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O humanismo radical de Sylvia Wynter:uma apresentação

The radical humanism of Sylvia Wynter: an introduction

El humanismo radical de Sylvia Wynter: una presentación

Resumo

Este artigo faz um sobrevoo pela vida e obra de Sylvia Wynter, intelectual, artista e ativista jamaicana, para o público leitor de português, sobretudo no Brasil. Para isso, iniciamos o texto com elementos de contextualização histórica da Jamaica e do Caribe, com ênfase nos efeitos deletérios da plantation e do imperialismo na constituição da pessoa negra; seguem-se alguns apontamentos biográficos da autora; para, por fim, apresentar algumas de suas contribuições analíticas, políticas e teóricas, com ênfase em três aspectos. Primeiro, sua crítica ao equacionamento da humanidade com o conceito ocidental de Homem e a proliferação epistemológica e analítica do Homem. Segundo, seu chamado para a reconstituição epistêmica da universidade e o papel seminal dos Black studies nessa empreitada, bem como a crítica à pacificação dos Black studies quando incorporados como etno-história. Por fim, sua proposta de humanismo radical.

Palavras-chave:
Sylvia Wynter; Humanismo; Black studies; Humanidade; Pensamento negro radical; Antinegritude

Abstract

This article aims to present the Brazilian audience to the work of Sylvia Wynter, a Jamaican intellectual, artist and activist. We begin the text with elements of the historical contextualization of Jamaica and the Caribbean, with an emphasis on the deleterious effects of the plantation system and imperialism on the constitution of Black people, followed by some biographical notes on Wynter. Finally, we present some of her analytical, political and theoretical contributions, for which we emphasize three aspects. First, her critique of merging humanity with the western concept of Man, and the epistemological and analytical proliferation of Man. Second, her call for an epistemic reconstruction of the university and the seminal role of Black studies in this endeavor, as well as a critique of the pacification of Black studies when incorporated as ethnohistory. Finally, we present her proposal for radical humanism.

Keywords:
Sylvia Wynter; Humanism; Black Studies; Humanity; Antiblackness

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar el trabajo de Sylvia Wynter, intelectual, artista y activista jamaiquina, a los lectores de portugués, especialmente de Brasil. Empezamos el texto con elementos de contextualización histórica de Jamaica y el Caribe, con énfasis en los efectos deletéreos de la plantation y el imperialismo en la constitución de las personas negras; seguido de algunas notas biográficas de la autora; para, finalmente, presentar algunas de sus contribuciones analíticas, políticas y teóricas. En cuanto a esto último, nuestro énfasis estará enfocado en tres aspectos. Primero, en su crítica de la ponderación de la humanidad con el concepto occidental de Hombre y la proliferación epistemológica y analítica del Hombre. Segundo, en su llamado a la reconstitución epistémica de la universidad y el papel fundamental de los Black studies en este empeño, así como en la crítica a su pacificación cuando incorporados como etnohistoria. Finalmente, presentamos su propuesta de humanismo radical.

Palabras clave:
Sylvia Wynter; Humanismo; Black Studies; Humanidad; Antinegritud

Introdução

Nascida em Cuba em 1928, de mãe e pai jamaicanos, criada na Jamaica e tendo morado parte de sua vida na Inglaterra, Sylvia Wynter é uma escritora que tem se dedicado a investigar o humanismo e a história da humanidade a partir da crítica da universalização do homem branco europeu enquanto humanidade. Ela vincula essa crítica ao desenvolvimento e à manutenção da modernidade, engajando-se criticamente com o grupo de intelectuais, artistas e ativistas que podemos reunir sob a rubrica dos Black studies. Tais produções têm se dedicado a pensar e a explorar, de maneira indisciplinada, vínculos entre a exploração da terra, a produção do corpo e a produção da nação, especialmente no Caribe e em países que viveram regimes de exploração colonial do tipo plantation. Reflexões e provocações envolvendo acontecimentos políticos de seu tempo também ocupam um papel central em tais obras. Nos escritos de Wynter, sua crítica ao humanismo é acompanhada de uma proposta radical de humanismo: que funcione mais como os mistérios das marés do que como as caravelas que colonizam.1 1 Agradecemos a Patricia D. Fox e a Antonádia Borges, Roberto Sobral e participantes do Grupo de Estudos em Teoria Antropológica (Gesta) pelas discussões e apontamentos que nos ajudaram a refinar os argumentos aqui apresentados. Agradecemos também aos pareceristas anônimos pelo estímulo para a publicação.

Esta primeira apresentação do pensamento de Sylvia Wynter ao público leitor de português inicia-se com elementos de contextualização histórica da Jamaica e do Caribe; seguidos de alguns apontamentos biográficos da autora; para, por fim, apresentar algumas de suas contribuições analíticas, políticas e teóricas, com ênfase em três aspectos. Primeiro, sua crítica ao equacionamento da humanidade com o Homem e a proliferação epistemológica e analítica do Homem. Segundo, seu chamado para a reconstituição epistêmica da universidade e o papel seminal dos Black studies nessa empreitada, bem como a crítica à pacificação dos Black studies quando incorporados como etno-história. Por fim, sua proposta de humanismo radical.

Optamos por iniciar com uma retomada de alguns elementos históricos importantes sobre o Caribe porque Wynter enfatiza que suas preocupações e seus projetos intelectuais estão sempre intimamente ligados aos efeitos deletérios da plantation e do imperialismo na constituição da pessoa negra:

Isso nos leva de volta à instituição do sistema escravocrata da plantation, o sistema de encomiendas. Desde o início do mundo moderno, as pessoas das quais eu iria descender, as negras confinadas como escravas na plantation, experienciariam a dimensão absolutamente destrutiva dessa “grande narrativa”. E nós, seus descendentes, claramente continuaríamos com a experiência do legado negativo da impotência, do empobrecimento cotidiano que essa grande narrativa nos impôs. [...] Eu conheci a sensação de escrever sobre eventos históricos que ocorreram na Inglaterra, muito embora eu nunca tivesse pisado lá. Fato é que, como eu não sabia nada da minha própria realidade histórica, à exceção dos termos negativos, seria natural para mim, como Fanon diz, querer ser um sujeito britânico e, além disso, ser antinegritude, antitudo que eu existencialmente era. Eu conheci a experiência da total abjeção do ser (Wynter 2000WYNTER, Sylvia. 2000. “The Re-Enchantment of Humanism: An Interview with Sylvia Wynter” (por David Scott). small axe 8:119-207, set.:187-188, tradução nossa2 2 No original: “So this takes us back to the institution of the slave plantation system, the encomienda system. Now, from the very beginning of the modern world, the people from whom I will descend, the negros/negras who are interned in the slave plantation, would have found themselves experiencing the destructive underside of the “broader narrative”. While we who are their descendants would have clearly continued to experience the negative legacy of the powerlessness, the everyday impoverishment that this broader narrative would have prescribed for us. [...] I knew what it was like to have written stories about historical events that had taken place in England, even though I had never been there. For the fact was that I knew nothing about my own historical reality, except in the negative terms, that would have made it normal for me, as Fanon points out, both to want to be a British subject and, in so wanting, to be anti-black, anti-everything I existentially was. I knew what it was to experience a total abjection of being.” ).

Katherine McKittrick (2016) escreve sobre o pensamento de Wynter acerca de como a desumanização do corpo negro é condição para a efetivação do sistema de plantation.

Os escravizados tornam-se, perceptível e conceitualmente, unidades de trabalho homogêneas, implantadas no Novo Mundo não para habitar (com pessoas e assentamentos) a terra, mas para produzir monoculturas mecanicamente e abastecer o sistema econômico. O sistema de plantation almejava, sobretudo, lucro. Daí segue-se que as unidades de trabalho escravas, como propriedades de seu dono, estavam incrustradas num sistema que se retroalimentava e se beneficiava de sua desumanidade e sua despessoalização; e é precisamente porque foram implantados no Novo Mundo não como ‘compradores e vendedores’, mas como mercadorias que eram ‘compradas e vendidas’ que os povos negros escravizados no Novo Mundo foram de uma só vez alienados da economia racial e nela implicados como não humanos/não consumidores/trabalho mecanizado. Dito de outra forma, o contexto da plantation exigia a impossibilidade da humanidade negra. (McKittrick 2016:82, tradução nossa3 3 No original: “The enslaved perceptively and conceptually became homogenous units of labor, planted in the New World not to inhabit (people, settle) the land but to mechanically produce monocrops and fuel the economic system (1-3). The plantation system, above all, sought profit. It follows that the enslaved units of labor, as owned property, were embedded in a system that benefited from, and calcified, their nonpersonhood and nonbeing; and it is precisely because they were planted in the New World not as “buyers and sellers” but as commodities that were “bought and sold” that black enslaved peoples in the New World were at once alienated from and implicated in the racial economy as nonbeings/nonconsumers/mechanized labor (232). Put differently, the plantation context required the impossibility of black humanity.” ).

Sylvia Wynter irá atentar, ao longo de toda a sua produção, para como a herança da plantation nos impediu de realizar plenamente a emancipação humana, uma vez que este sistema se baseava na destituição de humanidade de alguns humanos: pessoas indígenas e negras escravizadas, tornadas coisa, propriedade, meio de produção. Para Wynter, assim como para Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA.), a desumanização do negro implica a desumanização de toda a humanidade.

Plantation e contracolonialidade na Jamaica e no Caribe

A crítica da colonialidade e sua relação com a modernidade são temas centrais na história e na historiografia crítica do Caribe, como é exemplar na obra do haitiano Michel-Rolph Trouillot (1992TROUILLOT, Michel-Rolph. 1992. “The Caribbean Region: An Open Frontier in Anthropological Theory”. Annual Review of Anthropology, v. 21., 2016). A Jamaica, uma das ilhas mais importantes do arquipélago, era morada dos taino e de outros grupos do tronco linguístico aruaque. O genocídio e o epistemicídio,4 4 Utilizamos aqui o conceito de epistemicídio como proposto por Sueli Carneiro (2005), que racializa o conceito de Boaventura de Souza Santos, ao destacar que as práticas, os modos de conhecer e os grupos sociais tornados subalternizados, marginalizados, ilegais por atrapalhar a marcha do capital são os grupos não brancos. isto é, a destruição, a subalternização e as obliterações de regimes contracoloniais de conhecimento, de modos de viver e de se relacionar com a terra, invadiram o Caribe junto com as caravelas lideradas por Cristóvão Colombo em 1492 e a imposição do sistema colonial predatório da encomienda, um sistema precursor da plantation, em que a produção era feita com base na exploração de trabalho análogo à escravidão.

Por sua localização estratégica para fins militares e comerciais, a ilha também atraía a atenção dos britânicos. Na segunda metade do século XVII, já se consolida na Jamaica o sistema da plantation da cana-de-açúcar, baseado em produção de monocultura em larga escala para exportação e escravização. Mais do que um mero sistema produtivo, a plantation baseava-se na produção de humanidade e desumanidade nas colônias: era preciso produzir população humana gerenciável, e população desumanizada a cultivar as lavouras. A plantation marca o crescimento econômico da Jamaica e do Caribe dentro da modernidade e é reveladora do que Aimé Césaire (1978CÉSAIRE, Aimé. 1978 [1955]. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Liv. Sá da Costa Ed.), intelectual e ativista da Martinica, denuncia como a lógica do duplo civilização-colonização, orientada pelo que ele chama de pseudo-humanismo, que opera excluindo alguns corpos da humanidade. Nas palavras do pan-africanista C.L.R. James (1989JAMES, Cyril Lionel Robert. 1989. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. Nova York: Vintage Books.:392, tradução nossa5 5 No original: “The sugar plantation has been the most civilising as well as the most demoralising influence in West Indian development”. ): “A plantation de açúcar foi, ao mesmo tempo, a influência mais civilizadora e a mais desmoralizante na história das Índias Ocidentais”.

O intenso tráfico nos navios negreiros e a escravização massiva nas lavouras de plantation de cana-de-açúcar trouxeram para a Jamaica centenas de milhares de africanos. Já na segunda metade do século XVII, a população negra na ilha ultrapassou a branca em número, e seguiu crescendo exponencialmente durante o século XVIII (Wells 2015WELLS, Robert V. 2015. Population of the British Colonies in America before 1776: a Survey of Census Data. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.). Desde a fuga dos espanhóis e o início do domínio britânico na região, especialmente a partir de 1655, pessoas negras que resistiram à forma plantation e fugiram das fazendas formaram os maroons, comunidades análogas aos quilombos brasileiros, que se instalaram no interior montanhoso da Jamaica. Além de sua produção agrícola autônoma, alguns maroons promoviam campanhas de saques e queimadas das plantações de colonos, libertando os escravizados.

Ao longo de dois séculos, diversas rebeliões negras ocorreram e os maroons aumentaram seu controle territorial no interior da ilha. Várias dessas rebeliões foram lideradas por pessoas negras recém-chegadas da África Central e com formação militar. As comunidades maroons cresciam rapidamente e representavam uma ameaça ao domínio britânico da ilha. A potência corrosiva da marronagem diante dos aparelhos de captura (Bona 2020BONA, Dénètem Touam. 2020. Cosmopoéticas do refúgio. Desterro: Cultura e Barbárie.) se expressou também em grande enfrentamentos militares durante o século XVIII.6 6 Dentre os principais conflitos estão a Primeira (1728-1739) e a Segunda Guerra Maroon (1795-1796) e a Guerra de Tacky (1760).

Cabe destacar aqui a Revolução Haitiana que pôs fim ao sistema escravista no Haiti e influenciou diversas revoltas nas Américas e no Caribe, dentre as quais a Grande Revolta de Escravos Jamaicana entre 1831 e 1832. Entretanto, mesmo com a abolição da escravidão oficializada pelo Império Britânico, em 1834, na Jamaica e, em 1838, em todas as Índias Ocidentais, as revoltas negras seguiram. Isso nos dá indícios de como a plantation enquanto episteme, isto é, enquanto regime de tempo e de futuro, enquanto sistema de organização do mundo e enquanto modo de conhecimento persiste historicamente - e tem sido também historicamente combatida, seja nas revoltas da Jamaica pós-abolição, seja nos protestos a partir do caso Rodney King, séculos depois, nos Estados Unidos, como retomaremos adiante.

A composição-plantation da universidade, das humanidades e da historiografia ocidental (Borges 2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very Rural Background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada Educação Superior”. Revista de Antropologia, v. 63 (3), set.-dez.) também se revela no silenciamento da historiografia ocidental acerca da Revolução Haitiana, como destaca Trouillot (2016TROUILLOT, Michel-Rolph. 2016. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Trad. Sebastião Nascimento. Curitiba: huya.:122).

A Revolução Haitiana entrou para a história, portanto, com a característica peculiar de ter sido inconcebível, mesmo enquanto acontecia. Debates oficiais e publicações da época, incluindo a longa lista de panfletos sobre Saint-Domingue publicados na França de 1790 a 1804, demonstram a incapacidade da maioria dos contemporâneos para compreender em seus próprios termos a revolução em curso. Eram capazes de ler as notícias somente a partir de suas categorias padronizadas, e essas categorias eram incompatíveis com a ideia de uma revolução escrava.

O autor analisa como o Caribe não era suficientemente ocidental para despertar o interesse dos sociólogos, nem suficientemente selvagem para alimentar a ideologia tribalista dos antropólogos (Mafeje 1971MAFEJE, Archie. 1971. “The ideology of ‘tribalism’”. The Journal of Modern African Studies, v. 9, n. 2:253-261.; Borges et al. 2015BORGES, Antonádia; COSTA, Ana Carolina; COUTO, Gustavo; CIRNE, Michelle; LIMA, Natascha; VIANA, Talita; PATERNIANI, Stella. 2015. “Pós-Antropologia: as críticas de Archie Mafeje ao conceito de alteridade e sua proposta de uma ontologia combativa”. Sociedade e Estado, v. 30, UnB (impresso).).

A Jamaica da primeira metade do século XX vive a criação das primeiras organizações civis negras, seguidas pelo crescimento das organizações sindicais e o sistema partidário no país. Tem destaque a atuação de Marcus Garvey,7 7 Garvey foi um controverso ativista sindical e empresário pan-africanista que fundou algumas das mais importantes organizações políticas negras jamaicanas do período, com destaque para a Universal Negro Improvement Association (UNIA). Garvey ultrapassou as fronteiras da Jamaica levando a UNIA a outros países do Caribe, aos EUA, à Libéria e à África do Sul, atraindo multidões de associados pelos ideais de libertação e orgulho negro (Rabelo 2013). cujas ideias serão reunidas sob o garveyismo, um movimento do nacionalismo negro, pan-africanista, marcado pela autopromoção econômica e social negra e pelo incentivo à repatriação de descendentes de escravizados ao continente africano. O garveyismo influenciou o movimento rastafari e, depois, as ideias do movimento Black power, cuja episteme o também intelectual e ativista caribenho Walter Rodney nos traz: “O black power reconhece tanto a realidade da opressão e da autonegação negra como o potencial para a revolta negra” (Rodney 1983:25, tradução nossa8 8 No original: “Black Power recognizes both the reality of black oppression and self-negation as well as the potential for revolt.” ).

A crise de 1929 é o estopim para um período de greves pelo Caribe durante os anos 1930 que se estende até o início da Segunda Guerra Mundial. Nesse período, as organizações sindicais se multiplicam e ganham força conformando as fundações do sistema partidário moderno do país. Wynter será crítica ao People’s National Party (PNP) na medida em que aponta como, nesses partidos, não havia espaço para os condenados da terra, os desprezíveis, os despossuídos dos quais fala o escritor estadunidense Richard Wright em seu livro The Color Curtain (1956WRIGHT, Richard. 1956. The Color Curtain. Cleveland e New York: World.).9 9 O livro de Wright é escrito após a participação do autor na Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, que foi também um marco importante que reuniu lideranças de países da Ásia e da África para reafirmar apoio mútuo, solidariedade e respeito pela soberania nacional e autodeterminação das nações que viriam a compor o Movimento dos Não Aliados num mundo então bipolar dividido em blocos militares. Considerada por Samir Amin “o primeiro despertar do Sul”, ela acontece na conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial, que também testemunhará o radicalismo nas ações e no pensamento, ancorado nas lutas por libertação nacional, no pan-africanismo e na gestação de ideias que depois viriam a se chamar terceiro-mundistas. Esse período foi marcado por ações políticas massivas - radicais e reacionárias - em várias partes do mundo. Com a tensão geopolítica da Guerra Fria como pano de fundo e a influência global das Revoluções Chinesa e Cubana, emergiram o movimento por direitos civis nos Estados Unidos, os objetores de consciência da guerra do Vietnã e o movimento Black power.

Esses condenados da terra, na tradução para o português da expressão que depois deu título ao livro de Frantz Fanon (1968FANON, Frantz. 1968. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), serão fundamentais para o pensamento de Wynter: são os condenados da terra, os famélicos da terra, os dispensáveis, os que não se encaixam no trabalhador nas acepções marxistas do termo e na lógica da contradição entre o capital e o trabalho. Trata-se do trabalho nativo, trabalho negro, trabalho indígena, que forma as bases do sistema colonial, a espinha dorsal da plantation, e que é por ela mesma quebrada, como formula Abdias Nascimento (2016NASCIMENTO, Abdias. 2016 [1978]. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva.). O destino de não se tornar trabalhador, a sina do desemprego, é a sina desses condenados da terra, que Wynter reconhecerá na juventude negra desempregada dos guetos dos Estados Unidos nos anos 1990.

Sylvia Wynter se engaja criticamente com essa tradição intelectual e ativista negra, da diáspora, do Black power para pensar e formular a revolução e a luta por libertação nacional e emancipação nos países negros. O engajamento de Wynter se dá especialmente por meio de sua contribuição crítica às formulações marxistas e de sua denúncia da emancipação incompleta. A apreciação crítica de Wynter acerca dos Black studies, da arte negra e da estética negra dos anos 1970 e 1980 parte de uma aposta e um reconhecimento de que estes seriam caminhos de revolução intelectual e refundação epistemológica de uma história marcadamente eurocêntrica e branca. Trariam consigo, finalmente, a emancipação completa do humano frustrada nas revoluções copernicana e darwinista, como veremos adiante. No entanto, o que Wynter observa é que os Black studies não foram bem sucedidos nessa empreitada na medida em que foram pacificados na universidade sob a forma de etno-história, excepcionalidade, exotismo, afro-história, isto é, cooptados pela lógica-plantation da universidade, que pressupõe a universalidade da história branca europeia, como na acepção de Borges (2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very Rural Background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada Educação Superior”. Revista de Antropologia, v. 63 (3), set.-dez.). Sylvia Wynter não se aparta, no entanto, da preocupação que marca esses intelectuais, artistas e ativistas caribenhos: a busca por um humanismo radical.

Apontamentos biográficos: deslocamentos e restaurações históricas

Aos 2 anos de idade, Sylvia Wynter muda-se com seus pais para a Jamaica. É lá que ela irá crescer, numa Jamaica sob o Império Britânico, ao longo dos anos 1930 e 1940. Em 1946, Wynter é agraciada com uma bolsa de estudos que a leva ao King’s College, em Londres, onde passará os anos seguintes de sua vida: realizará sua graduação em línguas modernas (espanhol), entre 1947 e 1951; e receberá o título de mestra em 1953.

Em Londres, Wynter conhece outros estudantes oriundos do Caribe, vinculados à Universidade das Índias Ocidentais (University of the West Indies),10 10 A Universidade das Índias Ocidentais é um sistema universitário público vinculado à Universidade de Londres que envolve dezessete países da região do Caribe, fundado em 1948. e se aproxima especialmente dos envolvidos com a arte. Sylvia cantava e dançava, e se entendia mais como artista do que como intelectual. Dançar, para ela, era a ponte entre a tradição literata e a raiz africana: era preciso passar pelo corpo, modular o corpo e experienciar o corpo (Wynter 2000). Nesse contexto, ao longo dos anos 1950, constituía-se uma comunidade de pensamento negra insurgente e radical, os Black studies.

A experiência de deslocamento para a metrópole foi fundamental para o entendimento de si de Wynter enquanto pessoa negra oriunda da colônia que, aos olhos do colonizador, na terra do colonizador, jamais deixa de ser o Outro a quem o colonizador outorga as categorias que bem lhe interessam. Nas colônias, era possível não ser negro, mediante o comportamento: na modulação do corpo, aprendia-se a ser sujeito britânico. Nas metrópoles, não: não havia modulação que a destituísse do que a autora partilha com Du Bois (1968) como o mal do século XX: a color line, a raça. Wynter conta que essa percepção, possibilitada por sua experiência em Londres, fora similar à de Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA.) quando se surpreendeu ao ser apontado, por uma criança, como um negro de quem ela diz ter medo.

Wynter vive, então, a formação dos Black studies enquanto uma comunidade de pensamento, que envolve rejeitar as bases da história ocidental enquanto história da humanidade e refundar a história sob uma perspectiva anticolonial. Nessa toada, Sylvia escreve seu primeiro e único romance: The Hills of Hebron, cujo título original era The End of Exile (o fim do exílio), o que nos sugere a intenção e o projeto de Wynter: o fim da história exilada da Jamaica, a refundação da história desafiando o sistema de valores baseado na criação da desigualdade racial que a história colonial a todo o tempo revolve. Rememorando o romance, Wynter diz:

O que me impressionou ao reler [The Hills of Hebron] foi aquilo que Elsa Goveia diz sobre uma das razões pelas quais começamos a escrever na disputa das lutas anticoloniais ter sido o desejo de desafiar o sistema central de crenças sobre as quais nossas sociedades foram fundadas, a crença de que a negritude seja um dado de inferioridade e da branquitude, um dado de superioridade. Ao reler o romance, percebi que foi exatamente isso que eu fiz à época. Eu estava engajada numa luta corporal com isso, com um mundo no qual a negritude era, não por acaso, e necessariamente, um fato de inferioridade. Era com isso que eu batalhava, para recusar e desafiar essa premissa (Wynter 2000WYNTER, Sylvia. 2000. “The Re-Enchantment of Humanism: An Interview with Sylvia Wynter” (por David Scott). small axe 8:119-207, set.:134, tradução nossa11 11 No original: “[W]hat struck me rereading it was that when Elsa Goveia says that one of the reasons we began to write in the clash of the anticolonial struggle was the desire to challenge the central belief system on which our societies were founded, the belief that the fact of blackness is a fact of inferiority and that of whiteness a fact of superiority. When I reread the novel, I could see that that was exactly what I was then doing. I was grappling with this, with a world in which the fact of blackness had non-arbitrarily, and necessarily, to be a fact of inferiority. That’s what I was grappling with, the refusal, the challenging, of that premise.” , grifos e nota no original12 12 Elsa Goveia (1925-1980) foi uma historiadora e humanista. Ela é autora de vários livros inovadores sobre a história do Caribe, incluindo o seminal A Study on the Historiography of the British West Indies. [No original: “Elsa Goveia (1925-1980) was a historian and a humanist. She is the author of several path-breaking books in Caribbean history including the seminal A Study on the Historiography of the British West Indies (1956; reprint, Washington, DC: Howard University Press, 1980)”]. ).

O romance é publicado em 1962, mesmo ano em que a Jamaica torna-se independente e Wynter, professora na Universidade das Índias Ocidentais (UWI), responsável pela cátedra de literatura hispânica. Durante mais de uma década em que esteve vinculada à UWI, Wynter integrou o grupo de artistas e intelectuais engajados na formação da nova nação: recebeu, do primeiro governo independente, a incumbência de escrever um tratado formal sobre os heróis nacionais da Jamaica, com destaque para Marcus Garvey; e uma peça em comemoração ao centenário da revolta de Morant Bay.13 13 A revolta de Morant Bay ocorreu em 1865. Seu estopim foi a prisão de um trabalhador negro que ousou invadir uma plantação de açúcar abandonada. A revolta foi violentamente massacrada pela polícia, deixando mais de 600 mortos. Ela também foi uma das fundadoras do Jamaica Journal, um periódico para o qual contribuía frequentemente com seus ensaios; produziu numerosos panfletos formativos de ampla circulação sobre a história da Jamaica e suas tradições literárias, musicais e artísticas; e, por fim, escreveu o espetáculo Maskarade, hoje considerado um exemplar do teatro jamaicano pós-independência e já encenado em palcos cubanos, jamaicanos, estadunidenses e ingleses.

De 1974 a 1977, foi professora convidada no Departamento de Literatura da Universidade da Califórnia, em San Diego, para coordenar um programa interdisciplinar sobre literatura do Terceiro Mundo. Em 1977, vinculou-se à Universidade de Stanford, como responsável pela cátedra de Estudos Africanos e Afro-americanos, onde tem formado uma geração de intelectuais, sempre enfatizando, em suas aulas, a formação do Caribe na modernidade, com a chegada de Cristóvão Colombo em 1492 e a invasão colonial. Atualmente com 94 anos, Sylvia Wynter é professora emérita na mesma Universidade, tendo sido condecorada em 2010 com a Ordem da Jamaica por seus serviços prestados nas áreas de educação, história e cultura.

Na entrevista já supracitada, Wynter (2000WYNTER, Sylvia. 2000. “The Re-Enchantment of Humanism: An Interview with Sylvia Wynter” (por David Scott). small axe 8:119-207, set.:190s) rememora um episódio fundamental para o desenvolvimento de seu projeto intelectual. No Caribe do começo dos anos 1980 já se começava a especular sobre os planos para a comemoração dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo. O primeiro-ministro do então governo do Jamaican Labour Party, o partido conservador do país, viu aí uma janela de oportunidade para apostar no turismo cultural na Jamaica, que costuma atrair turistas por suas praias paradisíacas. O plano seria restaurar um patrimônio histórico-arqueológico ao longo da ilha, e um dos objetivos centrais era escavar e restaurar a cidade de Sevilla La Nueva, o primeiro assentamento europeu permanente na Jamaica, fundado em 1509, e que se tornaria a primeira capital do país. Em 1518, o povoado foi removido para um lugar mais alto e, depois da conquista da ilha pelos ingleses, em 1655, a cidade foi soterrada sob os campos de engenhos de cana-de-açúcar.

Concluídos os trabalhos de escavação, o governo jamaicano se deparou com um problema de outra ordem: a população jamaicana sabia muito pouco sobre Sevilla La Nueva e sobre a história da Jamaica pré-conquista inglesa. Dada a história anglófono-centrada contada da Jamaica e ensinada nas escolas, a existência de uma Jamaica espanhola pré-1655 foi apagada tanto do imaginário como dos registros oficiais.

O governo jamaicano, então, solicita a Sylvia Wynter pesquisa documental no Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, na Espanha. O objetivo é que ela pudesse se munir de fatos históricos o suficiente para produzir material formativo de ampla circulação. Essa pesquisa colocou um desafio conceitual e analítico para Wynter. Por um lado, a pesquisadora debruçou-se sobre o mundo jamaicano espanhol-aruaque-africano. Por outro, ela se perguntava, também motivada pelos debates políticos que ocorriam na Jamaica às vésperas de 1992:14 14 O jornal Daily Gleaner, especialmente, publicou um poderoso editorial no qual atacava a ideia de a Jamaica participar em qualquer comemoração à viagem de Colombo, pois fora ela a responsável por tanto sofrimento e desastre levado aos povos do Novo Mundo e da África. o que fazer com esse evento? O que fazer com a chegada de Colombo, esse evento que promove o genocídio indígena, o trauma da escravidão e os horrores da plantation, e que, ao mesmo tempo, é o evento fundante que possibilita a existência da Jamaica como ela é, do Caribe como ele é, esse evento que forma o mundo moderno e que forma a realidade de todos nós? Como abordá-lo?

O que fazer com um evento como esse? Por um lado, a brutalização em larga escala e, ao final, a completa extinção dos Aruaques; e, a partir de 1518, o trauma da Passagem do Meio para pessoas africanas escravizadas, a epidemia de morte e os horrores de sua exi-tência plantation-escrava quando chegavam à costa. Por outro, esse é o evento que irá tornar possível nossa própria existência; que irá fundar o mundo moderno como ele é, mudar a realidade para todes nós, inserir-nos na história singular que hoje vivemos. Então, como abordá-lo? (Wynter 2000WYNTER, Sylvia. 2000. “The Re-Enchantment of Humanism: An Interview with Sylvia Wynter” (por David Scott). small axe 8:119-207, set.:191, tradução nossa15 15 No original: “What do you do with an event like that? On the one hand, the large-scale brutalization, in the end, the total extinction of the Arawaks; from 1518 onwards, the middle passage trauma of the enslaved Africans, the epidemic of death, the horrors of their slave plantation existence when they reached the shore. Yet on the other, this is also the event that is going to make our own existence possible; it is going to bring the modern world into being, is going to change reality for all of us, insert us into the single history we now live. So how do you approach it?” ).

Esse aparente imbróglio acerca de como considerar 1492 na história da humanidade marca e acompanha toda a trajetória intelectual de Sylvia Wynter. Sua produção se dedica a responder a essa desafiadora questão a partir de uma proposta radical de humanismo que apresentaremos nas próximas páginas.

Humanismo radical

A história do Homem

Sojourner Truth imortalizou seu discurso “Eu não sou uma mulher?” durante a Convenção dos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio, em 1851. As palavras afiadas se dirigiam a uma noção universalizante de mulher, pensada a partir da experiência das mulheres brancas. Sojourner Truth disse nunca ter sido ajudada a subir em uma carruagem ou a pular poças d’água. Disse arar e plantar mais do que qualquer homem escravizado na fazenda, o que lhe rendeu braços fortes e torneados. Dirigia-se então ao público e, diante de todas essas características tão estranhas à construção da identidade feminina branca, perguntava: “E eu não sou uma mulher?” (Davis 2016DAVIS, Angela. 2016. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo.)

Sylvia Wynter faz um movimento parecido ao recuperar a gênese da história do Homem. Tomemos seu texto On How We Mistook The Map for the Territory, and Re-Imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being, of Désêtre - Black Studies Toward the Human Project (Wynter 2006). Ao traçar uma genealogia, ela localiza geograficamente a evolução do conceito de Homem na Europa e como este conceito se tornou sobrerrepresentado e se confundiu com a própria noção de humanidade. A expansão colonial, em meio à polêmica interna à Europa Ocidental entre uma concepção cristã de humanidade e uma perspectiva renascentista antropocêntrica, envolveu o contato com outras noções de humanidade pelo mundo. No entanto, o conceito de Homem, diz-nos Wynter, nunca produziu novas sínteses com tais noções de humanidade. Pelo contrário, a ideia de Homem se impôs a elas e confundiu-se com o próprio fenômeno cuja representação era almejada. Na metáfora usada por Wynter (2006), tomou-se o mapa como território.

Para desenvolver seu projeto intelectual, Wynter remonta a Frantz Fanon, especialmente à sua contribuição acerca da sociogenia (Fanon 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA.). Tal como elaborada por Fanon, a sociogenia coloca em questão “a definição puramente biológica da nossa cultura atual do que significa ser e, portanto, do que significa poder ser, humano” (Wynter 2001:31, grifos no original citado em Gagné 2018GAGNÉ, Karen. 2018. “Sobre a obsolescência das disciplinas: Frantz Fanon e Sylvia Wynter propõem um novo modo de ser”. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2(1):44-65.:45). A sociogenia faz frente ao pressuposto de que a vida biológica constitui a humanidade e que a cultura são acoplamentos a essa vida biológica. Wynter sugere que esse código, ou esse princípio, seja constitutivo das variedades do gênero humano e é a partir dele que é possível experienciar-se como humanidade (Wynter 2000). Essa leitura que Wynter faz da sociogenia de Fanon é fundamental não só para sua formulação sobre a história do Homem, mas para toda a sua obra.

Durante a Idade Média, os falantes de línguas latinas da Europa Ocidental se autorreferenciavam enquanto Cristãos, ou seja, de acordo com o princípio da sociogenia experienciavam-se em sua humanidade como Cristãos. No longo processo de secularização, a autorreferência dessa parte da humanidade localizada na Europa foi aos poucos se deslocando para a ideia de Homem. Wynter vai citar as formulações de Tomás de Aquino sobre o Homem ser um homo politicus como marcante dessa virada. Inspirado pela filosofia aristotélica, Tomás de Aquino define o Homem como dotado do atributo da racionalidade e da civilidade que lhe permite viver a vida nas cidades. Aos poucos - e principalmente após a Reforma Protestante -, a autoconcepção europeia de humanidade vai migrando para a ideia secularizada de Homem, abandonando a ideia não secularizada de Cristão.

Contudo, Sylvia Wynter nos chama a atenção para uma permanência epistemológica, mais do que uma ruptura. A concepção secularizada e antropocêntrica de Homem e a concepção cristã, apesar de aparecerem como contrapostas uma à outra por séculos na Europa, não diferiam em sua incapacidade de conceber outras humanidades possíveis. A aparente ruptura secularizante com a autorreferência Cristão, na verdade, herdou dela o limite referencial da inteligibilidade de outras formas de ser humano. Na concepção autorreferente da Idade Média, na Europa, existiam os Cristãos e os pagãos. Os pagãos ora eram tidos como um Outro totalmente distinto de humanidade - não teriam alma -, ora como uma variante não convertida e menos humana do Cristão - aqueles que não conhecem a palavra de Deus, que não se converteram. Similarmente, a concepção de Homem, no contato com outros povos, nomeou-os como nativos, negros, negras, índios e índias, marcando uma distinção entre o Homem e estes últimos. O debate na Europa então seguia a mesma lógica do debate não secularizado: variava entre atribuir aos nativos uma distinção em essência - um Outro totalmente distinto de humanidade - e considerá-los uma variante menos racional, menos civilizada, menos humana do Homem. A concepção autorreferente, localizada geográfica e historicamente na Europa, se impôs sobre as outras concepções de humanidade, tratando o Homem como sinônimo de humanidade. O mapa - a representação de uma humanidade - confunde-se com o território - o conjunto das concepções de humanidade existentes.

Wynter vai narrar ainda uma última virada secular no pensamento europeu: a ideia de homo oeconomicus. O conceito de Homem alcança uma versão ainda mais secularizada que se define pela capacidade de mobilizar recursos em um cenário de escassez na busca da manutenção da sobrevivência. Os pares de oposição racional/irracional e civilização/selvageria da noção do homo politicus ganham uma nova camada com os pares selecionados/não selecionados, evoluídos/involuídos, especialmente após a influência do darwinismo no pensamento biológico e social.

Enfim, a ênfase de Wynter diz respeito a como a história do Homem enquanto mapa - uma representação - tomado como território - o conjunto das possibilidades e experiências - teve um efeito brutal para a humanidade, com a subjugação e a repressão de diversas autoconcepções de humanidade.

Nesse contexto, a invenção global da categoria de Alteridade Humana com base na subjugação institucionalizada destes seres humanos classificados como Índios, Nativos, Negros, niggers foi indispensável não somente para a encenação de um código sociogênico e sua dialética de uma “vida simbólica” evoluída/selecionada e uma “morte simbólica” involuída/não selecionada, mas também para a sobrerrepresentação dessa etnoclasse ou o gênero burguês ocidental ou modo de ser humano, como se fosse a própria noção de humano. Uma sobrerrepresentação que, portanto, teve que reprimir a realidade de autoconcepções e códigos sociogênicos bastante diferentes de múltiplos grupos agora subordinados e classificados como nativos (Wynter 2006WYNTER, Sylvia. 2006. “On How We Mistook The Map for the Territory, and Re-Imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being, of Désêtre - Black Studies Toward the Human Project”. In: L. Gordon & J. Gordon (orgs.), Not Only the Master’s Tools - African-American Studies in Theory and Practice. Boulder/Londres: Paradigm Publishers.:128s, tradução nossa16 16 No original: “In this context, the invention of the global category of the Human Others on the basis of the institutionalized subjugation of those human beings classified as Indians, Natives, Negroes, Niggers was indispensable no only to the enactment of the new sociogenic code and its dialectic of evolved/selected ‘symbolic life’ and non evolved dysselected ‘symbolic death’ but also to the over representation on this ethno-class or Western bourgeois genre or mode of being human, as if it were that of the human itself. An over representation, which therefore had to repress the reality of the quite different self conceptions and sociogenic codes of the multiple groups now subordinated and classified as natives [.]” ).

Os efeitos perversos da sobrerrepresentação do Homem em face da humanidade fizeram do projeto humanista renascentista um fracasso intelectual. Para Wynter, a potência emancipatória de um humanismo não chegou a se realizar por essa confusão entre um código sociogênico formulado histórica e geograficamente na Europa desde o final da Idade Média - a humanidade para si - e a humanidade em si.

É nesse sentido que Wynter afirma que a desvalorização da negritude é um sintoma de um problema mais profundo. Tal simplificação da humanidade na noção de Homem e a repressão de múltiplos códigos sociogênicos que apontam para uma diversidade de modos de ser humano é uma desvalorização da própria humanidade. A desvalorização da negritude é um problema de toda humanidade, da autoconcepção perversa e repressora que se estabeleceu hegemonicamente. Fica nítida a influência de Frantz Fanon e de Aimé Césaire na sua percepção de que a antinegritude envolve a desumanização tanto de pessoas negras - desumanizadas tornadas escravizadas - quanto de pessoas brancas - desumanizadas tornadas senhores.

O projeto intelectual de Wynter, assim, é o de um resgate radical do humanismo. A produção de uma autoconcepção de humano que não recaia na desvalorização de determinados códigos sociogênicos é a empreitada epistêmica que Sylvia Wynter coloca para nós. Porém, não é na academia e na divisão disciplinar atual que Wynter deposita suas esperanças para o resgate desse humanismo radical. A universidade, em seu atual modelo, precisaria de uma profunda reconstituição epistêmica para ser capaz de formular esse humanismo radical, como Wynter deixa nítido no seu texto de 1992 sobre o acrônimo N.H.I. - No Humans Involved [Nenhum Humano Envolvido].

Nenhum humano envolvido: pela reconstituição epistêmica da universidade

Ao longo de seis dias, entre abril e maio de 1992, uma série de protestos ocorreu nas ruas da cidade de Los Angeles. O estopim foi a absolvição de quatro policiais acusados de uso excessivo da força durante a prisão de Rodney King, homem negro e trabalhador da construção civil violentamente espancado pelos policiais. King estaria dirigindo em alta velocidade e, após negar os pedidos da polícia para encostar o carro, uma breve perseguição terminou com seu carro encurralado pelo reforço policial (que contara, inclusive, com um helicóptero). Após sair do carro e receber ordem de prisão, ele foi espancado. A violência policial foi registrada em vídeo amador por um vizinho que observava da varanda de seu apartamento, e o vídeo foi amplamente veiculado nas emissoras de TV dos Estados Unidos e de outros países. O caso foi a julgamento em Simi Valley, cidade branca e reduto conservador da política estadunidense, distante 65 km de Los Angeles, sob a justificativa de busca por um júri imparcial. O júri, composto por dez homens brancos, um latino e um asiático, decidiu pela absolvição dos policiais. Após a decisão, os protestos de Rodney King [Rodney King riots] tomaram as ruas de Los Angeles. Os protestos foram massacrados pela Guarda Nacional da Califórnia, pelo Exército e pela Marinha estadunidenses. Ao final dos seis dias, 63 pessoas tinham sido mortas; mais de 2 mil, feridas, e mais de 12 mil, presas. O bairro mais afetado foi o de Koreatown, na área central de Los Angeles.

Nos dias seguintes à decisão do júri sobre a absolvição dos policiais e em meio aos Rodney Riots, como ficaram conhecidos os protestos, veio a público o uso rotineiro que policiais e funcionários públicos do sistema judicial de Los Angeles faziam do acrônimo N.H.I. Trata-se de um acrônimo para No Humans Involved [numa tradução livre, “nenhum humano envolvido”], utilizado para se referir a crimes que envolvem assassinatos ou violações de direitos de jovens negros desempregados, moradores de periferia.17 17 Wynter usa o termo ghetto para se referir aos guetos nos centros das grandes cidades. Optamos por usar o termo periferia por entender que a lógica por trás desse processo de categorização e desumanização se replica nas periferias - entendendo as periferias não como definidas exclusivamente por sua localização geográfica, mas sim como territórios produzidos que envolvem a produção de populações dispensáveis do ponto de vista da branquidade e do capital. /18 18 Atualmente, o acrônimo ainda é utilizado para se referir também a assassinatos e violações de direitos de profissionais do sexo, imigrantes, pessoas sem teto e em situação de rua, pessoas adictas e pessoas envolvidas no mundo do crime (Portland Institute for Contemporary Art 2019).

No Humans Involved: An Open Letter to my Colleagues foi uma carta de Sylvia Wynter escrita em 1992, após os protestos, e publicada em 1994 por um coletivo estudantil, o Forum N.H.I. Knowledge for the 21st Century. Trata-se de um texto de cerca de 30 páginas que tem como principal objetivo mostrar como a perspectiva epistemológica que possibilitou classificar os jovens negros desempregados como não humanos também operava e era retroalimentada pela intelectualidade na universidade. Seu argumento é de que o que a polícia faz com jovens negros é a mesma coisa que a universidade, com sua intelectualidade e disciplinariedade, faz com a raça. A operação epistemológica que relega um conjunto de pessoas à condição de desumanidade sumarizada no acrônimo N.H.I. é a mesma que reordena os Black studies como distintos de uma humanidade universal. Trata-se, assim, de uma contribuição seminal sobre a branquidade presente no pensamento social norte-americano e, por extensão, nos discursos humanistas.

Wynter (2021WYNTER, Sylvia. 2021 [1994]. “Nenhum Humano Envolvido: Carta Aberta a Colegas”. Trad. de Stella Z. Paterniani e Patricia D. Fox. In: C. Barzaghi; S. Paterniani & A. Arias (orgs.), Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: crocodilo/n-1.) busca mostrar como os brancos norte-americanos fundem as concepções de humano e de branco norte-americano de tal forma que os jovens negros são categorizados e percebidos como não humanos. No início do texto, a autora rememora um caso anterior ao de Rodney King, quando, diante de numerosas mortes de homens negros jovens causadas por uma arma de choque específica utilizada pela polícia de Los Angeles, o chefe de polícia justificou esses assassinatos argumentando que homens negros teriam algo de anormal em suas traqueias. Esta percepção da juventude negra como desumana, como formada pela ausência do componente humano é, a um só tempo, política e epistemológica: tem a ver com uma obsessão classificatória que autoriza e orienta um modo de agir de oficiais de justiça e outros funcionários públicos do mundo judicial diante de uma categoria de humanos específica, constantemente produzida como Outra.

Essa categoria é racial. Preocupada com processos históricos e empíricos que estabelecem a humanidade, Wynter remonta a W. E. B. Du Bois para enfatizar como o código racial predeterminou globalmente a distribuição desigual de recursos. Seu argumento é que as desigualdades econômicas são intrinsecamente vinculadas a desigualdades raciais.19 19 Destacamos também argumentos sobre a acumulação primitiva como banimento racial (Roy 2017), propriedade como branquidade (Harris 1993) e capitalismo racial (Robinson 2000). No Caribe e na América Latina, ser “rico” é também ser “branco”, e ser “pobre” é também ser “negro”. No contexto do capitalismo estadunidense, essa cisão se atualiza em detentores (seja de meios de produção, seja de força de trabalho) e em não detentores, ou não proprietários. Os detentores seriam os equivalentes aos brancos, portanto, integrando a humanidade. Os não detentores, os despossuídos, equivalentes aos negros.

É por isso que a categoria de “desempregado” (jobless) é fundamental para Wynter. É o jovem negro desempregado morador dos guetos, ou da periferia, que a categoria N.H.I. abarca. É o jovem negro desempregado morador de periferia o exemplo mais nítido de quem não se embranqueceu pelo trabalho - essa categoria produtora de humanidade, de acordo com a episteme moderna. É o jovem negro desempregado morador de periferia o excluído da humanidade. É o jovem negro desempregado morador de periferia a atualização histórica desumanizada da plantation.

Mas de onde vem essa obsessão classificatória com a produção de um Outro racial sempre tomado como inferior?, pergunta-se Wynter. Raça e sua lógica classificatória estão presentes em uma premissa fundante da episteme moderna, isto é, do conjunto de saberes e significados que organiza o mundo: a separação entre natureza e cultura, com a natureza existindo antes da cultura, e a humanidade como organismo que existe em plena continuidade com a vida orgânica (isto é, da natureza). Essa premissa opera desde a lógica judaico-cristã e é atualizada na lógica econômica liberal.

As humanidades e as disciplinas como a antropologia falharam, de acordo com Wynter, em romper plenamente com essa premissa, na medida em que não foram bem sucedidas em distinguir o comportamento humano e as estruturas culturais inconscientes dos processos empíricos que conectam a humanidade à natureza. A ideia da cultura como sobreoperadora da natureza, a ideia de construção cultural, tudo isso não rompeu com essa premissa, pelo contrário: o pressuposto de que a vida biológica constitui a humanidade e a cultura aparece depois, como acoplamentos e modulações da vida biológica, estabelece as disciplinas como são e as divide.

Essa constituição e divisão disciplinar é herança da lógica presente na economia de plantation. Borges (2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very Rural Background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada Educação Superior”. Revista de Antropologia, v. 63 (3), set.-dez.) nos apresenta a ideia da universidade como duplamente formada por sua composição-terra e composição-plantation. Esta última precisamente definida como “existência [da universidade] predadora de um Outro constituído para fins de perpetuação dos próprios meios de produção - que se tornam inquestionáveis - e sua principal mercadoria, ou seja, as instituições de pesquisa e ensino superior e o conhecimento para a expansão capitalista” (Borges 2020). Nas palavras de Wynter:

A analogia que quero fazer aqui é a seguinte. Se a casta, ostensiva e divinamente ordenada como princípio organizativo da ordem europeia feudal-cristã era fundamentalmente assegurada pelo Absolutismo da ordem de conhecimento da Escolástica (incluindo aí a geografia pré-Colombo da terra e a astronomia cristã-Ptolemaica pré-Copérnico), a genética, ostensiva e evolucionariamente determinada como princípio organizativo de nossa era humanista-liberal, expressa por meio das hierarquias empíricas de raça e classe (junto com os tipos de papéis de gênero distribuídos entre homens e mulheres, necessários à manutenção de tais hierarquias sistêmicas) é fundamentalmente assegurada por meio de nossas disciplinas das humanidades e das ciências sociais como são hoje (Wynter 1994WYNTER, Sylvia. 1994. “No Humans Involved: An Open Letter to My Colleagues”. Forum N.H.I. - Knowledge for the 21st Century. v. I, n. I, outono.:53, tradução nossa20 20 No original: “The analogy I want to make here is this. That if the ostensibly divinely ordained caste organizing principle of the Europe’s feudal-Christian order was fundamentally secured by the Absolutism of its Scholastic order of knowledge (including its pre-Columbus geography of the earth and its pre-Copernicus Christian-Ptolemaic astronomy), the ostensibly evolutionarily determined genetic organizing principle of our Liberal Humanist own, as expressed in the empirical hierarchies of race and class (together with the king of gender role allocation between men and women needed to keep these systemic hierarchies in place) is fundamentally secured by our present disciplines of the Humanities and Social Sciences.” ).

Ainda segundo Wynter (2003WYNTER, Sylvia.2003. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom:Towards the Human, After Man, Its Over-Representation--An Argument. CR:The New Centennial Review 3, 3:257-337, 2003), as disciplinas

devem funcionar, como todas ordens de conhecimento humanos fizeram da origem do continente da África até hoje, como uma forma de vida dita em linguagem, para garantir que continuemos a conhecer a nossa ordem atual da realidade social, e rigorosamente, na adaptação dos termos da “verdade-para” como necessários para conservar a afirmação descritiva vigente. Ou seja, aquela que nos define de forma biocentrada a partir do modelo de organismo natural, com esta definição a priori servindo para orientar e motivar comportamentos individuais e coletivos, por meio dos quais o sistema mundo ou a civilização contemporânea ocidental, juntamente com suas subunidades de Estado-nação, é (re)produzida de forma estável. Isso, ao mesmo tempo, garante que, como ocidentais e intelectuais ocidentalizados, continuemos a articular, de forma tão radicalmente oposicionista, as regras da ordem social e suas teorias sancionadas (Wynter 2003WYNTER, Sylvia.2003. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom:Towards the Human, After Man, Its Over-Representation--An Argument. CR:The New Centennial Review 3, 3:257-337, 2003:170-1 citada em Gagné 2018GAGNÉ, Karen. 2018. “Sobre a obsolescência das disciplinas: Frantz Fanon e Sylvia Wynter propõem um novo modo de ser”. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2(1):44-65.:49).

É aí que reside a aposta inicial de Sylvia Wynter nos Black studies: como possibilidade de desvencilhar a universidade de sua composição-plantation, ao rever sua premissa epistemológica fundante, na medida em que os Black studies propõem uma refundação da história que rompa com a premissa da separação entre natureza e cultura. A aposta epistemológica e ontológica radical dos Black studies, ou pensamento negro radical, ou estudos pretos insubmissos, envolve reconhecer bases contracoloniais de refundação da história da humanidade. Não se trata de reivindicar um segmento da história ou uma especificidade histórica, mas sim de refundá-la. Regina Jennings (2002JENNINGS, Regina. 2002. “Cheikh Anta Diop, Malcolm X, and Haki Madhubuti: Claiming and Containing Continuity in Black Language and Institutions”. Journal of Black Studies, v. 33, n. 2: 126-144, 13th Cheikh Anta Diop Conference Selected Proceedings, Nov.) identifica a importante influência de Cheik Anta Diop (1954DIOP, Cheikh Anta. 1954. Nations nègres et culture. Paris: Présence Africaine., 1967, 1977) nessa tradição, a partir de seu argumento acerca do Egito como civilização negro-africana, disputando a história desde a crítica ao paradigma da história europeia.

Wynter identifica em Fanon a elaboração intelectual revolucionária que rompe com o modelo da plantation: o conceito de sociogenia. A sociogenia se afasta tanto de concepções biologizantes e positivistas quanto de construcionistas. Trata-se de uma via de mão dupla: a cultura não é entendida como a sobreoperação da natureza, mas a cultura também produz o que se entende como aparato biológico e psíquico, porquanto produz o que é entendido como humanidade. Dito de outra forma, a sociogenia também produz a ontogenia. A sociogenia, portanto, faz frente ao pressuposto constitutivo da cisão disciplinar entre as ciências naturais e as humanidades, a saber, o de que a vida biológica constitui a humanidade e que a cultura é formada por acoplamentos a essa vida biológica. Os Black studies aparecem como uma possibilidade de rever esse pressuposto na medida em que refutam essa cisão fundante.

Na avaliação de Wynter, no entanto, os Black studies também falharam em realizar a revolução sociogênica, isto é, falharam em incorporar a sociogenia como orientadora da episteme do mundo, refundando a história da humanidade. Inicialmente, os Black studies, vinculados ao movimento Black power, à estética negra e às lutas por libertação nacional, apresentaram-se como portadores dessa revolução do pensamento, de um pensamento orientado pelo princípio genético para o pensamento orientado pelo princípio sociogênico. No entanto, esses movimentos, ao serem incorporados pela universidade e sua composição-plantation, foram pacificados sob a ideologia do multiculturalismo e cooptados sob os formatos de etno-história (Wynter 2006; Kelley 2016KELLEY, Robin. 2016. “Black Study, Black Struggle”. Boston Review, 07 de março de 2016. Disponível em: Disponível em: http://bostonreview.net/forum/robin-d-g-kelley-black-study-black-struggle . Acesso em 30/09/2020.
http://bostonreview.net/forum/robin-d-g-...
; Gagné 2018GAGNÉ, Karen. 2018. “Sobre a obsolescência das disciplinas: Frantz Fanon e Sylvia Wynter propõem um novo modo de ser”. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2(1):44-65.). Na metáfora de Wynter: essa revolução foi realizada no nível do mapa, não do território. Os Black studies foram decalcados em estudos étnicos sob a rubrica do multiculturalismo, reproduzindo, no decalque, o modo de funcionamento da universidade disciplinada sob a premissa fundante da história ocidental, a cisão natureza-cultura, e a confusão entre história do Homem e história da humanidade.

Humanismo radical

A constatação de que o humanismo falhou na medida em que se impôs como história do Homem - branco, europeu, ocidental, burguês - sobre a história da humanidade aliado ao diagnóstico de que os Black studies também falharam ao não realizarem a emancipação completa da humanidade tem por consequência, no pensamento de Sylvia Wynter, a proposição de uma radicalidade na elaboração de um novo humanismo. A ousadia de Wynter na proposição de um novo humanismo fica mais evidente em sua abordagem original sobre a jornada ultramarina de Cristóvão Colombo.

Wynter toma para si um novo projeto e desafio: elaborar uma interpretação inteiramente nova de 1492, que se afastasse tanto da perspectiva puramente celebratória ocidental quanto da perspectiva puramente contestatória e crítico-reativa à primeira: “Eu me perguntava: ‘e se tentássemos olhar para isso para ver o que significou não apenas dentro dos termos da história ocidental, mas no nível da história humana como um todo?” (Wynter 2000:191, tradução nossa21 21 No original: “What if we were to try to look at it, I thought to myself, to see what it had meant not just within the terms of Western history but at the level of human history as a whole?” ). Esta perspectiva levou Wynter a elaborar a crítica do humanismo cristão de Colombo, ao reconhecer que 1492 instaura o início de novas possibilidades emancipatórias para a humanidade: a possibilidade de emancipar-se dos mecanismos que tornam opaca a nós mesmos a realidade da nossa agência em relação a programar e reprogramar nossos desejos, comportamentos, mente, o eu e o nós.

Colombo comungava do milenarismo, uma versão marginal do Cristianismo que rompia com o pensamento corrente da época, isto é, o de que o mundo era dividido em mares navegáveis e não navegáveis, e terras habitáveis e inabitáveis. O milenarismo defendia que todos os mares são navegáveis e todas as terras, habitáveis. Nesse sentido, a aventura ultramarina de Colombo, para Wynter, tem um ímpeto de ruptura com o status quo da época, sobretudo com as perspectivas de homogeneização do mundo e de oposições classificatórias binárias, como entre terras habitáveis e terras não habitáveis. Em um primeiro momento, esse lançar-se ao mundo desconhecido contra qualquer perspectiva de homogeneização e simplificação binária do mundo é reivindicado por Wynter.

No entanto, essa emancipação é realizada apenas parcialmente. Assim que as caravelas atracam e Colombo pisa nas terras do Caribe, a divisão do mundo entre terras habitáveis e terras não habitáveis é atualizada na divisão entre o Homem e o Outro (negros, índios, nativos). O ímpeto emancipatório de romper com a homogeneização do mundo e navegar para terras desconhecidas não se converte em um ímpeto de reconhecer as humanidades realmente existentes e produzir novas sínteses com tais noções de humanidade. A potência da aventura ultramarina de Colombo se transforma em degradação e destruição da humanidade. A história da humanidade e a ousadia de navegar por mares não navegáveis rumo ao desconhecido foram confundidas com a expansão do Ocidente e a história do Homem. Para a emancipação completa do humano será preciso restaurar a diferença entre humanidade e expansão ocidental - reconhecer o Ocidente como um decalque da humanidade.

Wynter vai recorrer novamente a Fanon para compreender o evento da chegada de Colombo às Américas em 1492. Para ela, o autor martinicano, ao formular a ideia de que a definição da humanidade vai para além da sua condição de espécie biológica e que existem códigos sociogênicos que produzem a diversidade da humanidade, cria a possibilidade de embarcarmos rumo ao desconhecido do humano não homogeneizado por uma concepção de Homem, rumando para além da universalização dos princípios organizativos da nossa era humanista-liberal, expressos por meio das hierarquias empíricas de raça e classe. Assim como Colombo embarcou em sua aventura ultramarina desafiando a divisão do mundo entre mares navegáveis e mares não navegáveis, Wynter propõe, com Fanon, um humanismo radical, que desfaça a confusão entre mapa e território na conceituação da humanidade. Um humanismo que funcione mais como o mistério das marés, e menos como as caravelas que colonizam os mares:

“A natureza não poderia ter colocado coisas tão fora de uma proporção” e “Mare totum navegable” (Todo mar é navegável), afirmou Colombo enquanto se movia para um reino além da razão convencional de seu tempo. “Além da ontogenia, existe a sociogenia”, propôs Fanon, enquanto ele, também, foi além do nosso (Wynter 1995WYNTER, Sylvia.1995. “1492: A New World View”. In: Vera Lawrance Hyatt & Rex Nettleford (orgs.), Race, Discourse and the Origin of the Americas. Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.:50, tradução nossa22 22 No original: “‘Nature could not have put things so out of proportion’ and ‘Mare totum navegable’, Columbus argued as he moved into a realm beyond the conventional reason of his time. ‘Besides ontogeny, there is sociogeny’, Fanon proposed, as he, too, moved beyond that ours.” ).

É assim que Wynter compreende a história, opondo-se à ideia de que toda história seja uma etno-história - seja da Europa Ocidental, seja dos povos ameríndios. A aposta de Wynter segue o sentido sartriano de compreensão da história como um chão comum que permite transitar entre os acontecimentos sem transformá-los em “étnicos” ou sem confundi-los com a história ocidental. Em um certo sentido, Wynter está atribuindo à formulação de código sociogenético de Fanon algo parecido com o que anos mais tarde será entendido como a “virada ontológica” na Antropologia: uma concepção híbrida de natureza-cultura (Gagné 2018GAGNÉ, Karen. 2018. “Sobre a obsolescência das disciplinas: Frantz Fanon e Sylvia Wynter propõem um novo modo de ser”. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2(1):44-65.). Por isso, ela entende os Black studies com um potencial de transformar toda a estrutura das disciplinas acadêmicas, e não só as humanidades. No entanto, diferente da virada ontológica na Antropologia, Wynter enxerga o chão comum na história. Não se trata de compreender nem conceber etno-histórias - ou etno-ontologias, em um exercício com o debate antropológico atual - mas naturezas-culturas distintas produzidas com o pano de fundo de uma história comum.

Assim, essa refundação do humanismo proposto por Wynter é necessariamente um exercício de trânsito, de jogar-se no mundo. Wynter propõe a fuga do esquadrinhamento disciplinar e acadêmico que produz as caixinhas étnicas para manter intacta a história do Homem como história da humanidade. No humanismo radical, é preciso caminhar no território de múltiplas naturezas-culturas, sem que esse caminhar implique estabelecer uma natureza-cultura única como referência. E o que permite andarmos por esses mundos não são estruturas inconscientes subjacentes ao humano, mas a história comum da humanidade. Considerando a contribuição de Bateson (2000BATESON, Gregory. 2000 [1972]. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of Chicago Press.), confundir o mapa com o território é uma operação esquizofrênica que confunde a existência com uma representação tornada universal. A plantation e sua desumanização, seja na plantação de açúcar ou nas universidades, são a continuidade de uma esquizofrenia que não reconhece o mundo como composição.

Considerações finais

O projeto intelectual de Sylvia Wynter, desde sua crítica da plantation, fornece-nos uma análise da formação e replicação do sistema mundial ocidental moderno que vai além tanto dos enquadramentos neoliberais e positivistas quanto dos marxistas contestatórios e construcionistas. Tomando como ponto de partida a obsessão classificatória racial como episteme da modernidade, a nova explicação de Wynter carrega consigo o humanismo radical de uma formulação de ser humano como Homo narrans23 23 Agradecemos a Patricia D. Fox por essa indicação (comunicação pessoal). - um ser híbrido que se autoinstitui (biológica e narrativamente). O reconhecimento desse ser é possível por meio da revolução fanoniana, sobretudo ao desenvolver seu conceito de sociogenia, isto é, o princípio da humanidade como autopoiesis, natureza-cultura, sem a sobredeterminação cultural ou a unidade estritamente biológica da espécie.

Para Wynter, há três revoluções intelectuais definidoras da história da humanidade: a copernicana, a darwinista - ambas concluídas - e a fanoniana - ainda inconclusa. Trata-se de revoluções intelectuais porque ousam desafiar as tendências hegemônicas de suas épocas. Considerando que a antinegritude implica a desvalorização de toda a humanidade, Wynter identifica os Black studies e sua refundação epistêmica como protagonistas da revolução fanoniana. Seu fracasso, no entanto, se deu, historicamente, devido à pacificação dos Black studies em etno-história por meio da composição-plantation da universidade (Borges 2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very Rural Background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada Educação Superior”. Revista de Antropologia, v. 63 (3), set.-dez.).

Refundar o evento histórico de 1492, a metáfora do mapa e do território e a persistência de sua análise sobre N.H.I. expressam a ousadia de Wynter em suas formulações sobre o humanismo. Ao nos convidar a navegarmos o mundo e não nos atermos somente às representações, Wynter assume uma posição radical: para vencer a plantation e sua perpetuação epistemicida e genocida é preciso não separar o mundo entre terras habitáveis e inabitáveis; é preciso ousar conceber todo mar como navegável. O mundo escapa a classificações e hierarquias entre humanidades e desumanidades; Wynter nos convida a ir além dos mapas-decalques que estão disponíveis, e nos fornece um arcabouço conceitual e crítico indispensável para a viabilidade e a sobrevivência coletiva das humanidades.

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  • 1
    Agradecemos a Patricia D. Fox e a Antonádia Borges, Roberto Sobral e participantes do Grupo de Estudos em Teoria Antropológica (Gesta) pelas discussões e apontamentos que nos ajudaram a refinar os argumentos aqui apresentados. Agradecemos também aos pareceristas anônimos pelo estímulo para a publicação.
  • 2
    No original: “So this takes us back to the institution of the slave plantation system, the encomienda system. Now, from the very beginning of the modern world, the people from whom I will descend, the negros/negras who are interned in the slave plantation, would have found themselves experiencing the destructive underside of the “broader narrative”. While we who are their descendants would have clearly continued to experience the negative legacy of the powerlessness, the everyday impoverishment that this broader narrative would have prescribed for us. [...] I knew what it was like to have written stories about historical events that had taken place in England, even though I had never been there. For the fact was that I knew nothing about my own historical reality, except in the negative terms, that would have made it normal for me, as Fanon points out, both to want to be a British subject and, in so wanting, to be anti-black, anti-everything I existentially was. I knew what it was to experience a total abjection of being.”
  • 3
    No original: “The enslaved perceptively and conceptually became homogenous units of labor, planted in the New World not to inhabit (people, settle) the land but to mechanically produce monocrops and fuel the economic system (1-3). The plantation system, above all, sought profit. It follows that the enslaved units of labor, as owned property, were embedded in a system that benefited from, and calcified, their nonpersonhood and nonbeing; and it is precisely because they were planted in the New World not as “buyers and sellers” but as commodities that were “bought and sold” that black enslaved peoples in the New World were at once alienated from and implicated in the racial economy as nonbeings/nonconsumers/mechanized labor (232). Put differently, the plantation context required the impossibility of black humanity.”
  • 4
    Utilizamos aqui o conceito de epistemicídio como proposto por Sueli Carneiro (2005), que racializa o conceito de Boaventura de Souza Santos, ao destacar que as práticas, os modos de conhecer e os grupos sociais tornados subalternizados, marginalizados, ilegais por atrapalhar a marcha do capital são os grupos não brancos.
  • 5
    No original: “The sugar plantation has been the most civilising as well as the most demoralising influence in West Indian development”.
  • 6
    Dentre os principais conflitos estão a Primeira (1728-1739) e a Segunda Guerra Maroon (1795-1796) e a Guerra de Tacky (1760).
  • 7
    Garvey foi um controverso ativista sindical e empresário pan-africanista que fundou algumas das mais importantes organizações políticas negras jamaicanas do período, com destaque para a Universal Negro Improvement Association (UNIA). Garvey ultrapassou as fronteiras da Jamaica levando a UNIA a outros países do Caribe, aos EUA, à Libéria e à África do Sul, atraindo multidões de associados pelos ideais de libertação e orgulho negro (Rabelo 2013).
  • 8
    No original: “Black Power recognizes both the reality of black oppression and self-negation as well as the potential for revolt.”
  • 9
    O livro de Wright é escrito após a participação do autor na Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, que foi também um marco importante que reuniu lideranças de países da Ásia e da África para reafirmar apoio mútuo, solidariedade e respeito pela soberania nacional e autodeterminação das nações que viriam a compor o Movimento dos Não Aliados num mundo então bipolar dividido em blocos militares. Considerada por Samir Amin “o primeiro despertar do Sul”, ela acontece na conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial, que também testemunhará o radicalismo nas ações e no pensamento, ancorado nas lutas por libertação nacional, no pan-africanismo e na gestação de ideias que depois viriam a se chamar terceiro-mundistas. Esse período foi marcado por ações políticas massivas - radicais e reacionárias - em várias partes do mundo. Com a tensão geopolítica da Guerra Fria como pano de fundo e a influência global das Revoluções Chinesa e Cubana, emergiram o movimento por direitos civis nos Estados Unidos, os objetores de consciência da guerra do Vietnã e o movimento Black power.
  • 10
    A Universidade das Índias Ocidentais é um sistema universitário público vinculado à Universidade de Londres que envolve dezessete países da região do Caribe, fundado em 1948.
  • 11
    No original: “[W]hat struck me rereading it was that when Elsa Goveia says that one of the reasons we began to write in the clash of the anticolonial struggle was the desire to challenge the central belief system on which our societies were founded, the belief that the fact of blackness is a fact of inferiority and that of whiteness a fact of superiority. When I reread the novel, I could see that that was exactly what I was then doing. I was grappling with this, with a world in which the fact of blackness had non-arbitrarily, and necessarily, to be a fact of inferiority. That’s what I was grappling with, the refusal, the challenging, of that premise.”
  • 12
    Elsa Goveia (1925-1980) foi uma historiadora e humanista. Ela é autora de vários livros inovadores sobre a história do Caribe, incluindo o seminal A Study on the Historiography of the British West Indies. [No original: “Elsa Goveia (1925-1980) was a historian and a humanist. She is the author of several path-breaking books in Caribbean history including the seminal A Study on the Historiography of the British West Indies (1956; reprint, Washington, DC: Howard University Press, 1980)”].
  • 13
    A revolta de Morant Bay ocorreu em 1865. Seu estopim foi a prisão de um trabalhador negro que ousou invadir uma plantação de açúcar abandonada. A revolta foi violentamente massacrada pela polícia, deixando mais de 600 mortos.
  • 14
    O jornal Daily Gleaner, especialmente, publicou um poderoso editorial no qual atacava a ideia de a Jamaica participar em qualquer comemoração à viagem de Colombo, pois fora ela a responsável por tanto sofrimento e desastre levado aos povos do Novo Mundo e da África.
  • 15
    No original: “What do you do with an event like that? On the one hand, the large-scale brutalization, in the end, the total extinction of the Arawaks; from 1518 onwards, the middle passage trauma of the enslaved Africans, the epidemic of death, the horrors of their slave plantation existence when they reached the shore. Yet on the other, this is also the event that is going to make our own existence possible; it is going to bring the modern world into being, is going to change reality for all of us, insert us into the single history we now live. So how do you approach it?”
  • 16
    No original: “In this context, the invention of the global category of the Human Others on the basis of the institutionalized subjugation of those human beings classified as Indians, Natives, Negroes, Niggers was indispensable no only to the enactment of the new sociogenic code and its dialectic of evolved/selected ‘symbolic life’ and non evolved dysselected ‘symbolic death’ but also to the over representation on this ethno-class or Western bourgeois genre or mode of being human, as if it were that of the human itself. An over representation, which therefore had to repress the reality of the quite different self conceptions and sociogenic codes of the multiple groups now subordinated and classified as natives [.]”
  • 17
    Wynter usa o termo ghetto para se referir aos guetos nos centros das grandes cidades. Optamos por usar o termo periferia por entender que a lógica por trás desse processo de categorização e desumanização se replica nas periferias - entendendo as periferias não como definidas exclusivamente por sua localização geográfica, mas sim como territórios produzidos que envolvem a produção de populações dispensáveis do ponto de vista da branquidade e do capital.
  • 18
    Atualmente, o acrônimo ainda é utilizado para se referir também a assassinatos e violações de direitos de profissionais do sexo, imigrantes, pessoas sem teto e em situação de rua, pessoas adictas e pessoas envolvidas no mundo do crime (Portland Institute for Contemporary Art 2019).
  • 19
    Destacamos também argumentos sobre a acumulação primitiva como banimento racial (Roy 2017), propriedade como branquidade (Harris 1993) e capitalismo racial (Robinson 2000).
  • 20
    No original: “The analogy I want to make here is this. That if the ostensibly divinely ordained caste organizing principle of the Europe’s feudal-Christian order was fundamentally secured by the Absolutism of its Scholastic order of knowledge (including its pre-Columbus geography of the earth and its pre-Copernicus Christian-Ptolemaic astronomy), the ostensibly evolutionarily determined genetic organizing principle of our Liberal Humanist own, as expressed in the empirical hierarchies of race and class (together with the king of gender role allocation between men and women needed to keep these systemic hierarchies in place) is fundamentally secured by our present disciplines of the Humanities and Social Sciences.”
  • 21
    No original: “What if we were to try to look at it, I thought to myself, to see what it had meant not just within the terms of Western history but at the level of human history as a whole?”
  • 22
    No original: “‘Nature could not have put things so out of proportion’ and ‘Mare totum navegable’, Columbus argued as he moved into a realm beyond the conventional reason of his time. ‘Besides ontogeny, there is sociogeny’, Fanon proposed, as he, too, moved beyond that ours.”
  • 23
    Agradecemos a Patricia D. Fox por essa indicação (comunicação pessoal).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2021
  • Aceito
    13 Set 2022
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