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Menina desaparecida: Prostituição transnacional e tráfico humano (c. 1890-1910)

Missing Girl: Transnational Prostitution and Human Trafficking (c. 1890-1910)

LAITE, Julia. The Disappearance of Lydia Harvey. : A True Story of Sex, Crime and the Meaning of Justice. Londres: Profile, 2021

Obra resenhada:

LAITE, Julia. The Disappearance of Lydia Harvey: A True Story of Sex, Crime and the Meaning of Justice. Londres: Profile, 2021.

De tempos em tempos, a prostituição ganha novas abordagens historiográficas, frequentemente alimentadas pelo debate público e o alimentando. Desde o século XIX, as ciências sociais lançaram seu olhar para a prostituição, colonizando-a, transformando-a em objeto de investigação, muitas vezes na esteira da medicina social e das ciências jurídicas. A própria ideia de organizar livros de histórias da prostituição se difundiu nas atividades editoriais e acadêmicas em diversas partes do mundo daquele século em diante.

A historiografia acadêmica, no entanto, ocupou-se de modo detido da prostituição mais tardiamente, com a explosão dos “novos” objetos da história, a partir da década de 1970. De imediato, a perspectiva da história social povoou as publicações sobre o tema, sendo acompanhada pela crescente importância da abordagem cultural. No Brasil, podemos citar os trabalhos clássicos de Magali Engel (1989)ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989. e Margareth Rago (1991)RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 1991., que exploraram os problemas das representações e da produção de interdições sociais e segregações morais. No início da década de 2000, no campo da história social, destaca-se o trabalho de Cristiana Schettini (2006)SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: Uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. sobre o papel ativo de prostitutas em busca de seus direitos civis nas primeiras décadas republicanas.

Recentemente, uma nova abordagem historiográfica tem interessado historiadoras e historiadores de diferentes áreas: a transnacional. Partindo desse ponto de vista, Schettini (2014)SCHETTINI, Cristiana. Conexiones transnacionales: Agentes encubiertos y tráfico de mujeres en los años 1920. Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, v. 1, p. 1-25, 2014. vem produzindo reflexões sobre os trânsitos entre Brasil e Argentina de mulheres e homens envolvidos com o tráfico de mulheres e com a prostituição. Beatriz Kushnir (1996)KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: Mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996. já havia levantado a questão ao analisar a prostituição de imigrantes judias e sua relação com a Zwi Migdal. Ainda precisamos, no entanto, de um investimento de pesquisas desse tipo no interior do país, examinando o trânsito de mulheres e homens nos limites estaduais e internacionais, como aqueles da região centro-oeste (PEREIRA, 2019PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aguiar. Prostituição e polícia: Mulheres e homens na mira do policiamento moral em Belo Horizonte, MG, Brasil (c. 1920/1930). História (São Paulo), v. 38, e2019049, 2019., p. 19).

O livro The Disappearance of Lydia Harvey, de Julia Laite (2021), é um importante exemplo de uma abordagem transnacional da prostituição. A obra é resultado de anos de pesquisa em arquivos diversos na Inglaterra, na Nova Zelândia e na Argentina. Nela, a autora narra a trajetória de uma jovem de 17 anos que desapareceu no início de 1910, deixando para trás seu trabalho como assistente de fotografia na capital neozelandesa, Wellington. Após ter passado uma temporada em Buenos Aires, Lydia reapareceu em Londres, e seus registros foram encontrados nos Arquivos Nacionais, na seção da polícia londrina. A narrativa do livro elege o ponto de vista de diferentes sujeitos envolvidos com o tráfico de mulheres do início do século XX: a garota desaparecida, um investigador de polícia inglês, o jornalista neozelandês que cobriu o caso, a mulher que atuava no serviço social londrino, o raptador-cafetão e sua esposa.

Julia Laite (2021) apresenta ao leitor comum uma narrativa densa e simples. O livro descreve os detalhes possíveis do período histórico em diferentes cidades e contextos, apoiando-se em vasta documentação, como jornais, processos-crime e relatórios oficiais, com o objetivo de criar um cenário historiográfico que pudesse explicar as dinâmicas sociais e culturais complexas que envolvem esse pequeno caso. Em cada capítulo, a historiadora enfrentou desafios historiográficos específicos, ligados às histórias e aos arquivos locais, desenhando o problema transnacional do tráfico de mulheres. Primeiramente, a autora explora o problema do trabalho urbano no cotidiano de adolescentes e mulheres da Nova Zelândia na virada do século XIX para o XX, uma sociedade que passava por transformações tecnológicas e culturais. Em seguida, somos apresentados às políticas de policiamento da prostituição e dos bordéis londrinos, onde vigorava desde 1890 uma série de atos e instrumentos regulatórios. Tal como ocorrera em outros países, como Brasil e França (BERLIÈRE, 1992BERLIÈRE, Jean-Marc. La police de mœurs sous la IIIe République. Paris: Seuil, 1992.; PEREIRA, 2019PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aguiar. Prostituição e polícia: Mulheres e homens na mira do policiamento moral em Belo Horizonte, MG, Brasil (c. 1920/1930). História (São Paulo), v. 38, e2019049, 2019.), os policiais envolvidos com a repressão à prostituição na Inglaterra foram peças centrais de escândalos de corrupção e abuso de autoridade (LAITE, 2021, p. 83).

No terceiro capítulo, a autora se envolve com o debate historiográfico das representações na cultura impressa sobre as vítimas do tráfico de mulheres, evidenciando o sexismo e o racismo que permeavam a opinião pública (LAITE, 2021, p. 122-124). Em seguida, o quarto capítulo discute o problema do ponto de vista da assistência social e das ações do Estado em relação às mulheres e adolescentes “resgatadas” pela polícia (p. 155-156). Já o capítulo cinco se ocupa de um sujeito pouco explorado na historiografia: o cafetão. Apesar de figurar no imaginário da cultura popular e erudita sobre sexo, prazer, dinheiro, fama e modernidade, há poucos estudos que se dedicaram a compreender historicamente a emergência desse sujeito. Escrevendo sobre a trajetória de Antonio Carvelli, Laite (2021, p. 183) buscou responder à questão: como um indivíduo tido como modelo social se tornou um cafetão e um traficante de mulheres, trabalhando na crescente indústria do sexo do século XX? Em seguida, o sexto capítulo apresenta a trajetória de Vera Williams, esposa de Carvelli, abordando o problema da “prostituição voluntária” e da parceria travada pelo casal (p. 282-283). O capítulo final trata do retorno de Lydia Harvey para a Nova Zelândia, onde atuou como dançarina até se casar com um capitão de navio e se mudar para um subúrbio de Newcastle, na Austrália (p. 324). Como se já não bastassem os golpes da fortuna em sua adolescência, em 24 de junho de 1919, Lydia Harvey desapareceu para sempre, falecendo por complicações causadas pela gripe espanhola aos 26 anos (p. 345).

Por fim, teço dois comentários sobre a publicação. Metodologicamente, o trabalho explorou o problema do desaparecimento de uma adolescente do ponto de vista de uma investigação transnacional. Por isso, escolheu traçar características gerais dos problemas históricos referentes a cada sujeito social (meninas da classe operária, policiais, jornalistas, assistentes sociais, agentes da indústria do sexo e prostitutas). Como a tarefa é gigantesca, o texto encontra certa dificuldade em apresentar os diferentes cenários em que tais sujeitos se moveram, como as políticas internacionais de combate ao tráfico ou as políticas nacionais relacionadas à regulamentação da prostituição. Destaco a ausência das contribuições da historiografia sul-americana sobre o problema do tráfico de mulheres, da prostituição e da polícia, como os trabalhos de Cristiana Schettini (2014)SCHETTINI, Cristiana. Conexiones transnacionales: Agentes encubiertos y tráfico de mujeres en los años 1920. Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, v. 1, p. 1-25, 2014., Lila Caimari (2012)CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme: Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires (1920-1945). Buenos Aires: Siglo XXI, 2012. e Yvette Trochon (2006)TROCHON, Yvette. Las rutas de eros: La trata de blancas en el Atlántico Sur. Argentina, Brasil y Uruguay (1880-1932). Montevidéu: Taurus, 2006.. Esses apontamentos não tiram o mérito do livro. Só os menciono no sentido de reforçar os desafios do rigor historiográfico frente às dificuldades de se empreender esse tipo de investigação.

O último comentário é sobre a autora e os sentidos políticos de seu trabalho. Julia Laite é professora de história moderna na Universidade de Londres em Birkbeck. Seus interesses de pesquisa giram em torno da história da migração, da mulher, da sexualidade, da prostituição e da história pública. Essas ponderações não são fortuitas e nos informam sobre os sentidos do próprio livro, produzido em diálogo com movimentos feministas e destinado a um público não necessariamente especializado no tema. A autora se posiciona claramente, assim, contra as medidas estatais históricas e recentes de contenção da prostituição e do tráfico de mulheres. Laite (2021, p. 338-339) argumentou que há um vínculo entre as legislações voltadas para proteger as “meninas perdidas” e o fortalecimento do poder de decisão nas mãos de policiais e de buro-cratas da imigração, influenciando condenações morais e penais dos comportamentos sexuais de adolescentes e mulheres nesse último século.

Seu posicionamento político e metodológico a levou a concluir que o tráfico de mulheres, “longe de ser um crime específico que opera apartado da economia global do início do século 20, era completamente emaranhado a ela, além de ser um produto direto das suas desigualdades fundamentais”1 1 Trad. livre do autor: “Trafficking, far from being a distinct crime that operated apart from the early twentieth-century global economy, was completely entangled with it, and was a direct product of its fundamental inequalities”. (LAITE, 2021, p. 337). Entre as possíveis posturas políticas em relação ao problema, a autora se posiciona de forma contrária ao modelo histórico (ideológico e legal) de políticas de regulamentação do tráfico de pessoas e do encarceramento ou deportação das mulheres imigrantes (p. 342), uma vez que esse processo ignora as nuanças do problema. Enquanto a legislação foi pensada para garotas como Lydia Harvey, as medidas punitivas não fazem distinção, atingindo mulheres como Vera Williams, que escolheram viver do comércio sexual (p. 338). Para Laite, é preciso refletir sobre medidas de enfrentamento das condições globais de desigualdade que envolvem as diferentes escolhas das mulheres vítimas do tráfico humano (p. 343), considerando os desejos por “respeito e justiça”, como os de Lydia Harvey (p. 347).

  • 1
    Trad. livre do autor: “Trafficking, far from being a distinct crime that operated apart from the early twentieth-century global economy, was completely entangled with it, and was a direct product of its fundamental inequalities”.

REFERêNCIAS

  • CAIMARI, Lila. Mientras la ciudad duerme: Pistoleros, policías y periodistas en Buenos Aires (1920-1945). Buenos Aires: Siglo XXI, 2012.
  • BERLIÈRE, Jean-Marc. La police de mœurs sous la IIIe République. Paris: Seuil, 1992.
  • ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 1989.
  • KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: Mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aguiar. Prostituição e polícia: Mulheres e homens na mira do policiamento moral em Belo Horizonte, MG, Brasil (c. 1920/1930). História (São Paulo), v. 38, e2019049, 2019.
  • RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 1991.
  • SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: Uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
  • SCHETTINI, Cristiana. Conexiones transnacionales: Agentes encubiertos y tráfico de mujeres en los años 1920. Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, v. 1, p. 1-25, 2014.
  • TROCHON, Yvette. Las rutas de eros: La trata de blancas en el Atlántico Sur. Argentina, Brasil y Uruguay (1880-1932). Montevidéu: Taurus, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Revisado
    17 Ago 2022
  • Aceito
    21 Set 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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