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PINHO, Osmundo. 2021. Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade. Salvador: Segundo Selo. 300 pp.

PINHO, Osmundo. . 2021. Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade . Salvador: Segundo Selo. 300 pp.

O legado de luta, de mobilização e também de produção intelectual negra nos permitiu chegar ao século XXI com um debate assertivo sobre desigualdade racial, sobre discriminação baseada no fenótipo, assim como nos permitiu pensar e implementar políticas públicas afirmativas no Brasil. Este novo panorama acarreta uma avidez por aprofundar debates relacionados às questões raciais, e a consequente diversidade de abordagens sobre raça, relações raciais e racismo nos apresenta diferentes vieses, trajetórias teóricas e abordagens conceituais que amplificam, pluralizam posicionamentos, visões de mundo e lugares epistemológicos de onde se fala.

Assim, Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade se propõe a uma tarefa laboriosa: por um lado, busca ir a fundo na abordagem afropessimista - corrente de pensamento ligada ao campo interdisciplinar dos Black Studies afro-americanos, que tem em Frank Wilderson, dramaturgo e crítico literário da Universidade de Irvine, Califórnia; Saidiya Hartman, professora de Literatura e História Afro-americana da Columbia University; e Jared Sexton, professor de estudos de Mídia da Universidade de Irvine, seus principais expoentes. Por outro lado, Cativeiro nos traz a possibilidade de uma contraposição, ou melhor, Pinho nos sugere uma possibilidade de saída para a inescapabilidade da morte social negra, entendimento que está na base das pressuposições afropessimistas (Wilderson 2017WILDERSON III, Frank. 2017. “Biko e a problemática da presença”. In: Ana Flauzina & João Costa Vargas, Motim: horizontes do genocídio antinegro na diáspora. Brasília: Brado Negro. pp. 67-89.). A contribuição intelectual trazida por Cativeiro assenta-se na experiência vivida por negros e negras no Brasil e propõe a ancestralidade - tão central na experiência espiritual do candomblé e tão celebrada no imaginário afro-brasileiro - como uma alternativa à impossibilidade da humanidade plena do ser negro no mundo configurado pelo advento da Modernidade Ocidental.

Ao longo dos cinco capítulos de Cativeiro, o antropólogo Osmundo Pinho, baseado em sua consolidada experiência de pesquisa etnográfica, nos oferece cenários e universos onde a agência negra contradiz o lugar da “morte social”, mesmo quando, através da transfiguração da performance, reafirme esse lugar de desonra destinada ao negro. Como assim, contradizer a morte reafirmando a morte? Aqui talvez esteja a reviravolta que uma performance pode criar; ela “... transtorna o repouso dos sentidos” (Artaud 1993:24ARTAUD, Antonin. 1993. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes.) e, assim, aquilo que era/é a grande esperança da nação - a eliminação da “mancha negra” de forma silenciosa, não alardeada, ou justificada - subitamente é reintroduzida com grande alarde, esfregada na cara da nação através da hecatombe trepidante vinda dos sons automotivos dos paredões de pagode baiano, como temos no capítulo II, “Arrastão: descolonizando o gênero e a sexualidade no pagode baiano”. O autor afirma: “O acesso a essa estrutura profunda, linha de fuga, ritualização fugitiva de uma estética da desumanização radical, pode encontrar assim a forma de sua constituição em modalidades performáticas” (:106), ou seja, os sujeitos, ao articularem performaticamente os lugares de desonra, desvalorização, imoralidade e morte, estão tornando reconhecíveis para si os lugares que lhes foram designados historicamente e, ao mesmo tempo, confrontando a mesma sociedade que os quer silenciosamente mortos.

Reveladora é a afirmação do autor quando coloca que “em meu contato com a literatura afro-pessimista, dois aspectos me chamaram fortemente a atenção. Primeiro, a preocupação com a ontologia - um debate que eu julgava superado ou irrelevante...” (:50). Esse retorno à discussão ontológica indica a compreensão de que só existe a possibilidade de superar o debate da ontologia para quem teve uma ontologia, ou ontologias bem definidas para serem deixadas de lado, ou superadas por um novo momento filosófico e histórico. O ser do negro ainda não teve possibilidade de existir no mundo inaugurado pela modernidade exceto enquanto projeção racializada do homem moderno - este último constituído na (e por) sua relação com o que ele não é: um negro. Este último é um corpo reduzido à carne (flesh), ou nas palavras do autor, “marcado por sua condição epidérmica...” (:131), conforme elaborado no capítulo III, “Black Border: o corpo e a luta no audiovisual negro”, que discute justamente o antagonismo entre a negritude e a capacidade de simbolização, discussão que desemboca em um dos eixos centrais da obra de Osmundo Pinho, a saber; a representação/impossibilidade da representação do ser do negro.

Assumindo-se a prerrogativa fanoniana - o ser do negro existe apenas como projeção racializada e esvaziada de uma ontologia e subjetividades próprias - neste caso, não é possível para ele representar-se, ou mesmo criar consciência de si e encontrar-se em uma subjetividade “sua”, já que pessoalidade e subjetividade são inalcançáveis dentro da nothingness (Sexton citado em Pinho:51) do escravo coisificado. Então, Pinho, ao longo dos capítulos IV “Sangue Atlântico: Morte Social e Ancestralidade em Albert Eckout e Ayrson Heráclito” e V “A Cena da Objeção: narrativa, economia política e performance”, propõe o desinvestimento da busca incessante por “representar” ou “representar-se” negro/negra. Esse desinvestimento ou ruptura com uma busca pela representação, enquanto mimese que demanda uma interpretação e uma hermenêutica de seu sentido, se daria em favor de um ideal de imanência em que o sujeito não mais precisa adequar o conteúdo à forma - significado e significante, os quais têm estado na base de toda uma tradição ocidental da filosofia, da arte, da literatura. A performance permitiria essa imanência do ser negro através de seus repertórios de memórias.

Pinho alinhava a episteme da ancestralidade às proposições da linha conhecida como Black Optimism, associada ao poeta e teórico cultural Fred Moten, professor da Universidade de Nova York. O Black Optimism não recusa a premissa afropessimista de “morte social”, porém vê neste lugar da morte social um lugar político e de reinvenção de onde pessoas negras criam arte, política, coletividades e possibilidades, entendendo a performance negra “enquanto a resistência do objeto” (Moten 2017:33MOTEN, Fred. 2017. Black and Blur. Durham, Carolina do Norte: Duke University Press. ). Assim, em Pinho, a articulação de categorias como ancestralidade e objeção não nega a concretude daquilo que os afropessimistas (e também os Otimistas Pretos - Black Optimists) identificam como a redução do ser negro à condição de objeto e, portanto, de morte social. Todavia, há uma aposta de que as criações, as repetições, as performances e os repertórios circulantes pela diáspora negra de Nova Orleans ao Recôncavo da Bahia são agências - resistências do objeto - capazes de situar a negritude enquanto uma presença (frequentemente fantasmagórica) que assombra e objeta a normatividade do mundo e da ordem brancas.

Cativeiro: antinegritude e ancestralidade indica também a tensão entre o posicionamento de intelectuais ligados ao afropessimismo (e também ao Black otimismo, em termos de uma gramática da posicionalidade negra no mundo), para os quais a condição (des)ontologizada do “escravo” é determinante para se pensar a condição negra na contemporaneidade, e o posicionamento de intelectuais e ativistas afro-brasileiros, para os quais todo o esforço das últimas décadas foi desconstruir uma narrativa na qual pessoas negras só passam a fazer parte da história a partir da escravidão. Para os últimos, a resistência à objetificação da pessoa negra se dá em torno da manipulação do “signo-África”, o qual opera como um suplemento ao vazio subjetivo (:51). Já o afropessimismo fala desse lugar de trauma coletivo e da impossibilidade de sublimação do trauma porque o mundo que exigiu essa cessão da pessoa do africano continua sendo o mundo no qual estamos hoje. Como vemos em Hortense Spillers: “Estas marcações no corpo social da africanidade do Novo Mundo são marcas de crise edipiana (para crianças do sexo masculino e do sexo feminino) que só podem ser eliminadas agora por uma confrontação com a cena da sua ocorrência, mas como se fosse um mito” (2003:732-733SPILLERS, Hortense. 2003. Black, White, and in Color: essays on American literature and culture. Chicago: University of Chicago Press., tradução nossa).1 1 “… those markings on the social body of the New World Africanity are the stripes of an oedipal crisis (for male and female children) that can only be cleared away now by a confrontation with the scene of its occurrence, but as if a myth”.

A memória da middle passage e sua necessária relação com o “cativeiro” são o gatilho que dispara os repertórios da negritude diaspórica: nascer para o mundo como “o escravo”, “o cativo”. Mas, diferentemente do que os arquivos que, conforme Diana Taylor (citada em Pinho: 245PINHO, Osmundo. 2021. Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade. Salvador: Segundo Selo. 300 pp.) pertencem às sociedades letradas, às sociedades do Estado, registram em sua fixidez e normatividade, os repertórios são formas baseadas no performático, assentadas no corpo e capazes de produzir e transmitir conhecimentos dentro e para as “comunidades tradicionais”. Assim, as práticas performativas, como as aparições das Indians tribes do carnaval de New Orleans e as aparições do “Nego Fugido” do distrito de Acupe, no Recôncavo baiano, têm o poder de confrontar essa cena primordial que instaura o cativeiro negro, uma vez que estas performances estão atravessadas por “símbolos poderosos que atuam rompendo limites entre o Eu e o Outro, como no transe, e entre o passado e o presente, como no mito, subvertendo a linearidade temporal em sua irreversibilidade ocidental” (:247).

A inquietação provocada pela discussão de questões raciais no Brasil, o desconforto, o incômodo que desalojou as narrativas do “homem cordial” e do “paraíso racial” trouxe à tona o reflexo monstruoso de um povo que se queria mais perto da brancura e hoje tende a descobrir que não só está muito longe dela, como também tem tido a sua antinegritude desvelada. Enquanto escrevia esta resenha para este livro, o qual a meu ver já se constitui como um marco do pensamento social negro, me deparava constantemente com o espetáculo da abjeção, dos diferentes níveis de tortura e sujeição, do corpo negro reduzido à sua materialidade orgânica em diversos cenários da capital baiana. A morte social negra se descortina como um espetáculo que a cada esquina de qualquer cidade segue atualizando seu script e nos é imprescindível avançar em nossa capacidade de objetar os cativeiros.

Referências bibliográficas

  • ARTAUD, Antonin. 1993. O Teatro e seu Duplo São Paulo: Martins Fontes.
  • MOTEN, Fred. 2017. Black and Blur Durham, Carolina do Norte: Duke University Press.
  • PINHO, Osmundo. 2021. Cativeiro: Antinegritude e Ancestralidade Salvador: Segundo Selo. 300 pp.
  • SPILLERS, Hortense. 2003. Black, White, and in Color: essays on American literature and culture Chicago: University of Chicago Press.
  • WILDERSON III, Frank. 2017. “Biko e a problemática da presença”. In: Ana Flauzina & João Costa Vargas, Motim: horizontes do genocídio antinegro na diáspora Brasília: Brado Negro. pp. 67-89.

Nota

  • 1
    “… those markings on the social body of the New World Africanity are the stripes of an oedipal crisis (for male and female children) that can only be cleared away now by a confrontation with the scene of its occurrence, but as if a myth”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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