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SALVIANI, Roberto. 2012. "Participação e desenvolvimento sustentável" no Brasil: a experiência da Itaipu Binacional. Coleção Antropologias. Rio de Janeiro: E-papers. 230 pp.

SALVIANI, Roberto. Participação e desenvolvimento sustentáve l" no Brasil: a experiência da Itaipu Binacional . Coleção Antropologias. 2012. E-papers, Rio de Janeiro

Em "Participação e desenvolvimento sustentável" no Brasil, Roberto Salviani elabora uma minuciosa reconstituição das estratégias políticas e dos procedimentos discursivos pelos quais a experiência de um projeto socioambiental no oeste paranaense - o programa "Cultivando Água Boa" (CÁB), criado pela Itaipu Binacional (IB) em 2003 - veio a ser construída como exemplo paradigmático de um novo modelo de desenvolvimento sustentável e de cidadania, associado à implantação de grandes complexos hidroelétricos. Atualizando avaliações incluídas em sua tese de doutorado, defendida em 2008, o autor apresenta as incongruências envolvendo, de um lado, as iniciativas do programa e seus (limitados) resultados práticos e, de outro, todo o esforço propagandístico realizado em torno do CÁB. Fornece ainda uma análise significativa dos esforços para se instrumentalizarem "novos" valores, premissas e ideias (decorrentes das críticas e dos movimentos de oposição às políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento, na segunda metade do século passado) enquanto elementos meramente técnicos e legitimadores, usados tanto para encenar quanto para limitar formas de participação popular em empreendimentos geradores de impactos negativos e tensões sociais.

Desta forma, ao tomar como parte de seu objeto a obra de difusão e comunicação pública do CÁB - perseguida pela Diretoria de Coordenação da IB como uma tática fundamental para garantir o próprio sucesso da iniciativa - o livro consegue ultrapassar a escala regional imediata das ações do programa, contribuindo, assim, para esclarecer certas interseções entre as políticas e os "megaprojetos" do governo federal para o setor energético, na última década, e o campo de disputas em torno das definições de desenvolvimento e de sustentabilidade ambiental no Brasil.

O texto inicia-se com uma revisão das abordagens antropológicas direcionadas ao tema do desenvolvimento. O autor adiciona à já consagrada distinção entre "antropologia para o desenvolvimento" (development anthropology) e "antropologia do desenvolvimento" (anthropology of development) os movimentos mais recentes surgidos de críticas pontuais aos principais autores e obras desta última corrente. Além disso, traçando um breve histórico acerca da questão da participação, e dos sentidos conferidos à mesma no campo internacional do desenvolvimento (:29-34), procura-se ilustrar, desde a introdução do livro, o lugar específico destinado a essa categoria nas práticas e nos discursos referentes ao CÁB. Nele, a "participação" da chamada sociedade civil tem como finalidade última permitir aos gestores da IB demonstrarem, sobretudo quantitativamente, a validade e a aprovação generalizada de seu programa, reafirmando, por conseguinte, a própria legitimidade da empresa no campo socioambiental brasileiro.

Nesse sentido, é singular o tratamento metodológico destinado aos materiais de comunicação produzidos pela Itaipu Binacional, principalmente no que diz respeito ao Jornal Cultivando Água Boa (JCÁB): publicação periódica também inaugurada em 2003 e voltada a divulgar informações e resultados das várias linhas de atuação do programa que a nomeia. A metodologia de análise utilizada pauta-se na percepção de que tais documentos são parte integrante e fundamental do próprio funcionamento do programa, uma vez que servem como meio privilegiado para que seus responsáveis veiculem os discursos de legitimação do CÁB, e perfazem parte significativa da comunicação do mesmo dentro e fora da região onde é implementado (conhecida como Bacia do Paraná III, ou BPIII). Em face do seu papel na difusão do CÁB - à qual se somam ainda outras publicações da IB, além de uma extensa gama de eventos, palestras, seminários e premiações realizados pela empresa, ou nos quais seus gestores e técnicos se fazem presentes (:76-77) - a abordagem segue no sentido de explicitar ao leitor os conteúdos de tais discursos de legitimação, através de longos trechos extraídos das primeiras edições do Jornal (capítulo 3). O objetivo é ressaltar, então, tanto as estratégias de autorrepresentação postas em jogo para criar uma imagem positiva do programa quanto os rótulos discursivos utilizados na fabricação de seu sucesso.

Nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta um histórico da emergência do termo desenvolvimento sustentável e de sua ascensão ao status de tendência hegemônica no campo das políticas públicas de desenvolvimento - apresentando assim o substrato de onde é retirada boa parte das categorias centrais de pensamento na operacionalização do CÁB (capítulo 1); e revisita o processo de construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu (desde o seu planejamento, na década de 1960), tomando como chave de leitura o teor estratégico assumido por tal empreendimento nos cenários econômico e geopolítico daquele momento (capítulo 2).

O capítulo 3 é dividido em duas partes. Na primeira, "O CÁB por ele mesmo", desdobra-se a imagem oficial e altamente positiva construída para o programa (como um todo) nas publicações da IB. Ressaltam-se também aí a ênfase na exposição de dados numéricos para aferir resultados e efeitos supostamente atingidos e a celebração contínua de seu sucesso. Já na seção "Os Projetos do CÁB na visão nativa", são delineadas algumas das linhas de atuação socioambiental da IB, sobretudo aquelas com maior espaço de divulgação nos Jornais do CÁB - e sempre de acordo com o discurso autorrepresentativo fornecido sobre elas por seus principais propositores. Dos sete projetos apresentados, três são retomados no capítulo seguinte, no qual o autor insere as informações obtidas em campo com o objetivo de oferecer uma visão do programa para além da sua imagem oficial.

A linha argumentativa do capítulo 4, "O CÁB Observado", é no mínimo provocadora. Do contraste entre a imagem pública - consciente e interessada - produzida para o CÁB e as práticas de fato promovidas em sua implementação, torna-se possível perceber como a grande quantidade de uniformes e de carrinhos coletores, fornecidos aos catadores de materiais recicláveis da região, é retoricamente transformada no nível de "cidadania" e de "empoderamento" adquirido pelos últimos através do programa. Isto a despeito dos problemas enfrentados para se levar adiante o projeto "Coleta Solidária" e das dificuldades para se efetivar uma verdadeira gestão autônoma nas associações de catadores, também criadas (e quantificadas, no cálculo do empoderamento promovido) pelo projeto.

Salviani destaca ainda a distância observada entre o universo participativo propagandeado pela IB e as metodologias postas em cena para viabilizar a "mais ampla participação possível" (:98). A ênfase analítica recai sobre o cerne do CÁB: seu "Programa 40", no qual comunidades locais da BPIII seriam convocadas a decidir e a planejar ações necessárias para a efetiva gestão da qualidade ambiental de seus municípios e de microbacias hidrográficas específicas. O dito "protagonismo" dos grupos incluídos nos eventos participativos do "Programa 40" - as "Oficinas do Futuro" e "Pactos das Águas" - não se estenderia nem sequer à decisão de quais microbacias serão objeto das intervenções, uma vez que são selecionadas em reuniões envolvendo somente prefeituras municipais, técnicos e consultores/facilitadores políticos do CÁB. Tampouco abarca a definição das medidas a serem adotadas, pois estas podem remeter apenas a um "pacote" predefinido de ações ambientais que interessam sobretudo à IB. A participação popular limita-se então a ser um fim em si mesmo, encerrando-se em performances legitimadoras e procedimentos técnicos cujos contornos e desdobramentos encontram-se definidos (ou mesmo impostos) por interesses outros que não os dos participantes - ou "protagonistas". Neste quesito, certas atividades da linha de Educação Ambiental" do CÁB (incluindo-se aí as "Oficinas" e os "Pactos", considerados eventos de sensibilização e conscientização) teriam também o seu papel de facilitar formas passivas de "participação", facilmente dirigidas e literalmente eventuais.

Em suas considerações finais, Salviani retoma o objetivo principal do trabalho, apresentando algumas das intenções políticas investidas na tarefa de difusão do CÁB, mas não explicitadas publicamente. Dentre os interesses mais imediatos e locais, o programa cumpriria sua função enquanto instrumento de influência político-administrativa (e inclusive eleitoral) da IB em toda a Bacia do Paraná III. Promoveria também uma verdadeira "propaganda do esquecimento" (:203), na qual as tensões sociais, os movimentos de resistência, as desapropriações, os embates por indenizações justas e as concessões de terras, além dos próprios impactos ambientais negativos associados à construção de uma usina de tal porte, perdem cada vez mais suas referências diante da obra de ocultação do passado de Itaipu pela IB. Soma-se ainda a isto a necessidade de a gerência instalada na empresa em 2003 se diferenciar das gestões anteriores e de seu passado de ingerências e relações negativas na escala regional de Foz do Iguaçu. Portanto, a produção de uma imagem altamente positiva para o CÁB, ao ignorar as limitações tanto de seu desenho quanto de suas iniciativas e resultados, coloca em jogo a afirmação de uma nova imagem para a empresa, pautada no sucesso da missão socioambiental "inovadora" assumida ainda em 2003.

As conclusões mais contundentes do livro são aquelas que tornam possível entender o CÁB como uma "estratégia para a construção de uma imagem positiva da atuação e da gestão de grandes barragens, uma tentativa de mostrar como positivos empreendimentos que causaram e continuam causando importantes impactos (negativos) sociais e ambientais" (:195). Dentre os desdobramentos da difusão da "exemplaridade" do CÁB, destaca-se que, desde 2011, o BNDES usa o programa como um tipo de paradigma a ser instrumentalizado na mitigação dos impactos gerados pelos grandes empreendimentos que financia. Por conseguinte, o CÁB vai sendo incluído, também, nas estratégias mais amplas do governo federal para legitimar os contornos de sua política energética, na qual o destaque conferido nos últimos anos à construção da hidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu/PA, obriga-o a enfrentar, até o presente momento, múltiplos movimentos de crítica e resistência. Nesse contexto, uma de suas vantagens é justamente poder contar com o "exemplo concreto do conceito de sustentabilidade em um empreendimento hidroelétrico, [...] referência mundial de responsabilidade socioambiental" (:206) fabricado em Itaipu, e pronto para ser reproduzido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
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