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FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion (eds). 2021. Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus, The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.

Resenha de: FASSIN, Didier; FOURCADE, Marion. . 2021 Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus, The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.

Pandemic Exposures propõe um mosaico de vinte e um capítulos escritos por antropólogos, sociólogos, historiadores, economistas, cientistas políticos e acadêmicos jurídicos e literários reunidos em torno do tema “Economia e Sociedade”, durante um ano (pandêmico), no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Embora tenha menos sucesso na tentativa de fornecer perspectivas globais sobre as transformações sociais e econômicas das sociedades contemporâneas nos tempos pandêmicos - afinal, há uma clara e assumida sub-representação de análises sobre o Sul Global -, os fragmentos de interpretações gerais e descrições empíricas de Pandemic Exposures se combinam potentemente para expor as lógicas e as consequências das múltiplas hierarquias de valor em jogo reveladas em cada lugar e momento específico. O termo intencionalmente utilizado no plural (“economias”) assume o significado amplo de relações políticas, normativas, materiais e tecnológicas produzidas, avaliadas e acionadas por pessoas e instituições ao lidarem com a pandemia na definição de prioridades e escolhas.

A primeira parte do livro se concentra na gestão pública da pandemia, sobretudo do ponto de vista econômico. Especialistas, políticos e cientistas analisam as transformações em escala global, examinando questões como: a instabilidade do reequilíbrio econômico na era pós-Covid; a provável preservação do “velho normal”, a despeito de concessões temporárias relacionadas a dívidas de diversos países; o caráter temporário dos programas de apoio à renda no contexto da pandemia no Brasil, nos EUA e no Reino Unido, sem fortalecimento estrutural da seguridade social; as marcas da discriminação, da injustiça e da fraude em programas de auxílio emergencial; o apoio de bancos centrais a agentes predatórios do sistema financeiro; a ocultação da escala da pandemia, de informações e críticas por parte de líderes na China, na Hungria e na Turquia; a suspensão da reconstrução democrática no Sudão e o fortalecimento de poderes militares.

O caráter moral das decisões e dos pronunciamentos feitos em relação à pandemia, com foco na circulação de valores, sentimentos e emoções, é destaque das discussões da segunda parte do livro, dedicada às economias morais. A preservação de vidas humanas em sua dimensão estritamente física ter emergido como justificativa oficial para o confinamento de populações, para a suspensão de liberdades e direitos e para a interrupção de atividades econômicas com grandes consequências sociais; o contraste entre a invisibilidade de escolhas marcadas regidas pela lógica do mercado, pela produção de desigualdades e o racionamento de cuidados de saúde, de um lado, e a preeminência do dilema simplista entre deixar que os idosos morram e expor a economia a um colapso, de outro; as consequências sociais observadas em países cujo Estado optou deixar a população trabalhar ou estudar, como na Turquia; a hipótese de que privilegiar a ajuda mútua comunitária em detrimento de políticas públicas pode contribuir para uma forma neoliberal de assistência; e o movimento de reforma prisional nascido na Inglaterra em reação à contaminação em instituições correcionais são alguns dos debates carregados de juízos, valores e afetos morais.

Referente às economias cotidianas, a terceira parte da obra examina as mudanças e as continuidades nas práticas e nas experiências ordinárias de prevenção à saúde e luta econômica. Alguns contextos empíricos e questões analisadas incluem a visibilização das hierarquias raciais e de gênero em relação a migrantes na produção de hortaliças e frutas no setor agrícola espanhol; a estigmatização moral dos trabalhadores migrantes na Índia; o contraste entre guerra e pandemia quanto à rapidez das mortes por parte de cidadãos de Djibuti; no Haiti, a preeminência de preocupações econômicas e políticas na luta pela vida, uma vez que a pandemia de Covid-19 se soma a décadas de guerra civil, intervenções internacionais, colapso social, crises alimentares, terremotos catastróficos, furacões devastadores e epidemias de HIV e cólera.

Na parte dedicada às economias do conhecimento, ganham destaque as compreensões da pandemia e as dinâmicas das relações sociais a partir da mobilização de novas tecnologias e da dialética entre conhecimento especializado e leigo. As desigualdades da exclusão digital; novas formas de vigilância de dados e poderio de grandes empresas digitais reveladas pela educação on-line; a abertura para os bancos centrais do mundo acelerarem a implantação de suas moedas digitais; as consequências do uso de modelos epidemiológicos, demográficos, sociológicos e econômicos para apreender a pandemia e suas consequências; as disputas culturais associadas ao uso de máscaras faciais; o caráter individualista e belicoso de discursos científicos e populares sobre o vírus e a naturalização da desconsideração dos riscos para com os outros compõem algumas das discussões dos autores dos capítulos da última parte do livro.

A apresentação escrita por Didier Fassin e Marion Fourcade sintetiza e sistematiza com rigor algumas das principais questões que entrelaçam os capítulos. Afinal, o que a pandemia expõe? Quem a pandemia expõe? Quais tendências são suspensas, aceleradas ou revertidas pela pandemia? Quais as suas consequências temporárias e estruturais para as relações sociais no mundo contemporâneo? O que se revela quando pensamos com a pandemia, de modo contextualizado e situado?

Em primeiro lugar, observa-se que a pandemia expõe uma série de fenômenos conhecidos: contradições, despreparo e descoordenação entre instituições estatais; os efeitos nocivos de anos de reorganização neoliberal sobre sistemas de seguridade social e, em particular, sistemas de saúde; o poder (relativo) de especialistas e agentes públicos nas tomadas de decisão; o papel das questões de segurança na formulação de políticas públicas; e, acima de tudo, as estruturas desiguais das sociedades contemporâneas. Por outro lado, nota-se que formas tradicionais de dominação foram acompanhadas por experiências de solidariedade e adaptabilidade a tecnologias educacionais e de saúde.

Os sujeitos mais afetados pela crise da saúde a curto e longo prazos foram aqueles já habitualmente submetidos à marginalização, opressão e estigmatização. Assim, os marcadores sociais de classe, raça, casta e gênero - poderíamos acrescentar aqui ainda o marcador social da deficiência - pesaram significativamente não apenas em termos de incidência e mortalidade da infecção, mas também em razão da vulnerabilização por perdas de renda, empregos ou educação, por dívidas crescentes e pelo perigo de uma divisão reorganizada do trabalho.

A experiência da pandemia evidentemente significou uma suspensão ou desaceleração drástica da vida, impondo uma condição de espera, seja pelo retorno ao trabalho, pela reabertura das escolas, pela vez de tomar uma vacina, ou de retirar as máscaras de proteção. Porém, outros aspectos da vida sob o Covid-19 são marcados por acelerações dramáticas na incorporação de mediações tecnológicas, em esferas como trabalho, funerais, serviços religiosos, atividades judiciais e consultas médicas. Finalmente, a emergência sanitária trouxe reversões de tendências antes impensáveis: a distribuição significativa de auxílio econômico por governos alinhados a convenções neoliberais; discussões sobre moratórias de dívidas em instituições financeiras internacionais; e esvaziamento temporário de instituições prisionais; redução do trabalho feminino; e migrações em massa para países de origem.

Em que pesem intervenções biopolíticas sem precedentes nos tempos modernos, que inverteram extraordinariamente as priorizações entre economia e saúde pública e promoveram apoio a grupos sociais vulnerabilizados na pandemia, a maioria dos autores duvida que essas mudanças persistirão de forma durável além da pandemia. Além disso, a própria implementação de formas de apoio na pandemia se mostrou desigual e reveladora de disparidades nas condições de vida entre idosos, doentes, pobres, vulneráveis - prisioneiros, migrantes, minorias étnico-raciais - bem como entre trabalhadores “da linha de frente” e “essenciais”. Para muitas dessas pessoas que enfrentam situações graves e cotidianas, em diferentes contextos, a pandemia de Covid-19 “não mudou nada, ou muito pouco. [...] A pandemia está certamente em primeiro plano, mas também é contextualizada e situada, fundindo o geral e o particular, rupturas e continuidades. A pandemia expõe - torna os corpos vulneráveis novamente” (Fassin & Fourcade 2022FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion. 2021. Exposing and Being Exposed. In: FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion (eds.),Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus. Chicago: The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.:06, tradução minha).

Por seu turno, pelo menos duas transformações estruturais foram amplamente identificadas. Em primeiro lugar, no terreno da soberania política, a pandemia oportunizou, por meio do argumento da emergência sanitária, que os Estados fortaleçam a segurança pública e a vigilância em detrimento de princípios democráticos. Em segundo lugar, a transformação tecnológica que se impôs necessária demoliu oposições a amplas reorganizações do trabalho em instituições públicas e privadas, fortalecendo o poder de grandes empresas digitais sobre infraestruturas físicas e abriu caminho para profundas reformas capitalistas.

Diante do exposto, a coletânea Pandemic Exposures se mostra uma valiosa contribuição que se soma a uma bibliografia crescente produzida por cientistas sociais em nível internacional e nacional, em que pesem a sub-representação de análises sobre países do Sul Global e apenas uma única rápida menção a um dos grupos sociais mais afetados pela pandemia - o das pessoas com deficiência. Um mérito notável da obra reside exatamente no fato de que, ao mesmo tempo em que procura enfatizar o recorte mais ou menos bem definido das relações entre economia e sociedade, assume a pluralidade do termo economia, resultando em um esforço coletivo pertinente e relevante para todas as ciências humanas. Mais do que paradigmas teóricos totalizantes, por meio de uma ampla variedade de universos, dados e perspectivas abordados, oferece referências empíricas que refinam as compreensões sempre contextualizadas e situacionais dos efeitos de uma pandemia global a que “as pessoas sobrevivem, mas não saem ilesas” (Guerin, Joseph & Venkatasubramanian 2022GUERIN, Isabelle; JOSEPH, Nithya & VENKATASUBRAMANIAN, Govindan. 2021. Making a Living, Resisting Collapse, Building the Future: Livelihood in Times of Pandemic and Lockdown. In: FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion (eds.),Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus. Chicago: The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.:289, tradução minha).

Referências

  • FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion. 2021. Exposing and Being Exposed. In: FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion (eds.),Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus Chicago: The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.
  • GUERIN, Isabelle; JOSEPH, Nithya & VENKATASUBRAMANIAN, Govindan. 2021. Making a Living, Resisting Collapse, Building the Future: Livelihood in Times of Pandemic and Lockdown. In: FASSIN, Didier & FOURCADE, Marion (eds.),Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus Chicago: The University of Chicago Press/ Hau Books, 475 pp.

Editado por

Editora-Chefe: María Elvira Díaz Benítez
Editor Associado: John Cunha Comerford
Editora Associada: Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
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