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Gambiarra ética

DEBATE

Gambiarra ética

Ronie Alexsandro Teles da Silveira

Bacharel em Filosofia pela UFG, Mestre em Filosofia pela UFRGS e Doutor em Psicologia pela PUCRS. Professor adjunto da Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ronie Alexsandro Teles da Silveira. Rua Omar Cavalcante Rolim, 74, Bairro Fátima, CEP 63180-000, Barbalha–CE, Brasil. E-mail: roniefilosofia@gmail.com

A revista Psicologia em Estudo colocou em debate um tema da maior importância para a vida acadêmica brasileira atual: a questão da criação dos comitês de ética (Tomanik, 2008). Nessa época estávamos escrevendo um texto que, em função de seu tamanho, não se mostrou adequado para ser publicado na seção "Debates" da referida revista, como pretendíamos inicialmente (Silveira e Hünning, 2010). Assim, embora em parte ele tivesse sido pensado como uma resposta aos argumentos de Tomanik, terminou adquirindo vida própria e sendo publicado em outra parte. Não obstante, um encontro realizado em uma mesa-redonda do XV Encontro Nacional da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) em outubro de 2009 permitiu que o debate entre os três autores se estabelecesse.

Nessa ocasião, em função do esclarecimento da diferença de perspectivas e da discussão com o público presente, surgiram novas questões ligadas aos comitês de ética que me pareceram essenciais, mas que não haviam ainda sido tratadas no material publicado. Assim, os ganhos conceituais que ocorreram nesse encontro permitiram-me retomar, embora com um intervalo longo, o debate nas páginas da revista Psicologia em Estudo.

A REFORMA TOMANIK

Não retomarei aqui esclarecimentos básicos sobre a origem ou sobre as funções originalmente previstas para os comitês de ética, uma vez que aquelas apresentadas anteriormente nos dois textos já publicados são satisfatórias. Para explicitar minha posição desde o início, estou de acordo com a maioria dos argumentos de Tomanik (2008), mas discordo de sua conclusão principal.

Tomanik afirma ser necessária uma reforma nos comitês de ética. Isto significa que, se a comunidade universitária brasileira não estiver atenta, o trabalho desenvolvido pelos comitês resvalará para um exercício burocrático de obediência a regras e prescrições sem sentido prático. Se o trabalho dos comitês não se tornar mais flexível, estes podem "tornar-se uma instituição autoritária" (p. 403) dentro das universidades. Para evitar isso, deveríamos incentivar que os comitês se tornem "espaços de reflexão" (p. 404) e fomentem preocupações com a ética.

Com essa reforma os comitês poderiam exercer uma função pedagógica importante, ao veicularem a necessidade de reflexões éticas sobre as práticas de investigação científica. Eles poderiam, inclusive, servir como espaços de debate sobre temas importantes referentes ao assunto. Neste sentido, eles deveriam se tornar responsáveis por promover uma formação ética dentro do ambiente acadêmico brasileiro. Na sequência, irei discutir a defesa dessa função pedagógica dos comitês de ética – o que passo a chamar de "reforma Tomanik".

A FUNÇÃO PEDAGÓGICA

Quando derivamos uma função pedagógica de uma determinada posição teórica ou de uma instituição - como um comitê - não podemos fazer isso tendo em vista somente declarações de intenções. Como diz o velho ditado, "de boas intenções o inferno está cheio". Como uma atitude de prudência – já que o diabo adora se travestir de moralista - devemos analisar os princípios que dão sustentação à criação dos comitês e verificar se, de fato, as boas intenções expressas por Tomanik estão articuladas organicamente com o restante da feição geral da instituição. Não podemos simplesmente agregar de fora funções que são incompatíveis com a dinâmica preexistente de uma entidade, qualquer que seja ela, sob pena de procedermos de maneira errática e sem nenhuma consideração pela maneira como o mundo opera.

Qual é, de fato, o compromisso pedagógico de um comitê de ética, criado no contexto brasileiro? Note que não estou tratando de um comitê de ética em particular, portanto procuro os compromissos que um comitê de ética adota quando é criado pelo impulso da legislação brasileira – independentemente da boa vontade ou da moralidade real de seus eventuais integrantes. Interesso-me pela lógica imanente que a instituição "Comitê de ética em pesquisa de uma universidade brasileira" possui, seja qual for sua manifestação particular concreta.

Um comitê precisa ter critérios para distinguir o que pode ser feito e o que não pode ser feito em termos de ética na investigação. Se ele não possui tais critérios, terá que encontrá-los em alguma parte, assim que receber o primeiro projeto de pesquisa e tiver que se manifestar sobre ele. Um comitê precisa dizer se os procedimentos que estão sendo propostos estão corretos ou incorretos. Não há espaço de manobra dentro da necessidade prática de emitir um parecer sobre a condição ética de um projeto de pesquisa: ou ele é ou ele não é ético.

No que diz respeito aos critérios que tornam possível um parecer final, podem ocorrer algumas situações hipotéticas, porém muito limitadas em número. Se esses critérios ou parâmetros de aconselhamento forem iguais aos valores éticos dos pesquisadores de uma comunidade científica, o comitê não causará nenhum impacto na melhoria da ética vigente, porque ele apenas reafirmaria o status quo existente nesse contexto. Neste caso, ele não estaria desempenhando nenhuma função pedagógica real se avaliasse projetos de pesquisa segundo os valores já existentes. Avaliar com critérios que correspondam à situação fatual não pode acarretar nenhuma melhoria, porque os critérios utilizados são os próprios valores existentes no interior da comunidade científica. No conjunto, tudo continuaria tal e qual, e aquela suposta função pedagógica não teria sentido. Uma avaliação ética tautológica não leva a nenhum acréscimo. Sua soma final é zero.

Outra possibilidade seria aquela em que os critérios de avaliação ou de aconselhamento fossem inferiores aos valores existentes nessa comunidade científica. Assim, a função do comitê seria a de tornar o mundo eticamente pior do que ele é. Nesse caso, os comitês de ética se revelariam como um verdadeiro negócio do diabo, ajudando a espalhar o mal sobre a face da terra. Embora essa possibilidade seja extremamente sugestiva, considero que ela não corresponde à proposta de criar comitês de ética. Entenda o caro leitor que o abandono dessa possibilidade é apenas expressão de nosso otimismo mútuo.

SUPERIORIDADE GENÉTICA

Não parece haver alternativa para garantir a função pedagógica que justifica a criação dos comitês de ética a não ser na hipótese de que seus valores básicos sejam superiores aos da comunidade científica em questão. Somente sendo superiores aos valores éticos praticados, em algum sentido que não é necessário determinar aqui, é que os comitês terão uma função pedagógica autêntica. Deve haver um motivo pelo qual alguns critérios são utilizados e outros não, e esse motivo é que eles são considerados superiores de alguma maneira. Um comitê de ética só pode agir incorporando esses valores especiais que o colocam acima do status quo ético dos pesquisadores em geral.

Parece bastante razoável admitir que o comitê só possa existir se seus critérios forem superiores aos dos valores éticos da comunidade de investigadores. Se forem iguais ou inferiores, o comitê perderia sua função de existir, ou porque nada acrescentaria ao mundo dos valores éticos ou porque estaria tornando o mundo pior do que ele já é. A função pedagógica proposta pela reforma Tomanik exige valores superiores. Ninguém aconselha ninguém a não ser que acredite que vê as coisas melhor, de um ângulo especial ou por qualquer outro elemento que indique superioridade. Mesmo sendo extremamente cautelosa do ponto de vista linguístico, a reforma Tomanik não pode se evadir da necessidade de um valor superior, pois é deste que deriva aquela função pedagógica. Com efeito, só exerce uma função pedagógica quem tenha algo a dizer que seja diferente e melhor do que o que os demais já saibam. Não é uma recusa absurda não querer dialogar com quem não tem nada de interessante a nos dizer. Os chatos deveriam mesmo morrer na solidão.

Observe-se que isso não depende da boa vontade de um avaliador ou de sua disposição subjetiva a ser tolerante, cordato ou gentil. Se ele for tolerante de fato, não fará avaliações sobre o padrão ético de procedimentos utilizados em pesquisa, porque todos parecerão igualmente bons aos seus olhos. A tolerância verdadeira equivale a uma modalidade de relativismo ético. Se um comitê é tolerante e relativista ele apenas afirma o direito de cada um agir como quiser, deixa de fazer avaliações, de desejar um mundo melhor e de desempenhar uma função pedagógica.

Um comitê precisa, necessariamente, utilizar valores éticos especiais que deem a ele condições de fazer uma incursão no mundo real: um conselho, uma avaliação, uma correção – algo que indique o que é melhor. Isso não é uma exigência que se faz aos indivíduos que compõem um comitê de ética, e sim, uma necessidade intrínseca ao funcionamento de qualquer comitê de ética que esteja no desempenho da função para a qual foi criado. Essa é a expressão da lógica que está inserida na instituição, e não há nada que possa ser feito no âmbito subjetivo capaz de contornar essa dinâmica intrínseca.

A genética de um comitê de ética exige valores superiores em algum sentido. Por uma questão de organicidade básica do mundo, indivíduos bem-intencionados não podem mudar a lógica de funcionamento que definem as instituições. Elas têm uma dinâmica própria, contra a qual não faz sentido adotar um comportamento contraditório. Nós, seres humanos, podemos criar instituições com várias lógicas de funcionamento, mas não faz sentido agregar funções contraditórias à lógica preexistente em uma delas. Na verdade, isso só faz sentido se queremos obter (novamente) um resultado nulo como resultado do jogo de forças contraditório que criamos. Imagino por liberalidade que isso também não seja o desejo de quem esteja envolvido em um comitê de ética.

Não há nenhuma alternativa para que um comitê de ética justifique suas atividades a não ser apelar para alguma superioridade especial dos seus critérios éticos. Qualquer que seja o comitê, ele só pode funcionar a partir dessa superioridade. Se o comitê não puder derivá-la de alguma instância, também não poderá justificar suas avaliações ou aconselhamentos. Só pode haver um comitê se houver superioridade ética derivada de valores acima daqueles praticados por uma comunidade científica qualquer.

DEGLUTIÇÃO E HIPOCRISIA

Estamos agora em condições de verificar se o comitê pode mesmo desempenhar uma função pedagógica nos termos aparentemente sensatos da reforma Tomanik. As atividades de um comitê consistem em avaliar os procedimentos éticos de investigações a partir de valores que devem possuir alguma superioridade. Parte-se da ideia de que há uma diferença entre esses critérios e os valores correntes em uma dada comunidade científica. O comitê tem de possuir nos bolsos ouro, e não a prata corrente, pois o comitê opera como um intermediário entre valores superiores (que possui) e valores inferiores (que existem). Ele poderá transmitir de maneira mais ou menos incisiva e cuidadosa essa superioridade, mas não poderá abdicar dela; ou seja, o comitê é o operador da superioridade ética, uma espécie de ponte entre dois níveis diferentes de eticidade - um superior e um inferior.

A função pedagógica que um comitê de ética demonstra com suas atividades é a da superioridade – não por escolha subjetiva de seus membros, mas por necessidade estrutural e imanente de seu funcionamento. De fato, um comitê funciona sob a pressuposição de que há uma diferença entre pessoas que pensam sobre a ética e pessoas que não pensam ou pensam menos ou pensam pior a respeito; de que há uma diferença entre quem age de acordo com tais princípios especiais e quem não age; de que há uma distinção entre seres ilustrados e os destituídos de condições éticas; de que há uma diferença entre os que sabem e os que não sabem o que é ético. Essa diferença é uma condição para a existência de um comitê de ética. Neste sentido, a pedagogia intrínseca de um comitê de ética é a pedagogia da diferença entre seres superiores e seres inferiores do ponto de vista ético.

Comitês de ética podem promover discussões, fazer cursos, dar esclarecimentos, publicar cartilhas, etc.; mas não poderão jamais abandonar a pedagogia da diferença e da superioridade, que faz parte de sua estrutura de funcionamento. Eles não podem saltar sobre a sua dinâmica interna e sobre os seus próprios princípios estruturais. A reforma Tomanik afirma que eles podem dar esse salto se se dotarem subjetivamente de boas disposições e de ânimo cordial e pedagógico. Não creio nisso, assim como não creio que cavalos saltem sobre prédios de 87 andares sem nenhum tipo de auxílio.

Estritamente falando-se, nos termos em que os comitês de ética foram criados no Brasil, eles são uma instituição hipócrita, pois, segundo a reforma Tomanik, eles se declaram capazes de uma atitude pedagógica de diálogo que sua própria superioridade funcional nega. Claro que um comitê pode realizar atividades pedagógicas; mas não pode negar sua essência superior. Sua vida depende da diferença entre ilustrados e não ilustrados eticamente, da distinção entre o que é certo e o que é errado. Então, tentar ser um comitê pedagógico que abdica de sua superioridade é lutar contra si mesmo, contra suas próprias condições de existência. Sua criação se deve à crença profunda de que há critérios éticos superiores e uma prática de ação inferior disseminada no ambiente de pesquisa; mas sua prática pedagógica de diálogo, nos termos propostos na reforma Tomanik, afirma que os valores éticos são todos iguais.

Assim, parece-me que a reforma proposta por Tomanik não possui um futuro muito promissor. Ela permite apenas um acordo, ao melhor estilo brasileiro, para que a comunidade acadêmica aceite passivamente a criação autoritária dos comitês por parte do Estado, com as tradicionais ressalvas para uma boa deglutição: que os comitês funcionem apenas de maneira pedagógica, sem autoritarismo, sem excessos e para o bem de todos, isto é, que não façam nenhuma diferença real no mundo.

Nesse caso, não há espaço para meios-termos: os comitês de ética são figuras do autoritarismo político do Estado brasileiro tentando gerenciar a vida ética de seus cidadãos. Melhor seria se ele cuidasse bem da energia elétrica e da telefonia1. Ponderações e reformas são movimentos de acomodação feitos pela comunidade científica e acadêmica para a aceitação desse autoritarismo.

Por outro lado, os comitês não podem negar sua natureza, e os repiques de autoritarismo explícito serão uma ocorrência comum no seu funcionamento. Um avaliador consciencioso será autoritário, porque terá que dizer o que é ético e o que não é, o que pode ser feito e o que não pode. Ele terá que separar o joio do trigo. Um avaliador qualquer preferirá adotar a postura da tolerância e "apenas recomendar" ou "aconselhar", tentando ocultar o poder real que o Estado brasileiro lhe deu, enquanto usufrui dele. As tentativas de adocicamento dos comitês são inúteis e não tocam na questão central: sua criação é um ato político ditatorial. Fora disso, a vida dos comitês será apenas a expressão da velha hipocrisia brasileira de que as instituições existem para não fazerem nenhuma diferença prática. O diabo continuará rindo de nós.

Minha proposta é que as universidades brasileiras se tornem responsáveis e adultas, que fechem seus comitês de ética e transfiram esse grau de responsabilidade para seus pesquisadores. A grande maioria sabe o que é ético. A minoria que não quer saber deverá sentir o peso da responsabilidade dos demais. Quem publica algo de um pesquisador sem ética? Quem é coautor com um pesquisador sem ética? Quem oculta uma pesquisa realizada sem ética? Quem faz vista grossa para os deslizes éticos dos colegas? Só os irresponsáveis agem assim. A dissolução dos comitês de ética não implicará em um mundo melhor, mas permitirá que a falsa autoridade e a hipocrisia cedam terreno para a igualdade e para o diálogo autêntico, aquele feito por agentes responsáveis (Silveira e Hünning, 2010) a partir dos pontos de vista que possuem e que não se envergonham de defender.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resumindo minha posição, defendo que a pedagogia prevalente nas atividades de um comitê de ética é a do autoritarismo, mesmo que seus integrantes estejam empenhados em promover uma atitude democrática e sejam tolerantes. Sendo assim, acredito que o resultado efetivo dos comitês será o de danificar as condições que são salutares para a ética e que tornam as pessoas responsáveis pelas suas vidas e pelas das pessoas que estão próximas: a "não coação" e a "liberdade" (Tomanik, 2008, p. 402).

Precisamos nos livrar do aparato institucional que substitui e obstrui as alterações necessárias da vida real. Comitês de ética brasileiros, reformados ou não, são uma ingerência estatal na vida moral dos agentes. Eles foram equivocadamente criados por uma legislação que pretende promover a melhoria moral dos cidadãos. Essa certamente não é uma função de um Estado que funcione com regras democráticas. As universidades, ao darem apoio a essa excrescência autoritária, estão fazendo o jogo das falsas resoluções de problemas e dos acordos de aparência e infrutíferos, típicos da cultura brasileira. Com ou sem comitês, a ética continua tal e qual. A reforma Tomanik é uma gambiarra ética que não resolve o problema dos comitês, ela apenas tranquiliza uns poucos, assombrados pela sua má consciência e temerosos diante de suas responsabilidades.

Recebido em 13/08/2012

Aceito em 14/11/2012

  • SILVEIRA, R. A. T., Hünning, S. (2010). A Tutela Moral dos Comitês de Ética. Psicologia e Sociedade, v. 22, n. 2, p. 388-395.
  • Tomanik, E. (2008). A ética e os comitês de ética em pesquisa com seres humanos. Psicologia em Estudo, v. 13, n. 2, p. 395-404.
  • Endereço para correspondência

    Ronie Alexsandro Teles da Silveira. Rua Omar Cavalcante Rolim, 74, Bairro Fátima, CEP 63180-000, Barbalha–CE, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013
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