Resumos
O artigo é uma resposta ao trabalho de Piccolo, Moscardini e Costa, publicado no volume 16, número 1 deste periódico, no qual os autores analisaram a minha produção bibliográfica publicada em periódicos científicos. Alguns fatos da minha vida pessoal, intimamente ligados à trajetória acadêmica percorrida, são descritos com o intuito de favorecer a compreensão radical da minha posição teórica. As referências que dão suporte ao artigo foram, em boa parte, publicadas há algumas décadas. Isto se deve ao fato de que grandes contribuições teóricas nas Ciências Humanas ocorreram em meados do século passado. Significa que a preocupação excessiva com a atualidade das referências, avaliada em termos de cronologia, leva os pesquisadores a abrirem mão da vasta e rica sistematização teórica daquele período.
produção bibliográfica; construção de conceitos; educação especial
The article is an answer to the paper published by Piccolo, Moscardini and Costa in volume 16, number 1 of this journal, in which the authors analyzed my bibliographic production published in scientific journals. Some facts about my personal life, intimately related to my academic path, are described so as to enable the radical understanding of my theoretical position. A large portion of the references supporting the article was published some decades ago. This is due to the fact that great theoretical contributions in Human Sciences emerged in the middle of the last century. This means that the excessive concern about how up to date my references were, when evaluated in terms of chronology, leads the researchers to choose to ignore the breadth and richness of the theoretical systematization of that period.
Bibliographic Production; Concept Construction; Special Education
ENSAIO
Caminhando com Dibs: uma trajetória de construção de conceitos em educação especial1 1 Dada a natureza do texto, utilizo propositadamente a primeira pessoa do singular.
Walking together with Dibs: a path of concept construction in special education
Sadao Omote
Departamento de Educação Especial - UNESP, Campus de Marília - somote@uol.com.br
RESUMO
O artigo é uma resposta ao trabalho de Piccolo, Moscardini e Costa, publicado no volume 16, número 1 deste periódico, no qual os autores analisaram a minha produção bibliográfica publicada em periódicos científicos. Alguns fatos da minha vida pessoal, intimamente ligados à trajetória acadêmica percorrida, são descritos com o intuito de favorecer a compreensão radical da minha posição teórica. As referências que dão suporte ao artigo foram, em boa parte, publicadas há algumas décadas. Isto se deve ao fato de que grandes contribuições teóricas nas Ciências Humanas ocorreram em meados do século passado. Significa que a preocupação excessiva com a atualidade das referências, avaliada em termos de cronologia, leva os pesquisadores a abrirem mão da vasta e rica sistematização teórica daquele período.
Palavras-chave: produção bibliográfica; construção de conceitos; educação especial;
ABSTRACT
The article is an answer to the paper published by Piccolo, Moscardini and Costa in volume 16, number 1 of this journal, in which the authors analyzed my bibliographic production published in scientific journals. Some facts about my personal life, intimately related to my academic path, are described so as to enable the radical understanding of my theoretical position. A large portion of the references supporting the article was published some decades ago. This is due to the fact that great theoretical contributions in Human Sciences emerged in the middle of the last century. This means that the excessive concern about how up to date my references were, when evaluated in terms of chronology, leads the researchers to choose to ignore the breadth and richness of the theoretical systematization of that period.
Keywords: Bibliographic Production; Concept Construction; Special Education
Fui tomado por agradável surpresa quando recebi o volume 16, fascículo 1, da nossa Revista Brasileira de Educação Especial, e encontrei o artigo de Piccolo, Moscardini e Costa (2010) acerca da minha produção bibliográfica em periódicos. Os autores são doutorandos em Educação Especial da UFSCar e mestrando em Educação Escolar da UNESP de Araraquara. Ao começar a ler o texto, lembrei-me de que, de fato, algum tempo atrás fora solicitado o envio de alguns antigos textos meus, mas não imaginava claramente a destinação que teria aquele interesse aparentemente estranho nos tempos em que se dá tanta ênfase às publicações com datas recentes, tomadas como indicadoras da atualidade das obras.
Embora, nos últimos anos, esteja pouco motivado para publicar textos, tendo produzido alguns sob encomenda e sob muita pressão, senti-me tentado a escrever alguma resposta à análise lá procedida, no mínimo a título de agradecimento pelo interesse e empenho na difícil tarefa de, por intermédio da produção bibliográfica, compreender e reconstituir a trajetória percorrida por um autor. Acredito que a melhor maneira de expressar a minha simpatia para com o trabalho desenvolvido por aqueles jovens colegas seja por meio de uma resposta acadêmica.
Uma forma de conhecer a produção de alguém, sejam obras de arte, trabalhos acadêmicos, ações humanitárias ou qualquer outra produção na qual a pessoa do autor está presente, é conhecer algumas particularidades dessa pessoa. Provavelmente por isso é que a biografia representa uma parte importante para o estudo das obras de um autor. Dois fatos da minha vida podem guardar uma estreita relação com os problemas que me sensibilizaram, a maneira como aprendi a analisá-los e as tentativas de sistematizar e relatar essas experiências muita vezes profundamente vivenciadas por intermédio de atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Nasci quatro meses após a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, e consequente término da Segunda Guerra Mundial. Para a maioria dos meus colegas da Educação Especial, tais eventos significam, no máximo, apenas fatos históricos que redirecionaram os rumos da História. Mas, a minha infância foi profundamente marcada por tais fatos: lia constantemente em revistas publicadas pelo Ministério da Educação do Governo Japonês, que meu pai assinava para todos os filhos, histórias marcantes de famílias despedaçadas e de crianças que padeciam de uma doença cuja natureza a minha mente de criança era incapaz de compreender. Mesmo assim, essas mensagens deixavam uma impressão muito nítida de algo muito grave que acometia qualquer criança e levava à morte implacavelmente. Era a leucemia que muitas crianças desenvolviam, como decorrência de terem se exposto à radiação da bomba atônica.
Outro fato que me marcou profundamente a infância e parte da adolescência estava também ligado à Segunda Guerra Mundial ou mais especificamente à derrota sofrida pelo Japão. Tendo sido inimigo do Brasil (ainda que talvez apenas simbolicamente), derrotado na guerra e sem nenhuma importância econômica no cenário mundial, já que praticamente toda a atividade econômica estava destroçada, naturalmente criou-se aí um terreno fértil para a ocorrência de fenômenos sociais, que mais tarde, bem mais tarde, vim conhecer como sendo preconceito, discriminação e hostilidade direcionados a um grupo minoritário.
A experiência pessoal desse período proporcionou-me sensações estranhas, que, também mais tarde, identifiquei como ambivalência. Em toda a educação recebida em casa e nas atividades e cerimônias realizadas em ocasiões especiais (como, por exemplo, a celebração do aniversário do imperador japonês!) na colônia japonesa, no bairro rural onde a minha família residia, louvavam-se milênios da cultura e da tradição japonesas, e talvez um pouco indiretamente a sua pretensa superioridade (de um país com forte tradição militarista que estava em reconstrução após sofrer a maior derrota de toda a sua história e sob condição possivelmente a mais vergonhosa de todas as gerações, a ocupação do solo nacional pelos americanos).
Esse cotidiano era também entremeado por situações nas quais constantemente éramos alvos de palavras de humilhação e de desprezo por parte até daquelas pessoas que buscavam serviços temporários junto aos pequenos proprietários rurais. Mais tarde, compreendi que essas pessoas também viviam sentimentos ambivalentes, uma vez que, mesmo sendo brasileiros e vitoriosos na guerra, trabalhavam como empregados de famílias vindas de um país derrotadona guerra. É compreensível que esses sentimentos ambivalentes gerem senso de injustiça, revolta e raiva, que se traduzam na forma de hostilidade dirigida àqueles que seriam presumidamente a causa de todo esse desconforto.
Estavam, assim, imersas toda a minha infância e parte da adolescência em um ambiente social com muitas contradições, o que resultou em sentimentos ambivalentes com relação à construção da minha própria identidade social. No período em que fazia Curso de Psicologia, na USP de São Paulo, a minha identidade ambivalente se aguçou bastante. Ao mesmo tempo em que me sentia desprovido de uma série de invejáveis experiências culturais que fizeram parte integrante da adolescência e ainda faziam parte da vida de estudante universitário da maioria dos colegas de turma, alguns deles faziam sentir-me na posse de uma experiência que, no mínimo, parecia despertar muita curiosidade. O fato de ter trabalhado na roça, dos 7 aos 16 anos, parecia fazer de mim um estudante esdrúxulo o suficiente para merecer alguma atenção especial.
Nessa oportunidade, para descrever a minha identidade, usava frequentemente uma imagem de uma panela de pressão que fervia uma mistura de água e óleo com o propósito de fundi-los num só elemento. Por mais que gastasse a energia, tal meta era irrealizável.
O meu contato inicial com a área de Educação Especial foi um tanto acidental. Como era habitual naquela época, o trabalho era direcionado unicamente aos indivíduos deficientes, em atendimento direto a eles ou indiretamente por meio da capacitação de profissionais que atendiam os indivíduos deficientes ou dos pais destes. Cedo descobri que havia um vasto mundo repleto de simbolismos e ambivalências, para além daquilo que acreditava fosse a própria deficiência: as patologias incapacitantes e suas consequências sobre os portadores. As famílias vivenciam dramas que decorrem não só das dificuldades concretas e objetivas decorrentes do fato de ter algum membro incapacitado que requer atenção e cuidados especiais. A relação dos profissionais com a sua clientela deficiente pode não ser determinada unicamente por demandas de natureza técnica da respectiva área de formação e atuação. Os serviços especiais destinados a pessoas deficientes apresentam suas peculiaridades que vão além do cumprimento dos objetivos definidos em seus estatutos. Na perspectiva da sociedade, esses serviços parecem cumprir importantes funções reguladoras, que vão além da provisão de serviços especializados àqueles que deles necessitam.
Leituras de alguns clássicos como Goffman (1961 e 1963), Becker (1963), Berger e Luckmann (1966) e Freedman e Doob (1968) me mostraram a importância da leitura criteriosa da realidade socialmente construída, a qual não guarda necessariamente uma relação isomórfica com a realidade físico-química e biológica, apreendida de modo presumidamente objetivo. Ao mesmo tempo, as leituras acerca das patologias são importantes para que sejam conhecidos os seus efeitos deletérios, que podem exercer profundas influências sobre o desempenho da pessoa acometida ou até mesmo produzir impedimentos, cuja superação pode requerer odesenvolvimento de novas tecnologias. É importante considerar também o impacto que a presença de patologias incapacitantes produz nas pessoas com as quais o seu portador convive e das quais depende, em grande extensão, a construção e manutenção da identidade social. Uma leitura particularmente profícua tem sido O Homem em Evolução, de Dobzhansky (1968), obra que proporciona uma visão integral do ser humano, propondo que a evolução humana só pode ser compreendida se levar em conta os componentes biológicos e culturais, solidariamente interdependentes.
A extensão do raciocínio e análise da realidade encontrados nesses clássicos à compreensão do fenômeno das deficiências pode ser encontrada em abundância. Destacam-se os trabalhos de Dexter (1956, 1958a, 1958b, 1960a, 1960b e 1962) e Mercer (1965, 1971, 1972, 1973, 1974, 1977, 1978/79) na área da deficiência intelectual, Monbeck (1973) e Scott (1969) na área da deficiência visual, Higgins (1980) na área da deficiência auditiva, e Meyerson (1961) e Wright (1960) na área da deficiência física. Na abordagem das deficiências de um modo geral, destacam-se os trabalhos como os de Bartel e Guskin (1980) e Hobbs (1975). Essas leituras contribuíram para o desenvolvimento de uma concepção social da deficiência, na qual se baseiam as minhas ideias acerca da inclusão.
A concepção social de deficiência marcou paulatina mas profundamente a Habilitação em Educação Especial, do Curso de Pedagogia do campus da Universidade Estadual Paulista/UNESP. Em 1985, Enumo concluiu, após estudar os cursos de formação de professores de Educação Especial, na área da deficiência mental, no Estado de São Paulo, que a abordagem social, que, segundo a sua análise, fundamenta o projeto pedagógico daquela Habilitação, fornece, melhor do que outras abordagens teóricas identificadas, os subsídios para a discussão da natureza do fenômeno da deficiência. E apontou como uma limitação o fato de não apresentar proposta de atuação derivada diretamente da sua concepção teórica acerca da deficiência. A discussão atual sobre a inclusão, tendo deslocado o foco de atenção para o meio, inclusive o contexto social no qual uma particular deficiência adquire sentidos específicos, abre a perspectiva para uma mudança também nos enfoques tradicionais de intervenção. O alvo da intervenção fundada em concepções sociais precisa levar em conta condições geradoras da deficiência presentes nas coletividades humanas. Tais condições persistem e persistirão sempre, determinadas pela necessidade de se estabelecerem controles sociais para a gestão das diferenças2 2 A ideia de que o estigma faz parte integrante dos mecanismos de controle social, na administração das diferenças para viabilizar a vida coletiva, está desenvolvida em um texto de 2004. .
Conforme reiteradamente apontam os autores, às páginas 110, 111 e 112, é importante destacar que a abordagem por mim assumida não anula o elemento biológico. As limitações ou os impedimentos impostos pela presença de uma patologia incapacitante são reais e não podem ser negligenciados na análise das deficiências e no tratamento dispensado a pessoas com deficiência. Por um artifício linguístico, nomeiam-se componentes ou elementos biológicos e os sociais, sugerindo até a ideia de dois polos distintos. Mas, não se trata de uma reunião somatória de fatores biológicos e os sociais para a composição do fenômeno a que nos referimos por deficiência. Compõem o todo indissociável. Olhar para o biológicoou o social é uma questão apenas de perspectiva. É possível fazer essa opção, mas, ao fazê-lo, não pode ter acesso ao fenômeno das deficiências.
O modelo de uma espiral crescente pode ser útil para a compreensão do fenômeno da deficiência e particularmente a integração que há entre o chamado biológico e o social. A partir de uma base biológica, da qual fazem parte o patrimônio genético e outras peculiaridades individuais, incluindo aí as patologias e os efeitos diretos do ambiente físico-químico imediato, essa espiral cresce continuamente ao longo da vida de uma pessoa. O processo evolutivo de um bebê implica a expansão dessa espiral no ambiente físico-químico e social. A base biológica produz efeitos diretos sobre o funcionamento da pessoa e tem potencial para outros efeitos dependendo das condições a que for submetida. O desenvolvimento do bebê é também influenciado por elementos do ambiente físico-químico e social no qual se realiza. Essa influência pode produzir não só alterações comportamentais, mas pode deixar marcas profundas no biológico, que, por sua vez, terão reflexo sobre a interação com o meio, e assim por diante, numa espiral crescente em uma direção que pode ser reconhecida e tratada por uma audiência como sendo expressão da normalidade ou de algum desvio3 3 Em alguma outra oportunidade, farei uma exposição detalhada do modelo que tenho em mente. . A trajetória assim percorrida por uma pessoa pode representar o esforço empreendido por ela na construção da sua biografia de alguém percebido e tratado como normal ou desviante, na perspectiva dos membros da comunidade à qual pertence. A noção de carreira moral, segundo Goffman (1961), pode ser útil para a compreensão dessa trajetória.
Considerando a ampla variabilidade nas características constitucionais das pessoas, determinada tanto pelo rico patrimônio genético quanto pelas condições amplamente variáveis de estimulação do meio, a diversidade entre as pessoas se constitui em um fato marcante a caracterizar qualquer sociedade humana. Essa diversidade deve ser tratada como uma qualidade que a espécie humana vem construindo continuamente no seu peculiar processo evolucionário.
A diversidade pode representar riqueza, um enorme potencial de uma espécie para o ajustamento às novas demandas do meio. Em uma comunidade ou sociedade humana, a diversidade pode também representar um arsenal de possíveis soluções criativas face às mais variadas demandas que a vida moderna impõe. Mas, pode também representar enormes dificuldades para gerenciar a vida coletiva. Muitos dos motivos e mecanismos de exclusão de minorias podem estar relacionados à própria diversidade4 4 Talvez seja mais realístico, neste caso, falar em heterogeneidade das capacidades, dos interesses e das experiências, para fugir de uma certa conotação romanesca que o termo diversidade adquiriu. . Uma sociedade amplamente heterogênea que respeita os preceitos democráticos, em especial os direitos individuais, pode defrontar-se com situações nas quais amplamente se produzem exclusões. Portanto, a inclusão se coloca de um modo particularmente complexo nas sociedades amplamente heterogêneas nas quais as liberdades individuais são respeitadas. Daí, já havia antecipado, alguns anos atrás, que o estigma deve ser visto como uma parte integrante de qualquer sociedade democrática (OMOTE, 2004).
O respeito aos direitos individuais, no contexto da ampla diversidade, implica que há necessidade de se construírem serviços especiais. Se todas as pessoas devem ter suas necessidades especiais atendidas e se estas são amplamente diversificadas, há que se construírem numerosos serviços especiais. Estes, por razões técnico-operacionais, nem sempre podem estar inteiramente integrados aos seus congêneres destinados a usuários comuns. No passado recente, criticou-se muito esses serviços, porque, sendo segregado, promoviam segregação de seus usuários. Entretanto, como apontamos repetidas vezes, nenhum serviço é inerentemente segregativo (OMOTE, 1995, 1999, 2000). Pode sê-lo, dependendo de como é utilizado e da significação que é construída acerca dele e de seus usuários.
Na verdade, pode ser heuristicamente mais produtivo pensar em termos de serviços de qualidade em vez da inclusão. O entendimento acerca da inclusão parece estar muito impregnado por ideias como a importância de o deficiente estar junto com os pares não deficientes e fazerem juntos as atividades, no mesmo contexto espaçotemporal, eventualmente com as necessárias adaptações. Mesmo nesse clima, pode não ser uma heresia admitir-se a ideia de que determinadas necessidades especiais podem ser mais bem atendidas em programas especiais à parte, em serviços segregados (que não precisam ser necessariamente segregativos), nos quais o usuário pode contar com recursos materiais e humanos qualificados para esse fim. Negar esta oportunidade, em nome da inclusão, é um contrassenso, certamente uma forma de praticar veladamente a exclusão, ainda que o deficiente possa permanecer junto com seus pares não deficientes. O foco no serviço de qualidade pode favorecer uma melhor avaliação das alternativas de atendimento e a indicação daquela que mais bem pode atender as necessidades especiais específicas de cada pessoa com deficiência ou outros desvios5 5 Dependendo da situação social, o convívio com pessoas que não têm nenhuma deficiência ou com outras que têm a mesma deficiência pode fazer parte das necessidades especiais dessa pessoa com deficiência. .
As escolas têm objetivos precípuos a serem cumpridos, os quais dizem respeito à aprendizagem escolar. Portanto, só tem sentido serem atendidos aí crianças e jovens, cujo comprometimento decorrente da posse de alguma patologia não lhes impeça de alcançarem as metas colocadas. Mais ainda, certamente o deficiente, cujo comprometimento é de tal natureza e gravidade que não apresenta condição para alcançar as metas colocadas pela instituição escolar, deve ter a necessidade de atendimentos que a escola não pode oferecer, por estarem fora dos seus objetivos e competências. Significa que alguns deficientes podem não frequentar a escola de ensino comum; outros podem frequentá-la, mas não necessariamente em classes de ensino comum para realizarem todas as atividades escolares em conjunto com seus pares não deficientes. Para algumas atividades, pode ser condição necessária para o bom aproveitamento a sua separação da classe de origem para receber atendimento em conjunto com seus pares com necessidades semelhantes, em um ambiente diferenciado que inclui, por exemplo, adequações físico-arquitetônicas da sala e do mobiliário, recursos pedagógicos e equipamentos especiais, métodos e técnicas especiais de ensino, e com um professor cuja formação e experiência permitam oferecer o ensino da melhor qualidade possível a estudantes que apresentam tais necessidades e peculiaridades. Na verdade, precisamos abandonar todo e qualquer raciocínio fundado em categorias para avaliar o desempenho e prescrever serviços rigorosamente em função das necessidades especiais que cada pessoa possui6 6 Isto não representa novidade nenhuma. Em meados do século passado, foi amplamente debatida e pesquisada a personalização do ensino, adequando o ritmo, recursos e estratégias de ensino às necessidades e peculiaridades de cada aprendiz. .
Naturalmente, o convívio entre os diferentes é desejável e necessário, tanto para alunos com deficiência quanto para os demais alunos. Os modos particulares de aprendizagem e de funcionamento de estudantes com deficiência podem ensinar muita coisa ao resto da classe, criando inclusive condições favoráveis para o desenvolvimentode sentimentos, atitudes e ações solidários. É essencial que as dificuldades específicas de um colega de classe sejam percebidas e tratadas como um problema a ser enfrentado pela classe. Nesse sentido, a possibilidade de estarem juntos pode ser viável e importante quando a dificuldade para aquisição de determinados conhecimentos e competências possa ser superada no contexto didático-pedagógico-social da classe de ensino comum Por outro lado, a possibilidade de realizar algumas atividades em conjunto com colegas que possuem as mesmas necessidades especiais representa uma oportunidade para importantes experiências psicossociais.
As comparações que cada pessoa faz de si própria com aquelas com as quais convive são importantes para que ela consiga situar-se em relação aos grupos de que participa. São feitas comparações com as pessoas que, em relação a um determinado conjunto de características, encontram-se em posição de superioridade, em posição de igualdade ou em posição de inferioridade. Para que os alunos com necessidades educacionais especiais possam situar-se socialmente, não só no espaço educacional, mas também nas demais dimensões sociais, é desejável, também do ponto de vista do desenvolvimento integral e realístico da sua identidade social, a oportunidade de convívio com os pares igualmente deficientes e não apenas com aqueles que não apresentam nenhuma necessidade educacional especial específica. Na verdade, o mesmo argumento em defesa dos benefícios provenientes do convívio com colegas com necessidades educacionais especiais para os demais alunos vale para os próprios alunos com deficiência, ensejando-lhes oportunidades para as comparações sociais.
A possibilidade de convívio com colegas que apresentam necessidades especiais e dificuldades semelhantes pode ser particularmente importante para os alunos cuja condição geradora do estigma seja de alta visibilidade. Estar entre seus iguais é uma forma de reduzir a ameaça à autoestima e fortalecer a identidade social. Muitas pessoas com deficiência ou qualquer outro desvio fazem também comparações com aqueles que se encontram em situação pior, de maior dificuldade ou incompetência. Essa comparação com quem está abaixo tem a potencialidade de melhorar o autoconceito e a autoestima da pessoa. Essas comparações sociais, conhecidas como downward social comparison e lateral social comparison, respectivamente, e suas implicações nas relações interpessoais envolvendo pessoas estigmatizadas foram amplamente discutidas por Gibbons (1986) e Wills (1981).
Os colegas têm toda a razão quando apontam à página 117 a necessidade de se realizarem pesquisas sobre os desdobramentos engendrados pela posição assumida e praticada pela Educação Brasileira com relação aos compromissos de construção da educação inclusiva. Já superamos a etapa de defesa da inclusão e também a de relatos de experiências de promoção da inclusão. Para um avanço efetivo, tanto metodológico quanto teórico, precisamos direcionar o nosso olhar para alguns detalhes que parecem bastante relevantes. Nos estudos acerca de diferentes alternativas metodológicas da experiência de inclusão, deve haver a preocupação em identificar as variáveis criticamente relacionadas aos resultados encontrados. Devem ser abandonados os constrangimentos ou superadas as dificuldades para autilização de delineamentos quase experimentais e experimentais. É imprescindível uma clara definição do resultado pretendido7 7 Afinal, o que se pretende alcançar com a inclusão? Melhor resultado em termos de aprendizagem escolar? Desenvolvimento social? Convívio entre os diferentes? e igualmente imprescindível é desenvolver avaliações confiáveis dos resultados pretendidos.
Os debates teóricos devem continuar. São eles que nos aguçam a percepção crítica para os fundamentos e implicações da inclusão. Esses debates precisam avançar mais, tratando inclusive de questões que parecem estar na contramão da inclusão, aquelas que podem ser consideradas inoportunas e inconvenientes, antiéticas e politicamente incorretas. A comunidade acadêmica necessita abandonar debates fundados em paixões e convicções pessoais, com o uso da retórica como ferramenta de argumentação. Apenas para exemplificar provocativamente, aponte-se, por exemplo, a necessidade de se discutir radicalmente a nossa crônica dificuldade de administrar o uso criterioso de serviços e recursos especiais, diferenciados daqueles destinados a usuários comuns, àqueles que, de posse de alguma alteração expressiva, deles necessitam para que as suas necessidades especiais sejam mais bem atendidas, sem que o seu uso possa resultar na estigmatização dos usuários8 8 O acesso a serviços especiais poderia adquirir o sentido de privilégio, já que os usuários podem contar com recursos mais especializados e em geral mais onerosos. . Quanto essa dificuldade é uma questão meramente técnica, a ser superada mediante uma competente operacionalização dos procedimentos a serem seguidos e igualmente competente capacitação de recursos humanos? Ou, alternativamente, quanto não é resultado de uma práxis socioculturalmente determinada sob a influência velada de uma ideologia que, no fundo, não se compatibiliza tanto com os preceitos democráticos e princípios da inclusão? E qual é, afinal, o papel da pesquisa e o do pesquisador nesse contexto sociopolítico?
A presença de uma temática de que a minha trajetória se ocupou, no período de cerca de 12 anos, merece uma justificativa, pois pode parecer um certo desvio de rota. A questão da atratividade física facial, tradicionalmente estudada em áreas de conhecimento distintas daquelas nas quais o fenômeno das deficiências é investigado, tem interesse particular no entendimento da construção social das deficiências. De acordo com a teoria implícita de personalidade9 9 A teoria implícita de personalidade foi proposta por Bruner e Tagiuri, em 1954 (apud TAGIURI, 1969), para explicar a inferência que se faz acerca de uma pessoa, com base em informações conhecidas a respeito dela, mantendo a coerência entre os traços na perspectiva de cada percebedor. Diferentes pessoas podem fazer inferências a respeito de um indivíduo, com um certo consenso, o que sugere a possibilidade de os membros de uma cultura compartilharem uma mesma teoria implícita de personalidade. A atribuição de traços a pessoas ou categorias de pessoas decorre da necessidade de os percebedores darem sentido aos objetos de sua percepção (HASTORF; SCHNEIDER; POLEFKA, 1970) , as pessoas com deficiência possuem traços negativamente qualificados, incluindo aí a baixa atratividade física facial. Fui introduzido no estudo desse assunto, para trazer a sua contribuição à área de Educação Especial, por ter observado frequentemente um certo espanto com que as pessoas comuns reagiam diante de uma criança deficiente com boa aparência. Era comum comentários inacabados como "que judiação, tão bonitinha...", sugerindo que poderia habitar a sua mente um outro comentário, mais coerente segundo a teoria implícita de personalidade: "que judiação, se ao menos fosse feinha!".
Ocupando-me desse assunto por um período, constatei como a baixa atratividade facial estava associada às deficiências e a alta atratividade à normalidade, segundo a percepção das pessoas (OMOTE, 1989, 1990, 1992 e 1993/94). Mais ainda, quando características aparentemente incongruentes estavam presentes no mesmo indivíduo (deficiência e alta atratividade facial), as pessoas atribuíram uma outra característica que, em conjunto com aquelas percebidas como incongruentes, pareciam formar um conjunto congruente. Quando foram apresentadas fotografias de três crianças variando em atratividade facial, com a informação de que eram deficientes e frequentavam serviço especializado, a de atratividade facial alta foi mais frequentemente indicada como aquela que teria melhor prognóstico (OMOTE, 1997).
A presença de duas cognições incongruentes cria um estado psicológico conhecido por dissonância cognitiva, que causa incômodo e motiva a pessoa a solucioná-la, encontrando consonância entre as cognições10 10 A tória da dissonância cognitiva, sistematizada por Festinger em 1957, fornece um referencial teórico muito rico para a compreensão dos comportamentos sociais de pessoas, envolvendo os mais variados assuntos. . Uma dentre várias formas de resolver ou reduzir a dissonância cognitiva é por meio da adição de novos componentes cognitivos. Esta parece ser a solução adotada, quando os participantes do estudo de Omote (1997) associaram melhor prognóstico a deficientes com alta atratividade facial.
O caráter coletivo e cumulativo é uma das qualidades mais notáveis de qualquer conhecimento científico. Daí por que, em relatos de pesquisa, o autor procura construir um referencial teórico representativo do que se conhece acerca do problema da pesquisa e em relação ao qual procura interpretar os achados da sua investigação.É nessa medida que uma pesquisa pode representar alguma contribuição para a construção do conhecimento acerca desse problema. A análise dos autores em que um pesquisador mais constantemente se baseia pode constituir-se em uma ferramenta produtiva para contextualizar e avaliar a contribuição desse pesquisador.
Julgo ser muito pertinente a análise que os colegas fizeram dos autores em que mais constantemente tenho me apoiado, conforme indicam na Tabela 1 e na Figura 3, às páginas 120 e 121, respectivamente. Confesso que vi os dados arrolados com surpresa. Reconheço aí alguns autores em quem tenho consciência clara de que me apoio frequentemente, como Goffman e Mercer. Mas, Dobzhansky, indicado como referência muito usada por mim e um importante autor para fundamentar a ideia de que a natureza biológica e a social ou cultural das deficiências são indissociáveis, começa a comparecer nos meus argumentos a partir do momento em que constatei que estava passando a falsa ideia de que, na minha concepção, a deficiência se referia estritamente ao fenômeno social, talvez até pela expressão que usei muito na década de 80: a deficiência como fenômeno socialmente construído.
O desejo de um autor, ainda que possa parecer um tanto narcísico, é o de ter a sua produção bibliográfica ser lida e debatida. Um pesquisador amadurecido deve deixar, na sua trajetória, marcas da sua contribuição para a construção do conhecimento, as quais podem ser teóricas e/ou metodológicas. Se tal contribuição representa alguma inovação na área, espera-se que possa resultar em manifestações divergentes, mal entendidos e até endosso incondicional.
A análise procedida por Piccolo, Moscardini e Costa (2010) permitiu-me rever os caminhos percorridos nos últimos trinta e poucos anos de atividade acadêmica; fez-me sentir a necessidade de uma sistematização formal do modelo de deficiência, e consequentemente de Educação Especial, que tenho em mente. Um dos próximos compromissos acadêmicos será o de sistematizar, num modelo conceitual, as ideias acerca da deficiência e da Educação Especial, que essencialmente não se modificaram nesses anos. O que houve foi um enriquecimento dessas ideias, mediante maior amadurecimento da experiência acumulada.
O trabalho desenvolvido por esses colegas contribuiu também para fortalecer em mim a ideia incipiente de que talvez possa produzir textos que tenham alguma repercussão distinta daquelas pretendidas naqueles escritos no passado, superando assim a absoluta falta de motivação para escrever que me acometeu nos últimos anos. Agradeço sinceramente aos colegas tanto pelo esforço para interpretar e explicitar as minhas ideias quanto por esse desafio que me coloca, ainda que talvez não intencionalmente.
Recebido em: 28/10/2010
Aprovado em: 04/11/2010
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
-
Recebido
28 Out 2010 -
Aceito
04 Nov 2010