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Reflexões Teórico-Metodológicas sobre o Legado de Vigotski: entrevista com o Professor Nikolai Veresov

Reflexiones teórico-metodológicas sobre el legado de Vygotsky: una entrevista conprofesor Nikolai Veresov

Introdução

A presente entrevista, concedida pelo Professor Dr. Nikolai Veresov em Janeiro de 2020, na Faculdade de Educação da Universidade de Monash (Melbourne-Australia), realizou-se durante o período de Doutorado Sanduíche no Exterior de uma das autoras deste trabalho, subsidiado pela Capes através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE). Desde o ano de 2011, Veresov encontra-se como Professor-associado da referida Universidade, destacando-se como um dos grandes pesquisadores da atualidade no campo da Teoria Histórico-Cultural. Veresov iniciou sua carreira acadêmica na Rússia, seu país de origem, concluindo mestrado em educação pelo Instituto Pedagógico de Murmansk no ano de 1982, e o primeiro doutorado na Universidade Pedagógica de Moscou, no ano de 1990. Em 1998, finaliza seu segundo doutorado na Universidade de Oulu (Finlândia), do qual origina seu livro Undiscovered Vygotsky, em que o autor traz à baila uma compreensão histórica do desenvolvimento do pensamento de Vigotski, dando destaque à questões que, como traz o próprio autor na entrevista que se segue, ainda por algum tempo permaneceriam como desimportantes para os pesquisadores do campo histórico-cultural - como é o caso do conceito de Perezhivanie.

A entrevista organiza-se com o objetivo de jogar luz, portanto, aos aspectos da Teoria Histórico-Cultural que vêm ganhando destaque na comunidade acadêmica. Ao ser concedida à época do lançamento da edição inglesa de Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia, centra-se com maior afinco nos problemas de tradução e interpretação do conceito de Perezhivanie, que fora até então erroneamente traduzido, na língua inglesa, como experiência (experiencing), bem como nas consequências dos desdobramentos de compreensões superficiais e/ou fragmentadas da obra de Vigotski. Devido à sua extensão e à qualidade do material que se segue, optamos por dividi-la em duas partes, constando na presente edição a primeira parte da entrevista concedida. Gostaríamos, enfim, de prestar os mais sinceros agradecimentos ao Professor Nikolai tanto pela entrevista gentilmente concedida, quanto pelo acolhimento e rico aprendizado oportunizado durante o período do Doutorado Sanduíche.

Entrevista

Ana Caroline: A primeira pergunta é bastante ampla: na atualidade, uma série de pesquisadores têm se auto-intitulado ‘neo-vigotskianos’, assim como é notável a popularização da chamada ‘Clínica da Atividade’, baseada no trabalho de Leontiev. Em sua opinião, podemos considerar que estes pesquisadores se encontram no campo da Psicologia Histórico-Cultural?

Professor Nikolai: Primeiramente, eu gostaria de agradecer a oportunidade de compartilhar algumas das minhas ideias com esta revista. Agradeço especialmente à editoria e à Carol Toffanelli, que veio do Brasil até aqui especialmente para me ouvir.

Eu conheço um pouco sobre a situação da pesquisa no Brasil porque nos últimos 3 ou 4 anos eu visitei o Brasil algumas vezes - a última vez que estive lá foi no ano passado, em 2019. Eu passei aproximadamente um mês trabalhando com pessoas de diferentes universidades, como da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), da Unicamp e da Pontifícia Universidade Católica (PUC).

De fato, nós falamos sobre três teorias. A primeira delas é aquela que conhecemos como Teoria Histórico-Cultural, desenvolvida por Vigotski, Luria e Leontiev; a segunda, por sua vez, é chamada de Teoria da Atividade, desenvolvida por Alexey Leontiev, na União Soviética, durante a década de 30. Para dizer de maneira apropriada, Leontiev começou a desenvolver a Teoria da Atividade nos anos 30 e continuou a desenvolvendo durante toda sua vida - até o final da década de 70. A terceira teoria é conhecida como a Teoria da Atividade Histórico-Cultural (TASCH), que se inicia no final da década de 90.

Ainda, para algumas pessoas essas são três gerações da mesma teoria - TASCH. No entanto, a minha visão é a de que há três teorias, e não, uma. Penso que a tradição de apresentar essas teorias como uma só, como três gerações de uma teoria, não é correta. E este não é apenas o meu ponto de vista; essa concepção contraria fatos históricos. Existem três teorias e elas estabelecem uma relação muito complexa entre si.

Vamos tomar, por exemplo, a teoria de Vigotski e a teoria de Leontiev: elas estão intimamente relacionadas e conectadas, mas são duas teorias diferentes.

Leontiev começa a trabalhar com Vigotski a partir de 1925, como parte do time de Vigotski; ele era um dos colaboradores mais próximos de Vigotski, e se você olhar o primeiro grande livro do Leontiev, chamado O desenvolvimento da memória, de 1931, nós veremos que o prefácio foi escrito pelo Vigotski. Infelizmente, este livro não foi traduzido, e foi publicado apenas uma vez em 1931 - depois disso, nunca mais foi publicado. Mas se você tiver sorte o suficiente para encontrar este livro em uma biblioteca, se você puder ler em russo, você verá que este livro está em completo acordo com os princípios de Vigotski. A memória lógica cultural é vista como uma função psicológica superior, é social em sua origem, é mediada por ferramentas culturais, e apresenta funcionamento voluntário.

Então, tomada como uma função psicológica superior, a memória se desenvolve e este é o desenvolvimento cultural - todas essas terminologias são, em absoluto, do Vigotski; esta é, absolutamente, uma estrutura teórica vigotskiana.

No entanto, quando nós olhamos para os escritos de Leontiev de 1934, nós vemos muitas críticas à teoria de Vigotski. A razão é que no início dos anos 30, Leontiev se mudou da Teoria Histórico-Cultural, e começou a desenvolver a Teoria da Atividade. Então, inicialmente Leontiev estava trabalhando na mesma linha que Vigotski, e depois ele começou a estabelecer sua própria linha ‘como uma alternativa à Vigotski, como uma oposição à Vigotski’. E ele foi muito crítico com o Vigotski.

Por exemplo, Leontiev não aceitou a ideia de Perezhivanie como uma unidade de análise. Para Vigotski, o conceito de Perezhivanie era um dos mais importantes; para Leontiev, ele simplesmente não existia. Você nunca irá encontrar nos trabalhos de Leontiev nada sobre Perezhivanie, porque sua teoria foi construída em uma base diferente. Eu não estou afirmando que a Teoria da Atividade era incorreta; estou dizendo que ela é diferente da Teoria Histórico-Cultural.

Portanto, existem similaridades e existem diferenças entre essas teorias. As similaridades são muito profundas, e as diferenças também são muito profundas. O problema, no entanto, é que vigotskianos, ou neo-vigotskianos (eles chamam a si mesmos de neo-vigotskianos - veja o livro do Karpov, por exemplo) não têm essas diferenças em sua agenda. Infelizmente, vigotskianos contemporâneos não estão prontos sequer para discutir que há similaridades e que há diferenças entre a Teoria Histórico-Cultural de Vigotski e a Teoria da Atividade de Leontiev. Esta questão não está na agenda deles, e a razão para isso é muito simples: eles têm um entendimento muito limitado e superficial destas teorias. Então, o maior problema dos neo-vigotskianos é que eles não vêem a profundidade teórica destas duas superfícies. Quando eu leio o trabalho deles, eu tenho a impressão de que eles estão apenas arranhando a superfície, de que eles estão apenas fazendo quebra-cabeças e combinando coisas. É por isso que para mim o mais importante é fazer uma análise profunda, uma análise comparativa, um estudo conceitual, teórico, filosófico, lógico, metodológico acerca das similaridades e diferenças entre essas duas grandes teorias.

Eu não sou crítico à Teoria da Atividade, eu digo que ela é uma grande teoria; ela é muito influente, poderosa, muito interessante, muito profunda... mas o que eu estou dizendo é: esta teoria é diferente da Teoria Histórico-Cultural. Então, quanto mais recursos, fontes do Vigotski se tornam disponíveis, melhor nós conseguimos compreender que não existe uma continuação entre Vigotski e Leontiev. Quanto mais publicações nos são disponibilizadas, quanto mais textos originais dos arquivos de Vigotski aparecem, quanto mais publicações de Leontiev nós encontramos... nós podemos ver então mais e mais fatos, apenas fatos óbvios de que a representação destas duas teorias como dois diferentes estágios ou gerações não é válida. Há similaridades, mas também há diferenças profundas.

E é por isso - voltando ao conteúdo sobre o Brasil - que rótulos não são importantes, o que é importante é que no Brasil há uma comunidade de estudiosos de Vigotski que funciona muito bem e que é muito interessante. Há um grupo, um grupo muito interessante de pesquisadores seguindo a abordagem de Leontiev. E isso é muito interessante; eu penso que isso é o mais importante... então, não importa como eles mesmos se nomeiam - vigotskianos, pesquisadores da TACH ou o que for - o que é importante é o que eles estão fazendo, e isso é absolutamente fantástico.

Eu quero dizer - e não é só para ser polido e querer agradar ao público brasileiro - que o centro dos estudos histórico-culturais, hoje, não é na Rússia ou na América do Norte, é no Brasil. O Brasil é o país onde as coisas mais distintas acontecem. O Brasil está agora se tornando o país número um nos estudos em Vigotski, e isso me deixa muito feliz. É por isso que o próximo Congresso do ISCAR será no Brasil. Este é um sinal da contribuição dos pesquisadores brasileiros para toda esta área. Você vê como hoje as publicações dos pesquisadores brasileiros são interessantes. A comunidade vigotskiana está realmente se tornando uma comunidade muito influente, e isso contribui significativamente para o melhoramento do sistema educacional brasileiro. Eu participei de uma conferência do ISCAR brasileiro; minha amiga Dra. Fernanda Liberali me convidou, e lá eu pude ver que o que os colegas brasileiros estão fazendo é fantástico - e isso significa que o Brasil está se tornando o centro dos estudos internacionais da Teoria Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade. É por isso eu fico muito feliz em ter amigos lá... professores doutores brasileiros, pesquisadores, estudantes de doutorado, com quem eu coopero já há alguns anos.

O único problema não é político, mas sim que infelizmente muitos brasileiros não publicam em Inglês... muitas de suas publicações são em Português, às vezes em Francês, Espanhol - e é claro que essas são ótimas línguas, mas Inglês é a língua da comunidade científica. Toda vez que eu faço uma visita ao Brasil, toda vez que eu encontro jovens pesquisadores, eu digo “[...] por favor, pense em como publicar em Inglês porque eu quero que as pessoas de outros países saibam quão interessante é o trabalho que os pesquisadores brasileiros têm feito [...] como eles estão aplicando essas ideias na prática clínica, para o estudo do trabalho [...] das condições de trabalho, da psicoterapia, do drama e tudo o mais”.

Nós precisamos pensar coletivamente em como apresentar o Brasil à comunidade internacional da melhor forma possível. Porque há muito do que se orgulhar, e o problema é que não são muitas pessoas que sabem o que os pesquisadores brasileiros fazem. Digamos que este é um tipo de resposta diplomática à sua questão: eu desejo o melhor à todos os meus colegas brasileiros, e estou pronto para ajudar de qualquer forma... apenas contribuindo em um livro, vindo à conferências, organizando seminários, em cursos para estudantes de doutorado, seja o que for...

Ana Caroline: O conceito de Perezhivanie tem recebido uma atenção crescente entre os pesquisadores do campo da Teoria Histórico-Cultural. No Brasil, nós a temos traduzido, de maneira geral, como vivência. Você acredita ser possível traduzir Perezhivanie de uma forma correta e/ou justa? Por quê?

Professor Nikolai: Meu colega dos EUA, David Kellogg, que agora vive na Coréia, me convidou para participar em um projeto de tradução das Lições de Pedologia de Vigotski para o Inglês. Eu sei que este livro já foi traduzido para o Português pela Zoia Prestes, e que há também uma versão em língua espanhola. E você provavelmente não sabe, mas ele também foi traduzido para o Coreano. David Kellogg e sua equipe, em Seul, Coreia, fizeram essa tradução. Sua ideia foi torna-la acessível para professores, e não apenas para os acadêmicos, porque todas essas lições são ministradas por Vigotski aos professores russos em 1933 e 1934, algumas semanas antes de sua morte. E a tradução coreana parece interessante: cada página é dividida em duas partes; há a tradução e também os comentários, explicações para os professores. Esse é um dos livros do projeto que David está fazendo na Coréia do Sul; até agora, ele publicou os trabalhos completos de Vigotski em 11 volumes. Foi um projeto de muito sucesso, um best-seller na Coréia do Sul.

Então ele decidiu repetir o mesmo sucesso em Inglês, e me convidou para participar da tradução. Nós temos este livro que foi recentemente publicado com o título Os trabalhos pedológicos de L. S.: volume 1 (L. S. pedological works: volume 1). A ideia do projeto é publicar a coleção de todos os textos chave dos trabalhos pedológicos de Vigotski, incluindo aqueles que nunca foram traduzidos para o Inglês. É um projeto a longo prazo, e agora nós estamos trabalhando no volume 2, que será o livro chamado O problema da idade (The problem of age) e então os três volumes da Pedologia do adolescente (Pedology of adolescent) - um livro que até agora só existe em Russo.

O que eu realmente gosto é que nós tentamos fazer uma tradução muito boa, porque o problema - um dos maiores problemas - é que, infelizmente, as traduções em Inglês ainda estão muito longe de serem ao menos satisfatórias. Eu me orgulho em dizer que nossa tradução é muito boa, porque nós temos trabalhado muito duro durante 15 meses, traduzindo, checando e corrigindo. Eu acredito que a tradução é boa porque David Kellogg é um dos experts da pedologia de Vigotski, ele é capaz de ler e compreender o Russo, e também é um linguista. Eu também sou um pouquinho expert nos estudos de Vigotski e, embora não seja um linguista, eu sou russo, então eu penso que esta seja uma boa combinação de tradutores.

Em relação à sua questão, eu posso dizer que essas sete lições não podem ser consideradas como uma expressão madura da teoria de Vigotski. Este livro é um dos vários outros trabalhos de Vigotski que mostram o segundo período, um novo estágio no desenvolvimento da teoria, quando Vigotski se moveu dos estudos sobre a gênese das funções psicológicas superiores para o estudo de suas interrelações, diferenciação e subordinação no percurso do desenvolvimento. Este último estágio começou em 1930-1931. No entanto, o processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores continuam sendo o objeto de estudo da teoria. A diferenciação e subordinação do sistema de funções psicológicas superiores também são um importante aspecto do desenvolvimento de sistemas complexos.

E essa não é a história toda. Para compreender porque este livro é importante, nós temos de olhar para a paisagem que nós chamamos de estudos vigotskianos, estudos globais, internacionais em Vigotski... por favor, note que o que eu vou dizer é apenas minha humilde opinião individual, e muitas pessoas poderão não gostar disso. No entanto, eu penso que seja hora de fazer uma revisão crítica do estado da arte deste campo.

Nós temos uma comunidade enorme de vigotskianos, neo-vigotskianos, pós-vigotskianos e não-vigotskianos - pesquisadores influenciados ou inspirados por Vigotski. Nós temos o ISCAR como comunidade internacional e eu devo dizer algo que pode parecer ofensivo, mas que eu devo dizer abertamente: se você olhar para esse território que é chamado de ‘estudos vigotskianos’, você verá que teoricamente, metodologicamente, experimentalmente, seus estudos são lamentáveis e patéticos (com exceção do Brasil, é claro).

Quais são minhas razões para dizer isso? Alguém poderá dizer que essas afirmações contrariam a realidade. Você vê essas grandes comunidades vigotskianas em muitos países; o Congresso do ISCAR acontece a cada 3 anos, Vigotski é conhecido no mundo todo; centenas, milhares de artigos e publicações, um oceano de literatura. Depois de tudo isso, você Nikolai, louco, está dizendo que este é um ‘estado miserável’. Então, eu sou louco? Por que o Nikolai é tão desrespeitoso com esses grandes pesquisadores trabalhando nesse campo?

Vamos fazer um pequeno experimento (e às vezes eu faço isso durante minhas apresentações). Eu pergunto duas questões muito simples e básicas.

Questão número 1: me diga, qual é o objeto de estudos da THC? Sobre o quê é esta teoria? A segunda questão é: toda teoria, uma teoria séria, no sentido clássico da palavra, deveria ser baseada em leis, leis que existem objetivamente, como as leis da física, as leis da biologia. Então, quantas leis do desenvolvimento psicológico são apresentadas na Teoria Histórico-Cultural? Eu não peço para que me respondam as formulações dessas leis, eu só preciso de um número. Quantas leis? Uma, duas, seis, menos ou mais?

Essas questões são simples, elas são questões básicas. Nós não conseguimos imaginar um físico - um pesquisador do campo da mecânica clássica que é incapaz de responder uma questão como sobre o que é essa teoria clássica (newtoniana) e quantas leis da mecânica ela inclui. Como alguém pode fazer qualquer pesquisa científica com seriedade nesse campo sem ter conhecimento sobre essas coisas básicas?

No entanto, vigotskianos contemporâneos muitas vezes não têm respostas claras para essas questões simples. Você pode perguntar para 100 pesquisadores que se identificam como pertencentes à tradição teórica de Vigotski, e você terá 100 respostas diferentes. O mais confuso é que ninguém vê isso como um problema - em tempos de pós-modernismo e múltiplas verdades aonde todo mundo está correto, o que nós temos é a situação de milhões de interpretações de interpretações de interpretações. No entanto, a tarefa de Vigotski foi a de construir a psicologia como uma ciência objetiva, e isso significa descobrir objetivamente os processos existentes e as leis que esses processos obedecem. O mesmo que Darwin fez na biologia com a teoria da evolução. Eu não sou contra interpretações, mas eu sou contra interpretações voluntárias que não são baseadas em conhecimento e em um claro entendimento. Na ciência, há coisas que não podem ser interpretadas da forma como nós gostamos ou queremos. Por exemplo, E=mc² não pode ser interpretado como M=ec², mas é exatamente o que acontece em relação à teoria de Vigotski, quando você lê os livros de muitos vigotskianos. Eu posso lhe dar nomes e exemplos, mas eu estou falando do quadro geral vindo de uma literatura secundária. Então, depois disso me diga, quem da psicologia tradicional irá levar a sério pessoas que promovem a teoria de Vigotski e que, ao mesmo tempo, não têm uma visão comum sobre o quê é essa teoria?

Agora eu vou começar a responder sua questão. Nesse livro, há pelo menos três lições que são absolutamente dedicadas à psicologia: o Problema da Hereditariedade, o Problema do Meio e as Leis Gerais do Desenvolvimento Psicológico. Acrescidos a outros textos importantes, estas lições de pedologia respondem a pergunta - sobre o que é a Teoria Histórico-Cultural e qual é, exatamente, o objeto de estudo da teoria. Esta resposta é dada pelo próprio Vigotski.

A questão 2 (quantas leis?) também é interessante. Na maioria das vezes, a literatura da Teoria Histórico-Cultural destaca uma lei - a lei genética geral, que afirma que toda função psicológica aparece duas vezes. Algumas literaturas secundárias listam três ou quatro leis, mas se você pega-las, verá que essas listas são diferentes: não há consenso sobre quantas leis são apresentadas e explicadas nos escritos originais de Vigotski, e que estão publicadas e disponíveis. Agora, me diga, pode alguém da psicologia tradicional levar a sério um grupo de pesquisadores promovendo a teoria de Vigotski, que, ao mesmo tempo em que, na verdade, não têm sequer uma visão clara sobre qual é o número de leis sob o qual esta teoria é construída? Por favor, percebe que eu estou falando de um nível simples, é apenas sobre números. No entanto, a situação é ainda pior - ao invés de usar as formulações originais de Vigotski nessas leis, os neo-vigotskianos simplesmente as interpretam da forma que querem, e eles inclusive gostam de contrariar o seu significado original. Isso faz da teoria de Vigotski um tipo de ‘guarda-chuva’ a cobrir qualquer tipo de estudo experimental e empírico que na verdade nada tem a ver com a Teoria Histórico-Cultural.

No entanto, se você ler a lição 5 de Lições da pedologia, verá que Vigotski nos dá uma série de leis do desenvolvimento psicológico; ele formulou essas leis de uma maneira muito adequada; ele explica essas leis e ele dá exemplos de pesquisa e da prática cotidiana de como estas leis funcionam. Se você conhece as outras leis apresentadas em História do desenvolvimento das funções psicológicas superiores (The history of development of higher psychological functions) (Volume 4 da versão inglesa das Obras Completas) e em Pedologia do Adolescente (Pedology of an adolescent) (Volume 5 da versão inglesa das Obras Completas), como resultado você terá uma lista completa de todas as leis do desenvolvimento psicológico no qual a teoria se baseia. Então, é por isso que este livro é importante. Esse livro é o único livro no qual Vigotski apresenta mais quatro leis do desenvolvimento (leis de diferenciação e de subordinação às funções psicológicas) nas quais ele estava focado no último estágio de seu trabalho. Em adição às leis descobertas em seu estágio anterior, juntas, nós temos a lista completa. E isso nos dá a resposta.

E, finalmente, em suas lições Vigotski introduz conceitos importantes como o de situação social do desenvolvimento, interação entre forma real e ideal, e o conceito de Perezhivanie. É por isso que esse livro é tão importante.

E há um outro ponto para explicar porque este livro é importante: um dos problemas dos vigotskianos contemporâneos é que em muitos casos eles não estão aplicando uma abordagem histórica à THC. O que isso significa? Isso significa que eles estão tomando tudo o que Vigotski escreveu e publicou como THC. Eles não vêem a evolução da visão de Vigotski; o Vigotski na década de 20 e do início da década de 30 são diferentes. Para muitas pessoas é apenas um, não há história - mas há uma história do desenvolvimento do pensamento de Vigotski. Houve uma história; ele mudou sua abordagem através de uma crise dramática... Vigotski rejeitou, inclusive, suas ideias anteriores! Por exemplo, no início dos anos 20 ele definiu a consciência como o reflexo dos reflexos - mas ele rejeitou essa ideia em seus estágios posteriores. Ele disse que o reflexo não é um bom conceito para explicar qualquer tipo de desenvolvimento da mente humana. Mas há vigotskianos que de fato levam a sério a evolução da concepção teórica de Vigotski.

Há um acordo, e o acordo é o de que houve três períodos do trabalho de Vigotski onde ele desenvolveu diferentes abordagens. Eu não vou discutir o primeiro, porque ele foi reflexológico e behaviorista. Então, o ponto é o segundo e o terceiro período: o que acontece é que para muitos pesquisadores o estágio mais importante é o segundo. Se você olhar para a Teoria da Atividade Histórico-Cultural (TAHC), você verá que eles tomam a ideia de atividade mediada como uma das ideias que Vigotski desenvolveu durante o segundo período. E se você vir o quanto eles têm publicado sobre dupla estimulação como o método do segundo período - esse é o período em que a Teoria Histórico-Cultural começou a ser desenvolvida, e nós podemos chama-lo de primeiro estágio da THC. O problema é que mesmo os experts de alto nível estão focados no segundo estágio, e não estão olhando para o terceiro. Para muitos pesquisadores é o oposto, por exemplo Fernando Gonzales Rey, meu amigo e colega: ele diz que o segundo período não é importante, porque ele estava focado no primeiro período, quando Vigotski discute subjetividade, motivação, Perezhivanie, e há então um tipo de lacuna chamada de psicologia instrumental, afirmando que Vigotski não estava satisfeito com sua abordagem ‘instrumental’; ele se volta então para as ideias do primeiro período e começou a desenvolver as mesmas ideias como subjetividade, Perezhivanie, sentido e etc.

Então, algumas pessoas destacam o segundo período, outras destacam o terceiro período, negando a história completa.

Este livro, Lições de pedologia, dá a resposta para a questão: ele mostra que não há uma lacuna entre o segundo e o terceiro período. É uma continuação, e o terceiro é completamente baseado no segundo. Se você localizar esse livro historicamente, você verá que há uma absoluta continuidade entre o primeiro e o último período da THC.

Mas há também uma descontinuidade: isso também é muito importante, porque durante o primeiro período da THC (1927-1931) Vigotski estava majoritariamente focado em descobrir as leis da origem e da gênese das funções psicológicas superiores - como elas se originam, como o social se torna individual, seu processo de origem e gênese: esse era o foco, que foi uma espécie de ideia geral. No terceiro período, a tarefa havia mudado, foi um programa de pesquisa diferente.

Eu posso colocar isso de um jeito simples. É importante descobrir o desenvolvimento das funções psicológicas superiores ‘depois que elas são internalizadas?’. Sim, esse é também um aspecto importante do desenvolvimento - por exemplo, o que acontece depois que uma nova função superior aparece? A criança já tem um sistema de funções psicológicas e o que acontece é que esse sistema começa a se reorganizar - ele se reorganiza criando uma nova hierarquia de funções psicológicas, quando algumas funções se subordinam, e outras se tornam centrais, quando as funções se diferenciam e mudam seu papel - e isso foi chamado de ‘conexões e relações interfuncionais’.

Então, várias leis de reorganização estão presentes nesse livro. Nosso entendimento de desenvolvimento se manteria incompleto caso nós não o entendêssemos dialeticamente como uma série de mudanças qualitativas ou como uma metamorfose, uma reorganização do sistema existente. É por isso que Vigotski diz: toda idade psicológica é um sistema qualitativamente diferente de organização das f.p.s. que é típica, e apresenta-se somente nesta idade - e é isso o que separa uma idade psicológica de outra. Nesse sentido, o último estágio do trabalho de Vigotski foi a continuação de seu trabalho anterior, apesar de seu foco haver mudado - do estudo do processo de gênese sociocultural das funções psicológicas superiores para o estudo dos processos de reorganização, diferenciação e subordinação em diferentes idades da criança. Eles estão conectados um com o outro dialeticamente.

E a última coisa. Ao publicar esse livro, nós (David e eu) tivemos em mente a nova geração de pesquisadores, pessoas como você, Carol, no Brasil, Rússia, Austrália, América do Norte, China, Japão, todos os lugares - para aquela nova geração de pesquisadores que querem entender com profundidade, e não seguir interpretações de interpretações de interpretações, mas sim, que querem ir a fundo na THC. Isso é importante não apenas para propósitos acadêmicos - mas irá nos ajudar a encontrar melhores formas de como nós podemos oferecer suporte em qualquer tipo de institutos sociais, famílias... isso abre um campo enorme para as aplicações práticas.

Eu quero usar essa oportunidade para dizer algumas palavras: se nós quisermos continuar com a tradição de Vigotski, nosso trabalho deve ter resultados práticos, e é isso o que eu espero dessa próxima geração. É por isso que eu e meus colegas trabalhamos com pesquisadores jovens e estudantes de PhD - como você sabe, o ISCAR apoia o seminário anual de verão do ISCAR em Moscou (Moscowsummer ISCAR University) para jovens pesquisadores. Todo congresso do ISCAR começa com o pré-congresso especial chamado de PhD day, em que estudantes de diferentes países apresentam e discutem seus trabalhos sob orientação de famosos professores doutores que são experts na área. Aqui na Monash nós temos um grupo de leitura internacional histórico-cultural, e você participou de nossos encontros. Eu sou grato aos meus colegas e amigos do Brasil por enviarem seus estudantes de PhD, através do Programa de Doutorado Sanduíche, aqui para a Universidade de Monash. Nós ainda estamos abrindo o legado de Vigotski, ainda estamos descobrindo a Teoria Histórico-Cultural e eu fico feliz em fazer isso junto à uma nova geração que quer abrir a beleza e o poder da THC. A publicação de Lições de pedologia é um passo adiante nesta direção.

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    Email: caroltoffanelli@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    04 Set 2020
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