Acessibilidade / Reportar erro

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PENSAMENTO SOCIAL: MEMÓRIA E ESQUECIMENTO NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DA ÁREA NO BRASIL

PUBLIC ADMINISTRATION AND SOCIAL THOUGHT: MEMORY AND FORGETTING IN THE SCIENTIFIC PRODUCTION OF THE AREA IN BRAZIL

ADMINISTRACIÓN PÚBLICA Y PENSAMIENTO SOCIAL: MEMORIA Y OLVIDO EN LA PRODUCCIÓN CIENTÍFICA DEL ÁREA EN BRASIL

RESUMO

Neste trabalho buscamos compreender o intrigante fato revelado por Martins et al (2011; 2013) sobre a significação da baixíssima taxa de utilização do pensamento social brasileiro e das interpretações do Brasil, como referência teórica na produção científica da área Administração, nos três primeiros lustros de implantação da Reforma do Estado brasileiro [1995-2010]. Como metodologia elegemos a análise de conteúdo do discurso dos grupos de pesquisa brasileiros da Área Administração nos seus ‘espelhos’ no DGP-Lattes/CNPq, a partir e uma amostra aleatória representativa desse universo no Censo de 2010 - hipoteticamente o mesmo que reunia os autores daquela produção acadêmica, seus pares e avaliadores. Como revelações desta investigação destacamos a convergência do reduzido emprego da literatura que reflete e interpreta historicamente nossa nacionalidade, naquela produção acadêmica, com a orientação onto-epistemológica dos grupos de investigação da área à época de sua divulgação. Como se esses dois fenômenos se explicassem reciprocamente. Finalmente, este artigo levanta alguns tópicos importantes sobre esses centros brasileiros de investigação.

Palavras-chave:
Pensamento social; Produção Científica da Área de Administração; História da Administração Pública Brasileira

ABSTRACT

In this work we seek to understand the intriguing fact revealed by Martins et al (2011; 2013) about the significance of the very low utilization rate of Brazilian social thought and of Brazil's interpretations, as theoretical references in the scientific production of the Administration area in the firsts 15 years of implementation of the Brazilian State Reform [1995-2010]. As methodology, we elected the content analysis of the discourse of Brazilian research groups in the Administration Area, in their 'mirrors' at DGP-Lattes / CNPq, based on a representative random sample of this universe in the 2010 Census - hypothetically the same that brought together the authors that academic production, its peers and evaluators. As revelations of this investigation, we highlight the convergence of the reduced use of literature that historically reflects and interprets our nationality, in that academic production, with the onto-epistemological orientation of the research groups in the area, at the time of the publications of de work. As if these two phenomena explained each other. Finally, this article raises some important topics about these Brazilian research centers.

Keywords:
Social Thinking; Scientific Production of the Administration Area; History of Brazilian Public Administration

RESUMEN

En este trabajo buscamos comprender el hecho intrigante revelado por Martins et al (2011; 2013) sobre la importancia de la muy baja tasa de utilización del pensamiento social brasileño y de las interpretaciones de Brasil, como referencia teórica en la producción científica del área de Administración, en los primeros quince años de implementación de la Reforma del Estado brasileño [1995-2010]. Como metodología, elegimos el análisis de contenido del discurso de los grupos de investigación brasileños en el Área de Administración, en sus 'espejos' en DGP-Lattes / CNPq, basado en una muestra aleatoria representativa de este universo en el Censo de 2010, hipotéticamente lo mismo que reunió a los autores de esta producción académica, sus pares y evaluadores. Como revelaciones de esta investigación, destacamos la convergencia del uso reducido de la literatura que históricamente refleja e interpreta nuestra nacionalidad en esta producción académica, con la orientación epistemológica de los grupos de investigación del área, en el momento de su publicación. Como si estos dos fenómenos se explicaran entre sí. Finalmente, este artículo plantea algunos temas importantes sobre estos centros brasileños de investigación académica.

Palabras-clave:
Pensamiento Social; Producción Científica del Área de Administración; Historia de la Administración Publica Brasileña

1 UMA INTRIGANTE REVELAÇÃO

Ainda que não haja dúvida quanto à inclusão da Administração Pública no universo das disciplinas que integram o campo das Ciências Sociais (aplicadas), a pesquisa A Administração Pública e as Referências aos Clássicos Interpretativos do Brasil no Pensamento Acadêmico da Primeira Década e Meia de Vigência da Reforma do Aparelho de Estado (MARTINS et al., 2011MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. A Administração Pública e as referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico da primeira década e meia de Reforma do Aparelho de Estado. In: ANPAD. Assoc. Nac. Programas de Pós-Graduação em Administração. Anais do XXXV EnANPAD. Rio de Janeiro, 2011.), divulgada nos Anais do XXXV EnANPAD, posteriormente revista, ampliada e publicada no capítulo de abertura do livro Estado Organização e Pensamento Social Brasileiro (GURGEL; MARTINS, 2013GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013., p. 13-40), com o título Referência aos Clássicos Interpretativos do Brasil no Pensamento Acadêmico Contemporâneo sobre Administração Pública, revela uma baixíssima taxa de utilização do pensamento social brasileiro e das interpretações do Brasil, como referência teórica na análise do fato administrativo e da governança pública na produção acadêmica nacional. Variando de, apenas, 0,3 a 2,2 % do total das referências citadas, no período analisado [1995 - 2010], com a agravante de que este intervalo de tempo coincide com os três lustros que sucedem, imediatamente, à aprovação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (setembro de 1995) do governo de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que - como seria de se esperar - a reflexão acadêmica sobre as mudanças administrativas então em curso se fizesse contextualizada no pano de fundo histórico das singularidades de nossa formação nacional. Dito de outra forma: referenciadas nas análises que buscam compreender essa dinâmica social na literatura que a interpreta e critica ao longo de seu processo histórico de formação.

Por outro lado, quando analisamos a Figura 1 a seguir - extraída daquele trabalho -, constatamos que a baixíssima taxa média anual (~ 0,99 %) de utilização das citadas referências cai, nos dois lustros finais do período [2001-2010], para o intervalo (também fechado) [0,3 - 1,0 %], com uma média anual de 0,54 % e tendência decrescente.

Figura 1:
A Análise Administrativa Pública e o Pensamento Social Brasileiro: um retrato da produção acadêmica da área [1995-2010]

2 OBJETO DESTA INVESTIGAÇÃO

Neste trabalho buscamos uma explicação para essa intrigante revelação sobre o quase total esquecimento do pensamento social brasileiro e da literatura interpretativa do Brasil na produção científica da área Administração Pública - feita por Martins e outros (2011MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. A Administração Pública e as referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico da primeira década e meia de Reforma do Aparelho de Estado. In: ANPAD. Assoc. Nac. Programas de Pós-Graduação em Administração. Anais do XXXV EnANPAD. Rio de Janeiro, 2011.; 2013) - em um momento histórico tão especial como aquele (1995-2010), quando significativas mudanças estavam sendo discutidas e introduzidas no Aparelho do Estado e na Administração Pública brasileira.

Quaisquer que sejam as possíveis explicações a essa questão, impõe-se aprofundar sobre os determinantes desse fenômeno social.

3 SOBRE A INVESTIGAÇÃO

De acordo com Martins et al. (2013MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. Referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico contemporâneo sobre administração pública. In: GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013, p. 13-40., p. 27) a base de dados da pesquisa foi composta por 1 853 trabalhos divulgados e publicados no âmbito dos encontros EnANPAD e EnAPG de 1995 até 2010, envolvendo mais de 40 mil referências analisadas por aqueles pesquisadores.

Considerando que o conjunto dos grupos de pesquisa da “Grande Área Ciências Sociais Aplicadas”, “Área Administração”, inscritos no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil - Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (DGP-Lattes/CNPq) até 2010 (ano de conclusão da pesquisa inspiradora deste trabalho), reúne os atores (pesquisadores, autores e avaliadores) daquela produção acadêmica, a qual, por sua vez, é um reflexo do perfil onto-epistemológico desses grupos, desenhamos esta investigação a partir de uma análise do conteúdo do discurso desse conjunto nos seus “espelhos” daquele Diretório. Entre as diversas informações sobre a organização, história e desempenho desses núcleos, o DGP-Lattes/CNPq registra os seus: “Nomes”, “Linhas de Pesquisa” e as “Repercussões” de suas atividades. Dados estes onde, de forma explicita ou tácita, são declarados os objetivos, a orientação epistemológica e os temas de investigação desses centros de produção acadêmica. Por esta razão, esse discurso foi o conteúdo selecionado como corpus de análise desta investigação.

De acordo com o Censo de 2010 do DGP-Lattes/CNPq, 757 grupos (atualizados ou não) compunham a Área Administração desse Diretório que, à época, totalizava 27.523 grupos de pesquisa atuantes em todo o país e em todas as áreas do conhecimento. Dentre esses 757 grupos (ordenados cronologicamente pelos anos de criação e codificados de 1 a 757 em nossa pesquisa) sorteamos 120 elementos (15,8% do universo) para compor a amostra a ser analisada, através da geração de números aleatórios não repetitivos do intervalo [1-757]. Ainda como recorte da amostra final selecionamos os sujeitos cujos discursos de apresentação se enquadrassem em uma ou mais das seguintes Divisões Acadêmicas da ANPAD: “Administração Pública”; “Estudos Organizacionais”; “Ensino e Pesquisa em Administração e Contabilidade”; e “Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho” (entre as 11 divisões acadêmicas daquela associação), as mesmas que, em geral, produzem trabalhos sobre o tema e, assim, com maior probabilidade de autoria, revisão e/ou seleção dos trabalhos analisados por Martins et al. (2011MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. A Administração Pública e as referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico da primeira década e meia de Reforma do Aparelho de Estado. In: ANPAD. Assoc. Nac. Programas de Pós-Graduação em Administração. Anais do XXXV EnANPAD. Rio de Janeiro, 2011.) e Gurgel e Martins (2013GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013.).

Finalmente, consideramos a distribuição geográfica percentual desses grupos de pesquisa no território nacional. Para tanto, utilizamos (na falta dessa distribuição regional por Área do Conhecimento/ano) os dados do Censo Geral de 2010 do CNPq (todas as áreas). Tabela 1, seguir.

Tabela 1:
Distribuição dos Grupos de Pesquisa Segundo a Região Geográfica (Todas as Áreas do Conhecimento)

Desse recorte resultaram 34 grupos, os quais compõem a amostra final desta investigação, ou 4,5 % do universo de análise.

Neste relato manteremos anônimos esses centros de produção, identificados em nossa investigação, apenas, pelos seus códigos numéricos.

De uma “leitura flutuante” do conteúdo desse corpus de análise inferimos, preliminarmente, algumas hipóteses sobre os sujeitos da pesquisa (grupos de investigação):

  1. É muito rara uma perspectiva “multi”, “inter” ou “trans” disciplinar no discurso dos grupos, apesar da natureza do seu objeto de estudo (fenômeno social complexo);

  2. Evidencia-se uma visão anistórica do fato social estudado no discurso dos grupos, ainda que o significante “histórico(a)” seja adjetivo presente nesse discurso;

  3. Verifica-se a ausência de qualquer menção ao pensamento social brasileiro e/ou às interpretações clássicas do Brasil como referências teóricas de análise;

  4. A predominância de uma abordagem positivista-funcionalista na análise do fenômeno objeto de estudo;

  5. A ausência do tema Reforma do Estado na temática dos grupos analisados;

  6. Uma forte orientação mercadológica na orientação epistêmica dos grupos, em detrimento de uma visão crítica da dinâmica estudada;

  7. Manifesto “quantitativismo” como critério de avaliação da produção acadêmica dos próprios grupos;

  8. Fraca orientação para pesquisas na fronteira do conhecimento;

  9. Uniformidade de discurso e tendência à mimesis, apesar da diversidade sociocultural das regiões de localização dos grupos;

  10. Atração para os “modismos” de cada época - veiculados pelos media e pela literatura do pop management- na autoimagem dos núcleos de pesquisa;

  11. O significante “estratégia” e seus derivados como valor modal no discurso dos sujeitos desta investigação;

  12. Pragmatismo onto-epistemológico manifesto e ausência de uma visão pedagógica (emancipadora) da atividade de investigação.

4 ADMINISTRAÇÃO: UM FATO SOCIAL, MULTIDIMENSIONAL, HISTÓRICO E SINGULAR

Como já referido, a literatura contemporânea de Administração parece já haver assimilado a natureza social, multidisciplinar, simbólica, política e histórica do seu objeto de estudo.

Para Martins (2012MARTINS, Paulo Emílio Matos. O Espaço-Dinâmica Organizacional em Perspectiva Histórica. In: VIEIRA, H. C.; GALVÃO, N. N. P. e SILVA, L. D. (Orgs.) Brasil Holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012.):

Logo em uma primeira abordagem a esse espaço-dinâmica, em um instante (t), revelam-se: coisas, pessoas, processos em operação, relações de dominação-sujeição e representações [sociais] dos elementos constituintes desse locus e dos referentes do universo em que este se insere. Dito de outra forma: deparamo-nos com um espaço multidimensional ... (MARTINS, 2012MARTINS, Paulo Emílio Matos. O Espaço-Dinâmica Organizacional em Perspectiva Histórica. In: VIEIRA, H. C.; GALVÃO, N. N. P. e SILVA, L. D. (Orgs.) Brasil Holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012., p. 328)

É ainda esse mesmo autor que destaca:

... o espaço-dinâmica [organizacional] se (re)constrói historicamente e, para melhor compreendê-lo, é imperioso historicizá-lo, fugindo, assim, do reducionismo de tornar estático o que é dinâmico, de universalizar o que é singular, de anistorizar o que tem passado e de utilizar um modelo estrutural-funcionalista-universalista menos complexo do que a realidade em análise (MARTINS, 2012MARTINS, Paulo Emílio Matos. O Espaço-Dinâmica Organizacional em Perspectiva Histórica. In: VIEIRA, H. C.; GALVÃO, N. N. P. e SILVA, L. D. (Orgs.) Brasil Holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012., p. 332).

Por outro lado, parece já ser consensual o reconhecimento do pioneirismo de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) nos estudos organizacionais críticos (PAULA, 2008PAULA, Ana Paula Paes de. Teoria crítica nas organizações. São Paulo: Thompson Learning, 2008., p. 63; MISOCZKY, 2018MISOCZKY, Maria Ceci Araujo. Contribuciones del pensamiento crítico para la conformación de los estudios organizacionales en América Latina. In: JARAMILLO, Wilson Araque (editor). Administración y Pensamiento Social. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar: Corporación Editora Nacional, 2018, p. 321-343., p. 328 etc.).

Em seu clássico A redução sociológica (1ª ed.: 1958) esse autor destaca: “A perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui. Portanto, se transferidos para outra perspectiva, deixam de ser exatamente o que eram. Não há possibilidade de repetição na realidade social. O sentido de um objeto jamais se dá desligado de um contexto determinado”. (RAMOS, 1965RAMOS, Alberto Guerreiro RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica (introdução ao estudo da razão sociológica) - 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965 [1ª ed. 1958]., p. 83).

Mais tarde, em sua obra Administração e contexto brasileiro (1983) [1ª. ed.: 1966] esse autor seria ainda mais enfático:

... o fenômeno administrativo está sujeito a condicionamentos histórico-sociais. O estudo sistemático desses condicionamentos, no entanto, tem sido descurado e ainda hoje está longe de constituir imperativo essencial da formação do analista administrativo. Ora, nos países plenamente desenvolvidos, pode não ter graves consequências negativas essa deficiência na formação do especialista, pois, ali, o avanço da teoria e da técnica de administração é concomitante com o avanço das variáveis histórico-sociais que lhes são correlatas. Em tais circunstâncias, muito se minimizam certos conflitos entre a técnica administrativa e contextos históricos-sociais que, ao contrário, avultam nos países atrasados e em transição. A visão histórico-social dos fenômenos administrativos é, por isso, mais requerida nos países subdesenvolvidos do que nos avançados, embora, tanto em uns como em outros, seja exigência do conhecimento cientificamente rigoroso. (RAMOS, 1983RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro - esboço de uma teoria geral da administração. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1983 [1ª ed. 1966]., p. 73).

Guerreiro Ramos é, também, o pioneiro no emprego do pensamento social e das interpretações do Brasil como referência teórica na análise organizacional. De fato, ao estudar o formalismo no Brasil, no longo Capítulo 6 de sua obra acima citada, este autor recorre a autores brasileiros como: Paulino José Soares de Souza - Visconde de Uruguai (1807-1866) -, Machado de Assis (1839-1908), Silvio Romero (1851-1914), Alberto Torres (1865-1917), Euclydes da Cunha (1866-1909), Oliveira Viana (1883-1951) e tantos outros, para concluir: “o formalismo nas sociedades prismáticas [RIGGS, 1964] é uma estratégia de mudança social, imposta pelo caráter dual de sua formação histórica e do modo particular como se articulam com o resto do mundo.” (RAMOS, 1983RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro - esboço de uma teoria geral da administração. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1983 [1ª ed. 1966]., p. 312).

Na mesma linha de pensamento, Alvesson e Willmott (1992ALVESSON, M e WILLMOTT, H. Critical management studies. Londres: Sage, 1992.), precursores da corrente anglo-saxônica dos Critical Management Studies, cujos primeiros trabalhos datam das décadas dos 70/80 do século passado e que só viriam a se consolidar internacionalmente a partir dos anos 90, o management deve ser estudado como um fenômeno político, cultural e ideológico, o que equivale dizer, histórico e singular, ratificando, assim, a já referida visão crítica e pioneira de Guerreiro Ramos: “A perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui. Portanto, se transferidos para outra perspectiva, deixam de ser exatamente o que eram.” (RAMOS, 1965RAMOS, Alberto Guerreiro RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica (introdução ao estudo da razão sociológica) - 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965 [1ª ed. 1958]., p. 83).

Assim, por ser também ideológico, o conhecimento de Administração produzido nos grandes centros econômicos e hegemonicamente reproduzido em todo o planeta, silencia sobre o pensamento crítico formulado na periferia e condena significativa parcela da humanidade a repetir, puerilmente, as “verdades” de um espaço social forâneo.

Ainda que essa discussão seja muito interessante e necessária, este não é o espaço para o seu aprofundamento. Sigamos, então, buscando compreender aquela intrigante revelação do texto de Martins e outros (2013MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. Referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico contemporâneo sobre administração pública. In: GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013, p. 13-40.) que inspira esta investigação.

Como vimos, desde as reflexões de Guerreiro Ramos, Martins, até o recente movimento do Critical Management Studies, o objeto de estudo da Administração tem sido visto como um locus SOCIAL - no sentido pleno do termo -, POLÍTICO, CULTURAL e HISTÓRICO, sendo estas as categorias que analisaremos no discurso do corpus de análise dos grupos de pesquisa brasileiros da área Administração (DGP-Lattes/CNPq, 2010). A essas categorias de análise acrescentaremos as: BRASIL e PENSAMENTO, obviamente para situar, de um lado, geograficamente o discurso estudado, e, de outro, para incluir as questões onto-epistemo-metodológicas indissociáveis da atividade de produção do conhecimento.

Para tanto, realizaremos essa busca, como já referido, nos segmentos “Nome”, “Linhas de Pesquisa” e “Repercussões” dos “espelhos” dos grupos de pesquisa integrantes da amostra em tela, ampliando o espectro lexical dessas categorias pela inclusão, também, de suas palavras derivadas e correlatas (Tabela 2).

5 ANÁLISE DOS DADOS

A tabela a seguir resume o corpus de análise desta investigação, as categorias de que emergem das referências teóricas citadas e suas frequências.

Tabela 2:
Frequência das Categorias de Análise / Palavras-Chaves no Corpus de Análise

Contrapondo a frequência total de ocorrência dessas seis categorias-chave de análise da investigação (incluindo suas palavras derivadas e correlatas) com a taxa média anual de utilização do pensamento social e das interpretações do Brasil nos textos científicos revelada por Martins e outros (1,10 % e 0,99 %, respectivamente), surpreendentemente, encontramos quase os mesmos números e a mesma insignificância relativa de ambos.

Fica a pergunta: Será que eles se explicam reciprocamente?

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda a partir da Tabela 2 podemos ordenar, decrescentemente, pela grandeza de suas frequências, as seis categorias de análise desta investigação, suas derivadas e correlatas, e encontramos: Social: 0,39 %; História: 0,25 %; Brasil: 0,19 %; Pensamento: 0,15 %; Cultura: 0,08 % e Política: 0,04 %. Todas muito baixas e inferiores a 0,40 %, o que equivale dizer, a um máximo de 19 menções no discurso dos 34 grupos estudados. É ainda destacável a preocupante baixa frequência de citação da categoria Política (0,04 %) no estudo de um fenômeno eminentemente dessa natureza.

Cumpre registrar que os percentuais de ocorrência das citadas categorias (acima) são, na verdade, um pouco maiores, se calculados em relação ao total de “palavras plenas” (substantivos, adjetivos e verbos) do discurso completo (BARDIN, 1993BARDIN, Laurence. L’Analyse de contenu. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.), também denominadas “núcleos”, isto é, das palavras portadoras de sentido, excluindo assim do mesmo as classes gramaticais chamadas “palavras-instrumento” (BARDIN, 1993), ou “satélites” (artigos, preposições, pronomes, advérbios, conjunções etc.), isto é, as palavras funcionais ou de ligação. Infelizmente, ainda não contamos na língua portuguesa - como na francesa - com um levantamento como o Trésor de la Langue Française, que poderia nos ajudar a resolver esta situação, apontando a frequência média de ocorrência, por tipo de discurso, das classes gramaticais “nucleares” e “satélites” na língua vernácula.

A partir dessas categorias de análise é possível concluir: Os núcleos de investigação analisados reconhecem, ainda que de modo muito frágil, a tão afirmada característica Social do tema Administração (categoria de maior frequência, 19 menções); seu caráter Histórico (segunda categoria de maior frequência, 12 menções); a singularidade do espaço de sua ocorrência: Brasil (terceira categoria de maior frequência, 9 menções); o Pensamento como dinâmica da atividade de produção do conhecimento (quarta categoria de maior frequência, 7 menções); o caráter simbólico-cultural desse objeto de estudo como produtor de significados (quinta categoria de maior frequência, 4 menções) e, finalmente, como sexta e menos importante categoria, a dimensão Política do fato em estudo (apenas 2 menções), o que é muito significativo, surpreendente e pode explicar o preocupante quadro político nacional que ora enfrentamos.

As metodologias de análise de discurso/conteúdo são frequentemente criticadas como sendo subjetivas e suas conclusões não universalizáveis e não replicáveis. Quanto à primeira crítica, de fato, elas são intrinsicamente subjetivas e buscam, assim, resgatar a subjetividade inseparável do fenômeno estudado. Darcy Ribeiro, sabiamente, referia-se à Ciência Natural e Consciência Social.

Com relação à essa segunda crítica, mais uma vez, objeto e método se definem reciprocamente, na medida em que, ambos, envolvem singularidades e, assim, se opõem ao universal. Finalmente, quanto à terceira crítica, essa só tem validade quando não houver rigor na aplicação dessas metodologias de investigação social.

Como teste da potencialidade limite do universo (total) estudado nesta pesquisa, para uma orientação epistemológica mais centrada nas seis categorias aqui analisadas, submeteremos, a seguir, o discurso de oito grupos de pesquisa selecionados (escolhidos) no universo total dos 757 do DGP-Lattes/CNPq 2010, pelo critério de maior afinidade com essas categorias (independente de terem ou não estes constituído a amostra sorteada) à mesma metodologia aplicada aos 34 grupos que integram o corpus de análise desta investigação; critério este, obviamente, orientado para a convergência de suas visões epistêmicas com as seis referências teóricas deste trabalho. Dito de outro modo, buscando verificar a afinidade onto-epistemológica daquele universo com a leitura crítica das organizações de Ramos, Martins, Misoczky, Alvesson e Willmott. O resultado dessa análise está resumido na Tabela 3, a seguir.

Tabela 3:
Frequência das Categorias de Análise / Palavras-Chaves - Grupos Selecionados

A seguir analisaremos, comparativamente, o discurso da amostra aleatória com o do grupo-teste (amostra intencional).

Tabela 4:
Análise Comparativa dos Discursos: Amostra Aleatória e Grupo-teste

Comparando as colunas “corpus de análise” e “grupo teste” da Tabela 4 (acima), verificamos que o percentual total de menções às seis categorias de análise nos dois grupos é quase três vezes maior no grupo-teste (3,03 %, amostra intencional) do que no corpus de análise desta pesquisa (1,10 %, amostra aleatória).

Como interpretar esse fato?

Tendo em vista que a seleção dos grupos de pesquisa que integram a amostra do “grupo teste” foi feita a partir do critério de convergência epistemológica dos seus discursos com os dos textos que suportam o referencial teórico deste trabalho, podemos inferir daí que o resultado 3,03 % (~2,75 vezes maior do que o do nosso “corpus de análise”) representaria o limite superior do resultado provável daquele universo (DGP-Lattes/CNPq 2010) em relação à orientação para estudar o Brasil a partir do seu pensamento social e dos clássicos que o interpretam.

Se, por hipótese, imaginarmos que o número mínimo aceitável para esse indicador seria 10,0 %, estamos ainda muito distantes de uma comunidade de pesquisa focada na sua própria realidade histórico-social e nos desafios que esta cobra de seus pensadores.

6.1 OUTROS ACHADOS DA INVESTIGAÇÃO

Por outro lado, ainda dos “espelhos” dos grupos integrantes do nosso corpus de análise desta investigação é possível fazer algumas inferências sobre as doze hipóteses levantadas anteriormente quando da “leitura flutuante” dos discursos analisados. Vejamos como:

  1. Pode-se confirmar a quase-total ausência de uma perspectiva “multi”, “inter” ou “trans” disciplinar daquela fala, apesar da natureza do seu objeto de estudo (fenômeno social complexo);

  2. A baixa frequência da categoria História e suas correlatas e derivadas (0,25 %) parece revelar uma análise predominantemente anistórica do objeto estudado;

  3. Entre os 34 núcleos de investigação que integram a amostra representativa do universo em tela verificou-se a completa ausência de qualquer menção ao pensamento social brasileiro e/ou às interpretações do Brasil como referência teórica de análise;

  4. A orientação paradigmática predominantemente positivista-funcionalista (BURREL e MORGAN, 1980BURREL, Gibson e MORGAN, Gareth. Sociological paradigms and organisational analysis. London: Heinemann, 1980.) do fenômeno administrativo é também modal nas descrições epistemológicas dos grupos estudados;

  5. Não há qualquer menção à Reforma do Aparelho do Estado brasileiro de 1995, ainda que no período analisado vivêssemos o “calor da hora” dessa política pública;

  6. Tampouco, aparece no discurso dos grupos estudados - impregnado por uma racionalidade mercadológica - a orientação para estudos críticos;

  7. Do mesmo modo, é também modal a visão “quantitativista” da produção acadêmica dos próprios grupos. Orientação esta que ocupa muitas vezes quase todo o discurso de suas “Repercussões”, em detrimento de um maior esclarecimento sobre os seus objetivos, justificativas e razão de ser;

  8. Tanto a investigação na fronteira do conhecimento está ausente na amostra estudada;

  9. Num universo heterogêneo, profunda e secularmente marcado pela desigualdade, o discurso dos seus grupos de investigação revela-se de grande homogeneidade (mimesis) com o quase absoluto desprezo pelas características sociais, culturais e regionais de seu “lugar de fala”;

  10. Os “modismos” de cada época - veiculados pelos media e pela literatura denominada “pop management” - são muito frequentes na fala dos grupos. Por exemplo: Inovação: 0,40 %; Sustentável(bilidade): 0,23 % e Empreendedor(ismo): 0,13 %. A primeira com frequência superior ao somatório das seis principais categorias de análise desta investigação, a segunda superada, apenas, pela categoria História, e a terceira quatro vezes maior do que a categoria Política;

  11. Infere-se, ainda, da análise aqui feita que estaríamos formando bons estrategos para a gestão pública e privada de nossas organizações. Amém! O referente Estratégia e seus correlatos são as categorias mais frequente nos discursos dos grupos, com ocorrência de 0,75 % - quase duas vezes superior à soma total das seis categorias básicas de análise (36 citações);

  12. Sobre a orientação filosófica do discurso analisado, esta revela-se eivada de um pragmatismo epistemológico e carente de uma visão pedagógica, crítica e emancipadora da atividade de produção do conhecimento.

Para Ricouer (2007RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007., p. 300) “o esquecimento é o emblema de quão vulnerável é nossa condição histórica”.

Seria esse o desafio maior que as revelações de Martins e outros sinalizam?

REFERÊNCIAS

  • ALVESSON, M e WILLMOTT, H. Critical management studies. Londres: Sage, 1992.
  • BARDIN, Laurence. L’Analyse de contenu. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.
  • BRASIL, CNPq Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil / Lattes. http://lattes.cnpq.br/web/dgp Acesso em 21 de agosto de 2018.
    » http://lattes.cnpq.br/web/dgp
  • BURREL, Gibson e MORGAN, Gareth. Sociological paradigms and organisational analysis. London: Heinemann, 1980.
  • GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013.
  • PAULA, Ana Paula Paes de. Teoria crítica nas organizações. São Paulo: Thompson Learning, 2008.
  • MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. A Administração Pública e as referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico da primeira década e meia de Reforma do Aparelho de Estado. In: ANPAD. Assoc. Nac. Programas de Pós-Graduação em Administração. Anais do XXXV EnANPAD. Rio de Janeiro, 2011.
  • MARTINS, Paulo Emílio Matos. O Espaço-Dinâmica Organizacional em Perspectiva Histórica. In: VIEIRA, H. C.; GALVÃO, N. N. P. e SILVA, L. D. (Orgs.) Brasil Holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012.
  • MARTINS, Paulo Emílio Matos et al. Referências aos clássicos interpretativos do Brasil no pensamento acadêmico contemporâneo sobre administração pública. In: GURGEL, Claudio e MARTINS, Paulo Emílio Matos (orgs.). Estado, organização e pensamento social brasileiro. Niterói: Editora da UFF, 2013, p. 13-40.
  • MISOCZKY, Maria Ceci Araujo. Contribuciones del pensamiento crítico para la conformación de los estudios organizacionales en América Latina. In: JARAMILLO, Wilson Araque (editor). Administración y Pensamiento Social. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar: Corporación Editora Nacional, 2018, p. 321-343.
  • RAMOS, Alberto Guerreiro RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica (introdução ao estudo da razão sociológica) - 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965 [1ª ed. 1958].
  • RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro - esboço de uma teoria geral da administração. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1983 [1ª ed. 1966].
  • RIGGS, Fred W. Administração nos países em desenvolvimento: a teoria da sociedade prismática. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1968.
  • RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2019
  • Aceito
    15 Mar 2020
Escola de Administração da UFRGS Escola de Administração da UFRGS, Rua Washington Luis, 855 - 2° Andar, 90010-460 Porto Alegre/RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-3823, Fax: (55 51) 3308 3991 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: read@ea.ufrgs.br