ESPECIAL: PONTOS DE VISTA
Examinando a congruência pessoa-ambiente: o principal desafio para a Psicologia Ambiental1 1 Tradução de José Q. Pinheiro, a partir de original em língua inglesa. Gabriel Moser, doutor em Psicologia Ambiental pela Université René Descartes Paris 5, é professor titular nessa mesma universidade e diretor do CNRS Laboratoire de Psychologie Environnementale. Endereço para correspondência: 71 av. Edouard Vaillant, 92100 - Boulogne-Billancourt - France. Tel.: + 33 1 55 20 58 51. Fax: + 33 1 55 20 57 40. E-mail: gabriel.moser@univ-paris5.fr
Gabriel Moser
Université René Descartes-Paris V, França
O princípio do século 21 é caracterizado por dois grandes marcos de referência prováveis de marcar profundamente a maneira pela qual nossas sociedades vão se desenvolver: desenvolvimento sustentável e globalização, ambos conceitos-chave na economia do novo século, inevitavelmente portadores de impacto sobre nossos modos de vida.
Essa preocupação se reflete particularmente em nossa disciplina, na medida em que a maneira de se relacionar com o ambiente constitui um importante elemento a contribuir para o bem-estar individual. A Psicologia Ambiental pode analisar, explicar e fornecer informações capazes de identificar as condições envolvidas na congruência pessoa-ambiente e no bem-estar e, portanto, ajudar a tomada de decisões em questões ambientais.
Da incongruência para a congruência
Em seus primórdios, a Psicologia Ambiental (PA) examinava principalmente a influência do ambiente sobre a percepção e o comportamento dos indivíduos (como no caso da psicologia arquitetural no Reino Unido). À parte a Psicologia Ecológica de Barker, que é uma notável exceção, os psicólogos ambientais examinavam a relação entre o indivíduo e o ambiente predominantemente nos termos da lógica "estímulo-resposta". Mesmo quando os psicólogos ambientais consideram que os indivíduos reagem em seus ambientes de acordo com a maneira pela qual eles individualmente o percebem, o nível de análise se concentra basicamente no impacto de determinados aspectos do ambiente físico.
Princípios deterministas e interacionistas são ambos pontos de vista restritos e reducionistas. Ambos são reducionistas porque focalizam a relação do indivíduo com um aspecto particular do ambiente, sem considerar a situação. A parcialidade dessas abordagens pode ser ilustrada por um problema recorrente com que se deparam os psicólogos ambientais: o impacto de condições ambientais danosas, como poluição do ar ou ruído. Quatro combinações distintas são identificadas na Tabela 1.
Incômodos causados por ruído ou problemas de poluição são tratados de modo distinto por engenheiros ou médicos e por psicólogos. Enquanto engenheiros e médicos, especialmente os epidemiologistas, estão interessados no perigo da exposição (combinações [1a] e [1b], acima), pois o ponto de partida deles é o estímulo, psicólogos ambientais tradicionalmente lidam com a maneira dos indivíduos perceberem e avaliarem as condições ambientais, portanto examinando principalmente a combinação [1a], freqüentemente negligenciando não só a combinação [2a], mas também a [1b]. Proceder assim causa a baixa correlação repetidamente documentada entre exposição e incômodo, explicada principalmente por diferenças inter- e intra-individuais.
Enquanto as combinações [1a] e [2b] são relações lógicas (exposição e incômodo / não-exposição e não-incômodo), as combinações [2a] e [1b] são aparentemente ilógicas, desafiando particularmente as análises psicológicas, como tais. Além disso, em cada combinação pode haver também uma discrepância entre a expressão de incômodo e as estratégias adaptativas adotadas pelo indivíduo.
Mais precisamente, examinar o problema nos termos da psicologia ambiental, ou seja, interessar-se por saber se o indivíduo percebe, avalia e expressa incômodo ou não, e quais os comportamentos associados, implica levar em conta várias combinações que não necessariamente correspondem a uma efetiva exposição a uma estimulação perigosa. Essas combinações estão relacionadas à expressão de bem-estar, ou de falta de bem-estar, e de qualidade de vida, conceitos centrais de nossa disciplina no início deste novo século. De fato, somente [2b] é uma combinação satisfatória, como expressão da congruência do indivíduo com seu ambiente, ao passo que as outras três combinações estão ameaçando a qualidade de vida da pessoa e, assim, também seu bem-estar. O papel da Psicologia Ambiental é analisar as condições dessa congruência.
Bem-estar no contexto da globalização (preservando a congruência indivíduo-ambiente)
Buscar as condições de congruência entre indivíduo e ambiente é uma tarefa integrada para a Psicologia Ambiental. A congruência pessoa-ambiente significa bem-estar e qualidade de vida, que são cada vez mais desafiados pelos processos de globalização. O Relatório Brundtland (Brundtland, 1987) abriu o caminho para interesses relacionados com qualidade de vida, ao definir desenvolvimento sustentável como "um desenvolvimento capaz de satisfazer as necessidades da geração atual sem prejudicar a habilidade das futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades". A referência a necessidades leva à inclusão não só da exigência de que o desenvolvimento seja harmonioso em relação e em respeito ao ambiente, mas também ao reconhecimento do próprio bem-estar do indivíduo. Os requisitos de um desenvolvimento sustentável serão atingidos somente se satisfizerem as necessidades do indivíduo (ver o modelo CIS, Pol, 2002).
O bem-estar está ameaçado pela globalização e seu corolário, comunicações e comércio globais, que geram pressão para uniformidade cultural no estilos de vida. Identidades culturais e portanto também necessidades específicas encontram sua expressão no apego espacial aos lugares. Alegações de diferenças e de singularidade com freqüência são territorialmente ancoradas. O aumento em mobilidade local, nacional e também mundial, para certas categorias da população, exacerba as confrontações entre culturas que têm diferentes necessidades, valores e costumes que se refletem na vida diária (Moser, 2003). Na sociedade brasileira as necessidades de um habitante da cidade de São Paulo não são as mesmas de um habitante de Goiânia ou do indígena da Amazônia. Todos eles podem aspirar a uma certa qualidade de vida, ainda que essa noção possa ser substancialmente diferente para cada um deles. Os psicólogos ambientais não precisam buscar uma medida padronizada de qualidade de vida; eles têm de examinar as necessidades de cada um em assuntos ambientais, a fim de prover as pessoas com o que elas entendem por "bem-estar". Assim, considerar bem-estar, qualidade de vida e necessidades traz duas conseqüências principais:
1. força a adoção de uma perspectiva mais inclusiva, holística e transacional nas relações pessoa-ambiente e em cada uma das várias escalas espaciais em que psicólogos ambientais operam nas interações indivíduo-ambiente - do nível micro, do espaço pessoal e de cômodos individuais, aos espaços público-privados e espaços inteiramente públicos até o ambiente global (Moser, 2002), e
2. leva os psicólogos ambientais a operarem de um modo que incorpora as dimensões inter-cultural e temporal. O impacto da Psicologia Ambiental pode ser amplificado se os pesquisadores atuarem dentro do contexto cultural e temporal mais amplo que condiciona necessidades, percepções e comportamentos das pessoas em qualquer ambiente que se considere.
A unidade de análise da Psicologia Ambiental é o relacionamento indivíduo-ambiente, e só se pode estudar essa relação através do exame de cognições e comportamentos que ocorrem em situações do mundo real. Fatores físicos e sociais estão entrelaçadamente vinculados em seus efeitos sobre percepções e comportamentos dos indivíduos (Altman & Rogoff, 1987). Para efetivamente realizar isso, a pesquisa em Psicologia Ambiental busca identificar processos que regulam e mediam esse relacionamento específico. Examinar necessidades individuais a fim de identificar condições de bem-estar e qualidade de vida satisfatória permite integrar as diferenças culturais em um quadro de referência teórica geral para a disciplina. A todo momento a Psicologia Ambiental é confrontada com a necessidade de dar conta do contexto com o qual o indivíduo está em constante contato. Consequentemente, teorias das relações pessoa-ambiente mundialmente relevantes só poderão existir mediante a integração de necessidades particulares de populações específicas e, portanto, através da referência às dimensões culturais.
Visões de mundo e congruência pessoa-ambiente: em busca de um quadro de referência para a compreensão de necessidades e expectativas particulares
O setting ambiental não é neutro, nem um espaço livre de valor; ele é confinado pela cultura. Ele está constantemente transmitindo significados e mensagens, é uma parte essencial do funcionamento humano e parte integral da ação humana (Moser & Uzzell, 2002). O ambiente incorpora os valores sociais e culturais daqueles que vivem nele.
Assim como sabemos que atitudes nem sempre são boas preditoras de comportamento, também podemos supor que aquilo que as pessoas dizem a respeito do ambiente e de suas ações em relação a ele pode ser na realidade contestado por extensas evidências vindas do próprio ambiente. Além disso, o ambiente não é apenas uma invenção de nossa imaginação ou um construto social; ele é real. Se assumimos uma posição determinística ou mesmo interacionista, reconheceremos que o ambiente pode exercer um efeito direto sobre as ações humanas. Dentro do transacionalismo, o ambiente tem uma manifestação física a fim de proporcionar significado. O ambiente materializa as psicologias daqueles que vivem nele. É utilizado para atribuir significado, promover identidade, localizar a pessoa social, cultural e economicamente.
Nesse contexto, pesquisas de representações sociais são de particular importância para a disciplina. A dinâmica das relações pessoa-ambiente só pode ser compreendida através de estudos sistemáticos de representação social. Somente por meio do conhecimento das representações sociais de bem-estar e qualidade de vida de populações específicas em contextos ambientais particulares, nós seremos capazes de acessar os valores das pessoas, significados e visões de mundo e, portanto, compreender e explicar o impacto destes sobre a relação individual daquelas pessoas com seu ambiente. Portanto, a Psicologia Ambiental precisa efetuar uma correção de rota, de estudos sobre atitudes e percepção para a avaliação de valores ambientais e seu contexto ideológico a fim de compreender o comportamento do indivíduo em um ambiente específico.
Proceder dessa maneira provavelmente proporcionará um novo ímpeto à construção teórica em Psicologia Ambiental, ao focalizar explicações comportamentais em um nível mais geral do que o classicamente enfocado até agora. Visões de mundo culturalmente específicas são as condições necessárias para a compreensão de necessidades e expectativas individuais. A relativa ausência de teorias integradoras em Psicologia Ambiental pode ser considerada como uma conseqüência de não se levar em conta aquelas particularidades culturais. Tentativas desse tipo tem sido realizadas com sucesso, fornecendo resultados promissores, como no caso das condições de comportamento ecológico (ver Portinga et al., 2002). Visões de mundo trazem coerência para as diferenças individuais e sociais entre atitudes e comportamento relativos ao ambiente, ajudam a compreender exigências individuais de qualidade de vida e proporcionam um quadro de referência para intervenções de psicologia ambiental que visam preservar a congruência pessoa-ambiente.
Referências
Altman, I., & Rogoff, B. (1987). World-views in psychology: trait, interactional, organismic and transactional perspectives. In D. Stokols & I. Altman (Orgs.), Handbook of Environmental Psychology (Vol. 1, pp. 7-40). Nova York: Wiley.
Brundtland, G. H. (1987). Our common future. Oxford: Oxford University Press.
Poortinga, W., Steg, L., & Vlek, C. (2002). Myths of nature and environmental management strategies. A field study on energy reductions in traffic and transport. In G. Moser, E. Pol, Y. Bernard, M. Bonnes, J. Corraliza & V. Giuliani (Orgs.), Places, people & sustainability (pp. 280-290). Göttingen, Alemanha: Hogrefe & Huber.
Moser, G. (2002). People, places and sustainability: an agenda for the future. In G. Moser, E. Pol, Y. Bernard, M. Bonnes, J. Corraliza & V. Giuliani (Orgs.), People, places & sustainability (pp 1-6). Göttingen, Alemanha: Hogrefe & Huber.
Moser, G. (2003). Environmental Psychology for the new millennium: towards an integration of cultural and temporal dynamics. In UNESCO (Org.), The Encyclopaedia of Life Support Systems. Oxford: Eolls Publishers.
Moser, G., & Uzzell, D. (2003). Environmental Psychology. In T. Millon & M J. Lerner (Orgs.), Comprehensive Handbook of Psychology, Volume 5: Personality and Social Psychology (pp. 419-445). Nova York: Wiley.
Pol, E. (2002). The theoretical background of the City-Identity-Sustainability (CIS) network. Environment and Behavior,34(1), 8-25.
Nota
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Abr 2004 -
Data do Fascículo
Ago 2003