a relação temporal que é estabelecida pelo arquivo. Nas palavras de Ernst, "a noção de feedback imediato de dados substitui a separação que tradicionalmente instituía toda a ‘diferença arquivística’" (ERNST, 2013ERNST, Wolfang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. , p. 98). Uma vez que a produção do registro é concomitante à realização do evento, quando não é o próprio evento, como no exemplo da interação via redes sociais, produz-se uma situação na qual não existe distância entre passado e presente. O arquivo se torna essencialmente dinâmico e está em constante crescimento; "a economia do tempo", escreve Ernst, "se encontra em curto-circuito" (ERNST, 2013ERNST, Wolfang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013. , p. 98).
Quanto a isso, a pesquisadora canadense Wendy Hui Kyong Chun cunhou o conceito preciso - e precioso - de "efêmero duradouro" para descrever a temporalidade das novas mídias. Para a autora, essa qualificação é resultado do uso cotidiano das mídias digitais, o qual "interrompe a memória e suas potencialidades degenerativas de modo a possibilitar ilusões de programabilidade digital sobre-humanos" (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 148). Para a autora, foi a memória que transformou o computador no aparelho que conhecemos hoje, pois "a memória presumidamente torna as mídias digitais um arquivo sempre em expansão onde nenhuma peça de informação é perdida" (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 154). A complementaridade entre recordação e armazenamento se transforma em oposição entre ambos, alcançando seu ponto mais extremado, pois enquanto a primeira é voltada para o passado, o último é realizado tendo em vista a recuperação das informações, isto é, o armazenamento está direcionado para o futuro (CHUN, 2011CHUN, Wendy Hui Kyong. Programmed Visions: Software and Memory. Cambridge: The MIT Press , 2011. , p. 176). A possibilidade de resgate das informações conecta as novas mídias à possibilidade de conhecer e antever o futuro, uma vez que o resgate das informações armazenadas permite estabelecer os padrões probabilísticos que possibilitam - esse é o objetivo - programar o amanhã (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 154).
O que acontece, porém, quando a temporalidade do armazenamento é sobreposta ao passado da recordação e ambos se encontram no presente? Como a autora destaca, a delegação aos computadores das funções de memória se baseia na pressuposição - errônea - de que eles são mais confiáveis do que a mente humana (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 160). Não se trata, evidentemente, de uma competição entre humanos e máquinas, mas de compreender a base discursiva que permite colocar os dois no mesmo plano, apenas para subsumir um no outro:
No linguajar da computação, inverte-se a linguagem comum porque se armazena algo na memória. Essa estranha inversão e a fusão entre memória e armazenamento passa por cima da impermanência e da volatilidade da memória computacional. Sem essa volatilidade, entretanto, não poderia existir memória (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 164).
Logo, é a redução da memória ao armazenamento, a despeito da recordação, que permite compreender simultaneamente os computadores e aparelhos técnicos como "máquinas de memória" e, por conseguinte, sobrepujar sua capacidade de recuperação de informações ao processo de recordação inerente à memória e à sociabilidade humanas. Essa redução também negligência o funcionamento real dos aparelhos técnicos, sujeitos a injunções diversas, por exemplo do clima e/ou defeitos de fabricação, muitas vezes em nome de sua imaterialidade. Imaterial e infinito, o armazenamento feito pelos aparelhos técnicos condiciona o aparecimento dos registros do passado no presente - é o caso dos exemplos mencionados na abertura do texto, uma vez que o resgate das publicações é decorrente da facilidade e da imediaticidade que as redes sociais oferecem para sua recuperação, isto é, até que o usuário ou a plataforma os apague.
Deve-se ressaltar, ainda, que o mais importante não é apontar a artificialidade do estatuto dos computadores enquanto máquinas de memória, afinal é apenas a fusão entre memória, armazenamento e recuperação da informação que permite realizar semelhante aproximação, mas ver como essa fusão realiza - tecnicamente - senão o colapso, ao menos a dissolução da linearidade pressuposta pelas categorias de passado, presente e futuro. Pode-se voltar ao feed de notícias e perceber como, devido a seu caráter personalizado, a temporalidade é subsumida no funcionamento técnico do algoritmo que a organiza para cada usuário, dissolvendo a simultaneidade do processo social e produzindo o que Wendy Chun denomina uma "não-simultaneidade do novo". "As redes de mídias digitais", escreve a autora, "não são baseadas na obsolescência ou descarte da informação, mas, pelo contrário, na possibilidade de ressuscitar o morto-vivo (undead) da informação" (CHUN, 2008CHUN, Wendy Hui Kyong. The Enduring Ephemeral, of the Future is a Memory. Critical Inquiry, v. 35, n. 1, p. 148-171, 2008., p. 171). A capacidade de recuperação das informações resulta do estancamento da degeneração dos registros, já que as mídias digitais estão sempre os reescrevendo. Registros que seriam de outro modo perdidos graças à ação do tempo estão constantemente sendo recuperados e disponibilizados à ação do usuário ou das máquinas que os interpretam com fins diversos, muitos deles comerciais. Nesse cenário em que a perda das informações é dificultada, o efêmero perdura, tornando-se permanente.
TEMPORALIDADE, TÉCNICA E CONTROVÉRSIA SOCIAL
Uma vez compreendido o funcionamento dos aparelhos técnicos em sua relação com a temporalidade, pode-se avançar para a discussão a respeito de suas manifestações sociais na contemporaneidade. A princípio, elas são facilmente perceptíveis. Um exemplo é a constante produção de notícias, factoides e a circulação de hashtags que caracteriza as redes sociais, principalmente no âmbito político. Essa constante produção do presente, vinculada à economia da atenção, é também uma disputa pelas maneiras de unificar o tempo em torno a discursos e práticas políticas conflitantes (TURIN, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Copenhagen: Zazie, 2019.). Aqui, o funcionamento dos aparelhos técnicos é utilizado para controlar o fluxo social que concatena - ou concatenava - passado, presente e futuro.
Quanto a isso, é proveitoso referir a categoria de "microtemporalidade técnica", elaborada por Wolfgang Ernst. Para o autor, as mídias tecnológicas sempre ocorrem no tempo, uma vez que somente se tornam operativas quando atualizadas. Com isso, existe um tempo técnico, que é o próprio tempo de funcionamento dos aparelhos (ERNST, 2016ERNST, Wolfang. Chronopoetics: The Temporal Being and Operativity of Technological Media. London, New York: Rowman & Littlefield, 2016., loc. 661). Esse tempo é distinto estruturalmente do tempo social e/ou histórico. Enquanto o último, grosso modo, baseia-se na continuidade e na duração, aquele é repetitivo e periódico. Mais importante ainda, enquanto o tempo social é intersubjetivo, o tempo técnico é "interobjetivo" (HUI, 2016HUI, Yuk. On the Existence of Digital Objects. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2016., loc. 3289), no sentido que cada aparelho - e cada uma de suas peças e sistemas - tem uma temporalidade própria, de modo que seu funcionamento depende de sua sincronização e coordenação. Tal aspecto provém do reconhecimento que aos aparelhos técnicos não pode ser atribuído, a rigor, contexto, já que eles não são sujeitos. Isso não implica, porém, que não sejam agentes em meios diversos (HUI, 2016HUI, Yuk. On the Existence of Digital Objects. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2016., loc. 3289).
Um dos exemplos mais famosos do cruzamento entre a microtemporalidade técnica e as diversas temporalidades sociais é o bug do milênio, quando houve a preocupação com a possível paralisação e mal funcionamento dos computadores devido à indistinção entre os anos 1900 e 2000 no sistema de datação de dois dígitos utilizados por eles. Outros exemplos, mais recentes, são o disparo em massa de publicações e fake news em redes sociais nos processos eleitorais estadunidense e brasileiro, além da campanha do Brexit, no Reino Unido, em 2016. Nesses casos, a rapidez inerente à funcionalidade computacional permitia ocupar diversos presentes simultaneamente; os aparelhos técnicos, devido à sua ubiquidade, permitiam a transformação do fake em fato, alterando a percepção da realidade e a compreensão de que compartilhamos uma simultaneidade social marcada pela vivência do mesmo presente. Através da interferência dos aparelhos técnicos, o tempo social pode se transformar em produto da microtemporalidade técnica.
É preciso entender esse aspecto, aprofundando a relação muito específica que a internet tem com a esfera pública. Como já destacou R. Stuart Geiger, embora se possa considerar a internet como representante de um "mecanismo de agregação que se assume enquanto descentralizado, democrático, meritocrático, de baixo para cima, (e) radicalmente participativo", a aproximação e, eventualmente, a unificação dos discursos não é realizada pela ampliação do debate, mas por sua restrição, a qual resulta do uso de algoritmos determinados que fracionam o conjunto da rede em parcelas mais convenientes - o exemplo, mais uma vez, é o feed de notícias de plataformas como Facebook e Twitter (GEIGER, 2009GEIGER, R. Stuart. Does Habermas Understands the Internet? The Algorithmic Construction of the Blogo/Public Sphere. Gnovis: A Journal of Communication, Culture, and Technology, v. 10, n. 1, p. 2-23, Oct. 2009.). Sendo assim, a internet possui muitos espaços públicos, mas não é a esfera pública. (PAPACHARISSI, 2009PAPACHARISSI, Zizi. The Virtual Sphere 2.0. The Internet, the public sphere, and beyond. In: CHADWICK, Andrew; HOWARD, Philip N. (Eds.). Routledge Handbook of Internet Politics. New York: Routledge, 2009. p. 230-245., p. 263). Isso é reforçado pela concepção, esposada pelo jurista esloveno Slavko Splichal, de que o público e a esfera pública são categorias distintas, pois "enquanto o primeiro é uma categoria social cujos membros agem (discursivamente), formam e expressam opiniões", a última é a infraestrutura para que o debate público aconteça, o que compreende condições técnicas para a realização do debate, assim como componentes políticos, culturais e econômicos que o condicionam (SPLICHAL, 2010SPLICHAL, Slavko. Eclipse of the ‘Public’. From the Public to (Transnational) Public Sphere. Conceptual Shifts in the Twentieth Century. In: GRIPSRUD, Jostein; MOE, Hallvard (Eds.). The Digital Public Sphere: Challenges for Media Policy. Göteburg: Nordicom, 2010. p. 23-38., p. 28). Por esse motivo, é equivocado considerar a internet como equivalente à esfera pública, não obstante sua presença cada vez maior no debate público. Pelo contrário, a internet realiza a multiplicação e a fragmentação de espaços públicos, num processo em que a dissolução do mesmo presente social é alimentada reciprocamente pelo funcionamento dos aparelhos técnicos e pela dinâmica social da discussão política. É nesse processo que intervêm os algoritmos.
Recentemente, o trabalho colaborativo de Laura Kurgan, Dave Brawley, Brian House, Jia Zang e Wendy Hui Kyong Chun resgatou o termo "homofilia" para tratar do tema (KURGAN et al., 2019KURGAN, Laura et al. Homophily: The Urban History of an Algorithm. In: E-flux architecture, 4 out. 2019. Disponível em: < https://www.e-flux.com/architecture/are-friends-electric/289193/homophily-the-urban-history-of-an-algorithm/ >. Acesso em: 22 out. 2020.
https://www.e-flux.com/architecture/are-...
). A noção precede o advento das tecnologias digitais, tendo sido primeiramente utilizado nos estudos de sociologia aplicada em projetos habitacionais nos Estados Unidos. Nesse contexto, a noção de homofilia era uma ferramenta para garantir a harmonia social, através da percepção que indivíduos que compartilham valores e crenças tendem a estar situados próximos fisicamente. Como os autores mostram, o conceito, apesar de suas boas intenções - no caso, a tentativa de evitar a segregação racial nos grandes conjuntos habitacionais então em construção naquele país -, funciona apenas caso seja feita uma grande abstração das relações sociais, prestando-se ao espaço de uma realidade social inventada, exatamente aquela que correspondia aos estudos da sociologia aplicada. Esse espaço, formado por nós e conexões, ou seja, o espaço da rede (LATOUR, 2015LATOUR, Bruno. Some Experiments in Art and Politics. In: ARANDA, Julieta et al. The Internet Does Not Exist. Berlin: Sternberg Press, 2015. p. 40-53.; CHUN, 2018CHUN, Wendy Hui Kyong. Updating to Remain the Same: Habitual New Media. Cambridge: The MIT Press, 2018.), está sujeito à manipulação, seja por administradores públicos, seja por algoritmos específicos. Um resultado imprevisto, portanto, é o reforço da convivência em torno a grupos que, pelo incentivo mútuo aos indivíduos, suspende as travas sociais que impedem manifestações de raiva, ódio e injúria social.
Esse aspecto torna a interação nas redes sociais propícia ao shaming ou linchamento virtual. O caso paradigmático dessa prática é o de Justine Sacco, estadunidense que, em 2013, antes de embarcar num voo para a África do Sul, publicou tweet com comentário racista cuja repercussão o alçou, nas dez horas entre o embarque e a chegada em Johannesburgo, a trending topic no Twitter. O que chama a atenção é a desproporção entre a figura pública de Sacco, que até então tinha apenas 170 seguidores na rede social, e a comoção causada pela publicação, que converteu um comentário desastrado em declaração mal-intencionada. Como em muitos outros casos depois desse, a recepção para além do contexto original foi decisiva para a repercussão alcançada pelo caso (RONSON, 2015RONSON, Jon. Humilhado: como a era da internet mudou o julgamento público. São Paulo: Best Seller, 2015.).
No Brasil, algumas dessas situações foram analisadas por Francisco Bosco, que as relaciona ao lugar de proeminência que as pautas identitárias alcançaram no cenário político e nas redes sociais após as manifestações de 2013 (BOSCO, 2017BOSCO, Francisco. A Vítima tem sempre razão? As lutas identitárias e sua articulação no novo espaço público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017.). Para o autor, essas controvérsias manifestam a existência de um "novo espaço público" no país, caracterizado pela confluência das revoltas de junho de 2013, pelo colapso do lulismo e pela consequente emergência de dissensões em torno e além da esquerda, além da ascensão das redes sociais como espaço de posicionamento político (BOSCO, 2017BOSCO, Francisco. A Vítima tem sempre razão? As lutas identitárias e sua articulação no novo espaço público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017., loc. 72) - seria necessário mencionar a força obtida pela direita através do mesmo conjunto de fenômenos analisado pelo autor (PEREIRA, 2015PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 863-902, 2015.). "Para além dos protestos", destaca o autor,
esse novo espaço público comprovou-se dotado de características próprias: democratização do acesso à fala pública; relativização da produção da realidade feita pelas corporações de mídia; autoedição das informações do mundo inteiro; facilitação da auto-organização de movimentos sociais; tensionamento da política institucional, tentando abrir-lhe brechas; e, sobretudo para o interesse desse ensaio, mobilização da sociedade para lutas de reconhecimento, que em âmbito digital são disputas por corações e mentes, mais do que tentativas de transformação institucional imediata (BOSCO, 2017BOSCO, Francisco. A Vítima tem sempre razão? As lutas identitárias e sua articulação no novo espaço público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017., loc. 904).
Por esse mesmo motivo, é importante retomar o caráter reprodutivo, "metamidiático", assumido pelas redes sociais ao longo daqueles eventos e posteriormente na dinâmica social condicionada por elas. No caso, as versões apresentadas pelas grandes companhias de mídia eram reproduzidas, comentadas e questionadas pelos usuários, o que mostra uma desconfiança da mediação, embora manifeste também a permanência de seu poder para pautar as discussões propostas (GROYS, 2012GROYS, Boris. Under Suspicion: A Phenomenology of Media. New York: Columbia University Press, 2012.). Que essa desconfiança da mediação encontre espaço em outra mídia - as redes sociais - demonstra o caráter transparente e evidente que elas assumem para o debate. Nesse sentido, elas apontam a insuficiência do quadro teórico da esfera pública para abordar os novos espaços públicos surgidos com as tecnologias digitais.
Sem fazer referência à discussão sobre a esfera pública, algumas dessas questões foram abordadas recentemente por Martha Nussbaum em seu trabalho sobre a raiva e a injúria social numa perspectiva filosófica (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016.). Seu argumento principal é que a raiva é normativamente problemática, pois ela se insere no horizonte da revanche, humilhação e narcisismo que é antitético às possibilidades mais elevadas da convivência social (NUSSBAUM, 2016, p. 6). Antes de retomar esse ponto, é interessante aproximar a caracterização da raiva e aquilo que chamo, na falta de melhor termo, de controvérsia.
Com base na autora, pode-se compreender a controvérsia como motivada pela raiva pública, no sentido em que ambas partem da percepção - justificada ou não - de uma ofensa, ao que se segue a tentativa de aumentar a consciência da injúria, mobilizando outros indivíduos para que se sintam igualmente ofendidos. O passo seguinte é forçar a retratação da pessoa que causou a ofensa, fazendo-lhe sentir vergonha. O público assim constituído é tanto acusador quanto juiz, o que frequentemente levanta dúvidas sobre as motivações e as consequências de tais disputas. Trata-se, é necessário lembrar, de um processo que apenas muito raramente alcança a esfera institucional, ocorrendo à margem do sistema jurídico legal.
Para Nussbaum, ainda que a raiva seja um dos afetos humanos e possa, eventualmente, ter outras funções que não a revanche e a vitória moral sobre o outro - ela pode servir de alerta para a ocorrência de uma injúria ou como motivação para atacá-la, assim como servir de meio para evitar que outra falta aconteça -, no quadro estabelecido pela autora, a raiva é sempre perversa caso ela permaneça focada na ação passada, e não na sua superação no futuro (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 13). Essa percepção provém de duas fontes: primeiro, o quadro normativo da reflexão da autora e, em segundo, o pressuposto que serve de mote para sua reflexão, qual seja, a superação da raiva e, logo, da vingança como condição fundamental para a institucionalização da justiça (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 4-5). Uma sociedade avançada, cujas instituições funcionam plenamente, a qual possui espaços de discussão comuns e alta coesão social, depreende-se da leitura da autora, não deveria possibilitar que a raiva florescesse.
Tal pressuposto torna a reflexão de Nussbaum sobre a raiva e o ódio menos produtiva no contexto atual. Os problemas colocados pela interação nas redes sociais atacam o cerne da reflexão sobre a esfera pública e o pressuposto de uma convivência social na qual a emoção cede espaço à razão. Fora da conceituação normativa da autora, os afetos são constantemente mobilizados na vida pública (AHMED, 2004AHMED, Sara. The Cultural Politics of Emotions. Edinburgh: Routledge, 2004.; SAFATLE, 2016SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Autêntica, 2016.); além disso, a controvérsia é um desentendimento no sentido que Jacques Rancière dá à palavra, isto é, uma discussão sobre o que conta como pergunta, os limites do que pode ser questionado e o caráter do que constitui o mundo comum da experiência intersubjetiva, e não uma discussão sobre as respostas ou propostas para alterar uma situação (RANCIÈRE, 1996RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento - política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.). O desentendimento expõe visões de mundo opostas e estão necessariamente vinculados a agentes e agrupamentos sociais e políticos específicos que os compartilham. A categoria já pressupõe uma esfera pública fragmentada e conflitiva, mas, ao mesmo tempo, plural.
A mobilização dos afetos, entretanto, nem sempre é negativa. Da mesma maneira, existem controvérsias e controvérsias. Embora a linha frequentemente seja tênue, os debates analisados por Francisco Bosco no interior da esquerda nos quais a pauta identitária é o eixo norteador são muito diferentes da mobilização política do ódio, frequentemente pela manipulação de algoritmos, que caracteriza os ataques das milícias digitais da extrema direita, como atestam os casos envolvendo as jornalistas Vera Magalhães e Patrícia Campos Mello, do Estadão e da Folha de São Paulo, respectivamente.2 2 Os dois casos se referem à atuação de "milícias digitais" ligados ao presidente Jair Bolsonaro. A jornalista Patrícia Campos Mello foi atacada durante transmissão ao vivo no canal de Facebook do presidente após seu depoimento na CPMI das Fake News, em 11 de março de 2020; Vera Magalhães, por sua vez, também foi mencionada em live presidencial no mesmo mês, após divulgar a movimentação do presidente Jair Bolsonaro em direção a manifestação contrária aos demais poderes no dia 31 de março. No caso de Mello, Bolsonaro repercutiu insinuação de que a apuração da matéria ocorreu em troca de favores sexuais, enquanto no caso de Magalhães, ele a chamou de "mentirosa" por seu trabalho como jornalista. Nos dois exemplos, na sequência das declarações, inverídicas e/ou caluniosas, foi gerado intenso volume de publicações atacando as duas jornalistas, alçando os temas aos trending topics do Twitter, por exemplo através da hashtag #VeraFakeNews, mobilizada por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Os dois casos são exemplares da atuação desses grupos digitais de apoiadores na difusão do ódio político mobilizados por uma determinada figura, como o próprio presidente. Vale lembrar que Patrícia Campos Mello já havia sido atacada pelos grupos digitais de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no contexto das eleições de 2018, quando ela revelou, em reportagem da Folha de São Paulo, a existência de esquema de pagamento de R$ 12 milhões por rede de empresários para financiar a propagação de fake news favoráveis ao então candidato (MELLO, 2018). Não obstante a mesma estrutura de acusação, humilhação, resposta e retratação estar em funcionamento, os primeiros são debates orgânicos, enquanto os últimos são resultado de intervenções específicas. Enquanto os primeiros são parte de uma esfera pública conflitiva, os últimos procuram instrumentalizá-la, fragmentando-a ainda mais. Em ambos os casos, porém, trata-se de uma institucionalidade manqué, pouco aberta à discussão ou à possibilidade de alteração de suas próprias regras de condução do debate.
Não é possível, portanto, afirmar que a internet se livrou dos intermediários em busca de uma comunicação direta entre os indivíduos, por exemplo na relação mais próxima entre eleitores e representantes políticos. Pode-se afirmar, contudo, que ela "opera num espaço público no qual particularmente os intermediários democráticos perderam sua influência" (BOHMAN, 2004BOHMAN, James. Expanding Dialogue: The Internet, the Public Sphere and Prospects for Transnational Democracy. In: CROSSEY, Nick; ROBERTS, John Michael (Eds.). After Habermas: New Perspectives on the Public Sphere. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2004. p. 131-154., p. 141). Entre esses intermediários democráticos, pode-se citar todo o aparato que assegurava a congruência entre o Estado-nação e seus cidadãos por meio dos mecanismos da democracia representativa e de uma paisagem midiática cuja comunicação ocorria, na maioria das vezes, em mão única. A insuficiência das abordagens, como a de Bosco, que pressupõem o enquadramento teórico da esfera pública habermasiana, ainda que para contradizê-lo a partir da elaboração de categorias originais, como "novo espaço público", é que a fragmentação e a multiplicação de espaços de discussão são vistas como um problema que precisa ser solucionado. Com isso, a demanda política da unificação dos discursos para a apresentação de um plano de ação é sobreposta ao entendimento do funcionamento das redes sociais, obscurecendo-o. Ganha-se mais, é o que proponho aqui, caso se entenda que não existe espaço de discussão primordial - a esfera pública - que precisa ser unificado. A via negativa que considera a dissolução da esfera pública tal como concebida por pensadores como Habermas pode ser contraposta à concepção positiva que mostra, como faz Nancy Fraser, citada na primeira seção deste artigo, todas as limitações que condicionavam estruturalmente esse conceito.
É interessante contrapor a dinâmica dessas controvérsias às acusações de fake news que povoam a prática política contemporânea. Principalmente quando utilizadas em resposta a uma acusação, as denúncias de fake news se relacionam à noção de "pós-verdade", através da qual o sujeito procura colocar em dúvida a existência do fato levantado publicamente, tecendo uma trama discursiva tão cerrada a seu redor que termina por torná-lo nebuloso e contestado. Sem debater a fundo os conceitos apresentados - fake news e "pós-verdade" -, bastante aptos a apropriações políticas por interesses e grupos diversos, é possível concebê-los como formas de reivindicar a revogabilidade dos atos políticos, desconectando o sujeito de seus atos. A controvérsia, nesse sentido, não deixa de ser uma militância da memória, mostrando que o passado tem consequências sobre o presente.
O PERDÃO SUSPENSO
Gostaria de avançar nessa relação entre controvérsia e memória, de modo a oferecer outro entendimento dos problemas da discussão pública online. Minha proposta é que a controvérsia de internet encena uma situação similar ao perdão, embora em sentido contrário. Assim como o perdão, falta à controvérsia a proporcionalidade contextual entre o ato e sua repercussão ou consequência, o que retira ambos da esfera da justiça distributiva; o perdão e a controvérsia, além disso, dificilmente se inscrevem no âmbito jurídico, mantendo relações dificultosas com o sistema legal. Ao contrário do perdão, contudo, a controvérsia não busca desligar o sujeito de uma falta cometida, mas reinscrever a ação numa demanda de responsabilidade que, justa ou não, transforma em faltosa uma ação que não era assim considerada, reconectando o indivíduo aos seus atos. Assim, o tempo presente é ligado ao passado, o que é facilitado seja pela exposição pública na internet, seja pela permanência do efêmero que consigna às novas tecnologias, uma vez inseridas no jogo social, a faculdade do não-esquecimento, uma espécie de anamnese digital. "A internet", diz o popular ditado, "não perdoa".
Nas últimas décadas, tornaram-se recorrentes os pedidos de perdão feitos por líderes políticos e religiosos. Trata-se de uma ação realizada no plano simbólico, cuja eficácia varia de caso a caso e situação a situação. O pedido de desculpas formal pelo Estado brasileiro com relação às vítimas da ditadura civil-militar, nunca realizado, é um ato que transcenderia o simbolismo, uma vez que tornaria eficazes as conclusões da Comissão Nacional da Verdade e abriria precedente para a tão necessária revisão da Lei da Anistia de 1979. Outras ocasiões, porém, levaram a indagações sobre qual o significado do perdão na geopolítica internacional, se esses pedidos não sustentam uma assimetria que lhes antecede e nunca é questionada; se entidades políticas são dotadas de personalidade para pedi-lo; se eles contribuem realmente para os processos de revisão da memória e reparação pelos danos cometidos; se eles melhoram a situação das vítimas no presente; e, por fim, se o perdão pode ser efetivamente requisitado (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.; FISKESJÖ, 2003FISKESJÖ, Magnus. The Thanksgiving Turkey Pardon, the Death of Teddy’s Bear, and the Sovereign Exception of Guantánamo. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2003. ). Entre um e outro caso, o que ressalta é a diferença entre essas ações ao nível da nação e para além dela, entre países diferentes. Políticas de memória e reparação estão ligadas a alguma capacidade executiva que ainda está distante das instituições globais. Apesar da ocorrência de catástrofes que atravessam os limites de várias nações, as respostas ainda são responsabilidade de países específicos (ASSMANN; CONRAD, 2010ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian. Introduction. In: ASSMANN, Aleida; CONRAD, Sebastian (Eds.). Memory in a Global Age - Discourses, Practices and Trajectories. London: Palgrave Macmillan, 2010. p. 1-16., p. 12).
Ou, pensando com Paul Ricoeur, talvez a questão seja a dificuldade em estabelecer instituições do perdão (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 476). Não obstante as comissões para julgarem processos de transição terem adicionado o termo reconciliação às suas atribuições após o exemplo da África do Sul, resta a dúvida sobre a efetiva capacidade dessas medidas, desde a reparação material com relação a injustiças sofridas até à sinceridade dos pedidos de perdão dos perpetradores (SOYINKA, 1999SOYINKA, Wole. The Burden of Memory, The Muse of Forgiveness . Oxford: Oxford University Press, 1999.). O perdão é paradoxal ante à comunidade política, pois ele transcende a pena criminal, desligando o sujeito de seus atos. Ele levanta a sanção contra o indivíduo - e não existem instituições capazes de tratarem isso no âmbito de uma política de memória, embora possa ser realizado no debate público.
O perdão também é um problema temporal, no sentido em que desafia uma compreensão do tempo pautada pela sucessão entre passado, presente e futuro. Ele se torna mais agudo no contexto da justiça de transição, já trabalhada por Berber Bevernage, uma vez que embaralha as noções de irrevogabilidade e imprescritibilidade (BEVERNAGE, 2012BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence. London: Routledge, 2012. , p. 4-5). Inicialmente discutidas por Vladimir Jankélévitch, as duas se relacionam a partir da constatação de que, apesar do reconhecimento da impossibilidade de inverter o andar do tempo, desfazendo um ato ou evitando que ele seja cometido, deve-se reconhecer que algo do passado permanece no presente. No caso de violências históricas, a imprescritibilidade garante a reverberação desses acontecimentos, que se tornam passíveis de punição mesmo após o esgotamento do prazo legal inicialmente estabelecido para seu julgamento. O presente, assim, torna-se o palco de demandas de reparação e justiça de passados diversos; na internet, elas também se tornam o local de condenação e conflitos.
Para Jankélévitch, que se debruçou atentamente sobre a relação entre perdão e temporalidade, o perdão é um acontecimento significativo, o qual rompe com a duração em favor do instante; o perdão também implica o reconhecimento mútuo entre a vítima e o perpetrador, algo que a própria dinâmica da ofensa já negara anteriormente quando o perpetrador a cometera; por fim, o perdão é um "dom", no sentido de que escapa, como já mencionei aqui, à justiça distributiva (JANKÉLÉVITCH, 2005JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Forgiveness. Chicago: The University of Chicago Press, 2005., p. 55). Por isso, e um tanto quanto paradoxalmente, o principal teste do perdão é, como lembra Jacques Derrida, o imperdoável (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness. London, New York: Routledge, 2001. , p. 32). O "excesso" ligado ao perdão, através do qual aquilo que não merece ser perdoado é perdoado, torna-o jurídica e publicamente instável; da mesma forma, o perdão termina por escapar à justiça, assim como à verdade, uma vez que o imperdoável pode englobar o ilegal, o imoral e o inaceitável, ainda que imperdoável e imprescritível não sejam sinônimos (DERRIDA, 2001, p. 33). Aproximando da controvérsia, é necessário lembrar que a mesma dinâmica ocorre em causas "justas" e "injustas", a depender da concepção e identidade política de quem os avalia. Nesse sentido, as denúncias apresentadas no movimento do #MeToo em final de 2017 e os ataques, aos quais não faltou boa dose de misoginia, às jornalistas Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães por milícias digitais bolsonaristas, entre 2019 e 2020, são exemplos do mesmo fenômeno. Todos esses exemplos são ocasiões controversas e todas elas implicam, ainda que pelo avesso, a mesma demanda de justiça extralegal que as confunde, muitas vezes, com o justiçamento.
Em todo caso, como lembra Derrida, também a partir de Jankélévitch, o perdão se aproxima da punição, uma vez que só é perdoável o que pode ser punido - o perdão é justamente levantar a sanção contra alguém que a mereceria ou deveria recebê-la (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. On Cosmopolitanism and Forgiveness. London, New York: Routledge, 2001. , p. 32). Assim, o perdão trabalha entre os polos do condicional, quando inscrito numa dinâmica institucional através da qual resulta uma consequência direta dele, e do incondicional, quando se refere ao ato, à decisão da vontade separada de qualquer expectativa, tal como idealizado por Jankélévitch (JANKÉLÉVITCH, 2005JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Forgiveness. Chicago: The University of Chicago Press, 2005., p. 5; DERRIDA, 2001, p. 65). É isso que torna o perdão, nas palavras de Ricoeur, "difícil".
Apesar do caráter problemático - ética e politicamente - dos exemplos de controvérsias recém-mencionadas, gostaria de concluir esta contribuição aprofundando a homologia estrutural entre a dinâmica que as caracteriza e o perdão. De certo modo, frente aos ataques que semelhantes situações sofrem nas avaliações políticas mais prag máticas, gostaria de esboçar uma defesa de sua realização que é resultante, pode-se dizer, de uma visão epistemologicamente mais generosa a seu respeito. Ignoradas as ocasiões indefensáveis, como os ataques às jornalistas Vera Magalhães e Patrícia Campos Mello mencionados acima, trata-se de inserir os exemplos mencionados numa economia do discurso que obedece a novos padrões e princípios, os quais acompanharão nossa vida política - infelizmente nem sempre democrática - por algum tempo e se tornarão problemas também para a historiografia. O enquadramento teórico da controvérsia a partir de sua similaridade à problemática do perdão se encerrará com o tema que foi negligenciado nas últimas páginas, o esquecimento.
Uma possibilidade de repensar essas ocasiões é por meio da reinscrição que elas fazem de ações que, agora, são consideradas faltosas. Novamente, a recuperação de publicações nas redes sociais e, por mais distante que pareça, a exposição pública de ações passadas, cujo caso mais emblemático e significativo é o #MeToo e outras campanhas online que, ao menos no Brasil eram mobilizadas desde 2015 no âmbito do feminismo, como #meuprimeiroassedio e #meuamigosereto, buscam realizar isso (REIS, 2017REIS, Josemira Silva. Feminismo por hashtags: as potencialidades e os riscos que compõem o ciberfeminismo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNEROO 11 & 13TH WOMEN’S WORLDS, 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis, 2017, Anais eletrônicos. Disponível em: < http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503731675_ARQUIVO_josemirareis_fazendogenerov2.pdf >. Acesso em: 22 out. 2020.
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O movimento #MeToo foi iniciado em outubro de 2017 após as denúncias, posteriormente confirmadas, de assédio sexual contra o produtor Harvey Weinstein, em Hollywood. Primeiramente focado no mundo do cinema, o movimento ganhou forte ressonância social em outros espaços, ressaltando o sexismo e machismo estruturais em áreas diversas da política, da sociedade e da cultura. De certa forma, o #MeToo pode ser visto como o auge da mobilização online do feminismo, que desde o início dos anos 2010 obteve grande expressão. No Brasil, parte dessas manifestações ocorreu na sequência dos protestos de 2013, com a formação e o fortalecimento de coletivos de mulheres. No contexto nacional, as mobilizações mais visíveis nas redes sociais ocorreram em 2015, quando o coletivo Think Olga lançou a hashtag #MeuPrimeiroAssedio, ressaltando as ocasiões de violência sexual experienciadas cotidianamente por mulheres. Uma segunda hashtag, #MeuAmigoSecreto, destacou a violência psicológica sofrida por mulheres na tênue linha entre os espaços público e privado. O trabalho de Josemira Silva Reis (2017) oferece uma bela contextualização e problematização deste tipo de prática, cuja importância, no entanto, não pode ser colocada em dúvida.
Todos esses exemplos estão ligados a uma concepção performativa, e nem sempre institucional, da demanda por reconhecimento e reparação (FELMAN, 2014FELMAN, Shoshana. O Inconsciente jurídico: traumas e julgamentos do século XX. Lisboa: Edipro, 2014.), o que é compreensível quando a legislação ainda luta para reconhecer muitos dos acontecimentos que os motivaram como crimes, como se verifica nos processos ligados às demandas do feminismo. Frente a isso, a condenação usual é a descontextualização ou insuficiência de provas, a qual acaba por confundir as acusações com seu correspondente judicial. Embora as acusações devam levar a seu próprio processo de revisão e entendimento a respeito das circunstâncias que as motivaram, de modo a garantir o mínimo de sociabilidade democrática e garantia de respeito às liberdades individuais - novamente penso nos exemplo dos ataques às jornalistas mencionados acima - deve-se compreender que se trata justamente da irrupção dessas experiências no espaço público, a qual assume aspecto de confronto porque a fala desses agentes não estava prevista nas possibilidades de discurso prévias a sua ocorrência. São falas, portanto, propositadamente fora de contexto, da mesma maneira que o imprescritível permanece no presente apesar de irrevogável.
Quanto a isso, nos casos em que a controvérsia traz a permanência ou a recuperação da temporalidade passada, o que está em julgamento é o caráter de uma ação e do sujeito que a cometeu, transformando um ato que anteriormente não tivera consequências numa ação que, agora, é considerada faltosa. Por esse motivo, ainda que as controvérsias ocorram no presente e sejam um sintoma de sua crescente aceleração (TURIN, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Copenhagen: Zazie, 2019.), elas também são práticas de memória. São práticas de memória de um tempo que consome o passado e o devolve como presente, sob o signo da ausência de futuro, de maneira cada vez mais rápida.
Assim concebida, creio que a controvérsia mostra a apropriação social do que seria, de outro modo, apenas excesso de informação. Essas demandas se avolumam pela utilização das redes sociais. Através de hashtags, elas constituem um arquivo instantâneo e tornam possível perceber a dimensão estrutural de questões anteriormente pessoais, como o abuso e a violência sexuais, assim como, à maneira personalista em que a discussão ocorre nas redes sociais, compreende questões estruturais como estritamente pessoais. Por fim, elas mostram a dificuldade de estabelecer a equação entre a sobrevida dos dados e a necessidade de esquecimento advogada por autores como Viktor Mayer Schönberg, mencionado na introdução.
Qualquer política de esquecimento na internet é uma política de esquecimento forçado - ingênua quando nostálgica de uma época em que lembrar parecia mais natural, danosa quando concede ao apagamento dos rastros a possibilidade de configurar novas memórias. Essas propostas pecam por compartilharem o mesmo pressuposto que os partidários da memória infinita dos computadores, pois ambos igualam memória e informação. Com isso, eles percebem o âmbito da memória humana sendo invadido ou tornado obsoleto pelas tecnologias digitais, o que somente reforça a oposição conceitual entre ambas. Entretanto, como tentei mostrar aqui, o armazenamento e a recuperação de informações entrelaçam-se com a dinâmica social da recordação, às vezes de maneira explosiva, e não é possível ignorar o papel que os aparelhos técnicos possuem em nossas atividades de lembrança, seja facilitando a exposição de memórias traumáticas, seja contribuindo para a ligação entre ação e sujeito, que é o perpetrador, intencional ou não, de uma falta passada.
As políticas de memória são também políticas do tempo. Elas envolvem a possibilidade de uma memória feliz. Porém, como afirma Paul Ricoeur, não existe esquecimento pleno e, no máximo, o esquecimento é apenas um componente da memória, uma contraparte da recordação (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 511). Do mesmo modo, não existe perdão fácil e, sobretudo, como destaca o filósofo francês, somente outro pode perdoar: a própria vítima (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 486). A restituição do ato ao sujeito muitas vezes é acompanhada de pedidos de desculpa cuja sinceridade é tão questionável quanto os pedidos de perdão no cenário internacional. Não é possível medir a sinceridade de um ato, assim como é difícil a superação sem elaboração. Mas se a controvérsia e o perdão são semelhantes, o que tentei mostrar ao longo deste artigo, então vale recordar a vinculação que outro filósofo francês - Jankélévitch - estabelece entre o perdão e o reconhecimento (JANKÉLÉVITCH, 2005JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Forgiveness. Chicago: The University of Chicago Press, 2005., p. 7). Se a controvérsia frequentemente nega à vítima o direito de agência, procurando calá-la - a exemplo, mais uma vez, dos ataques à liberdade de atuação dos jornalistas -, ela também pode ser compreendida, como ilustram as demandas de reconhecimento e reparação de indivíduos pertencentes a grupos minoritários, enquanto uma restituição à vítima do privilégio de conceder (ou não) o perdão, de modo a recuperar a capacidade de deliberar sobre seu destino. Como afirma Ricoeur, "é em nossa capacidade de regrar o curso do tempo que parece poder ser haurida a coragem de pedir perdão" (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 511), mas, eu adicionaria, também em concedê-lo. Não haveria nesse momento limiar, um entretempo, nesse "perdão suspenso", uma retomada da palavra pela vítima, agora dotada da capacidade de decisão, senão a respeito de sua vida, ao menos sobre aquela de seu malfeitor?4 4 Sobre o assunto, é necessário acrescentar a relação da reflexão de Martha Nussbaum sobre o perdão e o argumento aqui desenvolvido. A filósofa norte-americana revisita a tradição judaica e cristã, distinguindo-as, de modo a estabelecer três categorias distintas: o perdão transicional, o perdão incondicional e o amor incondicional (NUSSBAUM, 2016, p. 60). Movendo-se entre o contexto altamente formalizado do perdão na tradição judaica para seu caráter menos definido, mas não por isso menos importante, na prática cristã, ela considera negativamente ponto que Jacques Derrida e, antes dele, Vladimir Jankélévitch já haviam considerado, qual seja, a semelhança entre o perdão e a pena (NUSSBAUM, 2016, p. 77). Por esse motivo, ela considera que o perdão, mesmo incondicional, é inadequado como resposta pública a injúrias pessoais, uma vez que, se o perdão e a pena compartilham, como digo aqui, certa homologia estrutural, então se trata nada mais do que uma forma de vingança. Existe um ponto problemático na sua condenação do perdão e escolha pelo "amor incondicional" como modelo de resposta, que é o fato da punição também ser prevista no sistema jurídico que a autora celebra. Assim, o perdão incondicional cristão não seria somente um reverso da pena, mas também poderia ser uma possibilidade incorporada no próprio caráter transicional das respostas oferecidas pelo sistema jurídico. Um exemplo é a prestação de serviços comunitários em troca da sentença de confinamento numa prisão. De qualquer forma, Nussbaum considera que o "amor incondicional", presente na tradição paulina do cristianismo, é uma resposta melhor que o perdão, principalmente por reconhecer a vulnerabilidade do outro (NUSSBAUM, 2016, p. 88-89). Quanto a isso, apesar das confusões terminológicas, o "amor incondicional" de Nussbaum é o equivalente do "perdão incondicional" de Jankélévitch.
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Entendo que "a internet" é um fenômeno muito mais amplo do que a World Wide Web, com a qual comumente se confunde, e tampouco se identifica necessariamente com as redes sociais. Para efeitos deste texto, no entanto, utilizarei a expressão como sinônimo de ambas, uma vez que o foco é a dinâmica social e política exposta nas redes sociais, possibilitadas a partir das alterações surgidas no bojo da chamada "Web 2.0" no começo dos anos 2000, as quais enfatizam o papel das plataformas online, a produção de conteúdo e a interação entre usuários, mimetizando a vivência social. Existe uma ampla bibliografia sobre o assunto, da qual mencionarei apenas a leitura crítica de Geert Lovink (2015).
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Os dois casos se referem à atuação de "milícias digitais" ligados ao presidente Jair Bolsonaro. A jornalista Patrícia Campos Mello foi atacada durante transmissão ao vivo no canal de Facebook do presidente após seu depoimento na CPMI das Fake News, em 11 de março de 2020; Vera Magalhães, por sua vez, também foi mencionada em live presidencial no mesmo mês, após divulgar a movimentação do presidente Jair Bolsonaro em direção a manifestação contrária aos demais poderes no dia 31 de março. No caso de Mello, Bolsonaro repercutiu insinuação de que a apuração da matéria ocorreu em troca de favores sexuais, enquanto no caso de Magalhães, ele a chamou de "mentirosa" por seu trabalho como jornalista. Nos dois exemplos, na sequência das declarações, inverídicas e/ou caluniosas, foi gerado intenso volume de publicações atacando as duas jornalistas, alçando os temas aos trending topics do Twitter, por exemplo através da hashtag #VeraFakeNews, mobilizada por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Os dois casos são exemplares da atuação desses grupos digitais de apoiadores na difusão do ódio político mobilizados por uma determinada figura, como o próprio presidente. Vale lembrar que Patrícia Campos Mello já havia sido atacada pelos grupos digitais de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no contexto das eleições de 2018, quando ela revelou, em reportagem da Folha de São Paulo, a existência de esquema de pagamento de R$ 12 milhões por rede de empresários para financiar a propagação de fake news favoráveis ao então candidato (MELLO, 2018MELLO, Patrícia Campos. Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 out. 2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios- bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml >. Acesso em: 13 ago. 2020.
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O movimento #MeToo foi iniciado em outubro de 2017 após as denúncias, posteriormente confirmadas, de assédio sexual contra o produtor Harvey Weinstein, em Hollywood. Primeiramente focado no mundo do cinema, o movimento ganhou forte ressonância social em outros espaços, ressaltando o sexismo e machismo estruturais em áreas diversas da política, da sociedade e da cultura. De certa forma, o #MeToo pode ser visto como o auge da mobilização online do feminismo, que desde o início dos anos 2010 obteve grande expressão. No Brasil, parte dessas manifestações ocorreu na sequência dos protestos de 2013, com a formação e o fortalecimento de coletivos de mulheres. No contexto nacional, as mobilizações mais visíveis nas redes sociais ocorreram em 2015, quando o coletivo Think Olga lançou a hashtag #MeuPrimeiroAssedio, ressaltando as ocasiões de violência sexual experienciadas cotidianamente por mulheres. Uma segunda hashtag, #MeuAmigoSecreto, destacou a violência psicológica sofrida por mulheres na tênue linha entre os espaços público e privado. O trabalho de Josemira Silva Reis (2017) oferece uma bela contextualização e problematização deste tipo de prática, cuja importância, no entanto, não pode ser colocada em dúvida.
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Sobre o assunto, é necessário acrescentar a relação da reflexão de Martha Nussbaum sobre o perdão e o argumento aqui desenvolvido. A filósofa norte-americana revisita a tradição judaica e cristã, distinguindo-as, de modo a estabelecer três categorias distintas: o perdão transicional, o perdão incondicional e o amor incondicional (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 60). Movendo-se entre o contexto altamente formalizado do perdão na tradição judaica para seu caráter menos definido, mas não por isso menos importante, na prática cristã, ela considera negativamente ponto que Jacques Derrida e, antes dele, Vladimir Jankélévitch já haviam considerado, qual seja, a semelhança entre o perdão e a pena (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 77). Por esse motivo, ela considera que o perdão, mesmo incondicional, é inadequado como resposta pública a injúrias pessoais, uma vez que, se o perdão e a pena compartilham, como digo aqui, certa homologia estrutural, então se trata nada mais do que uma forma de vingança. Existe um ponto problemático na sua condenação do perdão e escolha pelo "amor incondicional" como modelo de resposta, que é o fato da punição também ser prevista no sistema jurídico que a autora celebra. Assim, o perdão incondicional cristão não seria somente um reverso da pena, mas também poderia ser uma possibilidade incorporada no próprio caráter transicional das respostas oferecidas pelo sistema jurídico. Um exemplo é a prestação de serviços comunitários em troca da sentença de confinamento numa prisão. De qualquer forma, Nussbaum considera que o "amor incondicional", presente na tradição paulina do cristianismo, é uma resposta melhor que o perdão, principalmente por reconhecer a vulnerabilidade do outro (NUSSBAUM, 2016NUSSBAUM, Martha. Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 88-89). Quanto a isso, apesar das confusões terminológicas, o "amor incondicional" de Nussbaum é o equivalente do "perdão incondicional" de Jankélévitch.
AGRADECIMENTOS
Este texto integra pesquisa de pós-doutorado financiada pela Fapesp (projeto 2019/15223-1).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Fev 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
-
Recebido
25 Maio 2020 -
Revisado
01 Set 2020 -
Aceito
04 Set 2020