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Dying by degree

Apresentação

Em 24 de junho de 2022, entrevistei o professor Francis Beng Nyamjoh.1 1 Gostaria de agradecer a presença de Gustavo Belisário na entrevista e as contribuições feitas por Joaze Bernardino-Costa, José Roberto Sobral e Stella Paterniani. Esta entrevista foi transcrita por Keamogetse Mosienyane, traduzida por Marília Sene Lourenço e revisada por Maria Lúcia Resende Barreto Vianna, a quem sou extremamente grata. Nossa conversa durou quase duas horas. O que temos aqui são excertos relacionados a reflexões suas que tangenciam ou atravessam diretamente o tema deste dossiê: dessenhorizar a universidade. Aqui ele nos falará da relação entre os conceitos de incompletude, convivialidade e mobilidade e dos desafios que sondam aqueles que vivem da e para a educação superior em países colonizados e racistas, como os nossos.

Nyamnjoh esteve no Brasil em 2013, para o 37º. Encontro Anual da Anpocs que aconteceu em Águas de Lindóia. Sua participação se deu no âmbito de um seminário temático sobre os chamados BRICS.

Havia evidentes fissuras no sólido monumento à pujança econômica do Brasil e aos seus afamados programas sociais de inclusão. Os participantes do Encontro da Anpocs eram majoritariamente brancos. Tratava-se de um diorama da academia brasileira. Movimentos derrubacionistas - como o #rhodesmustfall analisado por Nyamnjoh - estavam em curso também por aqui, de diversas naturezas e com diferentes propósitos.

Como veremos na conversa que se segue, a noção de incompletude elaborada por Nyamnjoh pode colaborar para que entendamos, retrospectivamente, os alcances, os limites e as transformações pelas quais passou a universidade brasileira desde então. Talvez nos ajude também a cogitar hipóteses de ação futura.

Nyamnjoh é professor no centenário Departamento de Antropologia na Universidade da Cidade do Cabo. Anteriormente, foi professor nos Camarões e em Botsuana, além de chefe de publicações do Codesria - Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África, em Dakar. Natural de Bamemba, nos Camarões, país que, nos alerta, foi por ao menos dois séculos “o maior reservatório de escravizados para o tráfico Atlântico”. Em sua terra natal, dirige uma editora independente chamada Laanga. Nutre especial interesse por “situações reais de pessoas reais em toda a sua complexidade”, que nos permitam “criar espaços teóricos para a compreensão das negociações, interdependências e intersubjetividades próprias de processos criativos na África pós-colonial e além”. Nyamnjoh também se dedica à literatura, como autor de ficção, e é crítico literário. Além de seus vários romances, toma a obra de outros autores do continente africano - dentre muitos, Chinua Achebe e Amos Tutuola - como inspiração para propor teoricamente o que chama de uma “convivial scholarship”. Em suas palavras, uma vida acadêmica convivialista, diferentemente das epistemologias ocidentais, “não impõe o que significa ser humano, assim como não prescreve uma versão única do que seria A boa vida em um mundo povoado por infinitas possibilidades, gostos e valores” (Nyamnjoh 2017:6NYAMNJOH, Francis. B. 2017. Drinking from the Cosmic Gourd: How Amos Tutuola Can Change Our Minds. Bamenda: Langaa Research & Publishing .).

A leitura da obra de Nyamnjoh nos ensina a ter mais cautela com os arroubos totalizantes que, todavia, aproximam o exercício antropológico do avanço colonial.

Trata-se de uma proposta lúcida, que finca nossos pés na terra (absolutamente necessária) e que nos aponta para a vastidão do que se descortina à nossa frente.

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BORGES: Professor Nyamnjoh, você poderia começar nos falando sobre a trajetória de suas ideias, especialmente o conceito de incompletude? Qual a relação entre sua biografia e sua crítica política e epistemológica contra a subserviência aos modos do discurso europeu e sua transmissão viral pelo mundo através das universidades e outras instituições acadêmicas?

NYAMNJOH: Gostaria de começar dizendo que minha carreira é orientada, em vários sentidos, pela minha inocência sobre a vida em geral. De forma muito ingênua, sempre achei que as pessoas deveriam agir em consonância com o que acreditam, com seus princípios. Por isso, quando alguém me diz alguma coisa, eu a levo a sério. Pode ser naïf de minha parte. Tenho aprendido que há um abismo profundo, ou um grande salto, entre o que se diz e o que se faz. E por que isso? De certa forma, porque passei a me dar conta de que a incompletude é o que faz sermos quem somos. Em minha trajetória pessoal, nunca tomei as identidades como dadas. Escrevi um artigo parcialmente autobiográfico sobre como, a partir de uma experiência pessoal e depois de uma maneira mais ampla, passei a entender poder e relacionalidade no planalto ocidental dos Camarões, conhecido como Grassfields.2 2 Nyamnjoh se refere aqui ao capítulo “A Child is One Person´s Only in the Womb”: Domestication, Agency and Subjectivity in the Cameroonian Grassfields”, de 2002. Nele, nosso colega afirma: “ideias de culturas e identidades como todos homogêneos mais escondem que revelam”, referindo-se aos esquemas analíticos pasteurizadores sobre seu país, a partir de dois enquadramentos externos, “tribalizantes” (Mafeje 2020). Um deles, a história de colonização europeia tripartite (alemã, britânica e francesa) e o outro, o genocídio em Ruanda e seu transbordamento para o restante do continente. Como antídoto, Nyamnjoh explora neste artigo as agências e subjetividades que, em seu país, procuram “empoderar as comunidades e não a mesquinhez dos projetos individuais” (:117). Cresci no Reino de Bum e, por meio do casamento e de relações diplomáticas, também no Reino de Mankon. Nesse artigo, falo sobre pertencimento, sobre ter quatro ou mais pais, muitas mães, e esse número sempre aumentando. Minha trajetória pessoal acentuou a ideia de identidades por identificação e por meio de relações de interconexão e interdependência. Sem nunca ter usado esse nome, já se tratava de algo que enuncio agora como incompletude. Só mais recentemente o conceito de incompletude se desenvolveu e passou a dar conta do que estou articulando aqui. Tenho aperfeiçoado este conceito em vários aspectos, para podermos usá-lo na compreensão de diferentes tipos de relações, inclusive a colonial e outras tantas.

BORGES: Poderia nos dar detalhes sobre essa construção teórica em torno da incompletude e suas implicações epistemológicas?

NYAMNJOH: Basicamente, o meu argumento é que a incompletude é universal. Por incompletude refiro-me à nossa incompletude como pessoas. Veja a ideia das técnicas corporais em Mauss. Por exemplo, sua filha, você a treina para ela se adaptar ao contexto imediato; como as crianças internalizam e reproduzem nossos repertórios linguísticos, nossas atitudes culturais e sociais e tudo o mais. Sendo assim, desde muito cedo, o indivíduo se torna um contêiner que internaliza e corporifica o mundo à sua volta, reproduzindo-o de forma a demonstrar, quase como uma placa sinalizadora para o restante do mundo, que “eu sou parte dele”, portanto, “você pode depositar em mim a sua identificação”. Não apenas no plano do indivíduo, mas naquele das sociedades, ideias, culturas, disciplinas e epistemologias e por aí vai. Se a vida e o viver devem prosseguir, se a performance de nossos compromissos deve continuar, temos então a demonstração do caráter inexorável de nossa incompletude. Imobilizar a incompletude é uma forma estéril de existência. Seria a morte da socialidade. Não podemos nos dar ao luxo de sucumbir à tentação de deixarmos de viver porque imobilizados pela completude. Passa a ser natural, quando reconhecemos nossa incompletude como seres humanos, como disciplinas, como ideias, como processos, que nos engajemos imediatamente em formas de mobilidade e mobilização. Isto dá à incompletude uma oportunidade na vida, de nos realizarmos, de irmos além da esterilidade que é ser inteiramente consumido por essa experiência excruciante da incompletude. Portanto, a incompletude anda lado a lado com mobilidade e mobilização, ambas alcançadas por meio de encontros. Quando somos capazes de mobilizar nossa incompletude de várias formas através de relações e encontros com outros, esses encontros se propalam, de uma maneira ou de outra, dependendo de qual seja nossa intenção com a mobilidade.

BORGES: Você pode nos falar um pouco sobre os vários destinos possíveis de se estar em movimento e mobilizado em relação a essa condição humana de incompletude?

NYAMNJOH: Quando estamos em movimento, nós nos “ativamos” e assim adquirimos potência. Para que nossas ações sejam eficazes é preciso que estejamos continuamente incorporando novos atributos. Por vezes nos movemos com a ambição de dominação e conquista, para nos impor aos outros. Porém, esta não é a única forma possível de movimento neste mundo. Também nos movemos para conhecer os outros, porque queremos nos relacionar com eles, como companheiros humanos. Por exemplo, a sua pesquisa e de Marcelo3 3 Nyamnjoh refere-se a Marcelo Carvalho Rosa e à nossa pesquisa com moradores de fazenda na região de Kwazulu-Natal. em Pietermaritzburg e outras áreas da África do Sul. Não chegamos com a ambição da conquista; você chega com vontade de se aproximar, de compreender e ser compreendido pelo outro. Quando as pessoas se movem com o intuito de dominar e conquistar é porque acreditam na ilusão da completude. Elas creem que é possível superar a incompletude e se impor ao mundo. Meu argumento sobre a incompletude nos força a despertarmos das ilusões de completude. Não é possível ser completo, mas é possível que você “se ative” e assim alcance uma sensação de ter alcançado algo. Na ciência, toda hipótese testada e “aprovada” não encerra um debate, mas abre novas formas de se investigar e novos questionamentos. Não há pesquisa que alcance de forma completa e absoluta seu objetivo e que por isso se encerre. O objetivo de se fazer ciência não é reivindicar essa completude. Mesmo que voltados para um fim último, com a incompletude, é a busca que se torna parte de quem nós somos. Ninguém nunca estará, portanto, plenamente satisfeito. Nossas realizações são, em suma, processos que estão sempre em trânsito. Realizar, fazer alguma coisa, é sempre um trabalho inacabado, em andamento. Nisso que estou propondo, o que fazemos é promover encontros e confrontos. Penso imediatamente nos encontros totalmente destinados à violência, a violações, como nos confrontos coloniais promovidos por Cecil Rhodes.4 4 Em seu livro intitulado #RhodesMustFall: Nibbling at Resilient Colonialism in South Africa, de 2016, Nyamnjoh tenta dar conta dos movimentos estudantis que se alastraram pela África do Sul a partir de 2015, desde o #rhodesmustfall. A estes, muitos outros se seguiram como #feesmustfall (em alusão ao endividamento pelas mensalidades) ou #patriarchymustfall (que denunciava as agendas e os valores conservadores, misóginos, homofóbicos e transfóbicos no ambiente acadêmico). Essa sucessão de levantes, com ocupações, paralizações e importantes conquistas, pode ser situada em uma linha histórica de protestos que pulularam por todo o continente ao longo das últimas cinco décadas do século XX. Ativistas do #rhodesmustfall apontavam a importância das inspirações retiradas de Franz Fanon e outros intelectuais emblemáticos da Consciência Negra e do Pan-Africanismo. Nyamnjoh, no entanto, observa os movimentos estudantis em paralelo aos ataques xenofóbicos dirigidos a migrantes de outros países africanos naquele mesmo momento. Propõe uma reflexão sobre a persistência da supremacia branca no pós-apartheid, diante da aceitação do colonizador estrangeiro como um pai fundador (Cecil Rhodes) e a repulsa pelo estrangeiro contemporâneo, chamado pejorativamente de makwerekwere (cf. infra). Tomemos Malinowski, por exemplo. Mesmo que compreendesse os nativos em termos relacionais, no fim das contas almejava a edificação de si mesmo e dos centros de produção de conhecimento para os quais contribuía. Este é o tipo do encontro que busca a completude, como algo que tanto o acadêmico e o dominador devem adquirir. Toda conquista imperialista é um empreendimento que custa caro. Por isso, no fim, com essa lógica de soma zero, é preciso imaginar-se como “pleno”. No entanto, no mais das vezes, nunca deixamos de ser dependentes. Nós, as vítimas da conquista colonial, do esbulho, temos a tarefa de explicar ao conquistador supostamente independente e autônomo: “Olha, conquistador, as coisas estão longe de serem limitadas e simplistas como você pensa. Não importa o quanto reivindique supremacia, você depende de mim, sua vítima, para ser quem é, ainda que se pense superior”.

BORGES: Tenho outra questão relacionada a isso. Na África do Sul, como no Brasil, os antropólogos locais e visitantes não parecem, no geral, desconfortáveis com a história e o legado da disciplina. No entanto, nos outros países africanos que visitei e no sul da Ásia, a antropologia enquanto disciplina enfrenta enormes desafios, sendo inclusive banida em alguns lugares. Já no Brasil e na África do Sul ainda é admirada. Os estudantes que lutam contra a opressão e o racismo com freqüência se posicionam também contra a antropologia. A partir do seu conceito de incompletude: o que poderíamos tomar da antropologia, ou oferecer a ela? Seria o caso de a antropologia avançar?

NYAMNJOH: Boa questão. Tentei respondê-la ao escrever um artigo que alguns consideraram, erroneamente, controverso.5 5 Nyamnjoh se refere aqui ao artigo “Blinded by Sight: Divining the Future of Anthropology in Africa”, de 2012b. Se levarmos a incompletude a sério, teremos que desafiar todas as disciplinas, inclusive a antropologia, a diminuir suas expectativas, ainda que esta se considere a disciplina mais relevante para o estudo do outro. O relativismo cultural sem dúvida contribuiu para uma abordagem ética voltada ao estudo de sociedades não ocidentais. Contudo, ainda mantém uma atitude condescendente - do alto de seu cavalo, conversando de cima para baixo - em vez de aceitar seriamente o convite para debates mais inclusivos em torno de epistemologias e produção de conhecimento. Em princípio, antropólogos reconhecem a importância da imersão profunda, de se aproximar do outro longínquo e conversar com aqueles pelos quais temos a curiosidade de quem os reconhece como humanos e parceiros na produção de conhecimento. Na prática, o que destilamos dessas experiências e transmitimos nos círculos antropológicos fica muito aquém de um conhecimento realmente colaborativo. Colaborativo não apenas no sentido de se definir um projeto de pesquisa, de ir a campo e cooptar esses outros e depois retribuir de forma simbólica àquilo que te proporcionaram. É possível ir além, rumo ao que podemos chamar de uma co(e)laboração. Uma co(e)laboração desde a concepção do projeto, em que as questões venham tanto do pesquisador quanto de seus interlocutores em campo; ou co(e)laboração no sentido de fomentar um trabalho de equipe entre antropólogos. Devido à incompletude, sabemos que os cinco sentidos dos antropólogos não funcionam da mesma forma. Assim se passa com todo ser humano: alguns possuem olfato limitado, outros, o tato, a visão ou a audição. Então deveríamos aprender a trabalhar melhor em conjunto. Em uma equipe, se uma estudante do grupo tem melhor visão, outro pode ter sido agraciado com melhor audição. Caso fôssemos a campo cinco membros escolhidos não ao acaso, mas por reconhecermos que um de seus sentidos é bem desenvolvido, poderíamos garantir uma coleta de dados distinta e nada desprezível. A antropologia pode compartilhar com outras disciplinas a seriedade da imersão/emoção e um conhecimento adquirido por meio dos sentidos, mas também pela humildade da incompletude, consciente de que nenhum ser humano possui todas as qualidades, e de que podemos trabalhar coletivamente. Por exemplo, uma antropóloga que é também musicóloga ou que se interessa por música e sabe escutar bem, que se dedica à poesia e a várias formas de literatura, que é em parte historiadora e arqueóloga, interessada nas religiões endógenas de alguns lugares. Assim você vê como há pessoas valiosas que navegam rumo à fronteira - não porque não levam a disciplina a sério, mas porque estão constantemente em busca de aprimorar sua prática e as suas conceitualizações das coisas. Este pode ser um excelente modo de levar a antropologia para fora, de expandi-la, e trazer de lá um enriquecimento para dentro da antropologia.

BORGES: Você considera essa atenção à colaboração uma tática política contra o movimento “corporativo” que, desde Cecil Rhodes, opera o esbulho acadêmico de maneira orquestrada?

NYAMNJOH: Sim, sim. Pessoas como Rhodes e Malinowski eram senhores muito incompletos que queriam se passar por completos cavalheiros, como vemos em Amos TutuolaTUTUOLA, Amos. 1984 [1952]. O bebedor de vinho de palmeira. São Paulo: Editora Abril/Círculo do Livro. .6 6 Nyamnjoh refere-se aqui ao complete gentleman/um completo cavalheiro, personagem de The Palm-Wine Drinkard, de 1952. Nele, Amos Tutuola “narra um encontro entre um ´completo cavalheiro´ e uma moça que realiza sua fantasia de encontrar um homem verdadeiramente bonito [que] não passava de um crânio, cujos atributos são todos tomados de empréstimo em seu caminho da floresta para o mercado na aldeia [...] O crânio havia montado todo o seu corpo - completo e deslumbrante - com esses pedaços emprestados de outros. Na condição de completo cavalheiro, a caveira seduz a jovem, que não tarda em se decepcionar, reconhecendo seu infortúnio” (Borges et al., 2022:388). A tentação em se passar por alguém completo é muito forte. É por isso que nós, estudantes da sociedade, volta e meia temos que mostrar às pessoas a incompletude disfarçada, definida de modo pejorativo como negativa, justamente para não ser aceita. Mas o caso é que sempre se depende de contribuição alheia. Cecil Rhodes, por exemplo, cercava-se de toda essa gente, alguns arquitetos, outros horticultores, pessoas muito diversas, algumas encantadas pelos seus diamantes, inclusive membros da realeza, primeiros-ministros. Havia jornalistas a seu serviço. Então ele era sustentado por essa gente toda. Personagens como Rhodes costumam ser entes ampliados. Eles dificilmente seriam bem sucedidos sendo somente indivíduos isolados. Embora da boca para fora vendam de si uma imagem de “pacote completo”, pessoas assim lidam com a sua incompletude se cercando de outros que defendem seus interesses. Um conquistador é um herói do qual se diz que “venceu a batalha sozinho”. Parece que esta é a contradição entre ser humano e estar no poder.

BORGES: Sua última reflexão remete a outra de suas construções conceituais: a ideia do ser compósito. Poderia nos falar um pouco a respeito?

NYAMNJOH: Uma vez entendido que a incompletude e a mobilidade são permanentes, então todos os encontros e confrontos nos levam a reconhecer o que está em jogo quando se negam ou se afirmam identidades. Quando nos encontramos e apoiamos uns aos outros, como estamos fazendo agora, somos necessariamente compósitos, mesmo que por vezes finjamos haver uma definição linear de nós mesmos. Normalmente, quem domina tende a ignorar e a não reconhecer que a dívida e o endividamento não ocorrem apenas quando o encontro ou o confronto se dá quando estamos em uma posição de poder: todos estamos em dívida uns com os outros em qualquer situação de encontro ou confronto. Portanto, a dívida e o endividamento não são monopólio de alguns, mas algo comum a todos nós.

BORGES: Como você articula essas ideias de dívida e endividamento com a possibilidade de convivialidade? Penso nas nossas universidades e nos danos que o delírio colonial da completude tem nos causado.

NYAMNJOH: Meu entendimento sobre convivialidade não seria possível sem reconhecer e alimentar a incompletude e a mobilidade. Sei bem que já se pensou a convivialidade de outras formas, nem sempre baseada na incompletude como um a priori. A universidade é um projeto modernista. Embora se afirme benevolente, em sentido populista, para as massas, é um empreendimento bastante elitista - seja em um contexto colonial, como o nosso, pós-colonial, ou na universidade como a temos nos Estados Unidos. Enquanto projeto elitista, a universidade primeiro coopta você. Tal como na situação vivida durante a pandemia de Covid, o que ela primeiro quer é higienizar você, para que se livre das impurezas que não merecem a atenção da elite. Isto se dá tanto em termos discursivos quanto no sentido do que é permitido: em suma, ensina-se o que a elite qualifica como pensamento, lógica e prática. Logo, não se trata de buscar inspiração no mundo, no que é popular. Trata-se, pelo contrário, de explicar, pensar o popular, encaixá-lo em uma lógica compreensível em termos elitistas. É olhar de cima para baixo e não sentir qualquer inclinação ou sentimento de diálogo entre iguais, em equidade de voz e na troca de experiências. E o risco deste tipo de problema se sente quando o Ocidente encontra e confronta os Outros, seja no Norte ou no Sul. Essa tem sido a tragédia com a universidade, no sentido de ser um projeto extremamente excludente. Ela se define pela exclusão, pois ela coopta aqueles que explora, os quais terminam por fazer uma caricatura de si mesmos

BORGES: No Brasil, o elogio ao letramento acadêmico é racista. Na África do Sul, o mesmo elogio ao letramento exclui do sistema as pessoas que com os seus corpos apontam para o problema da concentração de terras e da persistente segregação racial. Falo aqui daquelas com uma origem bem rural. 7 7 O planejamento modernista e racista do apartheid operou a segregação racial em confinamentos, dentre outros, townships urbanizadas e homelands rurais. Nas áreas metropolitanas, era comum (Wilson e Mafeje, 1963), é ainda o é, que se faça referência aos Amaqaba. Trata-se de um termo em línguas angunes, que designa pessoas sem refinamento, sem educação formal, da roça (no singular, Iqaba). Nos ambientes universitários, essas pessoas também são chamadas de VRB, ou seja, alguém com um Very Rural Background. ( Cf. Borges, 2020.: 3). Tensões levantadas pelo movimento #rhodesmustfall...

NYAMNJOH: Exato. Não surpreende que as pessoas da roça que caem nessa armadilha uma hora se dão conta de que estão sendo levadas a morrer aos poucos, dying by degree,8 8 Neste ponto, Nyamnjoh faz um trocadilho que optamos por não traduzir: dying by degree pode ser tanto morrer aos poucos como morrer por causa de um diploma, um título (um degree). se quisermos, já que o diploma as elimina. É como se cortassem as partes de seu corpo que não pertencem ao ambiente acadêmico, uma a uma, em um movimento avesso ao do completo cavalheiro, tornando-se mais despossuídas do que quando adentraram os muros universitários. Quase no sentido cartesiano, aqui é somente a mente que importa. A mente importa, mas, mesmo que importante, já falamos disso, não sobrevive sozinha: precisa de um corpo para sustentá-la, renová-la, torná-la possível. Ao entrar na universidade você está sendo convidado a viver uma ilusão: a ilusão de que é possível demarcar, criar separações e isolar a mente dita racional de todo o resto, que seria senão estorvo, acessório. E mesmo quando o corpo e a socialidade relacional são reconhecidos como “acessórios”, é preciso prestar pouca atenção nisso, sob pena de tirar o sossego da elite.

BORGES: Então, como o #rhodesmustfall lidou com a produção da dispensabilidade de certos corpos, como os rurais, por exemplo?

NYAMNJOH: Durante o #rhodesmustfall, muitas pessoas temiam que priorizar o intelecto, especialmente a ideia de um self racional descolado, significava negligenciar o fato mais concreto do corpo. E um tipo particular de corpo, no caso, o não branco, o corpo negro. A dor do corpo negro foi crucial para esses movimentos, do #BlackLivesMatter ao #rhodesmustfall e muitos outros. Esta é a questão: como viver uma vida esquizofrênica em que a mente é tratada com todo o respeito, desde que um tipo particular de mente desgrudada do experencial, descolada da experiência de se ser um ente total e íntegro? O que esses movimentos fizeram foi apontar para a disjunção entre afeto e intelecto. Era uma ideia racializada: mesmo quando havia, eventualmente, um tímido reconhecimento do corpo, era um corpo fundamentalmente racializado. Era um corpo branco, precisava ser um corpo de homem branco. Precisava ser um corpo heterossexual perfeito. O #rhodesmustfall deu vazão a uma erupção de questionamentos. Deu-se nome ao mal-estar, chamou-se a atenção para o racismo institucional em uma instituição racializada como a universidade, também fortemente generificada. Foram sublinhadas como certas formas de sexualidade eram priorizadas em detrimento de outras, como certas geografias eram privilegiadas - o urbano acima do rural e assim por diante. Foi como abrir uma Caixa de Pandora de todas essas contradições. Compreende-se o porquê de alguns textos sobre o #rhodesmustfall apontarem a interseccionalidade como uma direção... como um rumo à decolonização. O grande contentamento de usar raça, etnicidade, classe, gênero, sexualidade e geração na sua análise é poder dizer que os problemas não são colocados da mesma forma. Alguns disseram, outros não. Enfim, como no malabarismo, havia muitas bolas no ar. A questão era: como criar um modelo que faça jus a tudo que está em jogo? Acredito que decolonização, neste sentido, significa reconhecer e acolher a incompletude e a mobilidade como um modo normal de se ser.

BORGES: Lendo sua obra e te ouvindo agora, uma das minhas questões é por que você escolheu um arquivo inusitado para rastrear as origens dos movimentos estudantis? Outros acadêmicos e ativistas tentaram traçar uma linha entre lutas contemporâneas e anteriores (por exemplo: o caso Mafeje, em 1968, o Levante de Soweto, em 1976, as várias greves e ocupações organizadas pelos estudantes em toda a África do Sul nos anos 1980, entre outras). Há, inclusive, aqueles que não relacionam as lutas atuais às anteriores, afirmando que os jovens nascidos após 1994 (o fim oficial do apartheid) possuem um modo singular e atual de questionar. O alvo dos estudantes era a estátua de Cecil Rhodes e você selecionou a biografia deste empresário colonial como ponto de partida. Você utiliza uma abordagem não ortodoxa para chamar a atenção para a incompletude de nossas historiografias?

NYAMNJOH: Você levantou uma questão muito importante e que está no coração da produção de conhecimento: a questão do “onde” pensamos é crucial. Este ponto de partida determina o que estabeleceremos como conhecimento relevante. “Devemos começar pela África do Sul sob o apartheid, especialmente os movimentos estudantis de Soweto” é uma escolha que traz respostas relevantes. No entanto, algumas questões permanecem sem resposta. Devemos voltar o mais longe possível, retroceder ao máximo na história. Costumo provocar as pessoas a voltarem à África como berço da humanidade. Levo isso a sério: se a África foi o berço da humanidade, então todo mundo é africano em maior ou menor grau... um africano diaspórico. Podem até pensar que isso é um exercício acadêmico inútil, mas não é. Ao recusar a possibilidade desse tipo de formulação, nos afastamos dos problemas urgentes da atualidade. Eu não vejo por que não o fazer. Ao retrocedermos até esse ponto, conseguimos expor algumas das contradições do pensamento atual, que restringe a África aos termos bastante limitados da geografia do presente. Se a história importa, até onde devemos retroceder para entender um evento contemporâneo? O #rhodesmustfall ocorreu na interseção dos migrantes contemporâneos do restante da África, denominados makwerekwere, e os migrantes europeus do passado, ditos colonialistas ou imperialistas.9 9 “O preço do sucesso pessoal da elite é a realidade dos sul-africanos comuns, ainda cativos em barracos, favelas, sem empregos, na pobreza e na incerteza [...] essas desigualdades deram origem a crenças de só por meios mágicos, ao se consumirem outros, as pessoas podem enriquecer nesses tempos de perplexidade. Consequentemente, ocorre a ressurgência das acusações de feitiçaria e zumbificação dirigidas ao bode expiatório que são os imigrantes - makwerekwere - cuja disponibilidade, como zumbis, para oferecer trabalho desvalorizado é vista como parte do desencantamento das populações autóctones em face da diminuta chance de prosperidade na África do Sul” (Nyamnjoh 2002:123). Minha questão era: quando um imigrante se torna makwerekwere? E quando um makwerekwere se torna colonizador? Se um imigrante, um makwerekwere, é alguém que vem de outro lugar e encontra filhos e filhas da terra, deve-se indagar: quando é que eles se voltam contra os nativos da terra? Quando os estrangeiros se tornam os nativos, e os nativos, os deslocados ou estrangeiros, fugindo para as reservas? Pode-se fazer a mesma pergunta a respeito do Brasil, por exemplo, quando foi que os portugueses se tornaram nativos e os nativos, estrangeiros, na configuração brasileira? Insisti neste ponto para demonstrar como alguém como Cecil Rhodes, de origens muito humildes, se tornou essa instituição colonial. Ele era apenas o filho de um clérigo, tinha oito irmãos. Não se saía bem na escola. Você e eu seríamos mais bem sucedidos que Cecil Rhodes porque nos demos melhor na escola. Como nós, ele trabalhava e estudava, mas teve acesso a diamantes... nós não temos! Foi assim que decidi problematizar esses pontos que nós cientistas sociais tomamos como dado - a luta entre imigrante e colonizador, imigrantes indocumentados, e assim por diante. Meu argumento é que, em momentos oportunos, o imigrante indocumentado pode se tornar o Cecil Rhodes de amanhã. Não se nasce colonialista. São relações muito peculiares que tornam isto possível.

BORGES: Como essa abordagem pouco usual se conecta, então, com sua reflexão sobre a branquidade? E como as universidades usam a branquidade como moeda de troca?

NYAMNJOH: Ah, sim. Esse é o problema de verdade. O meu ponto é que entendamos a ideia da branquidade como uma espécie de moeda. Nós tomamos como dadas as categorias macrossociológicas que edificam a branquidade. Iniciamos nossas jornadas intelectuais nos ajoelhando perante esse conhecimento glorificado nos livros em nossas estantes, que foram produzidos em torno do branco e da branquidade, que não foram testados em outros lugares. Nós ascendemos quando nos pronunciamos dizendo que levamos a vida acadêmica a sério quando corroboramos: “vá e leia os ancestrais do intelecto”, quase como se o contexto não importasse. Isto é muito problemático. Nós, acadêmicos de outras partes do mundo, deveríamos questionar seriamente os parâmetros da produção de conhecimento.

A ilusão colonial é que se você se esforçar é possível ser completo, e então avaliar e quantificar os demais. Tratar a educação como a aquisição de credenciais te coloca na posição de conhecedor, especialista, o que te leva a pensar que pode decidir pelos outros. Esse fenômeno ocorre por todo canto. Acontece em Camarões, Botsuana, Senegal. Você pode até esperar mais desses lugares, mas - não se esqueça! - como plantas criadas em uma estufa, nos venderam a educação como civilização com C maiúsculo.10 10 Nyamnjoh alude a um de seus artigos intitulado “‘Potted Plants in Greenhouses’: A Critical Reflection on the Resilience of Colonial Education in Africa”, de 2012a. Especialmente a educação colonial. Se você pensar apenas dessa forma seus problemas estarão resolvidos. O famoso livro de Okot p´Bitek (1984), The Song of Lawino (A canção de Lawino), é sobre Lawino debochando de seu marido. Sobre como ele não entendeu nada e sua masculinidade foi esmagada pela universidade do homem branco, pelos livros dos brancos. O livro de Okot p’Bitekp’BITEK, Okot. 1984 [1966]. Song of Lawino & Song of Ocol. London: Heinemann. ensina que, quando se leva a sério a ilusão do projeto colonial, ela se torna tão alienadora que pode levar alguém a lutar a seu favor de forma genuína, ainda que ela seja contrária aos seus interesses. O mesmo se passa quando vitimas são convocadas a defender a ordem hegemônica que as oprime. Ao invés de lutar contra, luta-se a favor. O que dificulta ainda mais a situação na África do Sul é o colonialismo residente.11 11 Nyamnjoh opta pela expressão resident ao invés de settler. Assim, constrói uma diferença entre quem passa a morar, em alusão a uma casa, e aquele colonizador que se estabelece no país (settling). Tal como no Brasil, na África do Sul você encontra europeus que são parte da sociedade, não administradores que pertencem a outros países. Os colonizadores locais reivindicam a terra e o país como se fosse deles. Compare as ideias camaronesas sobre branquidade com a África do Sul, há uma distinção clara. Em Camarões o branco vem de fora. Como no Senegal, não se trata de uma colônia de residência. Na África do Sul, é mais provável que o estrangeiro seja um makwerekwere, um africano de outro país, que um sul-africano branco. Os sul-africanos brancos são vistos pelos sul-africanos negros como parte da paisagem. De fato, é desejável que se aspire ser como o branco, tornar-se residente, como eles. Eles não são o alvo da xenofobia, como Rhodes também nunca o foi. A graça da incompletude é mostrar o que as pessoas fazem com as identidades. Identidade é promover inclusões e exclusões seletivas; é também sinalizar com memórias, experiências e por aí vai. As identidades não são neutras, são políticas, como sabemos. Por isso não nos surpreende que as pessoas se recusem a aceitar a incompletude. No entanto, é nosso papel ensinar, lançar luz sobre o que as pessoas estão fazendo. Devemos fazer isso para que nossos estudantes e aqueles que nos leem possam enxergar o pretenso vazio no qual os brancos precisam se envolver para conseguirem dominar, nem que seja por um dia ou mesmo um segundo.

BORGES: Retomando o tema da dívida e do endividamento, sabemos que os estudantes entram em grandes dívidas financeiras para investir em uma carreira acadêmica, essa forma de ser cidadão em um país em que eles são vistos como estrangeiros, como makwerekwere em sua própria terra. Quais as conexões entre os diamantes de Rhodes, os mineiros de platina assassinados em Marikana em 2012 e o dinheiro que sustenta a universidade?

NYAMNJOH: Sim. A dívida precisa também ser entendida no sentido material. Não se trata apenas de cultura, de empobrecer certas epistemologias ou formas de humanidade em favor de outras. Você desenvolve uma relação de extração na qual nós cedemos nosso trabalho através de formas de desvalorização que você estabeleceu para assegurar que esse trabalho não custe muito, que não atinja os regimes de impostos e assim por diante. Então nós invertemos o jogo, em termos econômicos, sobre os nativos, daí obviamente a extração de ouro, diamantes... toda essa economia que beneficiou Rhodes e suas gangues de caçadores de tesouros está bem documentada. Isto é um fato, é uma forma de dívida. Além disso, as extrações de peças de museu, as obras de arte que foram tomadas da África e povoaram os museus da Europa, e continuam a gerar turismo e muitos recursos à metrópole; elas fazem parte da dívida da Europa com a África. Colonialismo, escravidão e o branqueamento da geografia através de desenvolvimento urbano e coisas do gênero; demarcação, acuação, expulsão e amontoamento de pessoas em guetos... Tudo isso vem à tona quando as pessoas se determinam a buscar completude. A dívida é muito real em termos de extrações materiais, comodificação de seres humanos, até mesmo a busca unidirecional da educação, a forma como os diplomas são concedidos. Caso não seja possível conquistá-los na Europa, através do deslocamento físico e do pagamento de um preço alto, uma universidade tropical será criada. Obviamente, como um sistema de menor valor, mas que pode ser o suficiente para contemplar o contexto local, especialmente se criarmos a ilusão do mérito, ao hierarquizar as universidades locais em mais e menos meritórias. A população branca residente foi sempre o alvo principal das universidades historicamente privilegiadas. As pessoas cresceram com uma relação claramente estabelecida com o material, o tipo de pensamento, o valor no mercado, algumas reduzidas ao consumo. Mesmo pessoas classificadas como coisas ou que não alcançaram o nível da humanidade foram convidadas a consumir. É uma zona complexa de dívida e endividamento tanto no sentido da pessoa humana quanto naquele dos recursos. Outro ponto que enfatizo bastante sobre dívida e endividamento é como as pessoas com ambição de dominação e completude terceirizam suas dívidas e seu endividamento às vítimas. Por que fazem isso? Dizem: “A educação colonial que te oferecemos tem mais valor, por isso você está em dívida conosco, que a trouxemos até você”. O capital importa mais que o trabalho, portanto, você merece pagar mais para consumir aquilo que produziu, embora tenha sido seu trabalho que possibilitou tudo isso.

BORGES: Sua terra, seu trabalho.

NYAMNJOH: Eles têm a capacidade... sua terra, seu trabalho... É muito inteligente. Terceiriza-se a dívida para o outro, a vítima, fazendo-a se sentir culpada e sobrecarregada. Esta é a história do poder de definir, do poder de confinar os outros às suas definições. É uma forma muito poderosa de assegurar de quem serão as dívidas reconhecidas e quem estará perpetuamente endividado. Até mesmo quando se exige reparação.

BORGES: Você aponta algo interessante para se entender o que estava em disputa quando surgiu o #feesmustfall (cf. supra). Na África do Sul, espalhou-se o boato de que sem pagar não se valoriza a educação. Claro, não se trata do valor da educação em si, mas da comparação entre a educação das instituições europeias e sua imitação local.

NYAMNJOH: Visitei a Universidade Cornell logo após o 11 de setembro. Eis o que me disseram: Cornell é uma universidade privada, uma das melhores, e como os pais pagam muito caro, eles se envolvem bastante na definição do que será ensinado aos seus filhos; e eles criticam alguns professores, especialmente aqueles que se posicionam contra o sistema são acusados de politizarem a universidade, de ensinarem o que se considera...

BORGES: Ideologia de esquerda...

NYAMNJOH: Sim, é uma ideologia. Sim. Exatamente. Você pode determinar o conteúdo porque pagou, como um cliente. Você pode decidir o currículo dos estudantes.

BORGES: Aduanas do conhecimento, lembrando que, se você não pagou, não é permitido...

NYAMNJOH: Exatamente.

BORGES: Professor Nyamnjoh, pensando na comodificação da educação superior e no movimento #feesmustfall como tem sido a sua experiência na Universidade de Cape Town? Agora que as pessoas retornaram ao campus em aulas presenciais, há diferença em relação aos anos anteriores, antes da pandemia? O legado do movimento estudantil de 2015 ainda vive?

NYAMNJOH: Uma de minhas alunas está terminando seu TCC, ela desenvolve uma pesquisa sobre o lugar do corpo negro feminino no #rhodesmustfall. Ela está em busca daqueles que viveram o #rhodesmustfall, pois o movimento ocorreu há cerca de sete anos. Muitos estudantes da universidade atualmente, mesmo os pós-graduandos, não tiveram uma experiência direta com o #rhodesmustfall. Então ela busca reconstituir o movimento através da pesquisa na internet e da entrevista com estudantes que participaram. Em termos de universidade, o #rhodesmustfall praticamente... acabou. Mesmo o ensino da decolonização, que se tornou importante, caiu no esquecimento. Hoje em dia, é possível dar aulas e viver o cotidiano acadêmico sem sequer mencionar a necessidade de decolonização. Esses movimentos têm o poder de elevar nossas expectativas e anseios, mas logo em seguida, tudo volta ao normal. E é por isso que podemos dizer que as universidades, como as sociedades, dizem mais respeito à continuidade do que à mudança.

BORGES: O conflito geracional no sistema universitário pode estar relacionado à busca pela completude - cada geração, num certo sentido, completa em si mesma?

NYAMNJOH: Sim. Embora nós propalemos a linguagem da incompletude, o padrão dominante que nos influencia ainda é o que veicula a ideia de que se pode ser completo: “Completude é bom, deve-se evitar a incompletude”. Essas contradições permanecerão até desbancarmos esse pensamento, transformando-o radicalmente. Somos programados para pensarmos a incompletude como falta e nos dedicarmos à produção de completos cavalheiros que não devolvem as partes dos corpos que tomaram emprestadas (a sua dívida). O investimento na incompletude, se levado a sério, demandaria de nós humildade de pensamento e de ação. Precisaríamos nos recordar constantemente de que lutamos pelo direito sacrossanto à liberdade de pensamento e à liberdade de ação. Lutamos para que nenhuma ação, por perfeita que seja, nenhum pensamento, por mais bem articulado que seja, venha a ser o pensamento definitivo.

BORGES: Exatamente. Acredito que esta seja a melhor lição que você nos dá, em sua obra e nesta entrevista, que se mantivermos as universidades nessa busca pela completude não nos livraremos de Cecil Rhodes.

NYAMNJOH: Com certeza. Eles voltam de várias formas. Cecil Rhodes é bem resiliente.

Referências bibliográficas

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  • BORGES, Antonádia; Paterniani, Stella; Belisário, Gustavo; Sobral, Roberto & Mader, Caio. 2022. “Argonautas. Monumental e Incompleto”. Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, 19 (2):375-398.
  • MAFEJE, Archie. 2020 [1971]. “A ideologia do tribalismo”. Trad. Anderson Bastos Martins. Pontos de Interrogação, 10 (2):253-265.
  • NYAMNJOH, Francis. B. 2002. “‘A Child is One Person´s Only in the Womb’: Domestication, Agency and Subjectivity in the Cameroonian Grassfields”. In: Werbner, Richard. Postcolonial Subjectivities in Africa London: Zed Books. pp. 111-138.
  • NYAMNJOH, Francis. B.. 2012a. “‘Potted Plants in Greenhouses’: A Critical Reflection on the Resilience of Colonial Education in Africa”. Journal of Asian and African studies, 47 (2):129-154.
  • NYAMNJOH, Francis. B. 2012b. “Blinded by Sight: Divining the Future of Anthropology in Africa”. Africa Spectrum, 47 (2/30):63-92.
  • NYAMNJOH, Francis. B.. 2016. #RhodesMustFall: Nibbling at Resilient Colonialism in South Africa Bamenda: Langaa Research & Publishing.
  • NYAMNJOH, Francis. B. 2017. Drinking from the Cosmic Gourd: How Amos Tutuola Can Change Our Minds Bamenda: Langaa Research & Publishing .
  • p’BITEK, Okot. 1984 [1966]. Song of Lawino & Song of Ocol London: Heinemann.
  • TUTUOLA, Amos. 1984 [1952]. O bebedor de vinho de palmeira São Paulo: Editora Abril/Círculo do Livro.
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    Gostaria de agradecer a presença de Gustavo Belisário na entrevista e as contribuições feitas por Joaze Bernardino-Costa, José Roberto Sobral e Stella Paterniani. Esta entrevista foi transcrita por Keamogetse Mosienyane, traduzida por Marília Sene Lourenço e revisada por Maria Lúcia Resende Barreto Vianna, a quem sou extremamente grata.
  • 2
    Nyamnjoh se refere aqui ao capítulo “A Child is One Person´s Only in the Womb”: Domestication, Agency and Subjectivity in the Cameroonian Grassfields”, de 2002. Nele, nosso colega afirma: “ideias de culturas e identidades como todos homogêneos mais escondem que revelam”, referindo-se aos esquemas analíticos pasteurizadores sobre seu país, a partir de dois enquadramentos externos, “tribalizantes” (Mafeje 2020MAFEJE, Archie. 2020 [1971]. “A ideologia do tribalismo”. Trad. Anderson Bastos Martins. Pontos de Interrogação, 10 (2):253-265.). Um deles, a história de colonização europeia tripartite (alemã, britânica e francesa) e o outro, o genocídio em Ruanda e seu transbordamento para o restante do continente. Como antídoto, Nyamnjoh explora neste artigo as agências e subjetividades que, em seu país, procuram “empoderar as comunidades e não a mesquinhez dos projetos individuais” (:117).
  • 3
    Nyamnjoh refere-se a Marcelo Carvalho Rosa e à nossa pesquisa com moradores de fazenda na região de Kwazulu-Natal.
  • 4
    Em seu livro intitulado #RhodesMustFall: Nibbling at Resilient Colonialism in South Africa, de 2016NYAMNJOH, Francis. B.. 2016. #RhodesMustFall: Nibbling at Resilient Colonialism in South Africa. Bamenda: Langaa Research & Publishing., Nyamnjoh tenta dar conta dos movimentos estudantis que se alastraram pela África do Sul a partir de 2015, desde o #rhodesmustfall. A estes, muitos outros se seguiram como #feesmustfall (em alusão ao endividamento pelas mensalidades) ou #patriarchymustfall (que denunciava as agendas e os valores conservadores, misóginos, homofóbicos e transfóbicos no ambiente acadêmico). Essa sucessão de levantes, com ocupações, paralizações e importantes conquistas, pode ser situada em uma linha histórica de protestos que pulularam por todo o continente ao longo das últimas cinco décadas do século XX. Ativistas do #rhodesmustfall apontavam a importância das inspirações retiradas de Franz Fanon e outros intelectuais emblemáticos da Consciência Negra e do Pan-Africanismo. Nyamnjoh, no entanto, observa os movimentos estudantis em paralelo aos ataques xenofóbicos dirigidos a migrantes de outros países africanos naquele mesmo momento. Propõe uma reflexão sobre a persistência da supremacia branca no pós-apartheid, diante da aceitação do colonizador estrangeiro como um pai fundador (Cecil Rhodes) e a repulsa pelo estrangeiro contemporâneo, chamado pejorativamente de makwerekwere (cf. infra).
  • 5
    Nyamnjoh se refere aqui ao artigo “Blinded by Sight: Divining the Future of Anthropology in Africa”, de 2012bNYAMNJOH, Francis. B. 2012b. “Blinded by Sight: Divining the Future of Anthropology in Africa”. Africa Spectrum, 47 (2/30):63-92..
  • 6
    Nyamnjoh refere-se aqui ao complete gentleman/um completo cavalheiro, personagem de The Palm-Wine Drinkard, de 1952. Nele, Amos TutuolaTUTUOLA, Amos. 1984 [1952]. O bebedor de vinho de palmeira. São Paulo: Editora Abril/Círculo do Livro. “narra um encontro entre um ´completo cavalheiro´ e uma moça que realiza sua fantasia de encontrar um homem verdadeiramente bonito [que] não passava de um crânio, cujos atributos são todos tomados de empréstimo em seu caminho da floresta para o mercado na aldeia [...] O crânio havia montado todo o seu corpo - completo e deslumbrante - com esses pedaços emprestados de outros. Na condição de completo cavalheiro, a caveira seduz a jovem, que não tarda em se decepcionar, reconhecendo seu infortúnio” (Borges et al., 2022:388BORGES, Antonádia; Paterniani, Stella; Belisário, Gustavo; Sobral, Roberto & Mader, Caio. 2022. “Argonautas. Monumental e Incompleto”. Rev. Pós Ciênc. Soc., São Luís, 19 (2):375-398.).
  • 7
    O planejamento modernista e racista do apartheid operou a segregação racial em confinamentos, dentre outros, townships urbanizadas e homelands rurais. Nas áreas metropolitanas, era comum (Wilson e Mafeje, 1963), é ainda o é, que se faça referência aos Amaqaba. Trata-se de um termo em línguas angunes, que designa pessoas sem refinamento, sem educação formal, da roça (no singular, Iqaba). Nos ambientes universitários, essas pessoas também são chamadas de VRB, ou seja, alguém com um Very Rural Background. ( Cf. Borges, 2020.: 3BORGES, Antonádia . 2020. “Very Rural Background: Os Desafios da Constituição Terra da África do Sul e do Zimbábue à Chamada Educação Superior”. Revista de Antropologia, v. 63:1-30.).
  • 8
    Neste ponto, Nyamnjoh faz um trocadilho que optamos por não traduzir: dying by degree pode ser tanto morrer aos poucos como morrer por causa de um diploma, um título (um degree).
  • 9
    “O preço do sucesso pessoal da elite é a realidade dos sul-africanos comuns, ainda cativos em barracos, favelas, sem empregos, na pobreza e na incerteza [...] essas desigualdades deram origem a crenças de só por meios mágicos, ao se consumirem outros, as pessoas podem enriquecer nesses tempos de perplexidade. Consequentemente, ocorre a ressurgência das acusações de feitiçaria e zumbificação dirigidas ao bode expiatório que são os imigrantes - makwerekwere - cuja disponibilidade, como zumbis, para oferecer trabalho desvalorizado é vista como parte do desencantamento das populações autóctones em face da diminuta chance de prosperidade na África do Sul” (Nyamnjoh 2002:123NYAMNJOH, Francis. B. 2002. “‘A Child is One Person´s Only in the Womb’: Domestication, Agency and Subjectivity in the Cameroonian Grassfields”. In: Werbner, Richard. Postcolonial Subjectivities in Africa. London: Zed Books. pp. 111-138.).
  • 10
    Nyamnjoh alude a um de seus artigos intitulado “‘Potted Plants in Greenhouses’: A Critical Reflection on the Resilience of Colonial Education in Africa”, de 2012aNYAMNJOH, Francis. B.. 2012a. “‘Potted Plants in Greenhouses’: A Critical Reflection on the Resilience of Colonial Education in Africa”. Journal of Asian and African studies, 47 (2):129-154..
  • 11
    Nyamnjoh opta pela expressão resident ao invés de settler. Assim, constrói uma diferença entre quem passa a morar, em alusão a uma casa, e aquele colonizador que se estabelece no país (settling).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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