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Resoluções do Estado de São Paulo e o Professor Interlocutor: Implicações para a Educação dos Surdos

RESUMO:

Desde 2005, a presença de Tradutores e Intérpretes de Libras tornou-se obrigatória nos espaços escolares que possuem alunos surdos matriculados. No entanto, até hoje, esse cargo não foi criado pelo estado de São Paulo e essa função tem sido exercida pelo então denominado Professor Interlocutor (PI). Este artigo descreve uma pesquisa documental que teve como objetivo analisar as Resoluções da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo relativas à formação e à contratação desse profissional. Os resultados permitem afirmar que os dispositivos legais estaduais demonstram desconhecimento sobre a complexidade que envolve as atividades do PIs e, como consequência, mantém-se omissa às especificidades linguísticas, culturais e educacionais dos surdos, excluindo-os, dessa forma, do acesso à educação.

PALAVRAS-CHAVE:
Professor interlocutor; Resoluções da Secretaria Estadual de Educação; Estado de São Paulo; Educação de surdos; Educação Especial

ABSTRACT:

Since 2005, the presence of Brazilian Sign Language Translators and Interpreters has become compulsory in school spaces where deaf students are enrolled. However, until now, this post has not been created by the State of São Paulo and this job position has been fulfilled by the so called Interlocutor Teacher (IT). This paper describes a documentary research, whose objective was to analyze the Resolutions of the State Department for Education of São Paulo regarding the education and hiring of this professional. The results allow us to affirm that the state legal provisions demonstrate a lack of knowledge about the complexity involved in the activity of ITs, and, as a consequence, it remains silent to the linguistic, cultural and educational specificities of the deaf students, excluding them from access to education.

KEYWORDS:
Interlocutor Teacher; Resolutions of the State Department for Education; State of São Paulo; Education of the deaf; Special Education

1 Introdução

Após 12 anos de discussões no Congresso Nacional, com o objetivo de ratificar seu compromisso com a Organização das Nações Unidas (ONU) no que diz respeito à criação de políticas públicas voltadas à inclusão da pessoa com deficiência em todos os segmentos sociais, o Governo Federal promulgou a Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. O capítulo IV da referida lei, ao tratar do Direito à Educação (Artigos 27 a 30), elencou garantias que procuram assegurar condições adequadas para um processo educacional igualitário a todos, nos diferentes níveis de ensino. No que diz respeito à educação de surdos, impõe “[...] ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar” (Lei Nº 13.146, 2015Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, p. 3), a formação e a disponibilização de tradutores e intérpretes da Libras no contexto escolar.

No entanto, a obrigatoriedade das instituições de ensino em disponibilizar aos estudantes surdos um tradutor e intérprete de Libras - língua portuguesa (TILSP), na esfera Federal, já era uma realidade desde dezembro de 2005:

A partir de um ano da publicação deste Decreto, as instituições federais de ensino da educação básica e da educação superior devem incluir, em seus quadros, em todos os níveis, etapas e modalidades, o tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, para viabilizar o acesso à comunicação, à informação e à educação de alunos surdos (Decreto Nº 5.626, 2005Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº10.098, de 19 de dezembro de 2000. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, p. 3, grifos nossos).

No que diz respeito às instituições de ensino privadas e públicas dos sistemas estadual, municipal e do Distrito Federal, orienta-se, no Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, Artigo 21, § 2º, que estas busquem implementar as mesmas medidas, a fim de assegurar, aos alunos surdos, o acesso à comunicação, à informação e à educação (Decreto Nº 5.626, 2005Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº10.098, de 19 de dezembro de 2000. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Esse dispositivo, ao ter sido enunciado dessa forma, minimizou o caráter obrigatório expresso no caput do Artigo em relação às instituições federais, fato que levou à adoção de diferentes procedimentos, por parte de alguns sistemas de ensino, como forma de disponibilizar a presença do profissional TILSP nos espaços escolares. Este foi, por exemplo, o caso do Estado de São Paulo.

Desse modo, com a finalidade de suprir a ausência do cargo do profissional TILSP na legislação estadual, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) passou a contratar, por meio de Resoluções, docentes com qualificação na língua brasileira de sinais, para atuar nas escolas da rede estadual de ensino, a fim de promover o acesso dos alunos surdos às informações e aos conhecimentos curriculares dos Ensinos Fundamental e Médio. Assim, embora exercendo a mesma função dos TILSP nos espaços escolares, a SEE-SP denominou esses novos profissionais “Professores Interlocutores” (PIs), que, mesmo sendo professores, passaram a ser contratados de forma diferenciada e a estabelecerem outra relação com os processos educacionais dos alunos surdos.

Nesse contexto, o presente artigo visou analisar as Resoluções da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo relativas aos PIs, a fim de compreender se nestas são asseguradas uma formação adequada ao cargo por eles assumido e se a forma de contratação garante, a esses profissionais, estabilidade para a continuidade do exercício de sua função, fato que terá consequências positivas para a educação dos surdos. Em decorrência dos avanços reconhecidos nas questões que envolvem a educação dos surdos na esfera jurídica, inicialmente, será apresentado um breve histórico das legislações e políticas públicas federais que levaram ao reconhecimento da profissão de tradutor e intérprete de Libras - língua portuguesa a fim de colocá-las em diálogo com os documentos oficiais da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

2 Legislações e políticas públicas federais de reconhecimento profissional dos TILSP

Foi a partir dos movimentos surdos, iniciados nas décadas de 1980 e 1990, e com a conquista dos direitos e do exercício de cidadania desse grupo social pelo reconhecimento legal da Libras (Lei Nº 10.436, 2002Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), que a atuação dos TILSP se tornou uma atividade (re)conhecida. Pode-se afirmar, portanto, que a participação das comunidades surdas brasileiras nas discussões sociais representou, e ainda representa, a chave para a profissionalização dos tradutores e intérpretes de Libras, na medida em que as instituições se viram obrigadas a garantir a acessibilidade dos surdos por meio da presença desse profissional (Salvador, 2010Salvador, S. J. L. (2010). A Ética profissional do Tradutor e Intérprete de Libras (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Nove de Julho - UNINOVE, São Paulo, SP, Brasil.).

Inicialmente, a acessibilidade da pessoa surda, usuária da Libras, nos espaços sociais com apoio do TILSP, foi prevista pela Lei Nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Contudo, as determinações deste documento não eram praticadas efetivamente, tendo em vista que, à época de sua publicação, a Libras ainda não era legalmente reconhecida como meio de comunicação e expressão da pessoa surda, e o TILSP não tinha sua atuação regulamentada como profissão.

No ano de 2001, com a intenção de normatizar os serviços previstos no Capítulo V, que trata da Educação Especial, especificamente os artigos 59 a 60 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional No. 9.394/96 (1996)Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9394.htm
http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/lei...
, foi publicada, pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, a Resolução CNE/CEB nº 02/2001, que instituiu diretrizes nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Em seu Artigo 12, § 2º, a Resolução assim define:

Deve ser assegurada, no processo educativo de alunos que apresentem dificuldades de comunicação e sinalização diferenciadas dos demais educandos, a acessibilidade aos conteúdos curriculares, mediante a utilização de linguagens e códigos aplicáveis, como o sistema Braille e a língua de sinais (Resolução Nº 2, 2001Resolução Nº 2, de 11 de setembro de 2001. Institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0201.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
, p. 40).

Esse documento tornou-se referência para a organização educacional da pessoa com deficiência (como são compreendidos os surdos pela legislação brasileira) até o ano de 2007, quando, em janeiro de 2008, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Especial (MEC/Seesp4 4 A Seesp foi extinta em 2011, dando lugar à atual Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão [Secadi]. ), apresentou a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008)Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16690-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, que se configurou como uma ação política, cultural, social e pedagógica em defesa do direito de todos a uma educação de qualidade e da organização de um sistema educacional inclusivo.

Após o reconhecimento legal da Libras, que se deu por meio da Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002, objetivando a possibilidade da participação social dos membros das comunidades surdas como cidadãos brasileiros, foi editado o Decreto Nº 5.626/2005, que, além das diretrizes sobre os processos educacionais específicos da pessoa surda, previu, pela primeira vez em um documento legal, a formação do TILSP, dedicando o capítulo V, especificamente, para o tratamento desse tema. Segundo o Art. 17 do documento: “A formação do tradutor e intérprete de Libras - língua portuguesa deve efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa” (Decreto Nº 5.626, 2005Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº10.098, de 19 de dezembro de 2000. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, p. 29).

Para regularizar a certificação do TILSP e atender às determinações do Decreto, o Ministério da Educação (MEC) juntamente ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP] criaram, em 2006, o Programa Nacional para Certificação de Proficiência em Libras e para a Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação de Libras/Língua Portuguesa - Prolibras, que, conforme mencionado no Decreto, seria realizado até o ano de 2015. O objetivo desse exame era proporcionar às pessoas com nível médio e superior de escolaridade, a certificação de competência necessária para atuar como professor de Libras e/ou Tradutor e Intérpretes de Libras - língua portuguesa (INEP, 2006Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2006). Prolibras. Recuperado de http://portal.inep.gov.br/prolibras1
http://portal.inep.gov.br/prolibras1...
).

Para realizar o exame de proficiência em tradução e interpretação, era exigido que o candidato tivesse concluído o Ensino Médio e/ou Superior até a data da prova e fosse fluente em Libras. No entanto, era necessário ter realizado um curso de formação específica de TILSP. Assim o candidato que aprendeu Libras pelo convívio social com pessoas surdas, em cursos realizados pela sociedade civil ou em cursos de extensão e/ou aperfeiçoamento poderia vir a receber a certificação do Prolibras, que o habilitava a atuar profissionalmente como TILSP, em qualquer segmento social, inclusive no espaço educacional. No entanto, o Prolibras foi uma medida emergencial para suprir a falta de profissionais sem titulação e seu certificado serviu, apenas, para “comprovar” a fluência do TILSP em Libras, bem como avaliar sua prática em serviços de tradução e de interpretação.

Ao reconhecer que essa certificação não poderia ser compreendida como formativa e seguindo as determinações do Decreto Nº 5.626/2005, a Universidade Federal de Santa Catarina, com apoio do MEC, criou dois cursos inéditos em nosso país naquele momento da história: o Curso de Licenciatura em Letras/Libras, que visava a formação de professores de Libras, preferencialmente surdos, no ano de 2006; e o Curso de Bacharelado em Letras/Libras voltado à formação do TILSP, em 2008, a fim de atender o Art. 17 do referido Decreto. O Curso de Licenciatura em Letras/Libras foi pensado para ser de abrangência nacional e, portanto, foi oferecido, inicialmente, na modalidade a distância, envolvendo nove polos distribuídos pelo Brasil. No segundo oferecimento do Curso de Licenciatura, em 2008, o número de polos ampliou-se e, pela primeira vez, foi oferecido, conjuntamente, o Bacharelado em Letras/Libras.

Em paralelo aos exames de certificação do Prolibras e ao Curso de Bacharelado Letras/Libras, aconteciam, no Congresso Nacional, discussões relativas ao processo da regulamentação profissional do TILSP. Após seis anos de discussões no Congresso, foi editada a Lei Nº 12.319, de 1º de setembro de 2010, que regulamentou a profissão do tradutor e intérprete da língua brasileira de sinais (Lei Nº 12.319, 2010Lei Nº 12.319, de 1 de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Com essa regulamentação, a profissão de TILSP passou a constar na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego. Essa classificação foi instituída pela Portaria Ministerial N° 397, em 9 de outubro de 2002, e tem como objetivo identificar as ocupações no mercado de trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares (Portaria Ministerial Nº 397, 2002Portaria Ministerial Nº 397, de 9 de outubro de 2002. Aprova a Classificação Brasileira de Ocupações - CBO/2002, para uso em todo território nacional e autoria a sua publicação. Recuperado de http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/legislacao.jsf
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/l...
). O Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais está no rol das ocupações estabelecidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, sob o número de registro 2614-25, na família dos “Filólogos, Tradutores, Intérpretes e afins”. Seu título é “intérprete de língua de sinais” e sua descrição sumária é “Guia-intérprete, Intérprete de libras, Intérprete educacional, Tradutor de libras, Tradutor-intérprete de libras”5 5 Fonte: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf. . O TILSP, com a profissão regulamentada, passou a ser amparado legalmente, o que lhe deu status de um trabalhador/profissional, podendo atuar em todas as esferas de atividade, entre elas a escolar.

Percebeu-se, no entanto, na análise documental realizada, que os avanços que têm ocorrido em âmbito Federal, não têm repercutido na esfera estadual paulista, como pode ser observado na seção a seguir, dedicada à apresentação e às discussões sobre as maneiras como os TILSP têm sido compreendidos e contratados pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

3 Resoluções estaduais relativas à formação do Professor Interlocutor

Embora tenha sido recomendada, em 2005, a presença de tradutores e intérpretes de Libras - língua portuguesa nos espaços escolares, em todas as esferas educacionais, até os dias de hoje, não há no quadro de profissionais da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo o cargo de TILSP, e o profissional contratado para o exercício dessa função foi denominado Professor Interlocutor (PI). Essa denominação foi dada pela Resolução Nº 38/2009 e mantém-se na Resolução vigente, Nº 08/2016, que “[...] dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino e dá providências correlatas” (Resolução Nº 8, 2016Resolução Nº 8, de 29 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino, e dá providências correlatas. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/8_16.HTM?Time=25/04/2016%2005:09:14
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
, grifo nosso).

As Diretorias de Ensino Estaduais, para o preenchimento de vagas para função temporária de docentes em diversas áreas, realizam um cadastro emergencial de atribuição de classes e aulas, forma pela qual há o ingresso do PI. Essa prática é respaldada pela Constituição Federal de 1988, pela Constituição Estadual de 1989, e pela Lei Complementar Estadual Nº 1.093, de 16 de julho de 2009, que “[...] dispõe sobre a contratação por tempo determinado de que trata o Inciso X do Artigo 115 da Constituição Estadual” (Lei Complementar Nº 1.093, 2009Lei Complementar Nº 1.093, de 16 de julho de 2009. Dispõe sobre a contratação por tempo determinado que trata o inciso X do artigo 115 da Constituição Estadual. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2009/lei.complementar-1093-16.07.2009.html
http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legi...
, grifo nosso), e isenta os profissionais da necessidade de concurso para o acesso ao serviço público.

Para a contratação do profissional PI, foi prevista pela Resolução Nº 38/2009, no Artigo 2º, a seguinte formação:

§ 2º - Os candidatos devem ser portadores de diploma de licenciatura plena, para atuação nas séries finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, ou de curso de nível médio com habilitação em Magistério, para atuação nas séries iniciais do Ensino Fundamental, e apresentar pelo menos um dos seguintes títulos:

1 - diploma ou certificado de curso de graduação ou de pós-graduação em Letras - Libras;

2 - certificado de proficiência em Libras, expedido pelo MEC;

3 - certificado de conclusão de curso de Libras de, no mínimo, 120 (cento e vinte) horas.

4 - habilitação ou especialização em Deficiência Auditiva/ Audiocomunicação com carga horária de LIBRAS (Resolução Nº 38, 2009Resolução Nº 38, de 19 de junho de 2009. Dispõe sobre a admissão de docentes com qualificação na Língua Brasileira de Sinais - Libras, nas escolas da rede estadual de ensino. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/38_09.htm
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
).

Pode-se perceber, assim, nessa Resolução, que, embora tentem contemplar o disposto nas leis federais, em especial no Decreto Nº 5.626/2005 - único documento que tinha sido publicado à época dessa Resolução -, há nela algumas contradições. A primeira delas diz respeito à formação profissional, uma vez que, para a Secretaria de Educação do Estado (SEE-SP), o pré-requisito para desempenhar a função de PI é ter formação na área da educação, acrescida de, pelo menos, um dos certificados descritos no Artigo anterior. No entanto, tornam-se necessárias algumas considerações no que diz respeito a cada um dos títulos exigidos, na medida em que se observa neles o desconhecimento, pela SEE-SP, da realidade nacional quanto à formação prevista para o profissional à época da publicação da primeira Resolução.

  1. Graduação em Letras-Libras: o primeiro curso de Bacharelado em Letras/Libras, responsável pela formação do TILSP, teve início no ano de 2008; logo, não havia ainda graduados com essa titulação quando essa Resolução foi publicada, tendo em vista que a formatura da primeira turma se deu no ano de 2011.

  2. Pós-Graduação em Letras-Libras: os cursos assim denominados eram (e ainda são) de Graduação, pois são cursos de Letras; portanto, não é possível a existência de um profissional com essa titulação.

  3. Certificado Prolibras: como dito anteriormente, o Prolibras é uma certificação de proficiência no uso e no ensino da Libras e/ou de proficiência na tradução e interpretação Libras - língua portuguesa - Libras, não tendo, assim, nenhum caráter formativo que venha a compará-la a um título. Embora exigido por muitos editais federais, no caso, deveria haver a especificação desse certificado para atuação na tradução e interpretação Libras - português. Da forma como exposto na Resolução, pessoas com certificação Prolibras para o ensino da língua poderiam ser então contratadas, sem se atentar ao fato de se tratar de dois processos muito distintos.

  4. Certificado de, no mínimo, 120 horas de curso de Libras: considera-se impossível tornar-se fluente em uma língua apenas com essa carga horária. Questiona-se, ao solicitar esse certificado, se, para a SEE-SP, a Libras constitui-se, realmente, uma língua. Além disso, essa Secretaria demonstra, com essa solicitação, desconhecimento sobre a complexidade que envolve o ato tradutório e interpretativo, ao pressupor que apenas conhecer (o básico da) a língua seja suficiente para que o professor interlocutor atue como tradutor e intérprete.

  5. Habilitações em Deficiência Auditiva/Audiocomunicação: a habilitação em Educação dos Deficientes da Audiocomunicação (Edac), oferecida nos Cursos de Pedagogia, teve seu primeiro oferecimento no Estado de São Paulo no ano de 1973. Nesse período, acreditava-se que a formação do pedagogo deveria voltar-se à oralização dos surdos e, portanto, todas as disciplinas oferecidas relacionavam-se, direta ou indiretamente, a essa prática. Essa habilitação, assim como as demais existentes, foi extinta no ano de 2006, por meio da Resolução CNE/CP Nº 1/2006 (2006)Resolução Nº 1, de 15 de maio de 2006. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf
    http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
    , que estabeleceu novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Pedagogia. Dessa forma, no período em que a habilitação em Edac foi oferecida, a Libras não se constituía objeto de ensino nos cursos superiores, seja porque, em grande parte desse período, a Libras não era conhecida e, portanto, reconhecida como língua; seja porque foi apenas a partir de dezembro de 2006 que seu ensino se tornou obrigatório em cursos de formação de professores. Desse modo, nenhum professor habilitado em Edac teria carga horária de Libras em seu curso, conforme pressuposto na Resolução SE Nº 38/2009Resolução Nº 38, de 19 de junho de 2009. Dispõe sobre a admissão de docentes com qualificação na Língua Brasileira de Sinais - Libras, nas escolas da rede estadual de ensino. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/38_09.htm
    http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
    . Observa-se, ainda, não ser disposta a carga horária de cursos de Libras necessária para a atuação dos profissionais habilitados antes da extinção da Edac (mesmo em cursos realizados em espaços outros da habilitação), para poderem atuar como PIs.

  6. Curso de Especialização em Deficiência Auditiva: ao se considerar que um curso de especialização possui uma carga horária que varia entre 360 e 400 horas, e que é constituído por disciplinas que discutem questões relativas à surdez, história da educação do surdo, didática, metodologia e ensino de Libras (como ocorre na maioria pesquisada), pressupõe-se que a carga horária destinada à disciplina de Libras é, também, bastante reduzida nesses cursos, o que remete à discussão realizada no item d.

Essa situação não se alterou até os dias de hoje, na medida em que a Resolução vigente (SE Nº 8/2016Resolução Nº 8, de 29 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino, e dá providências correlatas. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/8_16.HTM?Time=25/04/2016%2005:09:14
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
) manteve os mesmos títulos, na área da Educação, exigidos pela Resolução SE Nº 38/2009, acrescentando, a eles, formação em cursos de bacharelado ou tecnólogo de nível superior, sem, no entanto, discriminar a área de formação nesses cursos. No que diz respeito aos documentos complementares, na comprovação da habilitação ou qualificação exigida, observa-se, novamente, alguns equívocos, além dos comentados anteriormente. Destaca-se, no Artigo 3º, § 1º, Alínea 1ª, exigência de “[...] diploma ou certificado de curso de licenciatura em ‘Letras - LIBRAS’” (Resolução Nº 8, 2016Resolução Nº 8, de 29 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino, e dá providências correlatas. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/8_16.HTM?Time=25/04/2016%2005:09:14
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
, p. 2), ou “[...] diploma de curso de licenciatura, com mínimo de 120 (cento e vinte) horas de LIBRAS no histórico do curso” (Resolução Nº 8, 2016Resolução Nº 8, de 29 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino, e dá providências correlatas. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/8_16.HTM?Time=25/04/2016%2005:09:14
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
, p. 2).

Em relação ao primeiro certificado, embora a formação em licenciatura seja coerente com os títulos antes exigidos, a de Letras/Libras diz respeito à formação de professores para o ensino da Libras, prática não esperada para a atuação de um PI, que será contratado para a interpretação dos conteúdos expressos pelo professor em português para a Libras, a fim de possibilitar a aprendizagem dos alunos surdos, assim como dos discursos dos alunos surdos e ouvintes (em Libras e em português) como forma de garantir a participação em equidade de todos os alunos. No que se refere ao segundo certificado, sugere-se, com esta disposição, que, pelo menos as universidades estaduais paulistas, que respondem diretamente ao governo estadual, ofereçam a disciplina “Libras”, com carga horária de 120 horas, para os cursos de licenciatura e de pedagogia. Entretanto, em pesquisa realizada sobre a carga horária da disciplina Libras nesses cursos, oferecidos nas três universidades públicas do Estado de São Paulo(6) 6 Recuperado do https://uspdigital.usp.br/jupiterweb/jupDisciplinaBuscatipo=D; https://www.dac.unicamp.br/sistemas/catalogos/grad/catalogo2018/cursos.html; https://sistemas.unesp.br/arex/publico/selecaoCursos.buscaCurso.action. , verificou-se que, das trinta e duas disciplinas existentes, apenas uma, ministrada na modalidade de ensino a distância, possui 120 horas; a grande maioria das disciplinas possui carga horária de 60 horas.

Prevê-se ainda, no parágrafo 3º do Artigo 3º da Resolução SE Nº 8/2016, que, na ausência de docentes com a qualificação desejada, “[...] deverão ser observadas as qualificações previstas para as aulas do Atendimento Pedagógico Especializado - APE, atendendo ao disposto na Resolução concernente ao processo anual de atribuições de classes e aulas” (Resolução Nº 8, 2016Resolução Nº 8, de 29 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a atuação de docentes com habilitação/qualificação na Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, nas escolas da rede estadual de ensino, e dá providências correlatas. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/8_16.HTM?Time=25/04/2016%2005:09:14
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
, p. 2). As qualificações às quais se refere esse parágrafo encontram-se no Artigo 8º da Resolução SE Nº 75, de 28 de novembro de 2013, e, embora nelas sejam observadas qualificações que se assemelham às contidas nas Resoluções Nos 38/2009 e 8/2016, que tratam da contratação do Professor Interlocutor, observou-se, ainda, alguns desconhecimentos por parte da SEE-SP em relação à formação exigida:

  1. Licenciatura Plena em Pedagogia com habilitação na respectiva área da Educação Especial: extintas em 2006, sem haver, nas matrizes curriculares das habilitações em Edac, disciplina de Libras.

  2. Curso de Pós-Graduação stricto-sensu, logo, uma formação não condizente com a de um Professor Interlocutor, na medida em que o objetivo da Pós-Graduação stricto-sensu é a formação de professores para a Educação Superior e de pesquisadores, sem haver, portanto, atividades práticas na tradução e na interpretação e de aprendizagem da Libras.

  3. Cursos de especialização com, no mínimo, 120 horas, em área de necessidade especial, portanto, não na de tradução e interpretação Libras - língua portuguesa.

Observa-se, ainda, na redação do parágrafo 3º do Artigo 3º da Resolução Nº 8/2016, que nele estão previstas formações próximas para ambos os profissionais (professor para o APE e PI) e, dada a pouca clareza observada na escrita desse parágrafo, a interpretação pode vir a ser a de que, no caso da inexistência de docentes com habilitação/qualificação para assumir a função de PI, seria permitido o deslocamento de um profissional contratado para atuar como professor do APE para essa tarefa.

Questiona-se, assim, nesses casos, não estar havendo desvio de função ao se permitir que o professor do APE atue como professor interlocutor. De acordo com Cassel, Ruzarin, Rodrigues, & Joel (n.d., p. 9)Cassel, R., Ruzarin, J. P., Rodrigues, A. A., & Joel, M. [n.d.]. Cartilha Desvio de Função no Serviço Público. Recuperado de http://www.sindjuf-paap.org.br/diversos/cartilhas/CARTILHA_DESVIO_DE_FUNCAO_CASSEL_E_RUZARIN.pdf
http://www.sindjuf-paap.org.br/diversos/...
, “[...] está em desvio de função o servidor que, sem formação ou habilitação específica de natureza técnica (ou sem prestação de concurso específico), exerça atribuições complexas”. Isso significa o profissional exercer funções/atribuições de cargo de complexidade e exigência técnica superiores à sua formação. Ou seja, no caso em questão, habilidades na prática da tradução e da interpretação por professores, cuja exigência de contratação não inclui conhecimentos de Libras. Deve-se considerar, ainda, para esta reflexão, as diferentes atividades previstas no Artigo 9º da Resolução SE Nº 61/2014, para professores atuarem nas salas de atendimento pedagógico especializado:

II - Participar da elaboração da proposta pedagógica da escola;

III - Realizar a avaliação pedagógica inicial dos alunos, público-alvo da Educação Especial, que dimensionará a natureza e o tipo de atendimento indicado, além do tempo necessário à sua viabilização;

IV - Elaborar relatório descritivo da avaliação pedagógica inicial;

V - Elaborar e desenvolver o Plano de Atendimento Individualizado;

VI - Integrar os Conselhos de Classe/Ciclo/Ano/Série/Termo;

VII - Oferecer apoio técnico-pedagógico ao professor da classe/aulas do ensino regular, indicando os recursos pedagógicos e de acessibilidade, bem como estratégias metodológicas;

VIII - Participar de ações de formação continuada;

IX - Manter atualizados os registros de todos os atendimentos efetuados, conforme instruções estabelecidas para cada área;

X - Orientar os pais/responsáveis pelos alunos, bem como a comunidade, quanto aos procedimentos e encaminhamentos sociais, culturais, laborais e de saúde;

XI - Participar das demais atividades pedagógicas programadas pela escola (Resolução Nº 61, 2014Resolução Nº 61, de 11 de novembro de 2014. Dispõe sobre a Educação Especial nas unidades escolares da rede estadual de ensino. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/61_14.HTM?Time=08/12/2015%
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
).

Nota-se, assim, que se privilegiam, nas funções previstas para os professores de APE, práticas docentes compatíveis e coerentes com as atividades que se esperaria de um atendimento pedagógico especializado e, portanto, não são exigidos conhecimentos em Libras e sobre práticas de tradução e de interpretação, por estas não serem esperadas para a atuação desse profissional. No que diz respeito ao parágrafo 4º do Artigo 3º, que trata da contratação do professor interlocutor, prevê-se ainda que, caso não haja profissional habilitado nas duas atribuições previstas (PI e professor de APE), poderão ser contratados professores portadores “[...] de diploma de nível médio com certificado de curso de treinamento ou de atualização, com no mínimo de 30 horas em Libras, em caráter excepcional, até que se apresente docente habilitado ou qualificado” (Resolução Nº 75, 2013Resolução Nº 75, de 28 de novembro de 2013. Dispõe sobre o processo anual de atribuição de classes e aulas ao pessoal docente do Quadro do Magistério. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/75_13.htm
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/ar...
). Se, conforme discutido anteriormente, já causava estranheza o fato de a SEE-SP considerar suficiente o conhecimento da Libras adquirido em cursos de 120 horas, essa redução, para 30 horas, corrobora com a leitura realizada anteriormente de que, para essa Secretaria, a Libras não se constitui língua, bem como se desconhece a sua importância para os alunos surdos e a complexidade envolvida nos atos tradutórios e interpretativos.

As Resoluções da SEE-SP, conforme aqui apresentadas, demonstram, assim, falta de clareza sobre o que seria esperado para o PI, pois ao compararmos os documentos legais da esfera Federal às Resoluções, são notórias as contradições no que diz respeito à formação e à atuação desse profissional, principalmente em relação ao significado social da sua atividade, tendo em vista a Secretaria de Educação conferir, implicitamente, ao PI, a condição de docente.

Essa situação contraditória tem induzido gestores, professores efetivos e demais profissionais da educação a pensarem que o PI, com o mínimo de conhecimento da Libras, esteja efetivamente apto a participar do processo de educação do aluno surdo, na condição de intérprete. Somam-se a isso as implicações das leituras equivocadas, presentes nas Resoluções da SEE-SP, para as relações de trabalho no ambiente escolar, que se complexificam, ainda mais, pelos aspectos que envolvem a forma de contratação desse profissional. Por essa razão, será dedicada uma seção específica para esta discussão.

4 Resoluções estaduais relativas à contratação do Professor Interlocutor

A Lei Complementar Estadual Nº 1.093/2009 dispõe sobre contratações por tempo determinado, logo sem a realização de concurso público. Por meio dessa Lei, disciplina-se a contratação para o desempenho de funções, independentemente do caráter da atividade, desde que esta seja indispensável ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, como é o caso da educação.

Os profissionais PIs que atuam na rede regular de ensino do Estado de São Paulo são, desde a primeira Resolução da Secretaria da Educação, contratados como agentes temporários da administração pública, por prazo determinado. Para a contratação desse profissional, a Resolução Nº 38/2009 determinava que competia às Diretorias de Ensino, em sua jurisdição, identificar, em cada unidade escolar, a demanda de alunos surdos ou com deficiência auditiva para haver a contratação do profissional. Para fins de parâmetros de remuneração, o parágrafo 3º do Artigo 2º assim determinava:

O docente interlocutor será admitido como Professor Educação Básica I - PEB I, a ser remunerado com base no valor fixado na Faixa 1 Escala de Vencimentos - Classe Docente (EC-CD), no Nível IV, se portador de diploma de licenciatura plena, ou no Nível I, quando portador de diploma de nível médio (Resolução Nº 38, 2009Resolução Nº 38, de 19 de junho de 2009. Dispõe sobre a admissão de docentes com qualificação na Língua Brasileira de Sinais - Libras, nas escolas da rede estadual de ensino. Recuperado de http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/38_09.htm
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).

Importante esclarecer que, à época, essa Resolução dispunha apenas sobre os critérios de formação e atuação dos docentes com qualificação em Libras; não tratava das questões contratuais de trabalho. Essas questões foram discutidas, inicialmente, na Instrução Normativa da Secretaria de Educação/Coordenadoria de Ensino do Interior (SE/CEI), de 18 de setembro de 2009, que: “Dispõe sobre atribuição e aula na rede estadual de ensino e sobre a admissão de docentes por prazo certo e determinado” (Instrução Conjunta CEI/Cenp/Cogsp/DRHU, 2009Instrução Conjunta CEI/Cenp/Cogsp/DRHU, de 18 de setembro de 2009. Dispõe sobre a atribuição de aulas na rede estadual de ensino e sobre a admissão de docentes por prazo certo e determinado. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/normal/impressão/?id=15695&ver_imp=true
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, grifos do autor), da qual foram retiradas duas diretrizes a fim de ser possível discutir a contratação do PI:

1 - A Lei Complementar nº 1.093, publicada em 17 de julho de 2009, que dispõe sobre a contratação de servidores temporários, impede que ocorra nova contratação da mesma pessoa, com o mesmo fundamento legal, antes de decorridos 200 (duzentos) dias do término do contrato.

[...]

3 - Estabeleceu, ainda, a obrigatoriedade da aplicação de uma Prova de Conhecimentos, antecedendo o processo de atribuição de aulas, exigindo que o candidato obtenha a aprovação para poder ser contratado temporariamente (Instrução Conjunta CEI/Cenp/Cogsp/DRHU, 2009Instrução Conjunta CEI/Cenp/Cogsp/DRHU, de 18 de setembro de 2009. Dispõe sobre a atribuição de aulas na rede estadual de ensino e sobre a admissão de docentes por prazo certo e determinado. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/normal/impressão/?id=15695&ver_imp=true
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).

Assim, por meio dessa Instrução Normativa, aos docentes temporários, mediante a realização de uma prova de conhecimentos, seriam atribuídas as aulas disponíveis na rede estadual de ensino, desde que respeitado o tempo de duzentos dias, chamado vulgarmente de “duzentena”, período no qual os contratados deveriam aguardar para firmar novo contrato com o estado, mesmo que houvesse a necessidade do exercício para assegurar a continuidade do serviço.

Observou-se também que a mesma Instrução não trouxe orientações detalhadas sobre o processo seletivo para contratação de professores por tempo determinado. Essas orientações foram definidas na Instrução Normativa da Unidade Central de Recursos Humanos (UCRH) Nº 2, que estabeleceu o processo seletivo simplificado, passando a ser regido por edital específico, “Inciso I - [...] compreendendo, preferencialmente, provas e facultada a análise de currículo vitae” (Instrução Normativa SGP/UCRH Nº 2, 2009Instrução Normativa SGP/UCRH Nº 2, de 22 de setembro de 2009. Objetivando orientar os órgãos setoriais e subsetorias do Sistema de Administração de Pessoal da Administração Direta e das Autarquias, quanto ao processo seletivo simplificado de candidatos visando à contratação por tempo determinado, de que trata a Lei 1.093, de 2009. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/normal/impressão/?id=15695&ver_imp=true
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). Soma-se a isso o fato de nos contratos temporários para o exercício docente, nos termos da Lei Complementar Nº 1.093/09, os PIs terem sido classificados como categoria “O”, contrato que não assegura aos profissionais estabilidade empregatícia, registro na Carteira de Trabalho e nem recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

A partir do ano de 2011, por meio de outras leis complementares, houve várias alterações na Lei Complementar Nº 1.093/2009 no que diz respeito ao processo de contratação dos docentes temporários e às condições dos contratos de trabalho. O objetivo dessa Lei e suas alterações foi suprir, de forma temporária, a carência de profissionais enquanto não fossem criados cargos ou estes preenchidos mediante concurso público. Desse modo, garantia-se a contratação temporária, a fim de ser assegurado o atendimento de necessidades de interesse público, evitando-se que, durante esse período, a prestação de serviços fosse interrompida.

Entende-se assim que, por uma questão econômica, o Estado de São Paulo passou a contratar um profissional pelo prazo de um ano, sem necessitar manter um professor com cargo efetivo, impedindo-o ainda de permanecer na rede caso não tivesse aula atribuída (mesmo que seu contrato ainda estivesse em vigor) ou de assinar novo contrato antes de ser cumprida a carência de duzentos dias. A falta de interesse do estado em não manter qualquer vínculo de emprego com estes profissionais fica ainda mais evidente ao se observar, no parágrafo 2º da Lei Nº 1.093/2009, que as alterações devem retroagir seus efeitos a partir de 17 de julho de 2009, ou seja, um dia após sua publicação, pois, até aquele momento, não havia nenhuma orientação sobre as questões contratuais de trabalho, retirando, assim, qualquer possibilidade de profissionais contratados àquela época reclamar por seus direitos trabalhistas.

A imposição contratual do cumprimento dos duzentos dias de carência somada ao prazo máximo de um ano de contrato de trabalho motivaram a descontinuidade da função dos professores temporários já contratados na rede estadual de ensino, razão pela qual, por meio da Lei Complementar Nº 1.163/2012, o prazo de carência foi reduzido para quarenta dias (“quarentena”) ao docente temporário aprovado por processo seletivo simplificado de atribuição de classes e aulas para o ano letivo de 2012, desde que ele já tivesse sido contratado anteriormente nos termos da Lei Complementar Nº 1.093/2009, podendo essa redução se estender, apenas, ao ano letivo de 2013.

Contudo, em razão da necessidade de regulamentar a contratação dos professores temporários, referentes aos anos letivos de 2014 a 2016, houve a terceira alteração, que se deu por meio da Lei Complementar Nº 1.215, de 2013. Por meio dessa Lei, o processo seletivo tornou-se flexível na forma de ingresso do candidato para atribuições de aulas, podendo ser apenas classificatório para determinadas hipóteses, dentre as quais se insere os PIs (Lei Complementar Nº 1.215, 2013Lei Complementar Nº 1.215, de 30 de outubro de 2013. Altera o parágrafo único do artigo 2º; Artigo 2º - Acrescenta os artigos 6º e 7º às Disposições Transitórias da Lei Complementar nº 1.093/2009. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2013/lei.complementar-1215-30.10.2013.html
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). Outra questão importante foi impor condições para a utilização da “quarentena”, qual seja, o docente já contratado nos termos da Lei Complementar Nº 1.093/2009, ao encerrar o seu contrato por tempo determinado (CTD), poderá se socorrer da carência de 40 dias para celebrar novo contrato, por uma única vez, e, após o término deste, deverá cumprir a carência de 200 dias para celebrar um novo, situações que não ficaram claras quando da edição da Lei Complementar Nº 1.163/2012. Segundo o texto dessa Lei, havia, apenas, a informação sobre o prazo de carência de 40 dias, contados do prazo anteriormente celebrado. A leitura daquele texto induziu muitos profissionais a pensarem que a “duzentena” havia sido extinta.

Após a edição da Lei Complementar Nº 1.215, de 2013, foi publicada a Resolução Nº SE 75/2013, que dispõe sobre o processo anual de atribuição de classes e aulas ao pessoal docente do Quadro do Magistério, porém esta não trata das questões trabalhistas do CTD. Cabe ressaltar que essa Resolução é generalista no sentido de abranger os procedimentos de atribuição de todos os campos de atuação, ou seja, docentes efetivos e não efetivos, sendo necessária a criação de resoluções específicas para cada campo.

Em 22 de dezembro de 2015, a Lei Complementar Nº 1.277 alterou o prazo de carência para 180 dias do término do contrato, bem como o prazo do contrato para exercer a função de docente temporário para três anos, podendo ser prorrogado até o último dia letivo do ano em que findar esse prazo, estabelecendo também que “[...] os direitos e obrigações decorrentes da contratação para função docente ficarão suspensos sempre que ao contratado não forem atribuídas aulas” (NR) (Lei Complementar Nº 1.277, 2015Lei Complementar Nº 1.277, de 22 de dezembro de 2015. Acrescenta os parágrafos 1º e 2º do artigo 6º da Lei Complementar nº 1.093/2009. Recuperado de http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2015/lei.complementar-1277-22.12.2015.html
http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legi...
).

Diante de tudo que foi exposto sobre a forma de contratação do PI, observamos que todas as alterações feitas à Lei Complementar Nº 1.093/2009 objetivaram manter a condição precária de contrato desses profissionais, evitando assim criar vínculo trabalhista. As diretrizes sobre sua atuação foram reguladas pela Resolução Nº 8/2016 e, atualmente, para atribuição de aulas:

  1. os PIs devem se submeter a um processo seletivo apenas classificatório, lembrando que a categoria “O” está em último lugar no rol das classificações;

  2. o prazo de permanência no serviço público é de três anos, podendo ser prorrogado até o último dia do ano letivo em que findar o contrato, quando o mesmo é automaticamente extinto;

  3. o retorno à função só poderá ocorrer após decorrido o prazo de 180 dias do término do contrato; e

  4. caso o PI contratado não tenha atribuição de aula, não poderá se valer dos benefícios contratuais, como, por exemplo, receber remuneração, pois nesse período os direitos e as obrigações do contrato ficam suspensos.

Essa situação ocorre porque os professores denominados categoria “O” são contratados de acordo com a demanda. Acrescenta-se ainda que ele não possui carga horária mínima atribuída e que depende de disponibilidade para atuarem, pois cabe ao gestor/diretor comunicar à Delegacia de Ensino competente, a demanda de alunos surdos regularmente matriculados, solicitando a necessidade de contratação do PI para assegurar o atendimento a esse aluno.

A partir do ano de 2016, os PIs contratados passaram a gozar o direito de férias anuais remuneradas, acrescido do pagamento de um terço do salário, após decorridos doze meses de efetivo exercício da função. As legislações não se pronunciam sobre o direito a indenizações quando da extinção do contrato. Sobre o salário incide os descontos previstos em lei, como o recolhimento da contribuição previdenciária ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS); a assistência médica desse profissional dá-se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tendo em vista não incidir sobre o salário dos contratados temporários o desconto relativo à assistência médico hospitalar. Essas ações demonstram claramente, do ponto de vista financeiro, um significativo corte na folha de pagamento dos profissionais da educação, gerando, consequentemente, economia aos cofres do Estado.

Dessa forma, ao olharmos as concepções de contratação dos profissionais temporários na rede de ensino de São Paulo, na qual se insere o PI, justifica-se os constantes embates dessa classe trabalhadora com o estado, reivindicando direitos trabalhistas e valorização profissional, sobretudo os classificados como categoria “O”. Observa-se assim que os profissionais que atuam nessa categoria são extremamente desvalorizados e invisíveis aos olhos do estado, representado, nesse contexto, pela Secretaria Estadual de Educação.

5 Conclusão

As análises dos dispositivos legais da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, no que diz respeito à educação dos surdos, apontam que essa Secretaria tem se mostrado omissa frente às especificidades linguísticas e culturais desses alunos, demonstrando poucos conhecimentos sobre a importância dos Professores Interlocutores para os processos educacionais dos estudantes surdos. Embora neles se assuma a formação pedagógica como primeiro requisito para a atuação do PI, ao exigir uma carga horária ínfima de estudos em Libras, desconsidera-se a necessidade de o profissional dominar a língua e suas especificidades enunciativas, conhecer as questões culturais intrínsecas às línguas envolvidas, bem como ter uma formação compatível com a função, cuja prática envolve o conhecimento de estratégias e de técnicas de tradução e de interpretação. Soma-se a isso as condições de contrato e, portanto, de trabalho dos profissionais PIs, pois como são contratados como “professores”, a eles é imposto os mesmos deveres e obrigações de um professor com cargo efetivo. No entanto, os PIs recebem salários menores, não têm direito a gratificações, plano de carreira, registro na Carteira de Trabalho, recolhimento do FGTS e estabilidade profissional.

A não consideração desses aspectos pela Secretaria de Educação paulista tem corroborado para a baixa qualidade de ensino dos alunos surdos, para a falta de profissionais em várias escolas, especialmente em cidades do interior do estado, e para uma grande rotatividade de PIs naquelas que asseguram a presença desses profissionais. Tem-se assim a impressão de que, por meio das medidas tomadas pelas determinações dos documentos legais do estado de São Paulo que tratam do trabalho do PI, busca-se apenas a implementação de estratégias de auxílio ao aluno surdo como forma de cumprimento das determinações das legislações federais: disponibiliza-se um profissional que fará, potencialmente, o acompanhamento do estudante durante seu processo educacional, porém, se o aluno não atingir um bom resultado escolar e/ou não se adaptar às metodologias pensadas para os ouvintes, fica firmada a concepção de que foi feito o melhor. Ignoram-se, por sua vez, as precárias condições educacionais oferecidas aos surdos, eximindo gestores e demais profissionais que constituem o coletivo da escola da responsabilidade pela educação desses alunos.

As discussões realizadas neste texto permitem afirmar que as decisões educacionais na esfera estadual paulista, ao desconsiderar as particularidades linguísticas e socioculturais do aluno surdo, tem desrespeitado os fundamentos teórico-práticos implicados em sua educação. Uma mudança dessa realidade só poderá ser implementada quando as concepções que embasam a educação de surdos no estado tornarem-se efetivas em termos de políticas públicas, em especial no que diz respeito: a) ao disposto no Decreto Federal Nº 5.625/2005, que assegura uma sólida formação do profissional PI quanto ao domínio da Libras e quanto a práticas de tradução e de interpretação, da mesma forma como é esperado e realizado, atualmente, com os TILSP; b) à discussão sobre o papel desse profissional nos espaços escolares; e c) à criação de cargo efetivo para professores interlocutores, por meio de concurso público, o que implicará também na valoração desse profissional.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2017
  • Revisado
    19 Mar 2018
  • Aceito
    25 Mar 2018
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