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Entradas e saídas de uma cultura de violência - “A fita branca” e “O desertor”: duas representações fílmico-literárias no mundo de língua alemã

Entries and exits of a culture of violence - “The white ribbon” and “The deserter”: two filmic-literary representations in the German-speaking world

Resumo:

Dois filmes mostram os enormes desafios morais e políticos da memória na Alemanha da primeira metade do século XX, nos quais não só o indivíduo, mas também a sociedade como um todo foram expostos à capacidade de julgar com independência e humanidade. O primeiro filme é “The white ribbon” (Michael Haneke, 2009), que se passa no início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e trata da humilhação e da violência, o segundo filme é “Der Überläufer” (Florian Gallenberger, 2020), baseado no romance homônimo de Siegfried Lenz, escrito em 1952, é sobre um jovem soldado alemão nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, em 1944/45, que prestou serviços à Wehrmacht na Polônia e desertou. O primeiro filme descreve o colapso do julgamento independente, que favorece a ascensão posterior do nacional-socialismo, o segundo filme foca na recuperação do julgamento individual de consciência, depois o início de um julgamento público e democrático.

Palavras-chave:
Memória; Julgamento; Alemanha

Abstract:

Two films show the enormous moral and political challenges regarding memory in Germany in the first half of the 20th century, to which not only the individual, but also society as a whole were exposed to the ability to judge independently and humanely. The first film is “The white ribbon” (Michael Haneke, 2009), which takes place at the beginning of the First World War in 1914 deals with humiliation and violence. The second film is “Der Überläufer” (Florian Gallenberger, 2020), based on the novel of the same name by Siegfried Lenz, which was written in 1952, is about a young German soldier in the ­final years of World War II in 1944/45 who was with the Wehrmacht in Poland and deserted. The first film describes the collapse of the independent judgment, which favors the later rise of National Socialism, the second film first the recovery of the individual judgment of conscience, then the beginnings of a public, democratic judgment.

Keywords:
Memory; Judgement; Germany

Nos últimos anos, dois filmes lidaram com os desafios morais e políticos enfrentados pelos indivíduos e pela sociedade alemã como um todo na primeira metade do século XX. São os filmes “Das weisse Band: Eine deutsche Kindergeschichte” (“A fita branca: uma história infantil alemã”), do diretor austríaco Michael Haneke, em 2009 (144 min) e o filme televisivo dividido em várias partes “Der Überläufer” (“O desertor”), de Florian Gallenberger, em 2020 (179 min), baseado no romance homônimo de Siegfried Lenz, que foi escrito em 1952, mas só publicado postumamente, em 2016.

“A fita branca” é ambientado em uma vila do norte da Alemanha no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e trata da humilhação e violência enquanto comportamento social determinante tanto dos habitantes adultos quanto dos jovens. “O desertor” é sobre um jovem soldado alemão nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, que desertou da Wehrmacht na Polônia, se alistou no Exército Vermelho e nos primeiros anos do pós-guerra apoia inicialmente a construção do socialismo na Alemanha Oriental, mas depois foge novamente, desta vez para a Alemanha Ocidental.

Nestes dois filmes encontramos, por um lado, o psicograma de uma comunidade de aldeia na qual as crianças em crescimento são educadas para virtudes negativas em um ambiente estritamente autoritário. Essas virtudes desenvolvidas consistem em humilhação, domínio físico e mental total e submissão incondicional, assim como sadismo e outros comportamentos resultantes não abordados no filme, tais como ressentimento, ódio e racismo. A educação reforça essas virtudes negativas com a ajuda da violência física e psicológica, ensinando as crianças (que têm entre 6 e 12 anos de idade) a praticá-las elas mesmas. A mensagem silenciosa desses filmes é o fato dessas crianças terem entre 25 e 31 anos no início do “Terceiro Reich” em 1933, ou seja, de pertencerem a uma geração majoritária de apoio e consenso ao nacional-socialismo.

Por outro lado, encontramos nos filmes a deserção das condições violentas da guerra. O tema de “A fita branca” pode, portanto, ser descrito como a entrada em uma cultura de violência, enquanto o tema de “O desertor” pode ser descrito como a saída desta cultura, que foi levada ao extremo depois de 1933 com movimento e dominação totais, com a guerra e o Holocausto. No entanto, os filmes não fazem referências entre si, os diretores pertencem a gerações diferentes (nascidos em 1942 e 1972, respectivamente), e os materiais com os quais trabalharam eram completamente diferentes: Haneke usou escritos de Adorno, Reich e Fromm, bem como publicações dos anos 1970 sobre a “pedagogia venenosa” (schwarze Pädagogik) e escreveu um roteiro de filme literário baseado nesse material; já Gallenberger usou o romance de Lenz, mas ocasionalmente se desviou dele, dando continuidade à narrativa da segunda deserção do romance em meados dos anos 1950. Ambos os diretores são muito bem-sucedidos: Haneke recebeu vários prêmios por “A fita branca”, incluindo a Palma de Ouro em Cannes, Gallenberger recebeu um Oscar na categoria curta-metragem em 2001 pelo filme que produziu como trabalho final de graduação, Quiero ser, sobre crianças de rua mexicanas, e fez longas-metragens tematicamente relacionados, como o sobre o “Schindler da Ásia”, John Rabe, e sobre a Colonia Dignidad no Chile.

Trazer ambos os filmes para um campo/denominador comum requer um terceiro unificador que, neste caso, é a faculdade do julgamento, a qual, segundo Hannah Arendt, desempenha um papel decisivo para resistir às tentações da desumanidade e do conformismo. Seguindo a linha de dois ensaios que escrevi sobre aspectos daquilo que se chamou “entrar em acordo com o passado” na Alemanha, um sobre o silêncio diante do que aconteceu e sua própria culpa ou responsabilidade e o outro sobre a dimensão temporal tomada pela lenta recuperação da linguagem ao longo de três gerações,1 1 Ver, por exemplo, Heuer (2017 e 2019). este ensaio versa sobre o papel que o julgamento desempenha na entrada e saída da cultura da violência.

Gostaria de esclarecer os significados e as formas de juízo que são assumidos nos dois filmes e no romance de Lenz, que difere da versão cinematográfica, em suas três diferentes formas de efeito. Em primeiro lugar, temos um juízo impossível no filme de Haneke, onde observamos uma proibição total do julgamento e da fala baseada na humilhação, no sadismo e no controle total; em segundo lugar, no romance de Lenz, temos um juízo que é produzido por um soldado assolado por uma dúvida após um diálogo com um camarada e um caso de amor. É semelhante ao que Hannah Arendt classificou como diálogo interno socrático, comumente chamado de voz da consciência, que neste caso aparece como um conflito entre dever e consciência. Arendt explicou: “É melhor sofrer uma injustiça do que cometer uma injustiça, pois ainda podemos permanecer amigos daquele que a sofreu; mas quem gostaria de ser amigo de um assassino ou ter que viver com ele? Nem mesmo outro assassino” (Arendt, 1979ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 86 e s.). Em terceiro lugar, encontramos no filme de Galleberger um juízo que não trata apenas de um diálogo interno sob condições ditatoriais e que não trata apenas da vontade individual de permanecer decente, mas também da perspectiva do campo público e de uma vida em comunidade que é apoiada por um senso de justiça. Nesse sentido, gostaria de mostrar o papel do julgamento primeiramente no filme de Haneke, depois no romance de Lenz e, finalmente, no filme de Gallenberger.

De um ponto de vista historiográfico, esta abordagem oferece a possibilidade de observar a dimensão de uma ação cotidiana específica, aqui com vistas a fazer um julgamento, em seu contexto social e durante um período de tempo mais longo. Ela esclarece o significado contextual de outra época através de uma iluminação recíproca, mas também pode, como neste caso, transcender as fronteiras da história para a ciência política e tornar-se interdisciplinar ou mesmo, como Arendt (2000ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) observou a respeito de seu livro Origens do totalitarismo, possibilitar a análise de fenômenos políticos em categorias da história. Finalmente, no que diz respeito à contribuição da literatura e do cinema para a historiografia, podemos perceber aqui não apenas a literatura contemporânea como fonte informativa, mas também o olhar literário retrospectivo dos autores, que formam juízos e reflexões posteriores.

É claro que este ensaio não desdobra uma história epocal ou factual, mas simplesmente se questiona a respeito da representação da faculdade do julgamento em dois momentos temporais. Os filmes em questão não serão examinados como testemunhos em termos de seu significado historiográfico ou teórico-cinematográfico, mas sim em razão de suas críticas políticas e culturais de época. Isto mostrará como a capacidade de julgar está fortemente ligada à capacidade de falar e se comunicar.

Metodologicamente, esta abordagem se situa em um espaço interdisciplinar entre uma fenomenologia puramente política, a poética histórica de Hayden White, a virada histórico-científica para a narrativa histórica, o novo historicismo, a forma pós-moderna do romance histórico e, finalmente, a bricolagem e a mistura deliberada de fatos e ficção como praticada por W.G. Sebald (Munslow, 2006MUNSLOW, Alun. Deconstructing history. New York: Routledge, 2006.; White, 1978WHITE, Hayden. The ethics of narrative. v. 1: Essays on history, literature, and theory, 1998-2007. Ed. Robert Doran; pref. Judith Butler. Ithaca: Cornell University Press, 2022., 2022WHITE, Hayden. Tropics of discourse: essays in cultural criticism. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978.; Hauenstein, 2014HAUENSTEIN, Robin. Historiographische Metafiktionen: Ransmayr, Sebald, Kracht, Beyer, Würzburg: Königs­hausen und Neumann, 2014.).

1. “A fita branca”

Neste filme, observamos o panorama sombrio de uma aldeia do norte da Alemanha antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, panorama dominado em termos políticos e econômicos por um barão, que exerce autoridade feudal sobre os camponeses e trabalhadores agrícolas poloneses, em termos religiosos e morais pelo pastor protestante com seus cinco filhos, e em termos sanitários pelo médico que vive com a parteira após a morte de sua esposa. O narrador da trama é um jovem professor que, em sua respeitabilidade e ao mesmo tempo impotência, aparece como um intelectual sem influência. O cotidiano estritamente regulamentado e completamente insosso é acompanhado de crimes misteriosos que, em seu acúmulo, aparecem cada vez menos como exceções, mas sim como parte das regras de um sistema de desconfiança e humilhação, dependência e punição.

No início, o médico tem um acidente com seu cavalo causado por um arame quase invisível colocado no caminho, razão pela qual ele tem que passar várias semanas no hospital. Em seguida, uma trabalhadora tem um acidente fatal em uma serraria e, no festival da colheita, o filho da acidentada destrói um campo de couves pertencente ao barão. Como resultado, o filho é expulso de sua família de agricultores, e logo em seguida seu pai comete suicídio. Quando o filho do barão sofre abusos físicos, a população é convocada, durante a missa, a promover uma constante vigilância e são instigados o denuncismo e a desconfiança. Um galpão pega fogo e, finalmente, o filho deficiente da parteira é cruelmente torturado. Mesmo a cena em que a antiga babá do barão, de 17 anos, apresenta o professor aos pais com a perspectiva de um casamento parece quase inofensiva, até que o pedido é bruscamente rejeitado pelo pai, exercendo seu domínio patriarcal sobre a filha.

Quando não há eventos misteriosos, os ultrajantes episódios da vida cotidiana acontecem: o castigo corporal de um de seus filhos pelo padre, ao qual a criança deve consentir expressamente, e o interrogatório altamente embaraçoso e humilhante do padre que suspeita que seu filho pratica onanismo:

  • [...] sua mãe e eu estamos muito preocupados. Pense bem: você dorme mal? Você está muito cansado?

  • Não!?

  • Você tem preocupações na escola que eu não conheço?

  • Não, pai.

  • Obviamente, você não entende nossa preocupação. Deixe-me explicar de onde ela vem. Como você sabe, como pastor, também cuido da comunidade de Birkenbrunn. Há alguns anos, uma mãe veio até mim porque tinha observado as mesmas características em seu filho, que tinha mais ou menos a sua idade, como tem sido notadas em você há algum tempo. O menino de repente mostrou um cansaço impressionante, ficou com olheiras escuras e parecia sem alegria e deprimido. Ele evitava olhar seus pais nos olhos e logo foi pego em pequenas e grandes mentiras. Isto durou cerca de meio ano. Depois disso, tudo aconteceu muito rapidamente. Ele perdeu todo o apetite. Ele parou de dormir, suas mãos começaram a tremer, sua memória ficou fraca. Ele teve muitas pequenas pústulas, primeiro no rosto, depois por todo o corpo. E, finalmente, ele morreu. O corpo que eu abençoei parecia o de um homem velho. Agora você entende por que estou preocupado? Então, de onde você acha que vieram as mudanças que acabaram levando este menino a um fim tão miserável?

  • Eu não sei.

  • Acho que você sabe. (Pausa) Você não vai me dizer? Não? (Pausa) Bem, então eu lhe direi o que causou isto. O menino tinha visto alguém ferindo os melhores nervos de seu corpo, onde o mandamento de Deus também ergueu barreiras sagradas. O menino imitou essas ações e não podia mais parar. Ele finalmente destruiu todos os nervos de seu corpo a tal ponto que pereceu. Eu só quero ajudar você. Eu te amo de todo o meu coração. Seja sincero, Martin. Por que você corou tanto com a história do pobre menino?

  • Corei? Não sei. Tenho um pouco de pena dele.

  • Isso é tudo? Acho que há outra razão. Seu rosto o denuncia. Seja sincero, Martin! Por que você está chorando? Devo poupá-lo de sua confissão? Não é verdade? Você fez o que o pobre menino fez.

  • Sim.2 2 “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 47min59s e 51min12s.

  • A partir de então, as mãos do filho são amarradas à sua cama à noite.

  • O comportamento do médico em relação à parteira que vive com ele também é extremamente humilhante. Quando ela tenta em vão dar-lhe satisfação sexual em uma cena, ele declara:

  • Você não quer deixar isso em paz? Por que fazer tal esforço? Não olhe para mim com tanto espanto! Não é que você não tenha talento, mas não posso mais fazer isso com você, é só isso. Para dizer a verdade, você me causa repulsa. Você pode, por favor, terminar seu trabalho agora? Eu não quero ficar aqui até o anoitecer!

  • O que eu fiz com você?

  • Meu Deus, você não me fez nada. Você é feia, está despenteada, sua pele é flácida e tem um mau hálito. Isso não é suficiente? (Olhando para o fogão:) O lençol tem que ser esterilizado. Agora não se sente aqui como se fosse a morte a me espreitar. Não é o fim do mundo. Nem para você e nem para mim. Só não quero mais, é só isso. Eu já tentei. Eu tentei imaginar outra pessoa enquanto fazia amor com você. Alguém que cheira bem, que é jovem e menos desgastada que você, mas isso sobrecarrega minha imaginação. No final, é sempre você, e então eu tenho vontade de vomitar. Qual o sentido?

  • Terminou?

  • Sim, há muito tempo!

  • Você deve estar muito infeliz para ser tão mau.

  • Oh, Deus! Por favor, não seja assim.

  • Eu sei que não sou uma visão bonita. O fato de eu ter mau hálito tem a ver com meu estômago, você sabe disso muito bem. Mas isso não o incomodava antes quando estávamos juntos. Eu já tinha tido minha úlcera estomacal quando sua esposa ainda estava viva.

  • Por favor! Poupe-me de seu aborrecimento! Mas posso garantir, isso sempre me enojou. Eu aturei porque queria me entorpecer após a morte de Julie, e não me importava com quem, eu poderia ter saltado em cima de uma vaca. Infelizmente, as prostitutas estão muito longe daqui e uma vez em dois meses não é suficiente para mim, apesar de minha idade avançada. Então, por favor, pare este maldito martírio e saia daqui!

  • Por que você pensa nisto agora?

  • Quando isso deveria ter me ocorrido, na sua opinião? No hospital, esqueci como você me incomodava. Você fica sentimental quando está com dor. Saia daqui. Você não tem nenhum senso de honra?

  • Eu não posso me dar ao luxo de estar ao seu lado.

  • Sim, isso é verdade.

  • Você não tem medo de que eu me machuque?

  • Para quê? Ao menos você poderia me surpreender. Mas tenha cuidado, pode doer.

  • Eu sei que sou ridícula. Você nem se importaria. Bem, por que você me despreza? Por que você me despreza? Por ajudar você a criar aquele menino? Por ter observado silenciosamente você tocar sua filha? (Ele a esbofeteia) Por ajudar você a se enganar? Por ouvir como seu amor por Julie era único, embora todos na aldeia saibam que você a tratou tão mal quanto me trata? Por te amar quando eu sei que não me suporta?

  • Certo, levante-se agora, eu tenho trabalho a fazer.

  • Você não pode se dar ao luxo de se livrar de mim. Quem vai fazer todo o seu trabalho sujo por você? E ajudá-los com as crianças e aqui no escritório? Você não está falando sério. Você só quer saber até onde pode ir, não é mesmo? Ela vai engolir e você pode chutá-la um pouco mais fundo na sujeira? Eu também estou cansada. Eu tenho dois filhos deficientes, Karli e você. Você é o mais problemático.

  • Meu Deus, por que você não morre simplesmente?3 3 “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 65min e 68min47s.

O fato de o médico preferir assediar sexualmente sua filha de 14 anos não é mais segredo. Quando a parteira quer ir urgentemente à polícia na cidade e desaparece, o professor suspeita que as crianças da aldeia possam estar envolvidas nos crimes. Ele fala sem sucesso com dois dos filhos do pastor e depois vai até o mesmo, esperando por apoio. Mas ele está profundamente decepcionado:

  • Do que se trata?

  • Hoje falei com a parteira. Ela diz que agora sabe quem abusou de seu filho.

  • Sim?

  • Ela só quer dizer à polícia, é por isso que ela foi à cidade.

  • Ela deixou seu filho sozinho e trancou a casa toda.

  • Trancou-o?

  • Fui até o médico para perguntar o que estava acontecendo, se ele estava cuidando do garoto. Mas há uma nota dizendo que o consultório está fechado até segunda ordem. O médico e seus filhos não foram encontrados.

  • O que isso significa?

  • Eu não sei. Pensei que você poderia ter sido informado. É por isso que estou aqui.

  • Eu não sei. Sente-se, por favor. Anna, a filha dele, não estava na escola?

  • Sim, sim, não havia nada de diferente nela. Perguntei a Klara e Martin [dois dos filhos do pastor WH], eles também não sabem de nada.

  • Por que eles deveriam?

  • Não sei, quando passei pela parteira, eles estavam lá no jardim com alguns outros.

  • Fazendo o quê?

  • Eles estavam à procura do menino.

  • Por quê?

  • Eles queriam ajudá-lo.

  • Sim, e daí?

  • Eu não sei como dizer isto. Tenho a sensação de que eles estão escondendo algo.

  • O quê?

  • Eu não sei. Quando o médico teve seu acidente, você se lembra, no ano anterior, as crianças estavam de repente em seu jardim, supostamente para ajudar Anna.

  • Sim e?

  • Nada, eu tinha esquecido. Hoje, eu me lembrei disso.

  • Eu não entendo.

  • Quando o filho do barão foi encontrado. Ele tinha sido visto pela última vez com as crianças.

  • O que você quer dizer?

  • A filha do administrador me disse isso alguns dias antes de Karli ter sido espancado até a morte. Ela disse que sonhou com isso. A polícia acha que ela está mentindo. Como ela descobriu isso? Quem lhe falou sobre isso?

  • (O pastor fica em silêncio)

  • Se eu o entendi corretamente, você afirma que seus alunos, incluindo meus filhos, cometeram esses crimes? Isso é correto?

  • (O professor acena com a cabeça)

  • Você sabe o que está dizendo? Você sabe de tudo - (agitado, depois de uma pausa se compõe novamente). Presumo que sou a primeira pessoa a quem você expressou esta monstruosidade. Se alguma vez você se atrever a assediar outros com isso, se tentar denunciar publicamente famílias sem culpa, com seus filhos, desta forma patética, então eu farei, e você pode estar certo disso, cuidarei para que você vá para a prisão.

  • Mas Reverendo -

  • Tenho visto muitas coisas em minha prática como pastor. Mas isto é de fato mais repulsivo do que qualquer outra coisa! Pode-se ver que você não tem filhos, caso contrário não seria capaz de tal ultraje. Você tem uma mente doente. Pergunto-me quem na burocracia escolar poderia deixar alguém como você sozinho com estas pobres criaturas. Chegarei a isso no momento apropriado. E agora, por favor, saia de minha casa. Não quero vê-lo aqui novamente.4 4 “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 107min42s e 111min31s.

As crianças foram protegidas quando se trata de seus crimes. Assim como a violência doméstica permaneceu impune, da mesma forma a violência entre as crianças. Isso significa que a tolerância inquestionável e o reconhecimento explícito da violência como meio de educação, a experiência diária de violência física e psicologicamente estruturada, faziam parte da vida cotidiana de todos. No entanto, aceitá-lo não significa que as crianças não sofressem com isso. A fim de manter um certo grau de equilíbrio interno, busca-se algum tipo de reparação. Entretanto, as crianças não experimentavam isso em confronto direto com os adultos, mas sim perpetrando violência e humilhação sobre os outros, sobre outras crianças ou também sobre os adultos, por exemplo, com o arame que faz o médico cair do cavalo, com o incêndio do galpão e a devastação da horta. No processo, em lugar da humanidade avançar, os caminhos para a autoafirmação, coragem e resistência são mal trilhados, e assim a desumanidade aumenta. O desejo de reconhecimento degenera em submissão, o desejo de justiça em mais injustiça, e todo o mal experimentado é escalonado em abusos. Aqueles que se recusavam a aceitar isso só encontram o suicídio ou a decisão de deixar a aldeia como saída. A polícia, o Judiciário e os políticos estão na cidade distrital mais distante e não exercem nenhuma influência no que diz respeito à redução das injustiças. A notícia do início da Primeira Guerra Mundial no final do filme lança a sombra de uma violência generalizada sobre a aldeia.

No que diz respeito à capacidade de julgar, sob estas condições, dificilmente é possível pensar em um julgamento independente. Os juízos são determinados por humilhação, ódio e retaliação, comportamentos definidos por conformismo e total controle físico e mental, e falas estereotipadas. Não existe diálogo interno que possua um mínimo de independência. O que resta é uma ação irrefletida e sem diálogo conduzindo à violência, que é conhecida por ser muda. Fugir ou cometer suicídio são meios extremos que colocam a própria existência em risco ou mesmo a destroem. Dessa forma, o próprio extermínio se mostra imanente à violência estrutural.

Estamos tratando aqui de uma forma de socialização que gera frutos negativos e desastrosos quando essas crianças exercem sua influência na sociedade e na educação como adultos. A questão deixada sem resposta por este filme é até que ponto esses adultos se tornaram predominantemente ligados ao nacional-socialismo e à perpetração do Holocausto. Em qualquer caso, é óbvio que a República de Weimar, ameaçada pelas alas radicais e rejeitada pela maioria, caracterizou-se por uma atmosfera cultural que Helmut Lethen (2014LETHEN, Helmut. Verhaltenslehren der Kälte: Lebensversuche zwischen den Kriegen. Frankfurt: Suhrkamp, 2014.) chamou de “doutrina comportamental da frieza” (Verhaltenslehre der Kälts). Esta cultura acompanhou o que Arendt descreveu como a dissolução da sociedade de classes e, com isso, a dissolução da orientação. Nessas condições, as ofertas de corrimões ideológicos (Arendt, 2021ARENDT, Hannah. Pensar sem corrimão: compreender, 1953-1975. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.) se tornaram atraentes como um substituto para a orientação, e o sentimento de frieza desempenhou um papel importante no autossacrifício de um movimento totalitário. De acordo com Arendt, o conteúdo ideológico ou qualquer justificação era de muito menos interesse do que a mensagem de que se podia confiar sem reservas no líder, pois ele saberia como os eventos mundiais funcionavam (Heuer, 2016HEUER, Wolfgang. El “frío glacial” de la lógica del totalitarismo. In: CARDONA, Luis Fernando(org.). Totalitarismo y paranoia: lecturas de nuestra situación cultural. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2016. p. 17-32.). Isso tornou ainda mais fácil dispensar todo julgamento.

Nesse sentido, explica Haneke, a constelação que ele descreve pode ser a base para qualquer desenvolvimento ideológico: “A ideologia é uma ideia absolutizada. Onde quer que haja opressão, humilhação, infelicidade e sofrimento, o chão está preparado para qualquer tipo de ideologia. É por isso que ‘A fita branca’ não deve ser entendido como um filme sobre o fascismo alemão. Trata-se de um clima social que torna possível o radicalismo. Essa é a ideia básica”.5 5 Entrevista concedida ao semanário autríaco Falter, n. 38, de 16 out. 2009. Quanto à radicalização intergeracional, ela também é encontrada, embora em outro contexto, na descrição do desenvolvimento da violência nas favelas do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins (2003).

2. “O desertor” - o romance

Vejamos agora qual poderia ser uma outra maneira de sair desta cultura de violência. O escritor alemão Siegfried Lenz, nascido em 1926, conhecido internacionalmente por seu trabalho Deutschstunde (A lição de alemão; Lenz, 1991), escreveu seu segundo romance sobre esse assunto. Seus numerosos livros geralmente giram em torno dos temas do dever e da consciência em situações de difíceis tomadas de decisão, que ao mesmo tempo revelam quem são os personagens envolvidos. Esse foi o tema essencial que mobilizou a maioria dos alemães, por muito tempo após as experiências sob o nacional-socialismo, constituindo o conteúdo da busca por um “acordo com o passado”.

Lenz esteve envolvido por um tempo na campanha eleitoral do partido social-democrata (SPD) e era amigo íntimo do chanceler Helmut Schmidt. Em 1951, aos 25 anos, Lenz apresentou este segundo romance, Der Überläufer (O desertor), à sua editora, Hoffman und Campe, que o entregou a um editor externo, o folclorista Otto Görner, para revisão. O tema da deserção se mostrou extremamente sensível porque significava traição e o enfraquecimento do exército e da “pátria”, a quebra do juramento feito ao Führer, e testemunhava a covardia como um comportamento supostamente não humano. Enquanto nos exércitos Aliados dos EUA e da Grã-Bretanha apenas uma sentença de morte foi proferida por deserção em toda a Segunda Guerra Mundial, no Reich alemão houve cerca de 20 mil sentenças de morte, das quais 15 mil foram executadas. Em 1944, o comentário padrão sobre o Código Penal Militar afirmava, de acordo com a política racial e de saúde vigente: “[...] a experiência tem mostrado que os desertores são em grande parte recrutados a partir de psicopatas inferiores” (Messerschmidt, 1997MESSERSCHMIDT, Manfred. Kriegsdienstverweigerer und Deserteure des Zweiten Weltkriegs. Osnabrücker Jahrbuch Frieden und Wissenschaft. v. IV, 1997, p. 167-171., p. 168). Foi somente em 2002 que todos os desertores na Alemanha foram finalmente reabilitados em todos os setores.

Lektor Görner tinha sido membro da SS (Apel, 2016APEL, Friedemar. Das grausam-lächerliche Abenteuer. Frankfurter Allgemeine, 3 mar. 2016.) e considerou o manuscrito de Lenz inapropriado. No início ele ressaltou apenas as deficiências estilísticas, depois pediu a Lenz que revisasse o manuscrito e sugeriu que contrastasse o desertor com uma figura positiva, a fim de fazer seu comportamento parecer mais singular. Depois explicou que o assunto estava desatualizado, que tal livro “poderia ter sido publicado em 1946”. Hoje, como sabemos, ninguém dessa época iria querer que fosse publicado. Ele desaconselhou a publicação, dizendo que Lenz só “se prejudicaria imensamente com isso, e mesmo suas boas relações com a imprensa e o rádio não o ajudarão”. Finalmente, Görner ameaçou: “Não considere fazer um gesto de raiva e querer escrever um novo livro” (citado em Lenz, 2016). Lenz se demitiu e guardou o manuscrito.

Em “A fita branca”, notamos a incapacidade de juízo próprio e a distorção de uma consciência interior como condições para um caminho em direção à cultura autoritária da violência. Em “O desertor”, trata-se de uma nova saída desta cultura. O romance mostra os passos individuais usando o exemplo do soldado Walter, que em 1944 sai de sua casa e viaja de trem para a frente de batalha, na área da fronteira polonesa-soviética. No caminho, ele encontra Wanda, uma polonesa que o acompanha por um tempo, deixa-o fascinado e depois desaparece em um posto de alfândega. Um pouco mais tarde, o trem atinge uma mina colocada por partisans poloneses. Ela explode, Walter sobrevive ileso e é levado por um soldado alemão a um pequeno posto de guarda com seis homens em uma floresta próxima. Durante muito tempo, nada acontece ali; soldados e partisans olham uns para os outros sem se confrontar. O comandante é um cínico misantropo e goza de enorme poder sobre seus soldados. Eles matam o tempo com absurdos como perfurar uma galinha ou pescar um enorme peixe em um lago. A guerra enlouquece e dá poder aos loucos.

Walter e Wanda se encontram novamente em uma patrulha, quando ele descobre que ela é uma partisan. Eles se apaixonam, e ela pede para ele desertar. E enquanto o padre de uma aldeia próxima conversa com os soldados desarmados, o comandante atira pelas suas costas. O soldado humanista Wolfgang diz então a Walter que, como polonês, o padre também era considerado partisan. Quando dois outros soldados são baleados por guerrilheiros enquanto se banham no lago, a situação se agrava. Walter de repente se depara com um partisan na floresta e relutantemente atira nele para salvar sua própria vida. Wolfgang o exorta a desertar, e diante da hesitação do companheiro, foge sozinho. Um pouco mais tarde, a base é tomada pelos partisans e Walter fica sabendo que o partisan no qual havia atirado era o irmão de Wanda. Diante dessa revelação, ele deserta e acaba em um campo soviético, onde reencontra Wolfgang. Walter se permite ser persuadido a um pacifismo ativo, como Wolfgang o chama, juntando-se ao Exército Vermelho, e acompanha um esquadrão de propaganda soviético até o front. No processo, ele reencontra brevemente Wanda, que agora está grávida. À medida que o Exército Vermelho avança e chega à aldeia natal de Walter, ocorre um confronto com um Kommando inimigo. Nesse encontro ocorre um tiroteio, Wolfgang é morto e Walter atira, insuspeitamente, em seu cunhado. Após a batalha, ele diz à sua irmã que o marido dela já havia seguido para o oeste com os soldados soviéticos, e que ela deveria se juntar a eles.

A guerra termina com a conquista de Berlim. Walter é designado para um trabalho administrativo na zona de ocupação soviética, mas cada vez mais entra em conflito interno com a onipotência dos soviéticos e, após ser avisado de sua iminente prisão, foge pela noite através da fronteira para a Alemanha Ocidental democrática. O romance apresenta uma narrativa emoldurada: no início do livro, Walter envia uma carta não especificada; no final ele fica sabendo que sua irmã ainda está procurando seu marido. A carta havia sido endereçada a ela, e agora a carta retorna com o aviso de que foi impossível ser entregue.

O próprio Lenz era um desertor em circunstâncias similares. Ele estava estacionado em um lugar na Dinamarca onde nada acontecia, aos 18 anos de idade, identificando-se como um membro apolítico do partido. Ele só “acordou”, como ele mesmo declarou, quando soube da tentativa de assassinato de Hitler e da possibilidade da existência de uma dissidência e resistência, que não havia considerado possível. Um segundo momento de despertar da consciência foi causado pela execução exemplar de um soldado indisciplinado na Dinamarca: “[...] eles precisavam de um homem morto para nos lembrar de seu poder, eles precisavam dele por razões pedagógicas e disciplinares: eu aprendi com isso e despertei” (Lenz, 1972aLENZ, Siegfried. Ich zum Beispiel: Kennzeichen eines Jahrgangs (1966). In: LENZ, Siegfried. Beziehungen: Ansichten und Bekenntnisse zur Literatur. Stuttgart: dtv, 1972a., p. 26).

Esse despertar consiste em uma consciência do que permaneceu escondido no sono, um primeiro distanciamento, que é o pré-requisito para um julgamento independente. Ainda não é um julgamento reflexivo e está longe de conceitos complexos, como humanismo ou pacifismo. Mas já é suficiente para trazer o sentimento crescente de não querer mais participar, de se distanciar, objetiva e espacialmente. “O que eu esperava, o que eu queria alcançar, quando peguei meu rifle automático uma noite e fui para o bosque e me escondi? Renunciar talvez, um tipo de renúncia casual tácita, sem um plano - não mais que isso” (Lenz, 1972aLENZ, Siegfried. Ich zum Beispiel: Kennzeichen eines Jahrgangs (1966). In: LENZ, Siegfried. Beziehungen: Ansichten und Bekenntnisse zur Literatur. Stuttgart: dtv, 1972a., p. 26). O impulso para tal deserção segue uma força interior que considerou aquela execução exemplar tão injusta que a mera presença ali parece ser uma cumplicidade inaceitável. Quem lá permanece concorda em seu silêncio e passividade, e assim carrega a culpa sobre si mesmo. Lenz não queria viver com tal alter ego.

São momentos como a execução exemplar e momentos como a guerra em que, segundo Lenz, “um único instante é suficiente para colocar à prova uma pessoa” (Lenz, 1972bLENZ, Siegfried. Mein Vorbild Hemingway: Modell oder Provokation (1966). In: LENZ, Siegfried. Beziehungen: Ansichten und Bekenntnisse zur Literatur. Stuttgart: dtv , 1972b., p. 39). Também encontramos este autoexame em Camus, e ele molda - não apenas metaforicamente - a aparência humana quando afirma que “desde uma certa idade [...] todo homem é responsável por seu rosto” (Camus, 1965LENZ, Siegfried. A lição de alemão. Lisboa: Dom Quixote, 1991., p. 55). Esse autoexame consiste em um julgamento e ação que não são simplesmente certos ou errados, bons ou ruins. Ao contrário, é quase inevitável encontrarmos contradições morais no processo, quando não tentamos disfarçá-las com conceitos abstratos ou explicações normativas a fim de fazer desaparecer um problema.

O trabalho de Lenz gira em torno de tais autoavaliações. Walter atirou no irmão de Wanda para sobreviver; mas, em primeiro lugar, por que ele está na Polônia com uma força ocupante? Por que esse ato dói ainda mais ainda quando o partisan atingido não permanece anônimo, mas se revela o irmão de sua amada? Por que Walter tem que matar seu cunhado, entre todas as pessoas? Por que ele manda sua irmã embora? Talvez para não confrontá-la, mas também a ele mesmo, com essa verdade? Quanto suas ações, que visavam o objetivo positivo de derrotar as tropas de Hitler, pesam sobre ele? Muito mais tarde, o quanto o relatório de busca de sua irmã o afeta, ainda mais quando ele quer lhe confessar a verdade, mas não pode mais alcançá-la?

As coisas são ainda mais extremas no romance de Lenz (2018LENZ, Siegfried. Stadtgespräch. Hamburg: Atlantik, 2018.) intitulado Stadtgespräch (Conversa de cidade), no qual os combatentes da resistência querem assassinar um general das forças de ocupação alemãs e, em resposta, as forças de ocupação tomam 44 pessoas da cidade como reféns e exigem que o líder dos partisans se entregue. Se o fizer, a resistência é quebrada; se não o fizer, os 44 morrem. A maneira como lidamos com tais dilemas, diz Lenz, mostra quem somos.

Lenz se perguntava frequentemente qual era a questão que mais o preocupava, e sempre dizia:

É realmente a situação extrema: quando você é obrigado a perguntar como você decidiria. Quando parece haver várias coisas a escolher e você sabe que, não importa o que você escolha, isso deixará uma mancha, ou seja, será problemático. É isso aí. Enquanto se vive sem esse dilema, enquanto nunca se esteve em situações que nos obriguem a tomar uma decisão, vive-se sem risco. Mas, no momento em que se está condenado a tomar uma decisão de longo alcance - e vem daí meu amor por situações extremas -, então surge algo que se poderia chamar - como o fez André Breton - o ‘núcleo noturno’ do homem (Rüden; Wagner, 2004RÜDEN, Peter von; WAGNER, Hans-Ulrich(eds.). Siegfried Lenz: Der Schriftsteller und die Medien. Hamburg: Verlag Hans-Bredow-Institut, 2004., p. 19).

As pessoas do filme “A fita branca” estão livres de tais dilemas; elas só enfrentam a escolha de obediência ou punição. As crianças se sentem confortáveis atormentando os mais fracos. O médico usou a parteira até concluir que ela estava esgotada. O pastor protegeu seus filhos e seus crimes como se fossem seus. Walter, por outro lado, não está sujeito ao controle totalitário do pensamento, e obviamente não foi submetido a uma educação ideológica autoritária, de modo que pode dar rédea solta à sua consciência. Ele pode se permitir seu amor pela guerrilheira, embora ela seja “a inimiga”, pode rejeitar o cinismo e o sadismo entre os soldados, pode lamentar a morte da guerrilheira, afirmar o sentido e a desesperança da guerra, chorar a perda de seu camarada Wolfgang e, finalmente, lamentar a morte de seu cunhado e sofrer com a perda de sua irmã. As próprias ações sempre carregam o lado negativo do sofrimento e possivelmente também trazem sofrimento. Somente aqueles que agem podem correr o risco de incorrer em culpa, de fazer o que é certo, mas também de cometer erros.

Em contraste com a ausência de considerações de consciência em “A fita branca”, estão as agitações de consciência que acompanham o “Desertor”. Esses movimentos são expressados menos como detalhados diálogos internos do que como fragmentos internos de diálogo, que se pode supor sempre renovados: não se calam, não se resignam. Eles são dirigidos contra a compulsão externa para cumprir o próprio dever:

  • Este chamado dever, disse o “pãozinho de leite” (Wolfgang) de forma desdenhosa. Eles injetaram este material debaixo da nossa pele. Eles nos deixaram loucos com isso, nos deixaram instáveis. Eles tentaram nos tornar obcecados com uma injeção refinada de soro de obrigação (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 67).

  • Mas eu não me deixaria abater por nenhum ângulo ou caminho como meu pai. Pois ele falou de ‘dever’, de ‘estar pronto’, ou qualquer que seja o nome desse veneno retórico que se infiltra. Você entende, Walter: nós também somos a Alemanha e não apenas os outros, e seria uma completa idiotice se nós, que somos a Alemanha, nos sacrificássemos pela Alemanha, ou seja, por nós mesmos. Isso seria como um urso cortando seu próprio presunto, começando a comê-lo com dor e dizendo a si mesmo que tem que se sacrificar.

  • Você está certo, Wolfgang. Onde você pensou nisso?

  • Não em casa, no jardim, nem na sala de conferências, mas aqui. Você só pode pensar nisso aqui. Eu sempre fui um cão solitário, mas feliz por ter o suficiente em mim mesmo (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 68).

É por isso que você tem que mobilizar sua consciência:

- Você tem uma vida inteira para trabalhar em si mesmo. E você sabe quais pessoas são seus melhores médicos? Aqueles que se diagnosticam em silêncio e que rastejam para sua solidão interior e escutam seu próprio pulso ali com brutal sinceridade (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. Hamburg: Hoffmann und Campe, 2016., p. 68). [...] Mas como o mal assume muitas formas, é necessário rever as intenções contaminadas, localizar os pontos defeituosos e selar os buracos nos resultados de nosso exame. E isso requer uma tremenda capacidade analítica e uma abertura radical para si mesmo. É preciso ter força para chutar uma coisa que você vem seguindo há vinte anos, quando você percebe que não é apenas errado, mas maldoso, enganoso, perigoso e assassino (p. 69). [...] Tudo passa: o fogo dos lábios, os desejos dos olhos; a ternura, a lealdade dura da rocha e a angústia do coração. Somente a consciência não murcha, esta paisagem orgulhosa e austera de justiça, esta fortaleza contra o remorso (p. 97).

Essa consciência faz com que se veja a guerra em seu absurdo:

Guerra: essa é a aventura mais cruelmente ridícula em que os homens embarcam quando o mosquito da loucura os pica, nos dias em que a sobriedade e a paciência se tornam raras, quando todos correm contra um cronômetro - e ninguém conhece os guardas do tempo -, guerra, guerra, guerra: copo partido dos corações, maré primaveril do suco vermelho, curto-circuito do desejo (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 110).

Portanto, é legítimo que Walter resista à guerra:

Aqueles que fazem guerra por profissão são criminosos. Os que estão lá em cima o fazem. E nós estamos sentados aqui no pântano. Eles deveriam ser mortos, então teríamos paz. Então todos poderíamos ir para casa. [...] Eu me encarregaria de fazer isso. Aquele que dorme com liberdade deve defendê-la com todos os meios. Qualquer coisa vale para ele (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 133).

E esta deserção também é legítima, explica Wolfgang:

Eu fugi porque não suportava mais estar com vocês. Eu poderia ter suportado vocês como indivíduos, mas não poderia suportá-los como alemães organizados e obedientes. Eu sabia que quase todos vocês viviam relutantemente na fortaleza, e sabia que estavam com saudades de casa e que odiavam aqueles que os haviam mandado para cá (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 159).

Eles são homens como nós: sapateiros e agricultores e carpinteiros. Há tantos cães pobres entre eles quanto entre nós. E tenho visto que às vezes eles tremem e carregam a mesma quantidade de desejos que nós (p. 160).

Quando Walter entra num corredor em Berlim Oriental após o fim da guerra, ele experimenta algo que nos lembra a educação em “A fita branca”. Uma garotinha tenta educar sua boneca à força:

Com muito cuidado, a menina abriu as pernas da boneca, largou-a e ergueu-se em fúria silenciosa. A boneca tinha caído novamente. A criança olhou para ela com desprezo, aproximou-se polegada por polegada, e de repente levantou o pé e o colocou sobre a cabeça da boneca. Ela rachou bruscamente. Proska (Walter) não poderia suportar essa rachadura. Ele gemeu, saiu correndo, deu um leve empurrão na menina e correu pelos poucos degraus, ganhando a rua. Somente em um beco lateral ele diminuiu seu ritmo (Lenz, 2017LENZ, Siegfried. Der Überläufer. [Edição Kindle]. Stuttgart: dtv , 2017., p. 205).

3. “O desertor” - o filme

Sessenta e cinco anos após a conclusão do romance, que permaneceu inédito durante toda a vida do autor, a versão cinematográfica foi produzida em seguida à publicação do livro. Segue fielmente a narrativa, mas se desvia em alguns detalhes cruciais e continua a história mesmo após a fuga do socialismo para a parte democrática da Alemanha, nos anos 1950. Essas mudanças dão um significado alterado ao papel e às possibilidades de julgamento.

Apesar da diferença de idade de 30 anos, o diretor de “O desertor”, Gallenberger, assim como o diretor Haneke, é membro de uma sociedade que é agora civil, participativa e comunicativa. Os valores do dever e da obediência que eram centrais para “A fita branca” e também no romance foram em grande parte substituídos pelos valores da construção de consenso e persuasão, assim como o nacionalismo foi substituído pela europeização, a guerra de extermínio por operações de paz da ONU e a ideologia por uma visão de mundo democrática e voltada aos direitos humanos. As mudanças e acréscimos no filme correspondem à perspectiva desses valores. O papel de julgamento que nos interessa mudou do confronto silencioso entre a demanda externa do dever e a voz interior da consciência para o nível social e político, potencialmente comunicativo e intersubjetivo.

O filme modifica o enquadramento narrativo, diminuindo o espaço que o livro concede à dor causada pelo tiro dado contra o cunhado e a perda da irmã. A história de amor de Walter e Wanda, por outro lado, está muito mais desenvolvida. Enquanto no romance eles só se veem uma vez após a transferência de Walter para o Exército Vermelho. Wanda aparece no filme como uma cantora talentosa que ganha os corações dos soldados em um evento noturno em uma casa termal tomada pelas tropas soviéticas. A beleza de Wanda e suas aparições e desaparecimentos - no trem, na floresta e com as tropas soviéticas - fazem dela um ser quase sobrenatural, uma síntese de amor e humanidade com a linguagem da música, para além da guerra e das dificuldades. Walter quer fugir com ela desse spa, mas não consegue. Novamente eles se separam. Até que, anos mais tarde, Wanda surge inesperadamente na televisão da Alemanha Ocidental. Walter, que em Berlim Oriental não havia exatamente se apaixonado, acabou tendo um caso com uma secretária em seu escritório e fugiu com ela através da fronteira com a Alemanha Ocidental; um ano depois ele vive com ela e dois filhos em uma casa própria. Ao desfrutar de uma noite agradável com os amigos em um clima geral de silêncio sobre o passado e diante de seu sucesso nos tempos do “milagre econômico”, Walter é surpreendido pelo súbito aparecimento de Wan­da. O velho sentimento de liberdade e amor no meio da guerra invade este mundo e de repente deixa clara a grande e aparentemente intransponível diferença entre esse passado e a realidade do silêncio e do contentamento superficial. Tomado de ímpeto, Walter deixa a casa e afasta-se em seu carro. O filme termina com esta deserção renovada, desta vez da sociedade de consumo, com seu silêncio.

Como aqui, a dimensão sociopolítica acrescentada ao filme também se torna clara em outros pontos. A relação entre Walter e Wanda é o símbolo de uma unificação dos opositores na guerra em uma comunidade de resistentes contra o regime hitlerista. É a base potencial de uma sociedade democrática que está consciente dos crimes do passado e contra a qual os cidadãos não só são capazes de tomar decisões conscientes, mas também são capazes de realizações ativas e de juízos conjuntos.

A história de Wolfgang também continua. Ele não morre no avanço do Exército Vermelho, mas depois da guerra, como comunista convicto, trabalha junto a Walter para os soviéticos em um escritório de passaportes em Berlim Oriental. Aqui o senso de justiça de Walter entra em conflito com as práticas do Partido. Ele considera injusta a tarefa de negar um visto para uma determinada porcentagem de pessoas, correspondente à antiga participação dos alemães em organizações nazistas, independentemente do requerente. Da mesma forma, a prisão do comandante do posto militar alemão na Polônia lhe parece injusta. Walter o despreza profundamente como ser humano, mas como o comandante já cumpriu uma sentença por crimes de guerra, ele pede sua libertação. A justiça exclui a vingança e a justiça deve ter uma estrutura institucional para que ela não se torne injusta por excessos e arbitrariedades. Walter tenta libertar o comandante preso sozinho, mas a tarefa é impossível em vista da onipotência dos soviéticos. Eles atiram nele enquanto ele tenta escapar.

O filme tem como tema a possibilidade e a importância da deliberação e da livre tomada de decisões, a transparência e a justificação das ações: a lealdade à linha do anteriormente pacifista Wolfgang, que renuncia à crítica e ao julgamento independente em favor da aprovação geral e da submissão à suposta boa causa. Walter tenta falar com o oficial superior soviético (com quem ele havia realizado as ações de propaganda no front e que havia lhe passado uma impressão de civilidade) sobre os estranhos desaparecimentos de colegas, mas este o dispensa.

Hannah Arendt (2004ARENDT, Hannah. Algumas questões de filosofia moral. In: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras , 2004. p. 112-212.) distinguiu entre dois tipos de juízo, o do diálogo interno socrático, que pode oferecer orientação na ditadura, na guerra, e o modo alargado do pensar kantiano, segundo o qual se pode incluir no próprio julgamento uma variedade de julgamentos expressos publicamente e também outros possíveis juízos. Walter procura por estes julgamentos expressos publicamente, mas em vão. Desta forma, o romance, mas ainda mais o filme, chama a atenção para outro aspecto do julgamento, os preconceitos subjacentes ao juízo, que são inquestionavelmente tidos como certos. Antes de tudo, esses incluem o pensamento bipolar, pensamento que “A fita branca” introduz e que “O desertor” ajuda a abandonar: em “A fita branca”, a bipolaridade se expressa nos pares de opostos dominação-submissão, obediência-punição, monólogo-silêncio, violência-contra-violência e orgulho-culpa; em “O desertor”, em amigo-inimigo, vida-morte, vitória-derrota, para além dos pares de opostos demonstrados em “A fita branca”. Mas, no segundo, a traição do desertor consiste na dissolução dessa bipolaridade, não na simples mudança de lado. O título também desempenha aqui um papel crucial. A deserção, em alemão Fahnenflucht, denota literalmente uma fuga da própria bandeira, ou seja, deixa o lugar de refúgio em aberto. Em contraste, o conceito do desertor (Überläufer) escolhido por Lenz se pauta pela ideia de que seu destino é conhecido, pois é o outro lado: o inimigo, o amor, a paz. Mas não como parte de opostos irreconciliáveis, como a inversão de amigo a inimigo, mas sim como dilemas de uma vida vivida em ambivalências. Essa não é uma vida resignada, mas uma vida positiva e crítica que, mais do que no filme, não é meramente a figura viva de um desejo, mas o objeto de uma deliberação que não é apenas política e historiográfica, mas também literária e artística.

Assim, o filme traz um olhar sobre a sociedade do pós-guerra, um olhar que aponta que, para construir com sucesso uma democracia que resista às tentações de uma ditadura, deve-se discutir as experiências de guerra, a violência, a prisão e a expulsão; deve-se desenvolver conjunta e publicamente critérios de justiça individual e comunitária. Entretanto, com o silêncio e a hesitação, só muito lentamente se alcançou uma sociedade civil que interiorizou a liberdade e a deliberação como valores.

Mas quanto mais pertencemos a esse mundo posterior e quanto mais carregamos e vivenciamos essas relações e valores, mais o mundo passado do dever, da obediência e da ditadura nos parece como um mundo estranho e dificilmente compreensível.6 6 A medida em que os valores da sociedade alemã mudaram desde os anos 1960 é demonstrada não apenas por estu­dos sobre a mudança das virtudes primárias e secundárias, mas também recentemente, por ocasião da pandemia da covid-19, por um estudo histórico que mostra a mudança na importância da proteção geral da população em favor da de indivíduos concretos, como os idosos e aqueles que necessitam de proteção em particular. Ver: Thiessen (2021). Essa é outra razão pela qual a literatura é necessária. Pois, segundo Lenz,

todo evento tem a tendência de afundar no tempo histórico, de se tornar obscuro, talvez de se fundir em lendas de tal forma que não mais nos abale ou nos coloque à prova: mas para que isso não aconteça, ele é lembrado. O tempo é suspenso. O que ameaçava ficar obscurecido sob o véu da história é trazido ao conhecimento atual [...] A memória é apoiada de forma diligente [...] pela imaginação, que há muito é considerada como sua irmã. Juntos eles representam uma contradefesa à impertubabilidade da história, que, por assim dizer, dá de ombros para ações e atrocidades [...] Uma contradefesa modesta, pequena, talvez apenas simbólica, eu sei; mas quem partilha a convicção de que a vida humana deve se justificar se sentirá obrigado a esta contradefesa (Lenz, 1992LENZ, Siegfried. Über das Gedächtnis. In: LENZ, Siegried. Über das Gedächtnis: Reden und Aufsätze. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1992, p. 7-19., p. 9 e s.).

Concentrar-se na observação de eventos políticos e históricos com base em fenômenos políticos individuais pode ajudar a compreender tanto os eventos quanto o significado dos fenômenos políticos. Neste sentido, a seleção de dois exemplos históricos por si só contribui para uma visão mais profunda, que permaneceu oculta para os dois cineastas e para o autor. É notável que, para tanto, não tenha sido necessária alguma espécie de estruturalismo, mas sim a força da literatura, cujo poder de cognição se baseia no não dito, na possibilidade de buscar uma iluminação mútua sobre os campos histórico e político e, finalmente, sobre a experiência de pensar, julgar e falar em uma dimensão filosófica, que mostra claramente a perda da comunicação e da dignidade individual por meio da falta da fala ou de sua recuperação.

As emoções desempenham um papel indispensável neste contexto. Tanto os filmes quanto o livro têm um forte impacto sobre os espectadores e leitores, e essa foi a motivação principal para escrever este ensaio. A partir do “giro emocional” nas ciências, tornou-se claro que o pensamento e o sentimento, a mente e o corpo não estão mais separados um do outro à maneira de Descartes, mas, como declarou Spinoza, formam uma unidade inseparável (Kappelhoff, 2019KAPPELHOFF, Hermann et al. Emotionen: Ein interdisziplinäres Handbuch. Berlin: Metzler, 2019.; Gregg, Seigworth, 2010GREGG, Melissa; SEIGWORTH, Gregory J. (eds.). Affect Theory Reader. Durham: Duke University Press, 2010.; Slaby, 2011SLABY, Jan et al. (eds.). Affektive Intentionalität: Beiträge zur welterschließenden Funktion der menschlichen Gefühle. Paderborn: Mentis, 2011.). Para a história e a ciência política, isso significa perceber suas próprias parcelas emocionais, que não só não devem mais ser encobertas com a “regra de ouro” de uma pesquisa supostamente objetiva sine ira et studio, mas que também devem ser reconhecidas em sua inevitável existência e encorajadas em sua produtividade, visto seu potencial imaginativo, empático e narrativo (Gammerl, 2012GAMMERL, Benno. Emotional styles: concepts and challenges. Rethinking History, v. 16, n. 2, p. 161-175, 2012.). Sobre isso, Arendt explicou: “Descrever os campos de concentração sine ira não é ser ‘objetivo’, mas tolerá-los. [...] Eu acredito que a descrição de um campo como ‘o inferno na Terra’ é mais ‘objetiva’, quer dizer, mais adequada à sua essência, do que afirmações de natureza puramente sociológica ou psicológica (Arendt, 1994ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 404).

Para dar apenas mais um exemplo onde a narrativa e a explicação, a compreensão e o conhecimento se desfazem claramente. Recentemente, foi publicado o romance “Der Reisende” (O viajante) de Ulrich Alexander Boschwitz (2019BOSCHWITZ, Ulrich Alexander. Der Reisende. Stuttgart: Klett Cotta, 2019.), que morreu fugindo dos nazistas quando tinha 25 anos. O manuscrito passou despercebido em um arquivo por muito tempo. O romance é sobre um judeu rico de Berlim que, diante da onda de perseguições e prisões em 1938, quer fugir com seu dinheiro, da Alemanha para Paris, para juntar-se a seu filho. Ele procura em vão a ajuda de seu parceiro gentio de negócios em Hamburgo, volta para a fronteira belga e, finalmente, completamente exausto depois de vagar em vários trens, acaba voltando a Berlim e é preso. Nenhum testemunho até hoje descreveu em detalhes tão impressionantes a fuga e o fechamento de fronteiras, as esperanças e os equívocos, os encontros com concidadãos de todo tipo, com pessoas desinteressadas, companheiros de viagem, nazistas, ladrões, aproveitadores e ajudantes ingênuos. O viajante não é uma pessoa particularmente simpática, e a narrativa se apoia em uma linguagem factual. Mas esse romance captura completamente os leitores; eles estão nessa viagem, não há parada nem resgate, eles estão acorrentados ao protagonista e agora começam a entender o que significava ser perseguido e se transformar em um fugitivo.

Informações factuais, como as que eu estou dando aqui, que se assemelham ao texto de orelha de um livro, não são adequadas para um entendimento afetivo, o qual o romance torna possível. Se alguém lê o romance e em seguida, por exemplo, os dados factuais que a Casa Anne Frank em Amsterdã dá sobre os refugiados da Alemanha nazista, então sentirá a inegável diferença fundamental entre um entendimento baseado em uma ampla base emocional e um conhecimento que oferece informações emocionalmente fracas. “Entre 1933 e 1937, um total de cerca de 130 mil judeus deixaram a Alemanha nacional-socialista. Muitos partiram para a África do Sul, Palestina e América Latina” (Broek, 2018BROEK, Gertjan. The (im)possibilities of escaping: Jewish emigration, 1933-1942. Amsterdã, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.annefrank.org/en/anne-frank/go-in-depth/impossibilities-escaping-1933-1942/ . Acesso em: 26 maio 2022.
https://www.annefrank.org/en/anne-frank/...
). O conhecimento factual fornece a base, mas aqui não há menção de fugas frustradas, ainda não há garantia de compreensão. Já há algum tempo, a ideia de que um entendimento é narrativo é, em geral, tão reconhecida quanto as razões para o “giro emocional”; entretanto, o uso prático dessa percepção não tem se mostrado tão simples.

Referências

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  • SLABY, Jan et al. (eds.). Affektive Intentionalität: Beiträge zur welterschließenden Funktion der menschlichen Gefühle Paderborn: Mentis, 2011.
  • THIESSEN, Malte. Auf Abstand: Eine Gesellschaftsgeschichte der Coronapandemie Frankfurt a.M.: Campus, 2021.
  • WHITE, Hayden. Tropics of discourse: essays in cultural criticism Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978.
  • WHITE, Hayden. The ethics of narrative. v. 1: Essays on history, literature, and theory, 1998-2007 Ed. Robert Doran; pref. Judith Butler. Ithaca: Cornell University Press, 2022.
  • 1
    Ver, por exemplo, Heuer (2017 e 2019).
  • 2
    “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 47min59s e 51min12s.
  • 3
    “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 65min e 68min47s.
  • 4
    “Das weiße Band. Eine deutsche Kindergeschichte”, filme de Michael Haneke, 2009. Trecho entre 107min42s e 111min31s.
  • 5
    Entrevista concedida ao semanário autríaco Falter, n. 38, de 16 out. 2009. Quanto à radicalização intergeracional, ela também é encontrada, embora em outro contexto, na descrição do desenvolvimento da violência nas favelas do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins (2003).
  • 6
    A medida em que os valores da sociedade alemã mudaram desde os anos 1960 é demonstrada não apenas por estu­dos sobre a mudança das virtudes primárias e secundárias, mas também recentemente, por ocasião da pandemia da covid-19, por um estudo histórico que mostra a mudança na importância da proteção geral da população em favor da de indivíduos concretos, como os idosos e aqueles que necessitam de proteção em particular. Ver: Thiessen (2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    04 Jul 2022
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