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O morador, o estante e o proibido: flamengos em São Paulo no contexto da Monarquia Hispânica (1580-1640)

The resident, the transient and the forbidden: Flemings in São Paulo in the context of the Hispanic Monarchy (1580-1640)

Resumo:

O artigo busca, através de uma documentação diversificada - que inclui inventários e testamentos, atas de câmara, petições aos conselhos da monarquia, autos inquisitoriais, dentre outras -, apresentar aspectos das trajetórias de três flamengos que tiveram suas vidas articuladas por passagens e permanências pela vila de São Paulo de Piratininga, nas primeiras décadas do século XVII. As trajetórias de Manoel Vandale, Cornélio de Arzam e Pedro de Sauce devem ser inseridas no contexto da Monarquia Hispânica, e nas suas possibilidades de circulação, dialogando com um momento conturbado das relações entre os Países Baixos e o império espanhol dos Habsburgos. Um momento no qual as condições de naturalidade e estrangeiridade, assim como de clandestinidades e suspeitas, andavam pari passu com uma costumeira presença de flamengos nas partes do Brasil, onde, em muitas circunstâncias, estavam plenamente inseridos em redes econômicas de escala regional ou imperial.

Palavras-chave:
Flamengos; São Paulo colonial; Monarquia Hispânica

Abstract:

The article seeks, through a diversified documentation - which includes inventories and wills, town hall proceedings, petitions to the councils of the monarchy, inquisitorial documents, among others - to present aspects of the trajectories of three Flemings who had their lives articulated by passages and stays in the village of São Paulo de Piratininga, in the first decades of the 17th century. The trajectories of Manoel Vandale, Cornelio de Arzam and Pedro de Sauce must be inserted in the context of the Hispanic Monarchy, and in its possibilities of circulation, dialoguing with a troubled moment in the relations between the Netherlands and the Spanish empire of the Habsburgs. A moment in which the conditions of naturalness and foreignness, as well as of illegality and suspicion, went hand in hand with the usual presence of Flemish people in parts of Brazil, where, in many circumstances, they were fully inserted in economic networks on a regional or imperial scale.

Keywords:
Flemish; Colonial São Paulo; Hispanic Monarchy

Introdução1 1 Esta pesquisa se vincula ao projeto: “Intercambios culturales, transculturación y castellanización en los territorios del Reino de Portugal y Brasil durante el periodo de integración en la monarquía Hispánica y sus postrimerías, 1580-1668”, SA110P20, Junta de Castilla y León.

Naquele ano de 1628, Madalena Holsquor, recém-viúva de Manoel Vandale, buscava resolver o inventário do marido falecido no ano anterior, para poder voltar à Bahia, de onde o casal havia saído cerca de três anos antes. Cornélio de Arzam lidava com as garras da Inquisição, que fora alcançar-lhe na meridional capitania de São Vicente. Pedro de Sauce tentava aproveitar um perdão real divulgado em Assunção para legalizar sua entrada na América, sem licença, pelo “caminho proibido” de São Paulo. Em comum: todos flamengos, com suas trajetórias costuradas por passagens e permanências pela vila de São Paulo, na capitania de São Vicente, na terceira década do século XVII. Moradores como Arzam, estantes como Vandale ou proibidos como Sauce, classificados dessa forma, são paradigmáticos de uma certa alternância entre mobilidade e estabilidade nas primeiras décadas do século XVII, ressignificadas pelas novas possibilidades abertas pela espacialidade cada vez mais mundializada da Monarquia Hispânica (Gruzinski, 2014GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Edusp, 2014.; Herzog, 2003HERZOG, Tamar.Defining Nation: Immigrants and Citizens in Early Modern Spain and Spanish America. New Haven: Yale University Press, 2003.).

Em um dos nós dessa trama, São Paulo, a pequena vila interiorana, acantonada num planalto depois dos contrafortes da Serra do Mar, se articulava ao litoral e ao sertão pelos caminhos fluviais e terrestres bem assentados sobre rotas indígenas seculares. E por ali as coisas andavam agitadas naquele ano: além da ansiedade e temor causados pela chegada do visitador do Santo Ofício; o governador do Paraguai, Luis de Céspedes Xeria, passava pela vila para tomar posse de sua governação, optando por fazê-lo pelo caminho proibido de São Paulo, que seguia pelo dificultoso rio Anhembi. Em carta ao rei, apontou os moradores da vila como praticantes das “maiores maldades, traições e velhacarias”, que andavam pelas ruas portando escopetas.2 2 Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia (ABNB). Correspondências. CACH880. 09/11/1628. Nessa mesma ocasião, Xeria presenciou a mobilização de uma enorme entrada, formada por três companhias, e que reunia brancos, mamelucos e indígenas, com o objetivo de assediar a região guairenha, no Paraguai, para “recuperar” indígenas “fugidos”. A sucessão de entradas que atravessou os anos de 1628 a 1632 resultou, de fato, na destruição das cerca de 14 reduções jesuíticas da região, no esvaziamento de três cidades castelhanas, e na chegada a São Paulo de milhares de Guarani aprisionados como escravos. Ao final, Xeria terminou sendo acusado de cumplicidade com os “velhacos”.

É neste cenário que a trajetória de três “estrangeiros”, flamengos, se conecta a São Paulo em tempos de união dinástica, uma conjuntura que claramente pesará nos destinos e movimentos de nossos personagens. A presença de flamengos, e de neerlandeses em geral, nas partes do Brasil, não representava, de fato, uma novidade. Em verdade, comerciantes flamengos, ou assentados em Amberes (Antuérpia), centro comercial pujante desde a primeira metade do século XVI, estavam imbricados nas redes mercantis que envolviam Portugal e seus espaços ultramarinos desde fins do século XV. Em Lisboa, formavam uma ampla comunidade, bem estabelecida. As tramas mercantis, que articulavam flamengos, mas também portugueses, italianos e alemães, assim como cristãos velhos e cristãos novos, configuravam verdadeiras redes interimperiais, e movimentavam grandes capitais investidos sucessivamente em manufaturas, metais, pescados, grãos e queijos da Europa do Norte; vinhos, frutos e sal portugueses; açúcar e pau-brasil das ilhas atlânticas e do Brasil; escravos e mercadorias africanas e especiarias asiáticas. Os negócios com o Brasil, como os outros, eram estabelecidos através de redes - familiares e não familiares -, bastante plásticas, formadas por agentes, feitores e representantes espraiados pelas mais diversas praças (Sluiter, 1967SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.; Kellenbez, 1968KELLENBEZ, Hermann. Relações econômicas entre a Antuérpia e o Brasil no século XVII. Revista de História (São Paulo). v. 37, n. 76, p. 293-314, 1968.; Stols, 1973STOLS, Eddy. Os mercadores flamengos em Portugal e no Brasil antes das conquistas holandesas. Anais de História. v. 5, p. 9-54, 1973.; Boogart et al., 1992BOOGAART, Ernst van der; EMMER, Pieter C.; KLEIN, Peter; ZANDVLIET, Kees. La expansión holandesa en el Atlántico, 1580-1800. Madrid: Mapfre, 1992.; Ebert, 2008EBERT, Christopher. Between Empires: Brazilian Sugar in the Early Atlantic Economy, 1550-1630. Leiden: Brill, 2008.; Santos-Pérez, 2013SANTOS-PÉREZ, José Manuel. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil: medos globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne (ed.) Brazilië in Nederlandse Archiven/O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leiden: CNWS, 2013, p. 142-171.).

No último quartel do século XVI, grande parte dos navios de carga que faziam a carreira do Brasil era de origem flamenga (urcas), contratadas por mercadores e até mesmo pela Coroa lusa, em função da falta de embarcações disponíveis em Portugal. Esse cenário não se alteraria substancialmente no contexto da união dinástica, já que vários governadores-gerais nomeados ao Brasil embarcaram em urcas flamengas para tomar posse de seus postos, como Francisco de Souza e Diogo Botelho, este já no alvorecer do século XVII (Sluiter, 1967SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.).

Além dos comerciantes e seus representantes, a presença flamenga era percebida também através dos desejados artilheiros e bombardeiros - o que incluía os alemães -, que se espalhavam pelas várias fortificações da costa brasileira, especialmente incrementadas no contexto da união dinástica, já que as vulneráveis costas das partes do Brasil deveriam servir, também, de anteparo às eventuais ameaças estrangeiras ao prateado Peru espanhol (Sluiter, 1967SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.; Ruiz, 2002RUIZ, Rafael . The Spanish-Dutch War and the Policy of the Spanish Crown Toward the Town of São Paulo. Itinerario (Leiden). v. 26, n. 1, p.107-125, 2002.). Na capitania de São Vicente, do mesmo modo que o afamado alemão Hans Staden ainda nos anos 1550, Jacques Félix, chamado de “o Flamengo”, com uma história menos espetaculosa, assentou praça no forte de Bertioga, e terminou proprietário de casas e escravizados na vila de Santos. Mas também é possível encontrar flamengos nas mais diversas atividades pela colônia, como plantadores, oficiais mecânicos, mineradores, ou aventureiros em busca de alguma oportunidade (Sluiter, 1967SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.).

Essa realidade, anterior ao período da união dinástica, sofreria alguns importantes solavancos depois que os domínios portugueses passaram à alçada dos Habsburgos. Desde os anos 1560 os Países Baixos estavam em revolta contra a Espanha de Felipe II, que recebera a região como legado de seu pai, de origem flamenga, o imperador Carlos V. A revolta, que envolvia tanto insatisfações da nobreza local, quanto inseguranças de uma realidade calvinista em meio a uma monarquia que se afirmava unitariamente católica, proporcionou décadas de conflito e cenas de guerra e motins verdadeiramente violentos. A revolta independentista atingiu os Países Baixos do Sul, que incluíam Flandres; assim como os do Norte, de holandeses e zelandeses. Em 1585, os Países Baixos do Sul - flamengos -, voltariam às mãos espanholas, mas o período de conflito gerara uma diáspora entre os habitantes da região (Israel, 1989ISRAEL, Jonathan I. Dutch Primacy in World Trade, 1585-1740. Oxford: Clarendon, 1989.). Antuérpia, assediada e saqueada pelas tropas espanholas, perderia gradativamente o esplendor que a tornara um dos centros da economia mundial, mas mesmo sobrepujada por Amsterdã e Hamburgo ainda guardaria relativa importância pelas décadas seguintes (Sluiter, 1967SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.; Kellenbez, 1968KELLENBEZ, Hermann. Relações econômicas entre a Antuérpia e o Brasil no século XVII. Revista de História (São Paulo). v. 37, n. 76, p. 293-314, 1968.; Stols, 1973STOLS, Eddy. Os mercadores flamengos em Portugal e no Brasil antes das conquistas holandesas. Anais de História. v. 5, p. 9-54, 1973.). De todo modo, a identidade flamenga no seio do império espanhol Habsbugo, sempre considerada estrangeira, assim como a portuguesa, seria atravessada cada vez mais pelos atributos da heresia e rebeldia, mobilizando medidas legais e perseguições sazonais.

Em relação ao comércio com Portugal e Brasil, Felipe II inicialmente não o proibiria, mas as tensões crescentes com os “insubmissos” holandeses repercutiriam, inevitavelmente, na política global diante dos neerlandeses, o que incluía os flamengos. Felipe tentara, de modo infrutífero, colocar limites na hegemonia comercial neerlandesa em Portugal, e para tanto mandou apresar navios em 1585 e 1595, sem resultados concretos. Já seu herdeiro, Felipe III, por outro lado, iniciou o reinado ordenando novo apresamento geral, o que geraria um revide de uma armada holandesa que sitiou La Coruña, assediou as Canárias, e depois de uma desastrosa tentativa de atacar o Cabo Verde, uma parte chegou ao Recôncavo Baiano em 1599, onde causou alguns estragos. A criação da Companhia das Índias Orientais, em 1602, em Amsterdã, deixaria claras as grandiosas intenções dos “rebeldes”. Novas tentativas de cerceamento do comércio ocorreram em 1603; em 1604 uma armada holandesa sitiou a Bahia e, em 1605, o rei espanhol proibiu o comércio e a presença de estrangeiros no Brasil, dando-lhes um ano de prazo para que voltassem à Europa (Santos-Pérez, 2013SANTOS-PÉREZ, José Manuel. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil: medos globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne (ed.) Brazilië in Nederlandse Archiven/O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leiden: CNWS, 2013, p. 142-171.; Santos-Pérez, Souza, 2006SLUITER, Engel. Os holandeses no Brasil antes de 1621. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (Recife). v. 46, p. 187-207, 1967.).

A “Trégua dos Doze Anos”, firmada em 1609, praticamente deixaria franco o comércio com o Brasil, que se manteve com certa regularidade até 1621, quando encerrou-se o pacto. A criação da Companhia das Índias Ocidentais, ainda em 1621, acendeu novamente o alarma das claras intenções neerlandesas de sacramentar sua hegemonia crescente no Atlântico. Os ataques sucessivos às frotas espanholas, e o assédio à costa das partes do Brasil, inclusive com a tomada de Salvador em 1624, são episódios desse processo. É, portanto, neste estado geral que nossos personagens se veem involucrados: entre uma presença costumeira e permissiva, e uma estrangeiridade suspeita e rebelde.

O estante

Em outubro de 1626, Manoel Vandale (Vandala, van Dale), padecendo de uma “enfermidade que o senhor foi servido” dar-lhe, providenciou seu testamento na vila de São Paulo. Depois das missas, velas e esmolas, encomendou seu corpo à tumba da Santa Misericórdia, sob os cuidados dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo. Na sequência do ritual, como era comum, elencou suas dívidas, a imensa maioria a receber, as quais deixou à mulher, Magdalena Holsquor, “testamenteira e cabeça de casal”, ademais considerada “mulher nobre e das qualidades que SM manda”. O casal tinha três filhos, Maria de 12 anos, João de sete, e Francisco de cinco. Magdalena, contudo, não cuidaria sozinha do patrimônio, sendo escudada na vila por Antonio Pedroso de Alvarenga, nomeado curador dos órfãos; e Francisco Jorge, que se tornou procurador da viúva. Dentre as dívidas graúdas, algumas estavam na Bahia, como as de Balthazar de Aragão, de 2.000 cruzados, que deixava sob a responsabilidade da mulher e de Balthazar Ferreira; e outras em Portugal, sob os cuidados de Jeronymo Glocens. Estas dívidas ficariam fora do inventário dos bens do defunto, não sendo ali lançadas, já que os oficiais da vila não alcançavam aquela jurisdição e as consideraram meio “embaraçadas”.3 3 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos. v. VII. São Paulo: Departamento do Arquivo do Estado de São Paulo, 1927; p. 41-57.

Na vila paulista, Vandale possuía um sítio sobre o qual ainda restava um débito de 13.000 réis. Ali, em meio a plantações de algodão, feijão, bananeiras e árvores de espinho, destacava-se uma casa de taipa de pilão, de dois lanços, com telhas e assobradada, com varandas e corredor. Entre seus bens pessoais, uma quantidade razoável de tecidos e roupas de boa condição, como toalhas de linho feitas em Portugal, tapetes, toalhas de mão de Flandres, lençóis de olanda, pavilhão de panos da Índia, colchas, almofadas, gibões, camisas e ligas de tafetá; ademais de couros para cadeiras de estado e sapatos feitos de “couro da terra”. Magdalena declarou ainda um vestido de picotilho, com saia e saio e suas guarnições, feito de veludo, bocaxim e tafetá que, sozinho, valia 8.000 réis; e uma mantilha que havia deixado no Rio de Janeiro.4 4 AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos.

Os bens móveis da casa denotavam algum refinamento, com suas caixas de cedro, baús, escritório, frasqueiras e um colchão forrado com pano de Flandres, item raro naquelas paragens de sertanistas. Alguma louça e objetos de cozinha, como tamboladeiras, colheres, garfos, saleiro de prata, almofariz e um espeto com suas grelhas completam um cenário no qual um relativo conforto urbano se misturava à rusticidade do ambiente rural. Uma “moleca do gentio de Angola”, chamada Izabel, e avaliada em 16.000 réis; e as “peças” do gentio brasílico, adjetivadas eufemisticamente de “forras”, também aparecem. Os indígenas eram arrolados, mas não se colocava seu valor: ali nomeia-se um casal, Apolônia e Pantaleão, com a filha Camilla, que se encontrava na casa de outro morador; e dois jovens, Antão e Eugênia.5 5 AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos.

As dívidas que se deviam ao defunto somavam mais de 160.000 réis, e contava com dívidas em feijões postos em Santos, no litoral; outra parcialmente paga em milho; caixas de marmeladas, e uma de “recâmbios de uma letra” que Vandale havia passado a Pedro Taques, morador da vila, que ficara de cobrar junto a Jorge Neto Falcão em Pernambuco. Taques tinha sozinho um débito de 33.920 réis.

Ao final, o inventário somou mais de 500.000 réis só na vila planaltina, portanto, sem contar os bens e dívidas da Bahia e Portugal. Um polpudo inventário naquela realidade de alguma precariedade econômica. Uma pendenga com o ouvidor-geral Luiz Nogueira de Brito, estacionado no Rio de Janeiro, causou algum transtorno, pois se quis emprestar o dinheiro dos órfãos com juros, ao que a viúva se posicionou contrariamente, alegando que “não se usou nunca nesta vila dar-se dinheiro a ganhos de órfãos”.6 6 AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos. Em meados de 1629, portanto pouco mais de dois anos depois, Madalena voltou à Bahia e desde ali providenciou uma carta precatória do juiz de órfãos solicitando a remessa do montante da fazenda que ficara na vila vicentina.

A saga de Vandale encontraria em São Paulo apenas o seu desfecho, pois naquela localidade ele havia se instalado pouco antes de seu falecimento, talvez fugindo da situação na Bahia restaurada, já que existiam suspeitas de cumplicidade sua com os invasores holandeses da sede do Governo-geral, em 1624 (França, 1970FRANÇA, Eduardo D´Oliveira. Um problema: a traição dos cristãos-novos em 1624. Revista de História (São Paulo). v. 41, p. 21-71, 1970.). E não seria a sua primeira fuga ou deslocamento furtivo.

Vandale era nascido em Amberes (Antuérpia), Flandres, provavelmente na década de 1570, mais ou menos quando as revoltas de cunho protestante e autonomista sacudiram os Países Baixos contra o império espanhol. Ao longo de boa parte do século XVI, a cidade fora um dos mais importantes centros comerciais da Europa (Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: o tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.). Porto de estrangeiros e de negócios com América, Europa, África e Ásia. Os Vandale eram uma importante família de comerciantes que, além de manter negócios com açúcar na Antuérpia, havia também se estabelecido nas Canárias, ainda no século XVI (Brito, 2012BRITO, Ana Viña. Los flamencos en Canarias en el siglo XVI. ¿Una comunidad extranjera? Especificidades en la Isla de la Palma. Revista de Historia Canaria. n. 194, p.161-191, 2012.).

Não se sabe exatamente quando Manoel chegou à Bahia, mas teria ali já contraído matrimônio em meados da década de 1590. A esposa era Magdalena Holsquor (Hulscher), irmã de Evert Hulscher, conhecido pelo nome aportuguesado de Duarte Osquer, um dos mais importantes comerciantes de açúcar na Bahia, dono de navios e de um engenho em Itaparica em fins do século XVI, este, aliás, destruído nos ataques holandeses de 1604. Duarte era casado com portuguesa, atrelado às redes de governança na Bahia e “tão adaptado à sociedade colonial, que um dos filhos, Antônio da Trindade, entrou para a Ordem de São Bento, na Bahia, alcançando cargos muito elevados” (Xavier, 2018XAVIER, Lucia Furquim Werneck. Sociabilidade no Brasil neerlandês (1630-1654). Tese (Doutorado em História), Universidade de Leiden. Leiden, 2018., p. 52).

Os Hulscher formavam uma rede comercial, familiar, amplíssima, com integrantes em Hamburgo, Amberes, Vigo, Canárias e Lisboa (Boogaart et al., 1992BOOGAART, Ernst van der; EMMER, Pieter C.; KLEIN, Peter; ZANDVLIET, Kees. La expansión holandesa en el Atlántico, 1580-1800. Madrid: Mapfre, 1992.). Ademais, Evert mantinha negócios com Buenos Aires e contatos com Diego López de Lisboa, mercador cristão novo de grosso trato, que chegara ao porto platino, via Brasil, em 1594, estabelecendo-se em Córdoba de Tucumã no ano seguinte (Kellenbez, 1968KELLENBEZ, Hermann. Relações econômicas entre a Antuérpia e o Brasil no século XVII. Revista de História (São Paulo). v. 37, n. 76, p. 293-314, 1968.). Evidentemente, ademais das conexões da própria família, Manoel Vandale se beneficiaria das redes dos Hulscher. Assentado na Bahia, os seus negócios iriam além do açúcar, como denotam as atividades de seu caixeiro, Henrique Pamelaert, mercador de Geertsberghe, que fazia negócio com o pau-brasil desde o Rio de Janeiro (Stols, Fonseca, Manhaeghe, 2014STOLS, Eddy; FONSECA, Jorge; MANHAEGHE, Stijn. Lisboa em 1514: o relato de Jan Taccoen van Zillebeke. Ribeirão (Braga): Edições Húmus; Centro de História da Cultura/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, 2014.).

A situação relativamente estável de Vandale mudaria em 1606, quando venceu o prazo do alvará expedido por Felipe III, em março de 1605, que ordenava a expulsão de qualquer estrangeiro que vivesse no Brasil. Obrigado a voltar à Europa, Vandale foi a Madri e ali, em 1607, fez uma petição ao Conselho de Portugal, solicitando o direito de retornar ao Brasil, sem “embargo da lei”, para encontrar a esposa que continuava a viver na Bahia.7 7 Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciales, Legajo 1476, fls. 406-408. O Conselho reenviou a petição ao vice-rei e ao Conselho da Índia de Portugal. Nessa ocasião, o pedido indicava que Vandale se dirigia a Lisboa e desde ali pretendia ir ao Brasil. A informação adicional era que intencionava acompanhar o recém-nomeado governador da Repartição Sul, D. Francisco de Souza, como “morador y poblador de las minas del Brasil y lengua de los mineros estrangeros”.8 8 Biblioteca D´Ajuda (BA), 51-VII-15, fl. 157. De fato, Francisco de Souza, depois de ter sido governador-geral do Brasil entre 1591 e 1602, período no qual permaneceu um bom tempo na capitania de São Vicente averiguando notícias de riquezas minerais, voltara à corte e ali conseguiu a repartição do Brasil em duas partes, sendo uma delas a do Sul, que incluía as capitanias de São Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo, e das quais seria o governador e superintendente das minas. Souza voltava ao Brasil com diversas mercês e, sobretudo, com o direito de distribuir mercês. Era acompanhado por soldados, mineiros e engenheiros (Vilardaga, 2010VILARDAGA, José Carlos. “Manhas” e redes: Francisco de Souza e a governança em São Paulo de Piratininga em tempos da União Ibérica. Anais de História de Além-mar (Lisboa). v. XI, p. 103-143, 2010.). Dentre eles, Cornélio de Arzam e o mineiro alemão Geraldo Bethinque. É em meio a este grupo, que embarcaria ao Brasil em fins de 1608, que Vandale intencionava se incluir.

O Conselho da Índia analisou o caso em julho de 1607, mas decidiu por indeferir o pedido pois os conselheiros haviam recebido um papel anônimo, daqueles “providenciais e enviados por Deus”, no qual se revelavam o que seriam as “más intenções” de Vandale. Na denúncia, acusava-se o flamengo de planejar, ao chegar no Brasil, e em conluio com um seu cunhado, um tal “Fulano Artosco”, “mercador grande”, entrar pelo interior e passar de engenho em engenho promovendo levantes de escravos contra seus senhores e demais brancos. A intenção, denunciava-se, era que Vandale e o cunhado pretendiam ganhar aquele “estado”. Impressionados, os conselheiros recomendaram que ele fosse “apertado” para confessar.9 9 AGS, SP, Legajo 1476; BA 51-VII-15, fls. 182-183. As denúncias ajustavam-se bem ao clima de paranoia que se instalara no seio da monarquia, no qual conspirações tramadas por flamengos, portugueses e judeus davam o tom alarmista nos Conselhos.

Assim mesmo, Manoel Vandale não esmoreceu. Conforme carta do governador-geral do Brasil, Diogo de Meneses, ao rei, de abril de 1609, ficamos sabendo que ele remetera Vandale preso à Lisboa ainda em 1608, seguindo a provisão real, depois de ter capturado naus flamengas perto de Itamaracá. Na mesma carta, ainda faz referência a um tal “Cornelles”, e a um outro que havia fugido (Cortesão, 1956CORTESÃO, Jaime (comp.). Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1494-1600). v. 1. Lisboa: Publicações do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, 1956., p. 3-12). Segundo Taunay, baseado em Varnhagen, o fugitivo era Francisco Duchs, que anos depois se tornaria um dos capitães da invasão holandesa da Bahia, em 1624 (Taunay, 1929TAUNAY, Afonso d’E. História seissentista da villa de São Paulo. v. IV. São Paulo: H. L. Canton, 1929.).

Já de volta a Lisboa, Manoel Vandale faz uma consulta ao Conselho da Índia em julho de 1610, mas o conteúdo não foi registrado.10 10 AGS, SP, 1498. Segundo Paul Meurs (2006MEURS, Paul. Engenho São Jorge dos Erasmos, the remains of an early multinational. Vitruvius. Revista Arquitextos. v. 6, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq070/arq070_03.asp . Acesso em: 24 ago. 2021.
http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/...
) e Stols e Cordeiro (2014STOLS, Eddy; FONSECA, Jorge; MANHAEGHE, Stijn. Lisboa em 1514: o relato de Jan Taccoen van Zillebeke. Ribeirão (Braga): Edições Húmus; Centro de História da Cultura/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, 2014.), em 1612, Vandale reapareceu na vila de Santos, na capitania de São Vicente, como representante dos herdeiros da família Schetz para, em aliança com os padres jesuítas, tentar impedir a venda dos bens do Engenho dos Erasmos, que estavam sendo negociados pelos herdeiros do antigo capitão-mor Jerônimo Leitão, através do provedor dos ausentes. De fato, Jeronymo Glocens, citado no inventário de Vandale como responsável por suas dívidas em Portugal, fora representante da família Schtez em Lisboa no começo do século XVII, e deve ter intermediado a escolha de Vandale para representar a família na capitania (Stols, 1973STOLS, Eddy. Os mercadores flamengos em Portugal e no Brasil antes das conquistas holandesas. Anais de História. v. 5, p. 9-54, 1973.).

O Engenho do Governador, como foi inicialmente chamado, fora construído ainda na década de 1530 através de uma sociedade que reuniu o donatário Martim Afonso de Souza, seu irmão Pero Lopes, os portugueses Francisco Lobo e Vicente Rodrigues, e o flamengo Johan van Hiest (João Veniste), este último agente da já poderosa família Schetz. Esta família, uma das principais casas comerciais da Europa no século XVI, era de origem alemã, estava assentada em Amberes e era, naquela altura, liderada por Erasmo Schetz. Estava envolvida em negócios bancários - inclusive com Carlos I, de Espanha -, açúcar e minas de cobre e carvão, e possuía muita influência em Lisboa. Os Schetz estabeleceram negócios no Brasil inicialmente através da sociedade no Engenho, que foi, já na década de 1540, adquirido integralmente e novamente conhecido como Engenho dos Erasmos. Depois da morte de Erasmo Schetz, seu filho Gaspar assumiu o comando da família e manteve os negócios vicentinos. O engenho atingiu seu ápice em termos de produção em meados do século XVI. Desde 1593, num cenário de crise da produção local de açúcar, a família procurou vendê-lo, e para isso nomeou procuradores e representantes sucessivos. O escolhido para tal, em 1612, fora Manoel Vandale, que procurou se acertar com os padres da Companhia de Jesus. Na capitania, os Schetz possuíam nos jesuítas, estabelecidos também no litoral vicentino, importantes aliados desde meados do século XVI, inclusive José de Anchieta. Por outro lado, as autoridades locais, incluso o longevo capitão-mor Jerônimo Leitão e seus herdeiros, apropriavam-se gradativamente das propriedades fundiárias do engenho (Stols, Cordeiro, 2014STOLS, Eddy; FONSECA, Jorge; MANHAEGHE, Stijn. Lisboa em 1514: o relato de Jan Taccoen van Zillebeke. Ribeirão (Braga): Edições Húmus; Centro de História da Cultura/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, 2014.). Não se sabe o resultado dos pleitos, mas o engenho seria destruído pelo compatriota de Vandale, Joris von Spielbergen, em 1615, ao longo de sua viagem que assombrou a costa chilena, peruana e mexicana. Segundo Meurs, “não é conhecida a decisão final da justiça, mas ao que parece os Schetz abriram mão da propriedade” (2006, s.p.).

Quanto a Vandale, Kellenbenz (1968TAUNAY, Afonso d’E. História seissentista da villa de São Paulo. v. IV. São Paulo: H. L. Canton, 1929.) o localiza dois anos depois, em Antuérpia. Este historiador transcreve uma procuração de uma viúva, Anna van Pelquen, feita em cartório de Antuérpia, de novembro de 1614, na qual Vandale apareceu como testemunha. Neste documento, a viúva delegava a um tal Pedro Tacq (Taques), morador em São Paulo, na capitania de São Vicente, que cobrasse uma dívida de uma negra da Guiné e seus filhos, que seria de direito sua herança, de outro morador da capitania, o alemão Geraldo Bethinque (Kellenbenz, 1968KELLENBEZ, Hermann. Relações econômicas entre a Antuérpia e o Brasil no século XVII. Revista de História (São Paulo). v. 37, n. 76, p. 293-314, 1968., p. 297). Este Taques era o mesmo que ficara responsável por cobrar umas letras de câmbio em Pernambuco no inventário de Vandale. Pedro Taques descendia do tronco da família flamenga Tacq que, vindo de Brabante, Flandres, se estabelecera em Portugal no início do século XVI. Pedro veio ao Brasil acompanhando o governador-geral, Francisco de Souza, em 1591, e dele foi seu secretário de Estado. Taques acompanhou o governador na sua descida a São Paulo em 1598-1599 para averiguar as riquezas minerais e ali permaneceu, casando-se com uma integrante da elite local. Foi juiz de órfãos na vila, proprietário de fazenda, e faleceu em 1644 (Leme, 1905LEME, Luis Gonzaga da Silva. Genealogia paulistana. v. IV. São Paulo: Duprat, 1905. , p. 222-223).

O documento permite inferir que orbitava em torno do governador Francisco de Souza, uma série de personagens flamengos e alemães, com relações entre si, como Taques, Bethinque e Arzam, assim como o próprio Vandale, que vivera na Bahia durante o governo-geral de Souza. De todo modo, Vandale deve ter ficado com a procuração para trazer ao Brasil, objetivando ir à capitania de São Vicente. Em 1615, o mesmo Kellenbenz (1968KELLENBEZ, Hermann. Relações econômicas entre a Antuérpia e o Brasil no século XVII. Revista de História (São Paulo). v. 37, n. 76, p. 293-314, 1968.) indica a presença de Manoel em Lisboa. O certo é que ele estará na Bahia em 1624, quando da tomada holandesa da cidade de Salvador. As acusações de cumplicidade com os invasores devem ter lhe rendido alguns dissabores iniciais, obrigando-o a deslocar-se para São Paulo, vila acantonada para além da Serra do Mar, situada na capitania que ele já conhecia. Ademais, encontraria na vila alguns personagens e compatriotas com os quais seguramente travara contato, como Pedro Taques, Geraldo Bethinque e Cornélio de Arzam, este último bem estabelecido na vila. Em São Paulo, Vandale terminaria seus dias e seu périplo pelos espaços da Monarquia, nos quais circulou como estrangeiro, morador, estante e pleiteante à naturalidade.

O morador

Conhecemos pouco da trajetória de Cornélio de Arzam (Arzão) antes de seu estabelecimento na vila de São Paulo, nos primeiros anos do século XVII. Nascido em Bruges, outra importante cidade de Flandres, no último quartel do século XVI, Arzam surge na vila vicentina entre 1608 e 1609, na comitiva do governador da Repartição Sul, D. Francisco de Souza. Cornélio era um sujeito com diversos talentos, dentre eles a mineração, a siderurgia, o comércio, o plantio de trigo e a carpintaria, todas atividades nas quais ele estaria profundamente envolvido nos anos posteriores.

Pouco depois de chegar à vila, casou-se com Elvira Rodrigues, filha de Martim Rodrigues Tenório, um castelhano estabelecido em São Paulo desde fins do século XVI, dono de um polpudo inventário de bens, que incluía parte de uma fábrica de ferro no Ibirapuera, instalada em 1607; e um rebanho bovino considerável. Martim faleceu no sertão, envolvido numa entrada de apresamento, mais ou menos no mesmo ano que nosso flamengo se assentava na vila.11 11 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Martim Rodrigues”. Inventários e Testamentos. v. II. São Paulo: Typographia Piratininga, 1920, p. 3-76. Genro e sogro nunca se conheceram, mas a sogra, Suzana Rodrigues, passaria a viver com o casal, assim como um filho “bastardo” de Tenório, fruto de uma relação com uma indígena Temiminó, Pedro Rodrigues Tenório, ainda criança ao tempo do casamento. Coube a Cornélio ensinar o oficio de carpintaria a Pedro, tarefa inicialmente destinada ao cunhado, Clemente Álvares, este um já afamado minerador da vila planaltina.

Em agosto de 1610, a Câmara de São Paulo acertou com Cornélio o término das obras de construção da matriz da vila, iniciada na década de 1580, e que já se arrastava pelos anos. Naquela altura, somente as paredes de taipa estavam erguidas, faltando todo o acabamento e telhamento. O contrato estipulava pagamento de uma parte em ouro, oriundo da mineração local, e duas partes em algodão. Para ajudá-lo na tarefa, a Câmara reservava “quatro moços do gentio da terra”.12 12 Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1596-1622. v. II. São Paulo: Duprat & C., 1915; 24/08/1610. Não sabemos quanto foi efetivamente pago, mas em 1628, por ocasião de um arrolamento dos bens de Cornélio, os oficiais da Câmara de 1610, ou seus herdeiros, foram obrigados a pagar 8.000 réis cada, totalizando uma dívida de 40.000 réis das obras da Matriz.13 13 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos. v. XII. São Paulo: Typographia Piratininga, 1920; p. 25-127. Tanto neste arrolamento de 1628, quanto em seu inventário post mortem de 1638, aparecem martelos, serrotes, limas, enxós, garlopas, verrumas, cepilhos e escopros, além de tábuas e taipais. Ademais da carpintaria, Arzam também produzia marcenaria, como fica evidente pelas dívidas de mobiliário feito sob encomenda, como um escritório inacabado. Ao longo dos anos ele seria, ainda, reiteradamente reconduzido como “afilador das medidas e das varas e côvados” da vila.

Cornélio foi também um dos pioneiros da triticultura em São Paulo, estimulada diretamente pelo governador Francisco de Souza. Ela prosperaria ao longo das primeiras décadas do século XVII, servindo, inclusive, como fonte de abastecimento de outras capitanias. No ano de 1610, enquanto a Câmara da vila cogitava obrigar os moradores a “semear muito trigo”,14 14 Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1596-1622. v. II. São Paulo: Duprat & C., 1915; 10/04/1610. o padre Jacome Monteiro, de visita à região, ressaltava como ali dava “muito bom trigo quase sem nenhuma indústria”, mas sentia a falta de moinhos (Monteiro apud Leite, 2004LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. t. VIII. São Paulo: Loyola, 2004.). Uma década depois, já se falava de como “el trigo se da en todo el Estado, pero solo en los limites de San Pablo se aprobechan del, y aun de dos veces al año”.15 15 Biblioteca Nacional de España (BNE). Libro del sucessos del ano de 1624; MSS2355, f. 54.

A falta de moinhos sentida por Jácome seria suprida por homens como Arzam, dono de um, “moente e corrente”, inventariado em 1628, no valor de 10.000 réis; Manoel João Branco, mineiro também trazido por D. Francisco e dono de dois moinhos de água no Anhangabaú; e Pedro Taques. Como apontou John Monteiro, a triticultura fazia parte de um projeto de transformação da vila em “celeiro” das partes do Brasil, e na qual a região, com “fazendas de trigo, organizadas no modelo da hacienda hispano-americana, abasteceriam as minas e cidades” (1998, p. 102); denunciando, inclusive, as estreitas relações entre a produção agrícola do planalto e o apresamento indígena, mão de obra destinada a este empreendimento.

Aliás, Arzam, nesse quesito, também se relevaria possuidor de um amplo plantel. Há notícias de que se envolvera diretamente em entradas de apresamento pelo sertão, como ele mesmo declara em depoimento à Inquisição,16 16 Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl.315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII). e a presença de correntes com argolas em seu inventário assim o denuncia. E é quase certo que se envolvera em suas armações, portanto, beneficiando-se das partilhas no retorno das entradas. Em 1638, possuía uma centena de indígenas, entre homens, mulheres e crianças de diversas idades, chamados de “gente forra”, eufemismo casuístico que escondia a escravidão dos nativos em São Paulo. Os indígenas aparecem com nomes cristãos, como Daniel, Luzia, Úrsula, Mathias, os sugestivos Genebra e Martinho, e outros originários, como Ubaia, Abaguere, Irija, Aramary e Culumytey, este último descrito como “pagão”.17 17 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos.

Não seria somente no plantio e moagem de trigo com mão de obra apresada que nosso flamengo sustentaria o projeto de D. Francisco. O seu engajamento também se faria sentir na produção de ferro. O grande atrativo para a vinda do governador fora as notícias minerais, até hoje suspeitas em sua veracidade e quantidades (Vilardaga, 2014VILARDAGA, José Carlos. São Paulo no império dos Felipes: conexões na América meridional (1580-1640). São Paulo: Intermeios, 2014.). De todo modo, algum ouro foi efetivamente retirado das lavras locais e mobilizou parcelas da economia interna. Dentre os envolvidos nesse empreendimento mineral, o futuro cunhado de Arzam, Clemente Álvares, que participara das primeiras descobertas com Afonso Sardinha, o Moço, em fins do século XVI - as que chamariam a atenção do governador -, e registraria descobertas auríferas na Câmara, em 1606.18 18 Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1596-1622. v. II. São Paulo: Duprat & C., 1915; 16/12/1606. Mas além do ouro, algum minério de ferro também foi descoberto e efetivamente explorado. As minas da região de Sorocaba (Viraçoiaba) seriam reveladas também por Clemente Álvares e Sardinha. Este ferro, de magnetita, não era de boa qualidade, mas mesmo assim inspirou a criação de duas fábricas. Uma na própria região de Sorocaba, construída em fins do século XVI por Sardinha, e doada ao governador; e outra erguida nas bandas do Virapoeira, às margens do rio Jeribatiba (Holanda, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.; Zequini, 2006ZEQUINI, Anicleide. Arqueologia de uma fábrica de ferro: morro de Araçoiaba, séculos XVI-XVIII. Tese (Doutorado em Arqueologia), Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006.).

Esta fábrica, chamada de Engenho de Nossa Senhora de Assunção, foi construída numa sociedade entre o sogro de Arzam, Martim Rodrigues Tenório; o seu genro, Clemente Alvares; o português Francisco Lopes Pinto e o cunhado deste, Diogo de Quadros, engenheiro de minas e companheiro de Francisco de Souza. O engenho “começou a moler” em 1607, e com a morte de Tenório, Arzam herdou parte dele. Aos poucos a sociedade incorporou D. Antonio de Souza, filho do governador, que acabou comprando a parte de Lopes Pinto e Quadros e a arrendando aos mesmos.19 19 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Francisco Lopes Pinto”. Inventários e Testamentos. v. VII. São Paulo: Typographia Piratininga, 1920, p. 405-422. Ainda em 1626, Cornélio esteve envolvido com o engenho, já que as atas revelam as queixas de moradores quanto ao fornecimento de ferro, insuficiente, uma vez que Arzam e Luís Fernandes Folgado, responsáveis pela fábrica, ao invés de fornecer o metal bruto aos moradores, consumiam todo o ferro na produção de ferramentas locais.20 20 Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1623-1628. v. III. São Paulo: Duprat & C., 1915; 21/03/1626. Em 1628, tudo indica, o engenho havia encerrado suas atividades.

Este ano seria decisivo na vida de Cornélio. Ele já havia sido denunciado à Inquisição em 1615 pelo cunhado, Clemente Álvares, provavelmente motivado por desentendimentos a respeito da herança do sogro. Em 1627, o visitador Luís Pires da Veiga chegou ao Rio de Janeiro, depois de ter passado por Angola, para iniciar seu périplo pelas capitanias do Sul (Pereira, 2011PEREIRA, Ana Margarida Santos. Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628. Politeia: História e Sociedade (Vitória da Conquista). v. 11, n. 1, p. 35-60, 2011.). Ali, acolhera uma denúncia a respeito de Cornélio - curiosamente o construtor da matriz de São Paulo -, na qual se alegava que o denunciado costumava dizer que:

confessar se ao sacerdote era confessar se a hum pao, e que em Olanda havia melhores letrados que em Espanha, e que o Diabo levara na sua terra pellos ares hua igreja de S. João que era de catholicos, que de ordinario não hia a missa, e trabalhava, e fazia trabalhar moços seos nos Domingos e dias santos de guarda (Pereira, 2011PEREIRA, Ana Margarida Santos. Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628. Politeia: História e Sociedade (Vitória da Conquista). v. 11, n. 1, p. 35-60, 2011., p. 56).

As acusações foram reiteradas ao visitador quando, em março de 1628, ele já se encontrava em São Paulo, pronto para ouvir as denúncias e confissões. Assim como outros, Cornélio apareceu diante do visitador, mas tergiversou sobre suas eventuais culpas aos olhos da Inquisição. Veiga sugeriu que ele fosse a Santos, dali poucos dias, para confessar-se em tempo de Graça, que ele editaria naquela vila, e que previa maior misericórdia aos confessantes. Arzam assim o fez, mas novamente teria se recusado a admitir culpas, alegando que sempre fora católico. Veiga teria lhe dito que “aquillo era desculpar-se, e não se confessar”, ao que Cornélio silenciou. O visitador, irritado, o mandou prender no dia seguinte e confiscar seus bens. Dois ou três dias depois, Arzam pediu “mesa” para comparecer diante do visitador e finalmente confessou que era calvinista, religião de seus pais, mas que diante dos maus acontecimentos que o afligiam, tinha certeza de que assim eram por não ser católico, e que pretendia se converter.21 21 Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl. 315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII).

O fato é que à meia noite do dia 1 de abril de 1628, o meirinho da visitação, junto com o juiz ordinário e o tabelião da vila de São Paulo, chegaram em uma das três casas de morada de Cornélio, a que ficava no “termo de Piratiabae”, e bateram na porta em nome da Santa Inquisição. Esta foi aberta pela esposa, Elvira Rodrigues e pelo cunhado, Pedro Rodrigues Tenório. Depois de solicitar a entrega das chaves da casa e de todas as caixas, e de mandar declarar toda a fazenda do denunciado, iniciou-se um minucioso inventário dos bens de Cornélio. A riqueza do denunciado vai se revelando na listagem de devedores e de bens, que incluía grãos de ouro, objetos em ouro e prata, algumas patacas em raro dinheiro vivo dentro de um “envoltório cozido”, dezenas de cabeças de gado; roçados de trigo, mandioca, milho e algodão; muito tecido em vara e côvado, o que sugere atividade mercantil; casas e diversas escrituras de terras; moinho de trigo, parte do engenho de ferro; dentre muitas miudezas, como um óculos de Flandres que ninguém soube avaliar. Arzam ainda possuía uma mulher e um “moleque” da Guiné escravizados; e 52 indígenas nomeados, dentre homens, mulheres e crianças. As dívidas incluíam negócios no litoral, desde Cananéia ao sul, passando por São Sebastião até o Rio de Janeiro, mais ao norte; e uma sociedade num patacho. O inventário denotava um sujeito articuladíssimo e envolvido em inúmeras atividades, agrícolas, siderúrgicas, comerciais e artesanais. Suas escrituras incluíam terras nas bandas de Mogi, Ibirapuera, Cubatão e Santos, revelando um largo interesse pelos caminhos que conectavam o litoral ao planalto.22 22 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos. Um sujeito múltiplo, rico e “estrangeiro”, condição à qual ele mesmo chegou a responsabilizar pelas denúncias e infortúnios.

O ouro, prata e dinheiro vivo foram imediatamente remetidos ao inquisidor, e os bens passaram à leilão em praça pública, com muitos compradores. Dentre estes, destaca-se o frei Diogo do Espirito Santo, vigário de Nossa Senhora do Carmo, que adquiriu ambos os negros escravizados, um espelho, miudezas, porcos e quatro peroleiras de vinho.23 23 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos. Sugestivo é saber que frei Diogo, quando fora superior do Convento do Carmo no Rio de Janeiro, no ano de 1623, escrevera uma carta ao Inquisidor-geral em Lisboa denunciando a presença de muitos cristãos novos na cidade, e solicitando providências inquisitoriais (Pereira, 2011PEREIRA, Ana Margarida Santos. Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Capitanias do Sul, 1627-1628. Politeia: História e Sociedade (Vitória da Conquista). v. 11, n. 1, p. 35-60, 2011.). O negócio da inquisição envolvia vários interesses.

Cornélio acabou sendo levado à Pernambuco - depois de uma passagem pelo Espirito Santo, acompanhando o visitador -, e ali, após supostamente ter demonstrado muito arrependimento, foi condenado a usar o hábito penitencial por um curto período de tempo, e a receber quatro meses de instrução no Convento do Carmo.24 24 Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl. 315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII). Findo esse intervalo, deve ter retornado a São Paulo, onde buscou restaurar parte de seu patrimônio, o que ocorreu parcialmente, a se levar em conta seu inventário post mortem feito dez anos depois. Totalizando mais de 500$000, cifras muito próximas do inventário de Vandale, os bens agora incluíam casas e terras, inclusive uma novamente adquirida em Santos; criação, trigo, suas ferramentas de carpintaria e de siderurgia, e um acréscimo significativo - o dobro - no número de “gente forra”. Recuperara também a negra escravizada, Suzana, e seu filho, Thomé, “mulato”; e adquirira pouco antes um “moleque” em Santos.25 25 Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos.

Ainda por ocasião do inventário inquisitorial de 1628, a lista de devedores incluía Sebastião Gomes Alves e Miguel Gonçalves Ferreira, ambos anotados como “idos às partes do Peru”. A referência não representava, de fato, uma excentricidade, já que a vila de São Paulo, e seu caminho interior rumo ao Paraguai, comumente trilhado por sertanistas, tornara-se uma alternativa para peruleiros e aventureiros em demanda das partes espanholas da América em tempos de união dinástica. Dentre estes, Pedro de Sauce.

O proibido

Pelas próprias circunstâncias fugidias da vida de Pedro, só é possível acompanhar fragmentos de sua trajetória. Até a grafia correta de seu nome nos escapa, visto que os dois documentos que o referem, discordam (Sauce e Sauex). Num deles, um pedido de perdão real feito em Assunção, sabemos que ele era natural de Cambrai, na ocasião pertencente aos “estados de Flandres”. De fato, a cidade, pertencente aos domínios espanhóis em 1543, passou à França em 1581, retornou à Espanha em 1595, e seria definitivamente incorporada à França em 1667. Talvez, numa dessas reviravoltas, nosso personagem, conforme ele alega, saiu de Cambrai com 10 anos e foi para Castela, onde teria sido criado. Dali passou ao Brasil, para local não definido, e rumou a São Paulo, de onde tomou o caminho, proibido, que o levou ao Paraguai passando pelo Guairá, sem licença.26 26 Archivo Nacional de Assunção (ANA), Nueva Encadernacion (SNE), 360.

O tal perdão fora divulgado no dia 9 de setembro de 1628, na Plaza Mayor de Assunção, e veio em forma de cédula real, na qual se prometia perdoar aos “delinquentes” condenados ou processados por “crimes ordinários”.27 27 Archivo Nacional de Assunção (ANA), Nueva Encadernacion (SNE), 360. A medida era em homenagem ao nascimento da infanta Maria Isabel, filha de Felipe IV, que nascera no reino em 1627, mas que falecera apenas um dia depois. A cédula abriu uma grande oportunidade, e muitos tentaram aproveitá-la, especialmente os clandestinos e proibidos, a esmagadora maioria de portugueses, que viviam no Paraguai sem licença da Casa de Contratação e que haviam entrado ilegalmente na América.

Dos 73 pedidos de perdão localizados, 34 se referiam a entradas pela via de São Paulo e 26 pelo porto de Buenos Aires. Dentre os que entraram por São Paulo, estava Pedro, que alegava saber ter incorrido em pena, mas que dizia não saber disso por ocasião de sua entrada. Este era um argumento comum, o do desconhecimento pregresso das proibições, e foi utilizado por quase todos os solicitantes. A ele se somava a retórica alegação de que era “vassalo de sua majestade, dom Felipe”, o que os portugueses também comumente faziam lembrar naquele contexto como forma de embaralhar a situação. Buscava-se uma maneira de amenizar as culpas, já que desde fins do século XVI as proibições sobre a utilização dos caminhos que levavam ao interior da América, tanto pela via platina, quanto pela vicentina, eram sistematicamente renovadas pela Coroa. Tais medidas despertavam eventuais furores persecutórios aos “proibidos” por parte das autoridades locais - de Buenos Aires ou Assunção -, mas muitos deles seletivos, pois um grande número desses personagens já havia assentado vida nas cidades das governações, com família, propriedades e alguns com cargos e ofícios. Era esse também o caso de Pedro, que dizia já ser casado em Assunção e possuir filhos.

O caminho que ligava São Paulo ao Paraguai gerava fortes temores e suspeitas naquele contexto (Ruiz, 2002RUIZ, Rafael . The Spanish-Dutch War and the Policy of the Spanish Crown Toward the Town of São Paulo. Itinerario (Leiden). v. 26, n. 1, p.107-125, 2002.; Santos-Perez, 2013; Vilardaga, 2014VILARDAGA, José Carlos. São Paulo no império dos Felipes: conexões na América meridional (1580-1640). São Paulo: Intermeios, 2014.). Através dele os “portugueses de São Paulo” assediavam as missões jesuíticas e aldeias indígenas da região guairenha, compreendida como parte da governação espanhola. Tais atos dispararam uma forte reação missivista da Companhia de Jesus, que passou a denunciar sistematicamente os crimes cometidos pelos sertanistas, apresentados, de modo geral, como hereges e mancomunados com os rebeldes calvinistas de Holanda. O padre Francisco Trujillo acreditava que os hereges holandeses se infiltravam nas expedições dos moradores de São Paulo com o objetivo de conquistar o Paraguai como trampolim para Potosí. É ainda Trujillo quem narra o que seria um diálogo mantido com Antonio Pedroso e com o castelhano Francisco Rendon, ambos moradores de São Paulo, no qual estes diziam que “hacian esta guerra por mandado que les tenia dado en el Brasil, y que su intento de ellos es traer de Holanda el hijo de D. Antonio al Estado del Brasil y levantarle por Rey”,28 28 Carta do Padre Francisco Vazquez Trujillo, de 25 fev. 1631. In: Pastells (1912, p. 542-543). Trujillo reunia no mesmo “pesadelo”, os “diabólicos” moradores de São Paulo, os herdeiros antonistas e os calvinistas de Holanda!

O padre Francisco Crespo, em 1631, concordava com a ideia de que os inimigos “hereges” aproveitariam a “comunicação aberta” pelos portugueses para adentrarem no Peru, e para tanto se misturavam aos moradores de São Paulo, “por la maior parte foragidos y castigados del Brasil y otras partes, cristianos nuevos”.29 29 Archivo General de Índias, Charcas 2. “Memorial de Francisco Crespo”, 22/08/1631. O padre reforçava uma ideia que deitaria frutos no tempo, pela qual São Paulo reuniria todo tipo de herege, marginal e criminoso, que ali encontrariam abrigo. Mas não só do clero jesuíta partiam estas denúncias. O administrador eclesiástico do Rio de Janeiro, Lourenço de Mendonça, dizia mesmo que em relação a estes sertanistas, o “pior, e mais danoso, que com eles vão muitos estrangeiros das nações do Norte nossos inimigos...”30 30 Biblioteca Nacional de España (BNE), Manuscritos 2339, Microfilme 5968.

Esta espécie de conspiração entre rebeldes portugueses, cristãos novos e calvinistas holandeses para afrontar a Espanha e assediar seus domínios americanos, respondia a fatos concretos, como bem demonstravam os ataques holandeses às possessões asiáticas, africanas e ao Brasil, mas, sobretudo, alimentava uma retórica alarmista e conspiratória. De todo modo, encontrava, claramente, eco em Madri.

Neste sentido, a situação de Pedro, flamengo de origem, clandestino que entrou pelo caminho de São Paulo, era das mais suspeitosas. Seja como for, no universo das relações cotidianas daquelas bandas, estes temores talvez não tenham pesado tanto. Alguns anos depois, em 1634, encontramos nosso personagem como encarregado de uma balsa de erva-mate que descia desde Maracayú, nas proximidades do Guairá, e porto de embarque da erva colhida nos montes próximos, que tinham o mesmo nome.31 31 Archivo General de Índias (AGI), Escribania 892A, f. 775, 22/03/1634. A erva- mate era, de modo geral, colhida naturalmente por indígenas explorados em sistema de mita, e eles próprios beneficiavam o produto, o que significava secar e moer e carregar nos cestos até o porto, onde virava moeda de troca com mercadorias variadas, especialmente tecidos e roupas, muitas delas vindas desde os caminhos de São Paulo. Parte da erva descia o rio em balsas até Assunção e dali se espraiava por diversos lugares, engatando a economia regional ao chamado espaço peruano, uma teia de mercados regionais que se articulavam até Potosí, o eixo econômico do Vice-reinado do Peru (Garavaglia, 2008GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial: tres siglos de historia de la yerba mate. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2008.).

O grau de exploração do trabalho indígena era elevado, e tentativas de regulá-lo foram constantes, de modo geral infrutíferas. Os padres jesuítas, bem estabelecidos na região com mais de uma dezena de missões, também atuavam no sentido de denunciar os abusos. Dessa forma, o governador do Paraguai, Martim de Ledesma Valderrama, buscou regular e controlar o trânsito das balsas de erva, e o uso dos indígenas encomendados no transporte e no trabalho de remadores das embarcações. Buscou fazer recenseamentos e fiscalização das balsas, averiguando os indígenas embarcados, seus pagamentos e autorizações. É assim que Pedro reaparece: como encarregado de uma balsa que pertencia ao bispo do Paraguai, Dom Cristóvão de Aresti, em negócios pouco clericais. Naquela viagem específica, se transportava erva livre de estanco; e da encomienda de um tal Francisco Flores, iam sete índios do pueblo de Maracayú que deveriam ser pagos em quatro varas de tecido cada um, “conforme las reales ordenanzas”.32 32 Archivo General de Índias (AGI), Escribania 892A, f. 775, 22/03/1634. .

Pedro de Sauce é um daqueles personagens que chegaram à América em demanda do sonho prateado de Potosí, a antonomásia da riqueza nas imaginações europeias, mas que se acomodaram pelos caminhos interiores, ajustando-se nos mercados regionais e participando dos negócios e redes locais. Engajado no transporte da principal mercadoria do Paraguai, associado ao bispo, Pedro integrou-se ao cenário americano tentando se diluir na alegada criação castelhana, na clandestinidade supostamente inocente e na vassalagem casuística.

Considerações finais

Para além de compreendermos uma América portuguesa talvez um pouco menos portuguesa, o que é imprescindível para evitar projeções estritamente nacionalistas, vale reforçar que a presença de outras identidades nesta mesma América tampouco pode ser considerada um fenômeno aluvial ou episódico. O caso dos flamengos em São Paulo, um espaço relativamente marginal na lógica imperial da Monarquia Hispânica, e sua inserção nos sistemas econômicos regionais, em atividades essenciais como o açúcar, o trigo, a extração e beneficiamento mineral, o trato comercial e o apresamento indígena - além da erva-mate paraguaia -, denota uma presença que é parte estruturante dos circuitos mercantis em diversas escalas, das locais às imperiais.

Os percursos e mobilidades dos personagens que aqui abordamos articularam explicitamente diversas regiões de Flandres, Madri, Lisboa, Bahia, Santos, São Paulo, Guairá e Assunção, sem contarmos o alcance de seus negócios, que abarcariam mais uma quantidade equivalente de localidades. Nos quadros espaciais da Monarquia Hispânica e suas possibilidades de circulação, não configuram, de fato, algo surpreendente, mas denotam uma evidente articulação interimperial, e efetivos processos de mobilidade e trânsito.

Além disso, estes flamengos inseriram-se solidamente nas relações cotidianas deste espaço colonial, incorporando-se ao seio das sociedades locais, nas quais se tornaram moradores, proprietários, oficiais, casaram-se e adentraram as redes regionais. Nestas realidades, múltiplas, manejaram suas condições de estrangeiros, naturais, moradores e estantes. Padeceram, sobretudo, de uma ambígua situação que os fez viver numa lógica pendular, entre a aceitação e a permissão implícita de um lado, e trajetórias marcadas por clandestinidades, acusações e deslocamentos forçados, por outro. De todo modo, isso forma par com a compreensão de que as articulações interimperiais, naquele contexto, reuniam a legalidade e a ilegalidade, o permitido e o clandestino nas mesmas teias sobrepostas de relações, fossem elas econômicas ou sociais, o que pareceu refletir diretamente na existência e vida particular de nossos personagens.

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  • 1
    Esta pesquisa se vincula ao projeto: “Intercambios culturales, transculturación y castellanización en los territorios del Reino de Portugal y Brasil durante el periodo de integración en la monarquía Hispánica y sus postrimerías, 1580-1668”, SA110P20, Junta de Castilla y León.
  • 2
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  • 3
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  • 4
    AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos.
  • 5
    AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos.
  • 6
    AESP. “Manoel Vandale”. Inventários e Testamentos.
  • 7
    Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciales, Legajo 1476, fls. 406-408.
  • 8
    Biblioteca D´Ajuda (BA), 51-VII-15, fl. 157.
  • 9
    AGS, SP, Legajo 1476; BA 51-VII-15, fls. 182-183.
  • 10
    AGS, SP, 1498.
  • 11
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  • 12
    Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1596-1622. v. II. São Paulo: Duprat & C., 1915; 24/08/1610.
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  • 15
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    Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl.315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII).
  • 17
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  • 18
    Actas da Câmara da Villa de S. Paulo. 1596-1622. v. II. São Paulo: Duprat & C., 1915; 16/12/1606.
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  • 21
    Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl. 315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII).
  • 22
    Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos.
  • 23
    Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos.
  • 24
    Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, “Sam Paulo”, fl. 315v. Publicado em: Pereira (2006, p. XXVI-XXVII).
  • 25
    Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “Cornelio de Arzão”. Inventários e Testamentos.
  • 26
    Archivo Nacional de Assunção (ANA), Nueva Encadernacion (SNE), 360.
  • 27
    Archivo Nacional de Assunção (ANA), Nueva Encadernacion (SNE), 360.
  • 28
    Carta do Padre Francisco Vazquez Trujillo, de 25 fev. 1631. In: Pastells (1912, p. 542-543).
  • 29
    Archivo General de Índias, Charcas 2. “Memorial de Francisco Crespo”, 22/08/1631.
  • 30
    Biblioteca Nacional de España (BNE), Manuscritos 2339, Microfilme 5968.
  • 31
    Archivo General de Índias (AGI), Escribania 892A, f. 775, 22/03/1634.
  • 32
    Archivo General de Índias (AGI), Escribania 892A, f. 775, 22/03/1634.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2021
  • Aceito
    22 Dez 2021
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