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NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.

NAVA, M. E.. . 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec.Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.

Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. 1994. “O autor como produtor” [1930]. In: BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.) afirma que o projeto de socialização dos meios de produção só é emancipador quando inclui os meios de produção intelectual. O trabalhador intelectual é progressista na medida em que ajuda a criar as condições para que todos participem da escrita. Elena Nava Morales logrou multiplicar as mãos que escreveram Totopo al aire, obra que foi zapotequizada ao ecoar as cápsulas radiofônicas, conversas no estúdio, assembleias e festas comunitárias, entre outras formas de memória, diálogo e resistência do povo Zapoteco, cujas redes de relações se intensificaram em torno da Rádio Totopo. O trabalho é fruto de um doutorado na Universidade de Brasília (Brasil), e de uma etnografia de nove meses em Oaxaca (México), precedida de trabalhos anteriores realizados na região durante a graduação.

O método promove o encontro de duas epistemologias: a antropologia do colonialismo de Johannes Fabian, com sua etnografia enquanto “práxis dialógica”, e a teoria indígena da “comunalidade”, em que o ayuujk Floriberto Díaz e o zapoteco Jaime Martínez Luna traduzem para não indígenas a realidade vivida pelas comunidades da Serra Norte de Oaxaca. A obra contorna, assim, o risco da exotização que reproduz a dicotonomia entre ciência ocidental (evoluída/sujeito) e cultura indígena (primitiva/objeto) que é própria do colonialismo (Said 2007SAID, Edward. 2007. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.; Quijano 1992QUIJANO, Aníbal. 1992. “Colonialidad y modernidad-racionalidad”. In: H. Bonillo (ed.), Los conquistados. Bogotá: Tercer Mundo Ediciones/Flacso. pp. 437-449.). Como bem demonstrou Said (2007SAID, Edward. 2007. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.), as obras eruditas ou científicas ocidentais dependem, para se legitimar, das referências estudadas e citadas, o que historicamente gerou redundâncias eurocêntricas, dificultando o diálogo de saberes. Apesar da expansão do pensamento pós-colonial nas universidades, ainda é arriscado fundamentar métodos de pesquisa e construções teóricas em epistemologias não ocidentais.

Daí a audácia de Nava em aproveitar as formulações de Fabian (1996FABIAN, Johannes. 1996. Time and the work of Anthropology. Critical Essays 1971-1991. Coira: Hardwood Academic Publishers., 2008FABIAN, Johannes. 2008. Anthopology as commentary. Durham & London: Duke University Press.), para quem o que fundamenta a objetividade não são as teorias estudadas ou os dados analisados, mas o diálogo: a ciência é “intersubjetiva”. A objetividade depende da explicitação e da reflexão sobre os processos de comunicação que envolvem a produção do conhecimento. O livro de Nava traz, a todo momento (e não apenas no relato da história de sua etnografia, convencionalmente colocado na introdução), as situações de diálogo em caminhadas, na produção de cápsulas radiofônicas, transmissões, escutando a Totopo em casa, ou situações de festas e assembleias que tecem a escrita do livro, ao mesmo tempo em que apresenta tramas com a literatura antropológica escrita por intelectuais indígenas e não indígenas.

Esse diálogo foi intensificado com a teoria da comunalidade. Díaz e Luna estudaram antropologia em instituições científicas mexicanas marcadas por “bagagens” culturais ocidentais e, a partir do protagonismo que tinham em meio aos seus povos, deram início à elaboração teórica que tinha como objetivo a tradução para o mundo não indígena das visões de mundo e relações comunitárias indígenas. Nava (2018NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.) destaca as seguintes características da comunalidade de Díaz: toda comunidade tem um território, uma história comum, uma variante linguística identificada como comum, uma organização política, cultural, social, civil, econômica e religiosa, e um sistema comunitário de justiça. Estas dimensões sensibilizaram a autora sobre as situações em que se dão a reprodução e a reinvenção dinâmica das relações comunitárias nas quais a rádio se insere, lugares privilegiados para se viver as situações de diálogo da pesquisa. Uma das conclusões da obra é que o povo zapoteco comunalizou a rádio, ao criar na Totopo novas situações de intensificação da comunalidade zapoteca. Ao ler o livro, notamos que comunalizou também a sua escrita.

Na primeira parte do livro, a autora resume 3 mil anos da história zapoteca. Mas o que poderia parecer uma “obsessão das origens” (Bloch 2001:56) revela-se uma escolha acertada. Entre a leitura de obras historiográficas, que também circulam entre os zapotecos, e a transcrição de conversas e cápsulas radiofônicas, o que se tece na rádio e na escrita do livro é a memória zapoteca contemporânea, com seus heróis e histórias de resistência e luta por autonomia. A sobreposição, no texto, de referências a trabalhos historiográficos com transcrições de conversas e programas de rádio ajuda a desnaturalizar e a historicizar o conhecimento historiográfico. Esses vários elementos dialogam entre si no texto, um servindo para ajudar na reflexão sobre o outro, e revelando vários tipos de relações existentes entre os zapotecos e a ciência, seja enquanto leitores que se apropriam ou como produtores crescentemente reconhecidos de historiografia e antropologia.

A segunda parte é dedicada à rádio Totopo. Parte da situação histórica que envolve novas formas de colonialismo neoliberal e de resistência zapoteca, para entrar na história da rádio, sua composição e as redes de relações que são ativadas na sua interação com o município de Juchitán, o Bairro dos Pescadores, as organizações do movimento indígena e de comunicadores indígenas, além de turistas e a solidariedade internacional. A rádio surgiu com dois objetivos principais: combater os megaprojetos do corredor eólico no Istmo de Tehuantepec e valorizar a língua zapoteca. O primeiro remete à racionalidade instrumental do Ocidente: governos sem participação popular implantaram políticas neoliberais que reduziram as garantias legais dos camponeses e indígenas mexicanos em relação à propriedade da terra, com o objetivo de mercantilizar os territórios. O principal marco nesse processo foi a “contrarreforma” do artigo 27 da Constituição, realizada pelo presidente Carlos Salinas de Gortari em 1992, que encerrou a reforma agrária e tornou possível a privatização de propriedades comunais. Na região da rádio Totopo, isso tornou possível a chegada de grandes empresas que começaram a construir parques eólicos a partir de 1994, com centenas de turbinas. Essas empresas não só evitaram espaços horizontais de diálogo e negociação com a população local, como ainda enviaram representantes que diziam falar em nome da Comissão Federal de Eletricidade para persuadir comunitários a assinar contratos, permitindo a instalação das turbinas em terras comunais.

Um dos avanços mais importantes da antropologia contemporânea foi romper com as noções essencialistas de cultura e sociedade, que Wolf (2005WOLF, Eric. 2005. A Europa e os povos sem história. São Paulo: Edusp.) compara a bolas de bilhar, e que Pacheco de Oliveira (1988OLIVEIRA Filho, João Pacheco de. 1988. Os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero.) atribui à reprodução do conceito de “espécie” da biologia. Entre inúmeros outros efeitos, esse tipo de essencialização contribui para a reprodução da exotização teorizada por Said (2007SAID, Edward. 2007. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.): a representação do “outro” como radicalmente distinto, oposto, e caracterizado por valores invertidos em relação àquele que observa. Nava (:36NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.) aponta que a teoria da comunalidade se afasta de dicotomias como a oposição clássica entre comunidade e sociedade, “ressaltando o caráter não oposto, mas diferencial da sociedade indígena com respeito à sociedade ‘ocidental’”. A etnografia realizada com a ajuda desta teoria nos mostra um panorama em que as relações entre sociedades indígenas e ocidentais são de diferentes tipos: algumas revelando maior afinidade e diálogo, como no caso da interação entre a antropologia do colonialismo de Fabian e a teoria da comunalidade de Díaz e Luna, ou mesmo na solidariedade entre grupos e ativistas indígenas e não indígenas do México, da Europa e dos Estados Unidos; e outras em que predomina a racionalidade instrumental das situações de engano, dominação e exploração.

Ao etnografar situações de interação entre os integrantes da rádio Totopo e deles com as redes em que a rádio se insere e que se inserem nela, a autora participa e documenta relações de solidariedade e conflito que demonstram os modos pelos quais a rádio se torna parte importante das dinâmicas comunitárias. O último capítulo é dedicado às festas comunitárias públicas e privadas às quais a rádio dedica muito tempo, de modo que se torna “elemento das celebrações rituais” e participante da “produção da tradição local” que contribui para a coesão comunitária (:223NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.). Além disso, participa do processo de “patrimonialização e redução de significado” ao levar essas tradições para serem apresentadas em lugares não indígenas (:224NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.). As festas são parte importante da zapotequização da rádio e do livro.

No final há uma interessante análise de Jaime Martínez Luna a partir de Marshal McLuhan. Para este, o rádio é uma tecnologia com o poder de “retribalizar” o mundo, pois guarda afinidade especial com a cultura oral e intensifica os seus processos. O teórico indígena responde que “o triste da rádio e da televisão é quando reproduzem a importância da leitura-escrita, abandonando a sua própria potencialidade” (Martínez Luna 2003 citado em Nava 2018:229NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec. Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.). O fortalecimento da oralidade com o rádio é estratégico, já que corresponde à comunicação horizontal que é própria da comunalidade. A escrita, por outro lado, guarda uma relação histórica importante com o colonialismo ocidental, cuja reprodução é demonstrada por Nava ao documentar as denúncias em torno dos contratos assinados com os parques eólicos. A valorização da oralidade não leva, porém, à inversão da exotização que romantiza os estereótipos (Said 2007SAID, Edward. 2007. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras.). Na obra, as fronteiras entre oralidade e escrita são atravessadas por uma redação etnográfica feita por mãos indígenas e não indígenas, cujo encontro ocorre em situações comunitárias de diálogo e também nos debates acadêmicos.

Referências bibliográficas

  • BENJAMIN, Walter. 1994. “O autor como produtor” [1930]. In: BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política São Paulo: Brasiliense.
  • FABIAN, Johannes. 1996. Time and the work of Anthropology. Critical Essays 1971-1991 Coira: Hardwood Academic Publishers.
  • FABIAN, Johannes. 2008. Anthopology as commentary Durham & London: Duke University Press.
  • NAVA Morales, Elena. 2018. Totopo al aire: radio comunitária y comunalidad en el istmo de Tehuantepec Ciudad de México: Ciesas. 253 pp.
  • OLIVEIRA Filho, João Pacheco de. 1988. Os Ticuna e o regime tutelar São Paulo: Marco Zero.
  • QUIJANO, Aníbal. 1992. “Colonialidad y modernidad-racionalidad”. In: H. Bonillo (ed.), Los conquistados Bogotá: Tercer Mundo Ediciones/Flacso. pp. 437-449.
  • SAID, Edward. 2007. Orientalismo São Paulo: Companhia das Letras.
  • WOLF, Eric. 2005. A Europa e os povos sem história São Paulo: Edusp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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