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A escrita e o “popular” A Antologia do folclore cearense e a fabricação de um autor

The writing and the “popular” The Antologia do folclore cearense and the manufacturing of an author

Resumo:

Em 1968. o folclorista cearense Florival Seraine publicou a Antologia do folclore cearense, em um momento em que o folclore estava integrado às políticas públicas de cultura por meio da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, criada em 1958 pelo governo federal. O presente artigo analisa como Seraine utilizou a escrita não apenas para inventariar as tradições populares, mas também para se afirmar como autor em um campo de estudos que estava se estabelecendo, e em uma rede de discussão nacional engajada nas questões do folclore.

Palavras-chave:
folclore; escrita; autor.

Abstract:

In 1968 the folklorist Florival Seraine published Antologia do folclore cearense, when folklore was integrated to the public policies of culture by Brazilian Folklore Defence Campaign, created in 1958 by the federal government. This article examines how Seraine used writing not only to inventory popular traditions, but also to assert itself as an author in a new field of study, and in a national discussion network engaged in folklore issues.

Keywords:
folklore; writing; author.

Introdução

No Brasil, o interesse pelo povo surge no século XIX por ocasião do advento das teorias explicativas da nação, nas quais irá predominar a relação entre a questão racial e a identidade brasileira. Autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha foram fortemente influenciados por três teorias europeias que, mesmo sendo distintas entre si, podem ser consideradas sob o aspecto da evolução histórica dos povos. São elas: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer.

Todas elas defendiam a ideia de que as sociedades humanas ao longo da história evoluem de um estado mais simples (primitivo) para um mais complexo (civilizado), cabendo aos cientistas sociais descobrir as leis que presidiam o progresso das civilizações. Essa perspectiva evolucionista legitimava a posição hegemônica do mundo ocidental, mais especificamente a civilização europeia, que se tornaria o modelo a ser alcançado pelas demais nações. Era preciso explicar as razões do atraso brasileiro para daí definir as diretrizes que tornariam possível a ascensão do Brasil ao patamar de país civilizado (Ortiz, 2003ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 14-15).

É na tentativa de definir o Brasil que surgem os primeiros estudos sobre o “povo” e sua produção cultural. A tônica de alguns desses trabalhos era dividir as populações brasileiras a partir de seus habitats - como o sertão ou o litoral - por exemplo, e explicar em que medida esses meios influenciavam a produção cultural dessas populações.

Os intelectuais diretamente empenhados no registro e na classificação das manifestações ditas populares, mesmo não estando atentos às especificações sobre o informante, o local e a época dos registros, associavam-nas à valorização daquilo que entendiam como culturas populares, “colocando-as no centro da discussão sobre a positividade, ou não, da identidade nacional brasileira” (Abreu, 2002ABREU, Martha. Folcloristas. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 280-283., p. 281).

De acordo com Cristina Betioli Ribeiro, foi a partir da década de 1870 que se iniciou um movimento da intelectualidade brasileira em torno das chamadas tradições populares, entendidas, a partir de então, como o novo pilar nacionalista a ser pesquisado cientificamente. Na tentativa de encontrar elementos que representassem a nação em detrimento da influência político-cultural portuguesa, os intelectuais desse período desenvolvem uma ideia de povo muito associada à do francês Jules Michelet, que identifica o legítimo povo como o camponês.

A autora alerta que, nesse período, as tentativas de definição do povo brasileiro aparecem sempre de forma nebulosa, por dialogarem com um modelo branco-europeu de folclore nacionalista, definido pelos românticos do Velho Mundo como rústico, ingênuo e isolado da civilização urbana. Para Cristina Betioli, os problemas de se tomar emprestado o modelo europeu de construção de uma imagem do povo “residem nas diferenças fundamentais de formação da nação brasileira, então baseada na escravidão, na miscigenação e numa recente independência política” (Ribeiro, 2008RIBEIRO, Cristina Betioli. Um norte para o romance brasileiro: Franklin Távora entre os primeiros folcloristas. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária), Unicamp, Campinas, 2008., p. 30).

O século XIX é também o período de afirmação da cultura escrita. Entender a importância que ela ganha a partir desse momento é fundamental para refletirmos sobre a “invenção” de um campo de estudos folclóricos no Ceará, nosso objetivo aqui. Segundo Roland Barthes e Eric Marty, é comum estabelecer uma relação entre o pensamento mítico e as sociedades orais ou sem escrita e o pensamento racional e as sociedades alfabetizadas. Tal dicotomia passa a atribuir à cultura escrita um status de veracidade e de objetividade, na medida em que essa cultura está relacionada com um pensamento que se pretende científico. Essa predominância do escrito em relação ao oral seria, a partir de determinado momento, resultado da inclusão de uma espécie de poder na linguagem, criando um fenômeno de hierarquização: aqueles que fazem parte da cultura escrita têm a autoridade de falar sobre o mundo.

Tudo o que acabamos de dizer acerca das relações de poder que existem na escrita faz com que esta última apareça, em última análise, como um suplemento monstruoso e tirânico da palavra: a escrita parece ter uma função dúplice, primeiro a de reforçar as instâncias coercitivas do poder intelectual e econômico e, ao mesmo tempo, a de reforçar a racionalidade face às civilizações sem escrita que viveriam apenas no espaço mítico de um imaginário sem rédeas. (Barthes e Marty, 1987BARTHES, Roland; MARTY, Eric. Oral/escrito. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. v. 11, p. 32-57., p. 53)

As reflexões apresentadas são importantes para entendermos como os estudiosos que se dedicam aos estudos das chamadas tradições do povo vão definindo um campo de saber sobre a cultura popular por meio da escrita. Se as sociedades sem escrita e os analfabetos estão do lado do mito, e os letrados estão do lado da racionalidade, é a esta que é atribuída a autoridade de falar sobre o popular. À proporção que uma aura de prestígio é investida à escrita, institui-se uma espécie de império do escrito. Os trabalhos de coleta e classificação das manifestações populares realizados pelos chamados folcloristas são um fenômeno dessa cultura.

Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, apesar de alguns trabalhos sobre as tradições populares terem sido produzidos no século XIX no Brasil, foi nas primeiras décadas do século XX que a cultura popular passou a despertar maior interesse de eruditos e intelectuais, que começaram a produzir uma maior quantidade de trabalhos sobre o assunto. Para o historiador, na passagem do século XIX para o XX, houve um deslocamento na visibilidade dessas práticas, que se transformam em objeto de curiosidade, interesse, classificação e policiamento.

Para o autor, um dos fatores que contribuíram para a emergência de uma preocupação com as coisas do povo foi a mudança no perfil da sociedade brasileira, que nas primeiras décadas do novo século via o surgimento de novos atores sociais - como a classe média e a classe trabalhadora industrial -, colocando para as elites tradicionais o desafio de repensar os critérios de distinção social e aquilo que os distanciava ou aproximava dos diferentes sujeitos que povoavam a cena pública brasileira. “A emergência da sociedade burguesa, das classes sociais em que esta se divide, de distinções cada vez mais profundas nos modos de vida trazidas por esta sociedade, teria tornado visível o povo e suas manifestações, como relicários de um tempo prestes a desaparecer” (Albuquerque Jr., 2013ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de . A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013., p. 43).

O folclore “científico” no Brasil

No Brasil, a luta pelo reconhecimento dos estudos folclóricos como campo de estudo pode ser percebida desde a década de 1920, quando intelectuais como Amadeu Amaral, Mário de Andrade, Câmara Cascudo e outros buscavam imprimir à pesquisa folclórica uma orientação científica por meio de espaços institucionais que pudessem definir as diretrizes de trabalho a serem seguidas pelos folcloristas, como a criação de procedimentos de coleta e análise de material.

A criação da Comissão Nacional do Folclore (CNFL) em 1947 representou um marco na institucionalização dos estudos folclóricos no Brasil por ter superado o caráter local que caracterizou a maioria das iniciativas anteriores, constituindo uma rede que se estendia pela maioria dos estados brasileiros. Um passo na tentativa de desvincular os estudos folclóricos da concepção romântica e literária que dominara a pesquisa até então.

Para compor essa rede, Renato Almeida, o articulador da criação da Comissão, convocou algumas das figuras de maior expressão na área cultural do país naquele momento: Gustavo Barroso, Arthur Ramos, Oneyda Alvarenga, Câmara Cascudo, Cecília Meirelles, Rossini Tavares de Lima, Joaquim Ribeiro, Roquette Pinto, Edison Carneiro, Guilherme dos Santos Neves e Manuel Diégues Júnior (Soares, 2012SOARES, Ana Lorym. Comissão Cearense de Folclore: folclore, identidade e políticas culturais no Ceará entre as décadas 1950 e 1970. 2012. Monografia (Edital de Seleção de Pesquisas), Iphan, Rio de Janeiro 2012,.).

A maior conquista nesse campo foi a criação, em 1958, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), órgão diretamente ligado à administração federal. A reivindicação dos intelectuais já era antiga e buscava a criação de uma agência governamental que coordenasse os esforços em prol da defesa e preservação das manifestações populares.

O desejo de criar um órgão estatal de apoio ao folclore foi formalmente apresentado em 1951, quando a Carta do Folclore Brasileiro (elaborada durante a realização do I Congresso Brasileiro de Folclore) manifestou o anseio, junto ao presidente da república, de que se criasse um organismo de caráter nacional. Getúlio Vargas, presidente de honra do encontro, compareceu ao evento e se mostrou simpático à causa, mas as esperanças do grupo desapareceram com seu suicídio. Somente em 1957, na presidência de Juscelino Kubitschek, o governo federal anunciou, durante a realização do III Congresso Brasileiro, na Bahia, a formação de um grupo de trabalho para elaborar o projeto de um plano de defesa das tradições populares, que culminou com a criação da CDFB (Vilhena, 1997VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997, p. 104).

A tentativa de afirmação da cientificidade dos estudos folclóricos no Brasil revela a dificuldade que o folclore enfrentou para ser implementado como campo de saber. Durante muito tempo, os estudos sobre o popular estiveram associados a determinado tipo de romantismo do século XIX. Para a concepção científica, esse romantismo idealizava o povo e abusava da imaginação, aproximando-se mais de uma concepção literária do que de uma orientação científica, sendo apontadas como algumas de suas características o colecionismo descontrolado e sua postura empiricista.

Além do mais, essa concepção romântica ia de encontro aos ideais cientificistas de associações folclóricas que começavam a ser criadas na Europa na segunda metade do século XIX e que desenvolviam os primeiros esforços para definir a cultura popular como objeto de uma ciência positiva. Ou seja, a importância social do folclore está associada à formação de um campo de estudos sobre o assunto, que se efetiva com a criação da CNFL.

Para consolidar o folclore como ciência, os folcloristas precisavam dizer o que eram e, mais importante, dizer o que não eram, definindo aquilo que os separava dos escritores românticos, tão celebrados inicialmente. Com o intuito de instituir o folclore como um campo científico de estudos, foi realizado, de 22 a 31 de agosto de 1951, no Rio de Janeiro, o I Congresso Brasileiro de Folclore. Nesse encontro, buscava-se definir um objeto de estudo e uma metodologia, a fim de estabelecer o folclore como um legítimo campo de estudos. Como documento final do encontro, foi produzida a Carta do Folclore Brasileiro, texto de grande relevância para caracterizar os trabalhos produzidos pela CNFL como científicos, e não mais literários. A proposta aprovada pelos participantes do congresso foi a seguinte:

1. O Congresso Brasileiro de Folclore reconhece o estudo de Folclore como integrante das ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda a sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual;

2. Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano, ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica;

3. São também reconhecidas como idôneas as observações levadas a efeito sobre a realidade folclórica, sem o fundamento tradicional, bastando que sejam respeitadas as características de fato de aceitação coletiva, anônima ou não, e essencialmente popular;

4. Em face da natureza cultural das pesquisas folclóricas, exigindo que os fatos culturais sejam analisados mediante métodos próprios, aconselha-se, de preferência, o emprego de métodos históricos e culturalistas no exame e na análise do Folclore.2 2 Carta do Folclore Brasileiro. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/carta.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2016.

Apesar da publicação do referido documento, os estudiosos continuaram enfrentando dificuldades para enquadrar o folclore em um campo científico. Nas décadas de 1950 e 1960, houve um grande embate entre os folcloristas e a academia, pois os primeiros tentavam criar uma especialidade para as pesquisas folclóricas por meio da formulação de um ramo de estudos específico, enquanto a academia se colocava contrária à proposta, tentando incluir o folclore apenas como subárea da antropologia.

O grande impasse se dava na tentativa de definição do objeto de estudos. Embora tivesse um método específico de pesquisa, não havia consenso sobre a especificidade dos fatos folclóricos, o que dificultava a caracterização de um campo disciplinar sui generis. Como o fato folclórico fazia parte de um domínio mais amplo, o da cultura, os intelectuais vinculados à universidade alegavam que poderia ser estudado por disciplinas já constituídas, como a antropologia ou a sociologia cultural (Vilhena, 1997VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997, p. 135).

O interessante é que, mesmo não alcançando o estatuto de disciplina científica, o folclore se institucionalizou por meio de museus, institutos, órgãos federais, estaduais e municipais e conseguiu tornar-se um item significativo da agenda da política cultural no Brasil, e isso tudo se dá por causa da forte campanha de articulação intelectual e política feita por aqueles que faziam parte do movimento a favor do folclore.

A Comissão Cearense e os estudos folclóricos

O Ceará esteve presente no debate nacional pelo reconhecimento do folclore como campo de estudos desde a criação da CNFL. Em 1948, um ano depois de criada a Comissão Nacional, foi criada a Comissão Cearense de Folclore, inicialmente dirigida por Henriqueta Galeno e posteriormente por Florival Seraine.3 3 Florival Seraine nasceu no Pará em 1910, mas viveu a maior parte de sua vida no Ceará. Médico de formação, destacou-se por sua atuação na área dos estudos sobre a cultura popular cearense. Foi professor do Instituto de Antropologia, vinculado à então Universidade do Ceará, e um dos membros mais atuantes da Comissão Cearense de Folclore. Além dos dois, Cruz Filho, Eduardo Campos, Mário Baratta e Manoel Albano Amora integravam inicialmente o grupo que formava a Comissão (Seraine e Camurça, 1992SERAINE, Florival; CAMURÇA, Zélia. Ensino e pesquisa do folclore no Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, p. 129-138, 1992., p. 131).

O nome de Henriqueta Galeno para organizar e secretariar a Comissão Cearense foi sugestão de Gustavo Barroso a Renato Almeida quando da fundação da CNFL (Noticiário, 1964NOTICIÁRIO. NOTICIÁRIO Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro: CDFB/MEC, v. 4, n. 8-10, jan./dez. 1964., p. 216). É possível que Henriqueta tenha sido indicada por Barroso por causa da expressividade de seu sobrenome4 4 Henriqueta Galeno era filha de Juvenal Galeno, poeta cearense nascido em Fortaleza em 1836. Sua poesia é considerada de caráter popular por retratar a vida simples e os costumes do interior. É autor do livro Lendas e canções populares, publicado em 1865. Além de escritor, Juvenal Galeno foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Antropológico do Ceará, criado em 1887. e pelo trabalho desenvolvido à frente da Casa de Juvenal Galeno, fundada por ela em 1919 e que se tornou um dos principais espaços de sociabilidade intelectual do Ceará na primeira metade do século XX, tendo sediado diversas entidades, como a Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, criada em 1936, e a própria Comissão Cearense de Folclore.

Coube a Henriqueta Galeno a indicação dos nomes que integrariam a comissão local, informação que reforça a hipótese de que a criação da Comissão Cearense tenha sido o ponto de partida para o surgimento do campo de estudos folclóricos no/do Ceará pautado pelas diretrizes nacionais. Não quero dizer que antes não tenha havido pesquisas sobre as tradições populares cearenses, mas, a partir desse momento, esses estudos seguirão uma diretriz nacional proposta pela CNFL.

Portanto, foi o ingresso desses homens e mulheres na comissão estadual que lhes atribuiu a designação de folcloristas, pois nenhum dos nomes citados anteriormente chegou à Comissão como folclorista, ou foi escolhido para fazer parte dela por já ter uma trajetória de estudos na área. É como se “os folcloristas cearenses” fossem sendo produzidos a partir daquele momento.

Eduardo Campos é um bom exemplo disso. Seus primeiros trabalhos publicados na década de 1940 eram contos e peças de teatro. Apenas em 1951, depois de ter ingressado na Comissão, ele publicou seu primeiro livro de temática popular, o Medicina popular do Nordeste. O interessante é que, em uma das primeiras sessões da Comissão Cearense, Florival Seraine propôs que cada membro escolhesse um tema de sua preferência para que se fizesse uma sistematização das áreas de estudos, a fim de obter maior eficiência nos propósitos do grupo, ficando a medicina popular a cargo de Eduardo Campos.

O consórcio Florival Seraine insiste para que cada um escolha o tema que melhor preferir para se fazer a sistematização dos estudos e se colher mais eficiência nos nossos propósitos. Aprovada unanimemente a proposta foram escolhidos os seguintes temas: indústrias e ofícios populares - Florival Seraine; usos e costumes pastoris - Francisco Alves de Andrade e Castro; Cruz Filho por lendas e tradições; Mário Baratta - advinhas; Henriqueta Galeno - cantadores, tipos populares, pastorinhas-lapinhas; Eduardo Campos, medicina popular.5 5 Ata da 4ª Sessão Ordinária da Subcomissão Cearense de Folclore, realizada no dia 10 de julho de 1948 (Acervo: Casa de Juvenal Galeno).

É possível que a publicação do livro Medicina popular do Nordeste tenha sido resultado dos encaminhamentos dados pela Comissão por meio de suas respectivas áreas de estudo. O certo é que Eduardo Campos não era um folclorista, mas se tornou um a partir do momento em que ingressou na Comissão. Daí em diante publicou outros trabalhos, como Estudos de folclore cearense (1960), Folclore do Nordeste (1960) e Cantador, musa e viola (1973).

O mesmo acontece com Florival Seraine. Seus primeiros trabalhos publicados na imprensa cearense e nas revistas do Instituto do Ceará nos anos 1940 são estudos de linguística, alguns deles voltados para a toponímia indígena. É a partir de seu ingresso na Comissão que se intensificam suas atividades no campo folclórico, além das publicações e participações em eventos nacionais e internacionais.

Até 1952, Florival Seraine era um dos três intelectuais que mais publicavam nos Documentos da CNFL, uma espécie de boletim da Comissão para divulgar documentos e artigos das comissões estaduais. Após o ingresso na Comissão, a produção de Seraine se intensifica. Ao I Congresso Brasileiro de Folclore enviou o trabalho Estudos de lexicografia e semântica, publicado no terceiro volume dos anais do encontro; em 1953, apresentou ao II Congresso Brasileiro de Folclore o resultado de seu trabalho de campo Reisado no interior cearense; no IV Congresso, a comissão cearense foi representada por um trabalho de campo realizado por Florival Seraine, Cândida Galeno e Francisco Alves, que recebeu o título de Cerâmica utilitária de Cascavel. Seraine também apresentou trabalhos no Congresso Internacional de Folclore em Buenos Aires (1960) e no Congresso Internacional de Americanistas, em Mar del Plata (196?), respectivamente intitulados Para a metodologia da investigação folclórica e Fundamentos para uma classificação da matéria folclórica (Seraine e Camurça, 1992SERAINE, Florival; CAMURÇA, Zélia. Ensino e pesquisa do folclore no Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, p. 129-138, 1992., p. 132).

A participação em eventos nacionais e internacionais sempre apresentando trabalhos inéditos reforçava a imagem de um estudioso dedicado e atuante na causa, destacando-o em uma área de estudos que ainda caminhava a passos lentos no Ceará.

Em vários de seus artigos, Florival Seraine criticava a falta de cientificidade dos primeiros estudos sobre as tradições populares cearenses para dizer que seu trabalho, naquele momento, diferenciava-se das primeiras gerações de estudiosos. Em seu entendimento, para ser científico, um trabalho precisava ser baseado no método indutivo, verdadeiramente frutífero, na fidelidade às fontes, no caráter interpretativo, na busca das origens históricas dos elementos estudados, na coleta rigorosa de dados, o que demonstra que seu pensamento estava concatenado com as diretrizes estabelecidas pela CNFL na Carta do Folclore Brasileiro.

Em artigo publicado na Revista do Instituto do Ceará, intitulado “Os estudos folclóricos e etnográficos cearenses”, Seraine ressalta a importância de alguns trabalhos, como os de Juvenal Galeno, produzidos no século XIX, mas não os reconhece como textos científicos (Seraine, 1951SERAINE, Florival. Os estudos folclóricos e etnográficos cearenses. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, p. 28-40, 1951., p. 29).

Para ele, os estudos folclóricos deveriam seguir as seguintes etapas: observação dos fenômenos e coleta de fatos; análise ou crítica e classificação do material coletado; interpretação e busca final de objetivos utilitários ou aplicação prática dos resultados obtidos. Em sua concepção, o trabalho de interpretação era o mais representativo da investigação científica, pois era nele que se revelava a coerência lógica do plano metódico com as concepções teóricas fundamentais para os estudos da cultura popular (Seraine, 2011SERAINE, Florival. Para a metodologia da investigação folclórica. Boletim de Antropologia, Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, v. 3, n. 1, p. 77-100, 2011 {1959} (edição fac-similar). {1959}).

Florival Seraine foi um dos mais produtivos membros da comissão cearense e elaborou seus estudos sempre pautado pelo projeto da Comissão Nacional. O trabalho interpretativo parte daquilo que ele entendia como método científico - já citado anteriormente -, observando os fatos, fazendo uma descrição minuciosa dos sujeitos, levando em conta a importância da análise sociocultural da ocorrência do fato folclórico e da condição social e política dos participantes dessas práticas. Ele se aproximava de uma vertente teórico-metodológica praticada pela antropologia cultural e tentava promover uma aproximação entre folclore e etnografia, algo que se expressava, por exemplo, nos estudos que realizou in loco sobre o torém (Soares, 2012SOARES, Ana Lorym. Comissão Cearense de Folclore: folclore, identidade e políticas culturais no Ceará entre as décadas 1950 e 1970. 2012. Monografia (Edital de Seleção de Pesquisas), Iphan, Rio de Janeiro 2012,., p. 36-37).

O poder da antologia

Em 1968, Florival Seraine publicou a primeira edição de Antologia do folclore cearense, uma reunião de pesquisas realizadas por escritores e estudiosos como José de Alencar (1829-1877), Guilherme Studart (1856-1938) e Gustavo Barroso (1888-1959), para citar alguns. O objetivo do livro era prestar homenagem a alguns pesquisadores do assunto, mas sem deixar de ressaltar a importância dessa especialidade de estudo.

As datas de publicação dos textos reunidos no livro estão inseridas no período que vai de 1870 a 1960, cobrindo um período de quase cem anos de coleta, estudo e classificação do popular, tendo sido alguns desses textos publicados ainda no século XIX, caso de José de Alencar, publicado em 1874; e outros publicados na segunda metade do XX, como o texto Folclore do Nordeste, de Eduardo Campos, de 1961.

A Antologia foi publicada quando ainda estavam em voga as discussões relativas à institucionalização dos estudos folclóricos no Brasil. Na apresentação da segunda edição do livro, ao se referir aos estudiosos de gerações anteriores à dele, Seraine afirma que eles nunca encararam o folclore como uma disciplina científica, mas merecem reconhecimento por tentarem alcançar, firmados nas concepções relativas a seu tempo, diretrizes metodológicas que direcionassem os estudos sobre a cultura popular. Eles teriam contribuído, por exemplo, para o fortalecimento de uma identidade regional a partir da “valorização” daquele que seria um dos tipos humanos do Ceará: o vaqueiro (Seraine, 1983, p. 13). Mesmo destituídos, segundo ele, de um caráter de cientificidade, os trabalhos realizados em fins do século XIX e início do XX contribuíram para revelar traços que seriam característicos das populações das diversas regiões cearenses.

Em A ordem dos livros, no capítulo intitulado “Bibliotecas sem muros”, Roger Chartier analisa os diversos sentidos que a palavra “biblioteca” carrega nos séculos XVII e XVIII. Segundo ele, além da acepção mais clássica - aposento ou lugar onde se colocam livros -, há um segundo sentido não associado a um lugar, mas a um livro. No Dictionnaire, de Furetière, fonte utilizada pelo autor, há a seguinte definição: “Biblioteca é também uma coleção, uma compilação de várias obras da mesma natureza, ou de autores que compilaram tudo que se pode dizer sobre um mesmo tema” (Chartier, 1994CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Universidade de Brasília, 1994., p. 70). À época, não apenas um lugar específico poderia ser definido como biblioteca, mas dada publicação que tivesse a prática do resumo, fosse de autores, obras ou de certos tipos de gêneros.

Os livreiros-editores do século XVIII publicavam essas coleções em abundância, reunindo em cada uma delas grande número de obras já publicadas de determinado gênero - romance, conto. Chartier cita o exemplo da Bibliothèque universelle des romans (1755-1789), obra periódica, de caráter enciclopédico, que fazia uma análise exaustiva de romances antigos e modernos, franceses ou traduzidos, publicando extratos e sínteses, notícias históricas, críticas, íntegras de romances e de contos antigos e originais. Essas “bibliotecas sem muros” constituíam, juntamente com as enciclopédias e os dicionários, algumas das grandes iniciativas editoriais do século XVIII (Chartier, 1994CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Universidade de Brasília, 1994., p. 71).

Para alguns, esses livros-síntese apresentavam vários aspectos positivos, como o fato de reunirem em um só volume “tudo” o que se precisava saber sobre determinado assunto; reduzirem espaço nas bibliotecas, dando lugar a maior quantidade de livros; dispensarem a necessidade de pesquisa em um maior número de publicações; possibilitarem a difusão de determinados gêneros impressos de forma mais rápida; e, talvez o mais importante, representarem uma grande economia, pois os gastos com a compra de livros eram reduzidos significativamente.

Mas, além desses benefícios apresentados, precisamos ficar atentos a um aspecto que, em meu modo de ver, é o mais importante a ser analisado aqui. Esses livros não apenas reuniam uma quantidade de obras separadas, dispersas, mas eliminavam, escolhiam e reduziam muitas outras, que por algum motivo não entravam nessas publicações concisas.

As reflexões de Chartier nos ajudam a pensar melhor o estatuto da Antologia do folclore cearense, que, assim como os “compêndios”, “resumos”, “catálogos”, também é um livro-síntese. Se reunir tudo era uma tarefa impossível, eram as escolhas e as seleções feitas por Florival Seraine que definiam os ilustres personagens dos estudos folclóricos no Ceará e, consequentemente, as manifestações “típicas” do estado.

A Antologia é mais uma das diversas publicações que, desde o século XIX, apresentam o desejo enciclopédico de reunir tudo o que diz respeito ao Ceará. O Ensaio estatístico da província do Ceará (1861), de Tomás Pompeu de Sousa Brasil; o Almanaque administrativo, mercantil e industrial da província do Ceará (1873), organizado por Joaquim Mendes da Cruz Guimarães; o Almanaque da província do Ceará (1888), dirigido por Alfredo Bomílcar; o Anuário estatístico do Ceará (1915), dirigido por Guilherme Sousa Pinto; e O Ceará (1939), organizado por Raimundo Girão e Antônio Martins Filho, são alguns exemplos de publicações realizadas com o intuito de sintetizar a vida política, social, econômica e cultural do Ceará.

Se, na década de 1960, o que estava em jogo era inserir os pesquisadores e a cultura popular cearenses no movimento nacional em torno do folclore, a Antologia funcionaria como um dos principais instrumentos de inclusão e apresentação das potencialidades do Ceará nesse campo de estudo, no que se refere tanto à competência dos estudiosos quanto à diversidade das expressões folclóricas.

O livro foi a forma encontrada por Florival Seraine não apenas para fundar uma tradição cearense nos estudos folclóricos, mas também para dar espaço aos intelectuais cearenses que não tiveram a oportunidade de figurar em publicações de recorte mais amplo, como a Antologia do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo.

Ao publicar a Antologia do folclore cearense, Florival Seraine inaugurou um novo ramo da história do Ceará: a história do folclore cearense. Para se definir como folclorista, Seraine precisava fundar a história do folclore, mas também a escrita dessa história. Desde o século XIX inúmeros estudiosos, como Juvenal Galeno e Leonardo Mota, por exemplo, já inventariavam as tradições populares, mas nunca disseram que faziam uma história do folclore cearense.

Foi encadeando os autores que Seraine atribuiu temporalidade a essa ação de produzir pesquisas sobre a cultura popular, temporalidade expressa por meio de um sistema linear, evolutivo. Foi dessa forma que ele conseguiu estabelecer uma continuidade entre os estudos das diferentes épocas, havendo então a possibilidade de definir as coisas. “Pressupõe-se que não há tempo sem ação, ou melhor, sem ação narrada: é no modo de encadear os fatos que o tempo ganha volume e sentido; é na maneira de ajeitar o mapa do verbo existir que se cria a ideia do tempo dividido entre passado, presente e futuro” (Ramos, 2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012., p. 13).

Assim, Seraine elogiava os autores cearenses, os estudos folclóricos cearenses e a si mesmo, pois ele era um dos autores apresentados na Antologia. A partir do momento em que está realizando seus trabalhos de coleta e classificação da cultura popular cearense, selecionando os autores que vão figurar nas páginas da antologia e organizando-os a partir de determinados critérios, ele está, de alguma forma, realizando um complexo processo de seleção daquilo que deve ser registrado e/ou recordado do passado.

Como se tornar folclorista

Se Seraine organiza uma antologia do folclore, pressupõe-se que os autores selecionados sejam, de alguma maneira, folcloristas. Mas quais seriam os critérios para definir um folclorista? Eles não estão claros, justamente porque Seraine está tentando estabelecer novas regras para essa definição.

Na época da publicação do livro, o vocábulo “folclorista” estava associado a um modelo específico de pesquisador - a partir do qual Seraine gostaria de ser reconhecido6 6 A Sociedade de Etnografia e Folclore, setor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade, em fins da década de 1930, promovia um curso de extensão cujo objetivo era formar folcloristas. As aulas eram ministradas pela ex-assistente do Museu do Homem de Paris, Dina Lévi-Strauss, esposa de Claude Lévi-Strauss, professor contratado pela Universidade de São Paulo (USP). O uso do termo folclorista para indicar os que se dedicavam a esses estudos já vigorava no final do século XIX, mas o sentido que ele tinha nesse período se diferenciava daquele dos anos 1940 e 1950. Enquanto no século XIX “folclorista” era aquele estudioso que tinha uma preocupação mais colecionista e classificativa das tradições populares, nas décadas seguintes seria aquele dedicado à análise mais científica do popular, que seguia os procedimentos de análise definidos pelas associações folclóricas que começavam a aparecer no país. O vocábulo estava, portanto, carregado de sentidos associados à prática científica daqueles que faziam parte do Movimento Folclórico Brasileiro (MFB) (Vilhena, 1997, p. 90). -, mas parte dos autores selecionados para a Antologia do folclore cearense teve sua produção intelectual ou atividade profissional relacionada com outras áreas. Alguns deles haviam publicado apenas um pequeno ensaio ou artigo sobre um assunto relacionado com a cultura popular, o que para Seraine parece ter sido o suficiente para elegê-los como folcloristas. Esse é o caso de Guilherme Studart, que passou a ser visto como uma autoridade nos estudos sobre o folclore meio por acaso.

Em 1910, Studart publicou um artigo na Revista da Academia Cearense de Letras intitulado “Usos e superstições cearenses”, texto que integra a Antologia do folclore cearense. Até então, nenhuma de suas obras tratava de qualquer temática sobre o assunto. Então, de onde surgiu seu interesse sobre as “crendices populares”?

Em 1909, o engenheiro e folclorista Edmar Krug escreveu uma carta a Studart solicitando alguns dados sobre as superstições do norte do Brasil ou o nome de alguém que pudesse auxiliá-lo na coleta de material que seria publicado na Revista da Sociedade Científica. Em menos de um mês, Guilherme Studart enviou a resposta com uma relação de 200 superstições cearenses, o que foi devidamente agradecido (Batista, 2014BATISTA, Paula Virgínia. Arquivo de si e do Ceará: a coleção e a escrita de Guilherme Studart (1892-1938). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014., p. 155).

Guilherme Studart acabou publicando essa relação antes de Krug, que só publicou seu trabalho em 1938. É com esse texto que Studart passa a ser reconhecido como um pesquisador da área. Daí em diante, seu nome passou a figurar nas antologias que tratavam do assunto, como a Antologia do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo, e a própria Antologia do folclore cearense.

O reconhecimento de Studart como folclorista não se dá apenas na posteridade, mas ainda em vida. Após a publicação do artigo “Usos e superstições cearenses”, outro pesquisador e correspondente de Guilherme Studart, Carlos Góes, também lhe solicitou informações e referências sobre o “folclore do Norte brasileiro”, comprovando que aquele que até então era mais conhecido por suas pesquisas no campo historiográfico passava a ser também uma referência nos estudos das tradições populares. Correspondências trocadas com alguns de seus contemporâneos, como Leonardo Mota e Câmara Cascudo, confirmam o reconhecimento e a aceitação de Studart como folclorista.

A consagração de Studart entre os folcloristas nos indica como funciona o processo de canonização de um autor: a partir da escrita de um único artigo, o autor podia conquistar um lugar de destaque num determinado campo de pesquisas, dependendo da identificação e aceitação dos pares, como foi o caso de Studart e seu artigo. (Batista, 2014BATISTA, Paula Virgínia. Arquivo de si e do Ceará: a coleção e a escrita de Guilherme Studart (1892-1938). Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014., p. 167)

Ao organizar a Antologia, Seraine pinça fragmentos de pesquisas publicadas originalmente em artigos e outros livros que fazem parte de outros gêneros literários e campos do saber e que já passaram por um percurso editorial. Ao realizar esse trabalho de adaptação, ele imprime uma nova modificação a esses textos, pois os retira de uma organização tipográfica antes existente para inseri-los em um novo formato, que modificará seus sentidos. Florival Seraine lança mão de material coligido por outros autores, alterando seu enquadramento conceitual, deslocando seus sentidos originais e sobrepondo novos.

Para Durval Muniz, a utilização de material “alheio” constitui um procedimento comum no campo de estudos folclóricos, em que a introdução de exigências técnicas e formais se dá de forma muito tardia. Segundo ele, “as fontes são copiadas, reproduzidas, transcritas, em parte ou na sua integralidade, sem qualquer aparato crítico e, muitas vezes, sem sequer haver referência à autoria de quem coligiu ou estabeleceu a versão escrita do material que está sendo copiado” (Albuquerque Jr., 2013CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Universidade de Brasília, 1994., p. 166).

A compilação desses textos demonstra o interesse do organizador em constituir uma identidade em torno da ideia do que era “ser cearense”, mas também do que era “ser folclorista”. Nesse caso, pensar a materialidade do texto nos ajuda a refletir sobre a questão, na medida em que ela também constrói sentido sobre o texto e de forma subjacente contribui para diversas formas de apreensão do escrito (Chartier, 2001CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.).

Há um elemento importante na arquitetura de uma antologia que precisa ser levado em consideração: o enlace entre os textos. Na medida em que é selecionado, o texto se torna antológico, passando a fazer parte de uma espécie de ranking dos autores memoráveis, formando, assim, uma tradição (Ramos, 2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012., p. 177).

O livro se caracteriza pelo número considerável de autores escrevendo sobre o assunto, pela anterioridade dessa produção e pela quantidade de expressões populares inventariadas. Florival Seraine parecia preocupado em mostrar que o folclore cearense era melhor ou tão bom quanto os de outros estados, disputa presente nos discursos desses homens de letras e nos documentos que dão conta das relações no período analisado.

No discurso de recepção de Florival Seraine como novo sócio do Instituto do Ceará, em 21 de outubro de 1950, o padre Misael Gomes afirma: “O Ceará teceu um folclore intenso e rico, talvez o mais puro e autoctono {SIC} do país, em razão das secas, nosso martiriológio ou via-sacra, milenária sem dúvida” (Discursos, 1950DISCURSOS. DISCURSOS Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, p. 350-399, 1950., p. 367). A frase é dita por alguém que não estuda o povo, mas se enquadra perfeitamente nas pretensões dos folcloristas, que nutriam um desejo intenso de estabelecer o grau de pureza das tradições populares de seus estados e de listar e classificar o máximo possível de expressões populares, daí a busca desenfreada da “descoberta” de novas manifestações.

Para pensar sobre as relações entre a Antologia do folclore cearense e o que se escrevia em outros estados, vale a pena citar o Diário da Noite, de Pernambuco, de 3 de agosto de 1956, que publica uma matéria sobre a instalação da Comissão Pernambucana de Folclore:

Deverá instalar-se por êstes dias a Comissão de Folclore dêste estado, subordinada ao Conselho {sic} Nacional de Folclore, que por sua vez se filia ao Instituto Brasileiro de educação, Ciência e Cultura, ramo nacional da UNESCO. É preciso que não demore essa iniciativa. Estamos, evidentemente, atrasados em relação aos alagoanos, cuja Comissão, tendo como secretário geral Théo Brandão, não somente está constituída, mas até já publicou o primeiro número (dezembro de 1955; possivelmente terá saído outro) do “Boletim Alagoano de Folclore”. Esse periódico destina-se à divulgação de “trabalhos, pesquisas, noticiário, documentação e bibliografia do folclore Alagoano”. Vê-se pelo artigo de apresentação dêsse primeiro número, que a comissão alagoana luta com muitas dificuldades financeiras, mas isto não a impediu de realizar tão interessante iniciativa. Êsse número é todo ele dedicado ao folclore do Natal em Alagoas. Informa que já existem boletins e revistas da especialidade em São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina e Estado do Rio. Pernambuco não deve ficar atraz {sic} nesse esforço de divulgação.7 7 Diário da Noite, Recife, {s.n.}, {s.p.}, 3 ago. 1956. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=7415>. Acesso em: 27 fev. 2014 (grifo nosso).

O que se pode supor do texto citado é que a ramificação da CNFL em comissões estaduais desencadeou uma espécie de corrida entre os estados da federação que disputavam o posto de maior publicador ou de possuidor da maior quantidade de expressões populares. Se Pernambuco ocupava uma posição atrás, Alagoas estava na frente e ganha destaque em jornais que circulavam no eixo Rio-São Paulo, como o Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, que publica a matéria “Alagoas dá um show folclórico”:

O Boletim Alagoano de Folclore, cujo primeiro número, datado de dezembro de 1955, está circulando agora, constitui um belo testemunho das atividades da Comissão Alagoana de Folclore, órgão filiado ao IBECC. Colaboram: Théo Brandão, estudando o natal nas Alagoas; Arthur Ramos, com preciosas notas (republicadas) sobre Autos de Natal; Mendonça Júnior, numa evocação do Natal no vale de Camaragibe; José Aloísio Vilela, sôbre o natal em Viçosa; Guiomar Alcides de Castro, relembrando o Natal em S. Miguel dos Campos; Lima Castro, num quadro sôbre o natal em Coruripe; Djalma Mendonça, sobre o natal em Mata Grande; Antônio Osmar Gomes, evocando o natal em Penedo; Luis Lavenere, numa rememoração do natal alagoano, no comêço do século; Pedro Nolasco Maciel, relembrando o natal no fim do século XIX; Félix Lima Júnior, sôbre o natal em Bebedouro. Não é segrêdo para nenhum brasileiro culto ou bem informado, que Maceió é hoje, uma das capitais folclóricas do país, e em Alagoas trabalha, com afinco e inteligência, uma equipe de folcloristas, alguns de renome internacional, como êsse admirável Théo Brandão. A revista ora em circulação comprova essa excelência. É um “show” folclórico de dar água na bôca dos pesquisadores do resto do país. A turma veio “au grande complet”.8 8 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, {s.n.}, {s.p.}, 2 ago. 1956. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=7414>. Acesso em: 27 fev. 2014 (grifo nosso).

Ora, o que significava ser uma das capitais folclóricas do país? Publicar mais? Ter o maior número de folcloristas ou de expressões populares? A CNFL parecia ser o juiz dessa disputa. Aqueles folcloristas e comissões locais mais bem relacionados com a comissão nacional certamente ganhavam não só prestígio entre eles, mas espaço nas principais publicações nacionais.

A Antologia do folclore cearense foi publicada em 1968, momento em que o folclore finalmente estava integrado às políticas públicas de cultura por meio da CDFB, criada em 1958. A Revista Brasileira de Folclore (RBF) tornou-se, a partir de 1961, o veículo oficial de elaboração de ideias e divulgação de propostas e ações da Campanha. Os folcloristas tiveram na revista um lugar de sociabilidade para desenvolver e defender suas ideias e ações, elaborando uma visão de cultura nacional mediada pelo aspecto folclórico.

Considera-se inicialmente que os folcloristas tiveram na RBF um lugar de sociabilidade fundamental para o desenvolvimento e defesa de suas ideias e ações, pois esse periódico serviu como espaço onde foi possível elaborar um projeto e uma visão de cultura nacional que tiveram como alvo tanto a construção de uma identidade nacional mediada pelo aspecto folclórico, quanto a veiculação do folclorista como intelectual e do folclore como disciplina autorizada para a realização dessa tarefa de construção identitária. (Soares, 2010SOARES, Ana Lorym. Revista Brasileira de Folclore: intelectuais, folclore e políticas culturais (1961-1976). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010., p. 20)

Mas nem todo mundo tinha espaço na RBF. Ao longo dos 41 números publicados, de 1961 a 1976, apenas um texto de um autor cearense foi publicado no periódico, o de Valdelice Girão,9 9 Valdelice Carneiro Girão foi professora primária até 1951, quando foi convidada para trabalhar no Museu Histórico e Antropológico do Ceará, à época administrado pelo Instituto do Ceará. De funcionária do Instituto, passou a funcionária da Universidade Federal do Ceará a fim de organizar o acervo do Museu Artur Ramos, pertencente ao Instituto de Antropologia. A partir de 1974, tornou-se professora do Departamento de História da mesma universidade, e, em 1988, sócia efetiva do Instituto do Ceará. Entre algumas de suas publicações, estão Cerâmica indígena do Ceará e Rendas de bilros e seus artifícios. sobre as rendas do Ceará. É possível que a Antologia tenha sido publicada para viabilizar outras formas de projeção dos “autores locais”.

Na perspectiva de Pierre Bourdieu, as práticas folcloristas se enquadravam no que ele chama de campo de produção erudita, um sistema que produz bens culturais destinados a um público específico, que também produz bens culturais. Ou seja, esse campo se constitui em um sistema de produção que produz apenas para produtores, rompendo, dessa forma, com o público dos não produtores e com as frações não intelectuais (Bourdieu, 1992BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.).

Muitos dos trabalhos realizados pelo campo folclórico tinham um público-alvo, como os estudantes, com o objetivo de reforçar os ícones de identidade; mas, antes de escreverem para estudantes ou para o “público em geral”, esses homens estavam escrevendo para seus pares, que eram seus concorrentes: “{…} poucos agentes sociais dependem tanto, no que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que os outros e, em particular, os outros escritores e artistas, têm deles e do que eles fazem” (Bourdieu, 1992BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992., p. 108). Segundo Bourdieu, a qualidade de escritor, artista ou erudito é uma qualidade dificil de definir, porque existe na/e pela relação de conhecimento recíproco entre os pares.

Florival Seraine estava escrevendo, antes de tudo, para as figuras mais importantes do Movimento Folclórico Brasileiro (MFB). Não à toa, um dos nomes citados na dedicatória da Antologia é justamente o de Renato Almeida, à época o diretor executivo da CDFB e diretor da RBF. O organizador aproveita a folha de rosto da primeira edição para elogiar a obra de seu consorte, “que é um marco na cultura nacional”; mas também para se apresentar: “Da Société Internationale d’Ethnologie et de Folklore - Secretário-geral da Comissão Cearense de Folclore e de outras instituições culturais do país e estrangeiras”. O livro funcionaria como um instrumento de inserção intelectual, de pertencimento a um grupo e de engajamento nas questões do folclore.

Os autores são organizados de acordo com o ano de publicação dos textos selecionados. Cada capítulo começa com um ou dois trechos de algum trabalho significativo do autor, e, em seguida, consta uma pequena biografia. Por último, Seraine coloca uma nota, normalmente voltada pra explicar algo relacionado com o tema pesquisado ou o sistema de coleta e pesquisa utilizados. A seguir, o texto da nota colocada no capítulo referente a Guilherme Studart:

Selecionaram-se 100 dentre os 335 usos e supertições cearenses recolhidos pelo ilustre historiador, nos meios populares cearenses. Studart realizou apenas a colheita do material, que merece, sem dúvida, cuidadosa análise e estudo comparativo, em relação ao folclore nacional e ao de outros países. Mesmo assim, é valiosa a sua contribuição ao estudo de um tema que pode, ainda, oferecer dados importantes ao conhecimento da medicina, da meteorologia, da magia, em suma, da mentalidade pré-científica, concernente ao homem que vive dentro da folk culture. (Seraine, 1968SERAINE, Florival. Antologia do folclore cearense. 1. ed. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1968., p. 20; grifos nossos)

Seraine ressalta a relevância do trabalho de coleta de Studart, mas ao mesmo tempo o minimiza, ao afirmar que sua pesquisa ficou restrita à coleta do material, ressaltando sua falta de cientificidade. Observações como essas estão presentes nas notas que acompanham justamente os textos dos autores mais antigos, a quem é atribuído esse caráter não científico, caso do de Studart, publicado originalmente em 1910 na Revista da Academia Cearense de Letras.

A estrutura do livro materializa, portanto, a linha evolutiva traçada por Florival Seraine para os estudos folclóricos cearenses, linha essa fundamental para situar os intelectuais cearenses no tempo, como se estivessem eles pautados, ou não, pelos paradigmas científicos da pesquisa folclórica.

Publicações como a Antologia materializavam as disputas que se davam no campo intelectual, não apenas porque expressavam a tentativa de superação de um método de análise por outro, mas porque incluíam e excluíam os autores. José de Alencar é um exemplo bastante significativo de como isso acontecia. Em 1948, Dolor Barreira publicou o livro História da literatura cearense e nele não incluiu o escritor, justificando que, apesar de ser cearense, Alencar não viveu no Ceará e por isso não deveria constar no rol dos literatos cearenses (Ramos, 2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012., p. 175).

Quando Raimundo Girão publicou a Antologia cearense em 1957, ele não só incluiu José de Alencar como, na introdução, criticou o critério utilizado por Barreira para selecionar os autores, deixando de fora alguns pelo simples fato de terem escolhido viver fora do Ceará (Girão, 1957GIRÃO, Raimundo. Antologia cearense. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1957., p. XXII).

José de Alencar é um exemplo interessante para percebermos esse jogo de “corta e cola” de autores. Não é por acaso que aparece como o primeiro autor da Antologia do folclore cearense, já que a ideia de Seraine é elegê-lo ao posto de fundador dos estudos sobre a cultura popular cearense. Se, no Ceará, além de escritor, Alencar é apresentado como folclorista, em âmbito nacional é excluído desse campo.

Como já afirmamos anteriormente, para o movimento folclórico que começou a se organizar na década de 1940, era fundamental desvencilhar-se da imagem do literato romântico do século XIX e construir a imagem de um intelectual novo, científico e especialista. Quando os primeiros passos são dados nessa direção, o folclore se apresenta como uma especialidade de estudo, buscando-se inserir no conjunto das ciências sociais.

Apesar do elenco de autores dedicados ao popular - Celso de Magalhães, Juvenal Galeno, Araripe Júnior, Mello Moraes Filho, para citar alguns -, foi Sílvio Romero quem se notabilizou como o maior folclorista brasileiro do século XIX. A produção realizada antes dele é avaliada pelos sucessores de Romero como uma simples biografia de jornal, resultado de pequenos estudos parciais (Abreu, 2002ABREU, Martha. Folcloristas. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 280-283.).

Para a geração de 1940, Sílvio Romero passou a ser considerado o principal antecessor desse movimento justamente porque era considerado o precursor da orientação crítica e científica dada a essa problemática. Foi justamente a importância atribuída a Romero que deixou José de Alencar de fora do quadro dos folcloristas brasileiros.

O principal interlocutor de Sílvio Romero foi José de Alencar, pois seus primeiros estudos iniciaram-se como base para refutar um escrito de Alencar chamado “O nosso cancioneiro popular”, justamente o texto escolhido para compor a Antologia do folclore cearense. Em Estudos sobre a poesia popular no Brasil, de 1879, além do indigenismo, Romero critica alguns aspectos das reflexões do romancista, como o fato de o povo ser tomado como uma referência capaz de legitimar seu estilo literário, em que as tradições eram vistas sob uma ótica “falsamente” otimista. Sílvio Romero afirmava que, apesar de todo o seu merecimento como literato, Alencar não tinha uma preocupação científica suficiente para tratar do tema, tendo estudado muito pouco o assunto (Vilhena, 1997, p. 157).

Já na publicação Folclore brasileiro, José de Alencar aparece entre os folcloristas. O livro, publicado em francês em 1889 pelo barão de Santa-Anna Nery, brasileiro nascido no Pará, mas radicado em Paris, teria sido o primeiro compêndio sobre as tradições populares brasileiras. Por não ter tido à época edição no Brasil, o livrou ficou desconhecido da maior parte do público brasileiro, ficando circunscrito às bibliotecas de poucos especialistas.

De acordo com Vicente Salles, apresentador da edição brasileira publicada pela Fundação Joaquim Nabuco em 1992SALLES, Vicente. Apresentação. In: NERY, F. J. de Santa-Anna. Folclore brasileiro. 2. ed. Recife: Fundaj/Massangana, 1992., Santa-Anna Nery não foi um simples tradutor das obras de folcloristas brasileiros, mas coligiu pessoalmente material nas três viagens que fez ao Brasil de 1882 a 1887. O barão apresenta em seu trabalho material por ele mesmo coletado em diversas regiões do país, principalmente na Amazônia (Salles, 1992SALLES, Vicente. Apresentação. In: NERY, F. J. de Santa-Anna. Folclore brasileiro. 2. ed. Recife: Fundaj/Massangana, 1992.).

Assim como José de Alencar, Santa-Anna Nery também foi alvo das críticas de Sílvio Romero, que o acusava de ter plagiado as ideias de seu prefácio aos Cantos populares do Brasil. Romero chega a colocar na segunda edição do livro uma nota de rodapé que diz: “Não esquecer que esta introducção foi publicada em 1879 na Revista Brasileira e plagiada mais tarde pelo Sr. Sant’Anna Nery, um singular barão que reside em Paris no seu livro Le Folk-lore Brésilien” (Romero, 1897ROMERO, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves, 1897., p. III). Isso explica o porquê de Santa-Anna Nery não ser um autor citado pelos integrantes do MFB quando se trata de estudos sobre cultura popular no Brasil.

José de Alencar está em Folclore brasileiro, de Santa-Anna Nery, mas não está na Antologia do folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo; assim como também não aparece na História da literatura cearense, de Dolor Barreira, mas já consta na Antologia cearense, bem como na Antologia do folclore cearense. O romancista é um exemplo de como os autores vão sendo incluídos e excluídos em/de determinados campos de estudo na medida em que os jogos de poder vão se estabelecendo, dependendo da ampliação ou da redução de nosso referencial de análise. Sobre a questão, Regis Lopes afirma:

Do ponto de vista do movimento que anima o circuito dos autores, uma antologia mais restrita oferta boas oportunidades de (auto)elogio. Exemplo: intelectuais que não entraram na Antologia Cearense tiveram a chance de figurar na Antologia do Folclore Cearense. Em outra escala, mas no mesmo jogo de corta e cola: intelectuais excluídos da Antologia do Folclore Brasileiro são facilmente incluídos na Antologia do Folclore Cearense. (Ramos, 2012RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2012., p. 178)

Considerações finais

As questões discutidas ao longo deste artigo mostram que a relação entre a escrita e o popular no período aqui estudado expressava não apenas o desejo dos pesquisadores de inventariar, catalogar, registrar as expressões populares - brasileiras ou cearenses -, mas de se inserirem em uma rede nacional, quiçá internacional, de estudos no campo do folclore. Se a partir de 1947 começava a se organizar no Brasil o MFB é porque havia também um movimento folclórico internacional sendo articulado.10 10 Desde sua criação, em 1946, a Unesco vinha recomendando aos países-membros a criação de comissões ou organizações que pudessem salvaguardar o folclore, entendido como parte integrante do legado cultural de uma nação. O Brasil foi o primeiro país a atender ao pedido, criando o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e que teve como primeiro diretor Renato Almeida, principal articulador da criação da CNFL. Em 1947, a Unesco apoiou a criação do International Folk Music Council, em Londres, e do Centre International des Arts et Traditions Populaires, em Paris. Ambas as instituições procuraram articular uma associação internacional de folcloristas a fim de estabelecer relações de compreensão entre as diferentes culturas.

Diferentemente dos folcloristas oitocentistas, aqueles que produziram após 1947 estavam inseridos em uma nova dinâmica. A partir desse momento, havia um campo de estudos se construindo, um movimento se organizando, inclusive internacionalmente, e escrever sobre a cultura popular significava assumir uma posição em um restrito grupo que estudava o assunto, daí a importância de marcar o nome em um suporte material que desse validade às memórias que se construíam em torno dos autores.

O mais irônico é que, apesar de todo o esforço, Florival Seraine parece não ter conseguido o reconhecimento que desejava, nem para sua principal obra nem para si próprio. No dia 2 de março de 1978, o colunista José Valdivino publicou uma pequena nota no jornal O Povo intitulada “Faltou uma antologia”, apresentando um pedido de desculpas. No dia 9 de janeiro de 1978, Valdivino havia publicado no mesmo jornal um trabalho sobre as antologias literárias publicadas no Ceará desde 1916, mas esqueceu de citar a Antologia do folclore cearense.

Naquele meu trabalho publicado n’O Povo, na edição de 9 de janeiro do ano corrente, apresentei todas as antologias literárias que se publicaram em Fortaleza, desde 1916, com José Albano. Mas… faltou-me uma. Escapou-me, muito embora ter-me prevenido dela. Achei-a agora, em uma de nossas estantes. Fora uma cobra, tinha-me mordido… Trata-se da Antologia do Folclore Cearense, publicada nesta cidade, em 1968, sob a direção do médico e literato Dr. Florival Seraine. Consta de 183 páginas, na Ed. Henriqueta Galeno. Capa de Lúcia Galeno, prefácio e notas do autor {…}. Agora meu perdão pela falha, involuntária, mas que não deixa de ter sido injusta. (Valdivino, 1978VALDIVINO, José Faltou uma antologia. O Povo, Fortaleza, {s.n.}, p. 3, 2 mar. 1978., p. 3)

Na nota, Seraine é apresentado como médico e literato, e não como folclorista, mesmo tendo “dirigido” uma antologia de folclore. Seria esse apenas um detalhe sem importância ou uma evidência de que, mesmo com todo o esforço, Seraine não conseguiu se firmar na cena intelectual cearense como folclorista? Independentemente da resposta que possa ser dada à pergunta, o fato é que não podemos minimizar a contribuição que os estudos de Florival Seraine e sua articulação política, seja local, seja nacional, deram à constituição de um novo campo de estudos no Ceará.

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  • SOARES, Ana Lorym. Comissão Cearense de Folclore: folclore, identidade e políticas culturais no Ceará entre as décadas 1950 e 1970. 2012. Monografia (Edital de Seleção de Pesquisas), Iphan, Rio de Janeiro 2012,.
  • SOARES, Ana Lorym. Revista Brasileira de Folclore: intelectuais, folclore e políticas culturais (1961-1976). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
  • VALDIVINO, José Faltou uma antologia. O Povo, Fortaleza, {s.n.}, p. 3, 2 mar. 1978.
  • VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997
  • 2
    Carta do Folclore Brasileiro. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/carta.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2016.
  • 3
    Florival Seraine nasceu no Pará em 1910, mas viveu a maior parte de sua vida no Ceará. Médico de formação, destacou-se por sua atuação na área dos estudos sobre a cultura popular cearense. Foi professor do Instituto de Antropologia, vinculado à então Universidade do Ceará, e um dos membros mais atuantes da Comissão Cearense de Folclore.
  • 4
    Henriqueta Galeno era filha de Juvenal Galeno, poeta cearense nascido em Fortaleza em 1836. Sua poesia é considerada de caráter popular por retratar a vida simples e os costumes do interior. É autor do livro Lendas e canções populares, publicado em 1865. Além de escritor, Juvenal Galeno foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Antropológico do Ceará, criado em 1887.
  • 5
    Ata da 4ª Sessão Ordinária da Subcomissão Cearense de Folclore, realizada no dia 10 de julho de 1948 (Acervo: Casa de Juvenal Galeno).
  • 6
    A Sociedade de Etnografia e Folclore, setor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade, em fins da década de 1930, promovia um curso de extensão cujo objetivo era formar folcloristas. As aulas eram ministradas pela ex-assistente do Museu do Homem de Paris, Dina Lévi-Strauss, esposa de Claude Lévi-Strauss, professor contratado pela Universidade de São Paulo (USP). O uso do termo folclorista para indicar os que se dedicavam a esses estudos já vigorava no final do século XIX, mas o sentido que ele tinha nesse período se diferenciava daquele dos anos 1940 e 1950. Enquanto no século XIX “folclorista” era aquele estudioso que tinha uma preocupação mais colecionista e classificativa das tradições populares, nas décadas seguintes seria aquele dedicado à análise mais científica do popular, que seguia os procedimentos de análise definidos pelas associações folclóricas que começavam a aparecer no país. O vocábulo estava, portanto, carregado de sentidos associados à prática científica daqueles que faziam parte do Movimento Folclórico Brasileiro (MFB) (Vilhena, 1997, p. 90).
  • 7
    Diário da Noite, Recife, {s.n.}, {s.p.}, 3 ago. 1956. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=7415>. Acesso em: 27 fev. 2014 (grifo nosso).
  • 8
    Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, {s.n.}, {s.p.}, 2 ago. 1956. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=7414>. Acesso em: 27 fev. 2014 (grifo nosso).
  • 9
    Valdelice Carneiro Girão foi professora primária até 1951, quando foi convidada para trabalhar no Museu Histórico e Antropológico do Ceará, à época administrado pelo Instituto do Ceará. De funcionária do Instituto, passou a funcionária da Universidade Federal do Ceará a fim de organizar o acervo do Museu Artur Ramos, pertencente ao Instituto de Antropologia. A partir de 1974, tornou-se professora do Departamento de História da mesma universidade, e, em 1988, sócia efetiva do Instituto do Ceará. Entre algumas de suas publicações, estão Cerâmica indígena do Ceará e Rendas de bilros e seus artifícios.
  • 10
    Desde sua criação, em 1946, a Unesco vinha recomendando aos países-membros a criação de comissões ou organizações que pudessem salvaguardar o folclore, entendido como parte integrante do legado cultural de uma nação. O Brasil foi o primeiro país a atender ao pedido, criando o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e que teve como primeiro diretor Renato Almeida, principal articulador da criação da CNFL. Em 1947, a Unesco apoiou a criação do International Folk Music Council, em Londres, e do Centre International des Arts et Traditions Populaires, em Paris. Ambas as instituições procuraram articular uma associação internacional de folcloristas a fim de estabelecer relações de compreensão entre as diferentes culturas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2016
  • Aceito
    30 Abr 2016
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