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O conceito histórico de agregado e metodologia em história social (sul do Brasil, virada do século XVIII para o XIX)

The historical concept of agregado and methodology in social history (southern Brazil, turn of the 18 th to the 19 th century)

Resumo:

A pesquisa aborda as práticas de agregar e estar agregado e o registro dessas condições nos documentos do Brasil escravista. A documentação analisada compõe-se de dicionários e arrolamentos populacionais. A partir da crítica historiográfica e da leitura de dicionários, elaboramos uma definição das práticas de agregar e agregar-se. A partir da metodologia do cruzamento nominal e da reconstituição de famílias, identificamos a família extensa de alguns agregados e conseguimos analisar as diferenças no seio desta categoria. A hipótese defendida é a de que agregar era uma prática difusa e que o agregado não constituía um grupo ou uma camada social específicos. Além disso, os objetivos dos responsáveis pela produção dos documentos precisam ser considerados como elementos relevantes para entender como o termo “agregado” foi utilizado quando da elaboração dos registros.

Palavras-chave:
Agregados; História rural; População livre

Abstract:

The research addresses the practices of agregar and to be agregado and the record of these conditions in Brazil at the time of slavery. The documentation consists of dictionaries and population enrollments. From the historiographical criticism and the reading of dictionaries, we elaborated a definition of the concept of agregado. The methodologies of record linkage and family reconstitution made it possible to identify the extended family of some agregados, in order to allow the analysis of differences within this category. Our hypothesis is that agregar was a diffuse practice and that the agregado did not constitute a specific group or social stratum. In addition, the objectives of those responsible for the production of documents need to be considered as relevant elements to understand how the term agregado was used when the records were created.

Keywords:
Agregados; Rural history; Free population

Quando encontrada em documentos históricos, a expressão “agregado” revelou-se uma oportunidade para estudar experiências de pessoas livres nos tempos da escravidão. Nossa pesquisa pretende oferecer uma contribuição ao problematizar a constituição do conceito histórico, analisar os sentidos dicionarizados do termo e propor interpretações de como a expressão foi acionada por padres e capitães de distrito quando do registro dos documentos.

Em um primeiro momento, debateremos os diferentes caminhos através dos quais a historiografia contemporânea constituiu o conceito de agregado. Depois, consultaremos dicionários ibéricos dos séculos XVIII e XIX para compreender os significados mais amplos da expressão. Por fim, a partir do estudo comparativo de dois documentos que empregam a categoria de agregado, analisaremos como o ato de classificar quem era agregado estava ligado aos princípios e expectativas que orientavam a produção dos registros.

Nossa base documental compõe-se de dicionários ibéricos dos séculos XVIII e XIX e documentos relativos às freguesias de Porto Alegre e Viamão, Capitania do Rio Grande de São Pedro, na década de 1780. Dispomos dos registros de batismo, róis de confessados e as Relações de moradores. As metodologias empregadas são a pesquisa nominal em diferentes documentos, a catalogação de informações pertinentes às famílias e à reconstituição de parentelas.

A hipótese defendida neste artigo é que a concepção mais genérica possível da expressão agregado é a de que esta palavra designa uma figura nascida de uma prática social difusa de incorporação de indivíduos ou famílias a um corpo social. A expressão poderia abarcar os mais diferentes sujeitos e relações. No entanto, nos séculos XVIII e XIX, quando instituições como Igreja, o Vice-reinado ou alguma câmara de vereadores exigiam a produção de documentos, o responsável por sua elaboração obedecia a códigos e percepções próprias que o levavam a registrar alguns tipos de relações envolvendo agregados e a ignorar outros. Nesse sentido, o termo agregado encontrado em um documento não abarca todas as relações de dependência existentes passíveis de serem classificadas como “agregação” em uma localidade, mas apenas aquelas que passavam pelo filtro do responsável pelo registro e que poderiam interessar à instituição que demandou a produção do documento.

O conceito de agregado na historiografia

Em diferentes documentos produzidos na América portuguesa e no Império do Brasil, a expressão “agregado” (ou assemelhadas, como “vive a favor” ou “doméstico”) foi utilizada como um qualitativo destinado a indivíduos ou famílias dependentes de um proprietário de casa ou terras. Ao estudar os agregados encontrados nesses registros, historiadoras e historiadores transformaram o termo em um conceito histórico instrumentalizado para compreender a inserção de indivíduos livres, majoritariamente pobres, em suas comunidades.

Os conceitos históricos representam um instrumento inescapável à pesquisa em história por sua capacidade de generalização ao relacionarem eventos particulares que compartilham características comuns (Prost, 2008PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., p. 118-119). Como observa Jorn Rüsen (2015RÜSEN, Jorn. Teoria da história. Curitiba: Editora UFPR, 2015., p. 158-159), a construção do conceito histórico exige a intermediação entre presente e passado, isto é, entre os significados atuais da expressão e sua própria história. É preciso conhecer a “linguagem das fontes”, como diz Rüsen, mas essa não basta para compreender os significados que as palavras carregam. Em realidade, os conceitos encontram seu sentido ao participarem de uma rede maior junto a outros conceitos no interior de uma teoria, a partir da qual a história pode ser organizada e narrada (Prost, 2008PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., p. 123 e ss; Rüsen, 2015RÜSEN, Jorn. Teoria da história. Curitiba: Editora UFPR, 2015., p. 159-160).

Com esse entendimento, iremos distribuir as pesquisas históricas consultadas a partir de como o conceito de agregado foi relacionado a outros conceitos no interior de uma explicação histórica. O primeiro e mais importante grupo é aquele que associou agregado aos conceitos de escravidão e latifúndio (ou assemelhados, como sesmaria ou concentração fundiária). O segundo, sem desconsiderar os efeitos advindos da desigualdade colonial, enfatiza a associação do conceito de agregado ao de família. Se neste as práticas de agregar e estar agregado são vistas como pertinentes à reprodução familiar, inclusive como uma estratégia, naquele o estar agregado marca uma condição de pobreza ou fragilidade social.

O primeiro grupo de obras é aquele no qual o conceito de agregado está relacionado aos de escravidão e latifúndio. A associação entre tais conceitos confere premissas para pensar processos sociais de média e longa duração que explicam o desenvolvimento da formação econômica e social brasileira, incluindo mesmo o surgimento de camadas ou classes sociais específicas. Esse grupo de obras pode ser subdividido em dois segmentos, conforme a ênfase da relação favoreça o conceito de escravidão ou o de latifúndio.

Para Oliveira Vianna, em sua obra Populações meridionais do Brasil, os agregados vicentistas representavam uma “classe social” sob o domínio do pater familias. Habitavam em “choupanas” sobre “lotes aforados” próximos ao casario senhorial, vivendo na condição de “pequeno produtor consumidor”. Devido à oferta de trabalhadores escravizados, o agregado branco e pobre representava um “intruso”, praticamente desnecessário para os trabalhos exigidos nas lavouras e engenhos. Tal situação resultava da “lógica do regime sesmeiro e do regime servil”. Devido aos fenômenos da mestiçagem e da alforria, teria ocorrido um crescimento da população de ascendência negra e indígena entre os agregados. Entre o grande proprietário e o arrendatário, foreiro ou agregado estabelecia-se uma relação “instável, fugidia, infixa” (Vianna, 2005VIANNA, Francisco de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2005., p. 123, 125-126, 197). Depurados o racismo e a misoginia presentes na argumentação, a relação entre agregado, escravidão e latifúndio foi retomada em inúmeras pesquisas, como veremos a seguir.

Eni de Mesquita Samara, em seu estudo sobre os agregados da localidade paulista de Itu registrados nos Maços de população, afirma que os agregados representavam um setor dos “homens livres e sem propriedade” que não foram integrados à produção mercantil. Eles poderiam assumir “diferentes posições na periferia da família patriarcal”, enquanto amigo, parente ou recém-chegado. Os indivíduos sob esta situação comungavam do fato de não possuírem terras ou casa própria, de modo a tornar necessário o acerto com proprietários. A autora conclui que os agregados formavam uma “camada social” flutuante e complexa que permanecia na “periferia do sistema estrutural” (Samara, 2005SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Edusp, 2005., p. 94-95, 100, 151, 161-162).

Em sua tese, Cacilda Machado estudou a formação das hierarquias sociais em São José dos Pinhais a partir das listas nominativas. A autora encontrou “três categorias de indivíduos livres agregados a algumas unidades formadas por famílias nucleares”: parentes não nucleares, expostos e não parentes. Ao retomar a explicação de Oliveira Vianna e Eni Samara, segundo os quais a escravidão tornava o agregado um elemento intruso ou periférico às grandes unidades produtivas, Machado argumenta que o enfraquecimento do escravismo em São José forçou os produtores a disputarem agregados ao longo do século XIX. Para a autora, a presença de agregados indica a generalização de uma racionalidade patriarcal, na qual indivíduos com maior poder econômico e político tornavam pessoas estranhas seus dependentes, enquanto os menos poderosos exerciam seu poder de mando entre parentes (Machado, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008., p. 50 e ss).

O entendimento de que o agregado constitui uma classe ou camada social disfuncional em um regime de trabalho escravista não é confirmado em algumas pesquisas. Leandro Andrade (2007ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007., p. 152 e ss), ao analisar listas nominativas de Furquim, termo de Mariana, no século XIX, revelou que as grandes unidades produtivas escravistas eram as que mais empregavam agregados. Nos engenhos, os agregados somavam quase um terço da população livre, enquanto seu total representava um décimo do de cativos. Eles eram majoritariamente homens, negros ou pardos e solteiros. O autor avalia que essa categoria era formada por “indivíduos pobres, dependentes dos grandes proprietários e trabalhavam no funcionamento da unidade produtiva” (Andrade, 2007ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007., p. 159). Nesse caso, a relação entre agregação e escravidão não é de oposição, mas de associação.

Diferente das pesquisas anteriores, as próximas enfatizaram a conexão entre os conceitos de latifúndio e agregado, sem abordar o tema da “disfuncionalidade” do agregado no regime escravista. Em pesquisa sobre camponeses em Pernambuco e Alagoas, Guillermo Palacios (2004PALACIOS, Guillermo. Campesinato e escravidão no Brasil. Brasília: Editora UNB, 2004.) verificou que a simultaneidade do boom da produção de açúcar, da crise de abastecimento e do alistamento masculino forçado para as guerras meridionais, fragilizou as condições de vida dos camponeses durante o século XVIII. Nesse contexto, os “indivíduos que se separavam das comunidades” de “agricultores pobres” formavam “contingentes cada vez mais numerosos de desarraigados” que acabavam se tornando “moradores e agregados das propriedades escravistas” (Palacios, 2004, p. 206). Se em Itu a expansão da lavoura escravista afastava os agregados das grandes propriedades, em Pernambuco, a expansão do latifúndio escravista forçava os jovens filhos de camponeses a se abrigarem sob o poder dos senhores de engenho.

Para Carlos Bacellar (2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199.), em sua pesquisa sobre a vila de Sorocaba realizada a partir dos Maços de população, as práticas de agregar e estar agregado decorriam da extrema concentração de terras, a qual dificultava o estabelecimento de famílias de produtores em terras próprias. O autor chegou a esta conclusão ao analisar a lista nominativa de Sorocaba de 1772, na qual constatou que quase um quinto da população foi classificado como agregado ou vivendo a favor em terras alheias. Em virtude da fragilidade social decorrente da pobreza, da velhice, de doenças ou do abandono de crianças, a agregação representava um amparo para os mais necessitados. Em suas palavras, “a agregação era uma válvula de escape da sociedade colonial” (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 189). Poderia significar também uma possibilidade de atrair “prestadores de serviços” cujos trabalhos eram necessários à unidade produtiva. O autor define agregado como uma categoria social ampla e disseminada por inúmeros domicílios e que o conjunto dos agregados constituía um “universo humano (...) variado e complexo” (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 192).

Helen Osório (2007OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.), ao analisar as Relações de moradores de 1784, documento pertinente a toda a capitania do Rio Grande de São Pedro, demonstrou que estar “a favor” (uma expressão sinônima de agregado, como veremos no próximo tópico) era uma designação empregada para pequenos produtores rurais que estavam estabelecidos nas terras dos pais. Tal situação decorreria da falta de oportunidades para obter terras em um contexto de extrema concentração fundiária. Ainda que nenhuma das duas obras desconsidere o fato de que as grandes unidades produtivas eram escravistas, encontramos nas obras de Osório e Bacellar uma ênfase na associação entre concentração fundiária e agregado, sem que o último fosse visto como elemento sobressalente ao sistema social.

Independente da relação estabelecida com os conceitos de escravidão ou latifúndio, nessas pesquisas o conceito de agregado é entendido como uma classe (Vianna, 2005VIANNA, Francisco de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2005.), uma camada social (Samara, 2005SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Edusp, 2005.), uma categoria social (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199.) ou um contingente (Palacios, 2004PALACIOS, Guillermo. Campesinato e escravidão no Brasil. Brasília: Editora UNB, 2004.) nascidos da condição colonial, enquanto um sujeito ou família tornados intrusos, empobrecidos ou subordinados no processo de expansão colonial. No entanto, autores como Eni Samara e Carlos Bacellar enfatizam que tal explicação não é suficiente para dar conta da variedade de formas de estabelecimento de relações de agregamento.

O segundo conjunto de obras aqui analisado associa o conceito de agregado ao de família, entendendo as práticas de agregar e estar agregado como decorrentes das lógicas familiares de grupos pertencentes a diferentes segmentos sociais, não necessariamente pobres. Nos casos estudados nessas obras o agregado passa a ser entendido menos como uma classe, camada ou grupo social e mais como mecanismo de organização ou reprodução familiar.

Conforme Bert Barickman (2003BARICKMAN, Bert. Um contraponto baiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 220-221), em estudo sobre o mundo rural baiano do século XIX, laços de parentesco podiam unir indivíduos agregados sob o teto de terceiros àqueles que lhes concediam abrigo. O autor conclui que as categorias de “agregado” e “doméstico” encobriam muitas realidades, dentre as quais prováveis uniões consensuais entre homens solteiros e mulheres agregadas acompanhadas de filhos. Além disso, para o autor, o aceite de parentes pobres deveria ser frequente e a prática de agregar poderia representar uma forma de aumentar a mão de obra familiar.

Denize Freitas, ao pesquisar os Róis de confessados de Porto Alegre, entre 1780 e 1814, estabeleceu uma linha de análise na qual fez perceber que a expressão poderia encobrir vínculos familiares dos mais variados tipos. No domicílio de uma viúva, esta contava com dois agregados que foram identificados como netos pela autora graças ao cruzamento nominativo nos livros de batismo. Outro caso é o de uma chefe de domicílio forra que teve sua filha casada arrolada em alguns anos como vizinha, em outros como agregada no próprio domicílio. A autora suspeita, também, da existência de agregados que eram filhos bastardos ou sobrinhos ilegítimos (Freitas, 2017FREITAS, Denize. Para além do matrimônio: formas de união, relações familiares e sociais na freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017., p. 177-178).

Há estudos que enfatizam o fato de que as práticas de agregar e estar agregado representavam uma estratégia familiar, frequentemente empregada no interior da família extensa. Para Maria Luiza Marcílio, as práticas de agregar e se tornar agregado eram pertinentes ao funcionamento de uma economia camponesa contemporânea ao escravismo e ao latifúndio. A autora pontua que a maioria das famílias sem-terra de Ubatuba eram formadas por “casais muito jovens” instalados como “agregados de grupos domésticos de parentes ou não parentes”, enquanto outros trabalham nas terras dos pais, embora vivendo separados (Marcílio, 2006MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara. São Paulo: Edusp, 2006., p. 115). Agregar, para o padrão da roça, também poderia ser um modo de restabelecer um equilíbrio em um domicílio que tenha vivido uma quebra da família conjugal. Em outros casos, tornar-se agregado era o caminho quando a manutenção de um lar já não era possível (Marcílio, 2006MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara. São Paulo: Edusp, 2006., p. 119).

Luís Farinatti (2010FARINATTI, Luís. Confins meridionais. Santa Maria: Editora UFSM, 2010., p. 438 e ss) analisou casos de agregados encontrados em Alegrete, no Rio Grande do Sul, em inventários e processos crimes. Como a propriedade ou posse da terra não era elemento fundamental para desenvolver uma economia familiar baseada na criação de gado e em plantações para autoconsumo durante o século XIX, os agregados dispunham de autonomia diante dos senhores fundiários. O autor observa que estabelecer-se enquanto agregado não implicava criar uma relação de subordinação automática e, embora os proprietários pudessem contar com seus agregados para alguns serviços, nada garantia a oferta regular de trabalho. Farinatti insiste que os pactos entre proprietários e agregados precisam ser alvo de problematização a fim de se evitar a naturalização de uma suposta dominação férrea dos senhores sobre homens livres com poucas posses.

Luciano Gomes (2012GOMES, Luciano. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.) e Sandra Eckhardt (2019ECKHARDT, Sandra. Lavouras de sustento: demografia e estrutura agrária de São José do Taquari, 1765-1808. Dissertação de (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.) lançaram interpretações complementares sobre as práticas de agregar e agregar-se, entendendo-as como parte das estratégias de reprodução familiar. Para Gomes, as expressões “agregado”, “vive a favor” ou “arranchado” encontrada nas Relações de moradores de Porto Alegre, apesar de apresentarem diferenças entre si, designavam formas de “organizar os filhos e coordenar a mão de obra no interior de uma família extensa” (Gomes, 2012GOMES, Luciano. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012., p. 174). Para Eckhardt (2019MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara. São Paulo: Edusp, 2006.), em estudo a partir da Relação de moradores de Taquari, a relação de agregamento era criada pelos filhos e filhas que se casavam anteriormente aos seus irmãos e que, para os pais proprietários, representavam um acréscimo de mão de obra adulta e familiar. A autora reforça seu argumento ao constatar que foram poucos os casos encontrados de agregados que abandonaram Taquari em direção à fronteira (Eckhardt, 2019MARCÍLIO, Maria Luiza. Caiçara. São Paulo: Edusp, 2006., p. 38, 181 e ss).

Por fim, há pesquisas que salientam que famílias em melhores condições econômicas também empregavam a agregação. Franklin Pinto (2018PINTO, Franklin. Economia, agregação e reprodução social entre pequenos produtores (Jaguarão/RS, c. 1802-1835). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018., p. 85-86) encontrou o inventário de um pequeno produtor casado e agregado em propriedade da família localizada em Jaguarão, Rio Grande do Sul, enquanto seus pais residiam em Pelotas, onde possuíam uma charqueada. A prática da agregação, aqui, revela-se como uma estratégia de uma família extensa com razoável patrimônio destinada a dividir as tarefas de suprimento de reses e de salgamento das carnes. A condição de agregado, portanto, nem sempre é sinônimo de pobreza.

As historiadoras e historiadores constituíram o conceito de agregado relacionando-o a outros conceitos no interior de uma explicação histórica. Em muitas oportunidades, o entendimento da condição de agregado passa por sua relação com a escravidão e o latifúndio; em algumas, a ênfase é deslocada para sua relação com a família. Por este meio, diferentes explicações históricas foram elaboradas e os mais variados fenômenos ganharam visibilidade. Os agregados poderiam ser indivíduos solteiros subordinados a um chefe de unidade produtiva que lhes explorava a mão de obra (Machado, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.; Andrade, 2007ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.). Os agregados e agregadas poderiam ser, de outro modo, membros de uma mesma família (Barickman, 2003BARICKMAN, Bert. Um contraponto baiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; Freitas, 2017FREITAS, Denize. Para além do matrimônio: formas de união, relações familiares e sociais na freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.). Os agregados poderiam ser camponeses em uma situação de ruptura social (Palacios, 2004PALACIOS, Guillermo. Campesinato e escravidão no Brasil. Brasília: Editora UNB, 2004.), ou que enfrentavam problemas decorrentes da concentração fundiária (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199.; Osório, 2007OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.). A prática de agregar-se poderia ser, ainda, uma estratégia empregada por famílias camponesas que possuíam alguma margem de autonomia (Marcílio, 2006; Farinatti, 2010FARINATTI, Luís. Confins meridionais. Santa Maria: Editora UFSM, 2010.; Gomes, 2012GOMES, Luciano. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.; Eckhardt, 2019ECKHARDT, Sandra. Lavouras de sustento: demografia e estrutura agrária de São José do Taquari, 1765-1808. Dissertação de (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.). Essa estratégia poderia ser usada inclusive por famílias envolvidas em atividades mais lucrativas, como as charqueadas (Pinto, 2018PINTO, Franklin. Economia, agregação e reprodução social entre pequenos produtores (Jaguarão/RS, c. 1802-1835). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018.). Nenhum desses casos resume o que é ser agregado.

A condição de agregado poderia marcar a vida de muitos homens e mulheres pobres, mas a pobreza não era um traço suficiente para explicar a prática de agregar e de se tornar agregado. Da mesma forma como muitos agregados não tiveram a oportunidade de acessar terras próprias devido à concentração fundiária, essa desigualdade não afetava todos os agregados. Desse modo, a comparação das pesquisas acima mencionadas permite observar uma limitação pertinente ao processo historiográfico de constituição do conceito histórico de “agregado”: a escravidão, o latifúndio e a família são necessários para entender dinâmicas sociais espacial e temporalmente localizadas, mas não são suficientes para explicar a lógica subjacente às práticas de agregar e de se tornar agregado nem os modos de emprego do termo.

Nesse sentido, entendendo que um conceito histórico precisa fazer perceber processos ou tendências gerais apesar da dispersão dos eventos (Prost, 2008PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.; Rüsen, 2015RÜSEN, Jorn. Teoria da história. Curitiba: Editora UFPR, 2015.), parece-nos que a construção do conceito de agregado varia conforme o formato das teorias elaboradas, os processos sociais estudados e as fontes acessadas. Para tentar superar esse impasse em termos de percepção do que há de mais geral no que diz respeito à agregação, partiremos para a análise de um conjunto documental, os dicionários dos séculos XVIII e XIX.

Os sentidos de “agregado” e “agregar” nos séculos XVIII e XIX

Dentre os significados do termo agregado presentes no dicionário brasileiro Michaelis (2021), encontramos: “agricultor que se estabelece nas terras alheias, com permissão dos proprietários”; “aquele que vive em uma família como se fosse parente”; “pessoa que vive com uma família, prestando-lhe serviço; criado, serviçal”; e, por fim, em São Paulo, significa “indivíduo que mora em fazenda ou sítio e que, embora não seja propriamente empregado, presta serviços avulsos”. As definições apresentadas contemplam situações vinculadas ao acesso à terra ou ao abrigo de terceiros.

Como pontuou Luis Farinatti (2010FARINATTI, Luís. Confins meridionais. Santa Maria: Editora UFSM, 2010., p. 446-447), as definições atuais de agregado consolidaram-se na segunda metade do século XX e surgiram, provavelmente, ao longo da segunda metade do século XIX, durante o processo de mercantilização das terras. Para diminuir erros nascidos do anacronismo, propomos voltar aos dicionários coevos aos agentes históricos estudados para melhor compreender os sentidos acionados por padres e capitães de distrito quando faziam seus registros. Procuramos nos dicionários ibéricos e brasileiros dos séculos XVIII e XIX a definição de agregado e do verbo agregar quando destinados a caracterizar grupos humanos.

No dicionário da Real Academia Española (1726REAL Academia Española. Madrid: Imprenta de Francisco del Hierro, 1726. Disponível em: Disponível em: http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.1.0.0.0 . Acesso em: 8 abr. 2021.
http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNt...
, p. 122), agregado é “el conjunto de muchas cosas”. Ao se referir a pessoas, constam como exemplos: “agregando sectarios para falir violentamente con sus pretensiones” e “ella como madre verdadéra los admite e agréga, regala e favoréce mas que à sus próprios hijos”. Nesse dicionário, o verbo “agregar” refere-se tanto à uma relação de fidelidade a um líder de bando como à prática familiar de juntar seus membros e envolvê-los com favores: uma mãe agrega e favorece seus filhos. Fica evidenciada aqui a relação entre “agregado” e “favor”, observado em diferentes pesquisas.

No dicionário de Raphael Bluteau (Vocabulario..., 1728VOCABULARIO portuguez, e latino, aulico, anatomico, architetonico, belico, botanico... pelo padre D. Raphael Bluteau. v. 1. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/agregado. Acesso em: 8 abr. 2021., p. 168-169), “agregado” significa “ajuntamento ou união de muitas coisas para composição de uma só”. Como exemplos, cita-se: “agregavam-se às primeiras companhias de soldados”. Estar agregado permite encontrar um “companheiro” ou “camarada”. A expressão “agregar-se a alguém” significa tomá-lo por amigo ou seguir seu partido. Nessa definição, ainda que não apareça referência de acesso à terra ou à família, indica-se a existência de uma relação de obediência, fidelidade política ou afeto.

Quatro décadas depois, na versão do dicionário da Real Academia Española de 1770, o verbo “agregar” passa a incluir a definição de “añandir o uniendo ó juntando unas personas” (Real..., 1770REAL Academia Española. Madrid: Joachín Ibarra, 1770. Disponível em: Disponível em: http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.1.0.0.0 . Acesso em: 8 abr. 2021.
http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNt...
, p. 101). Mais tarde, em Portugal, o dicionário de Antônio de Moraes e Silva (Diccionario..., 1789ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007., p. 64-65) apresenta uma melhor sistematização das expressões. O termo “agregação” passa a ter um sentido político exposto pelo exemplo “agregação de reinos”. Poderia ser, também, um agregado de vadios. O verbo “agregar”, por sua vez, significa “receber na família”, agregar-se ao exército ou à Igreja, juntar-se a alguém, ajuntar-se a uma corporação, colégio ou grêmio ou, “estar acostado à família”. A expressão “acostar” é interessante. Segundo Moraes e Silva, significa “acostar-se a alguém; entrar em seu serviço”, bem como “seguir o seu parecer, e autorizar-se com ele” e “seguir o seu bando, partido” (Diccionario..., 1789ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007., p. 33).

Ao longo do século XIX, não houve alteração significativa no sentido do termo. No ano de 1817, o dicionário da Real Academia Española (1817) inclui uma nova definição ao verbo agregar: “destinar a alguna persona a algun cuerpo ú oficina, pero sin darle plaza efectiva”. Isso se refere à obtenção de cargo no serviço público ou real sem ter lugar definido, como na diplomacia. Ao retomarem as definições de Moraes e Silva, nem o dicionário brasileiro de Luiz Maria da Silva Pinto (Diccionario..., 1832PINTO, Franklin. Economia, agregação e reprodução social entre pequenos produtores (Jaguarão/RS, c. 1802-1835). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018., p. 34) nem o do frei Domingos Vieira (Grande dicionário..., 1871, p. 225) trouxeram alterações significativas. No último, cite-se que “agregar-se” significa “bandear-se, mancommunar-se, ajuntar-se, emparceirar-se, associar-se”. Verificamos, portanto, uma estabilidade de longo prazo na forma como agregado e agregar foram definidos.

Somente em fins do século XIX a conotação fundiária foi incluída no termo. No Diccionario de vocabulos brazileiros (1889, p. 3), agregado é definido como “lavrador pobre, que, em falta de terras proprias, se estabelece nas fazendas alheias”. Ainda no mesmo dicionário, o termo designava qualquer empregado livre a serviço de um proprietário nas províncias do Norte, enquanto camarada é o termo correlato nas províncias no Sul. Em um dicionário espanhol de 1895, a expressão é apontada como originária da América e designa arrendatário (Diccionario enciclopédico..., 1895DICCIONARIO ENCICLOPÉDICO de la lengua castellana. París: Garnier Hermanos, 1895. Disponível em: Disponível em: http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.0.0.0.0 . Acesso em: 8 abr. 2021.
http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNt...
, p. 82). Somente nos últimos anos do século XIX encontramos definições semelhantes àquela do dicionário Michaelis apresentada na abertura do tópico. Seguramente, a nova definição está relacionada ao processo de mercantilização das terras e de crescente dificuldade para o acesso fundiário por parte dos produtores mais pobres, como apontara Luís Farinatti (2010FARINATTI, Luís. Confins meridionais. Santa Maria: Editora UFSM, 2010., p. 446-447).

Os vários fragmentos encontrados nos dicionários do século XVIII concordam com o significado consolidado no dicionário de Moraes e Silva, de 1789, de que a prática de agregar incluía um indivíduo dentro de um corpo social, seja a família, o serviço do rei (no exército ou na diplomacia), um grêmio ou a Igreja. Agregar era tornar alguém parte da sociedade ao colocá-lo sob a proteção, o favor ou o parecer de outrem que possuía algum nível de autoridade. Era um princípio orientador de práticas difusas, coerente com uma concepção corporativa de sociedade, segundo a qual essa estaria organizada em corpos relativamente autônomos, fontes do poder e do direito, sem os quais os indivíduos não desenvolveriam nem identidade nem vínculos (Xavier, Hespanha, 1993XAVIER, Ângela; HESPANHA, Antônio. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, António (coord.). O Antigo Regime: história de Portugal. Lisboa: Estampa, 1993. p. 121-155.; Hameister, 2006HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila do Rio Grande através dos registros batismais 1788-1763. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.).

Se vimos no tópico anterior que as desigualdades geradas pela escravidão e pela concentração fundiária tinham estimulado a produção de pessoas em situação de dependência, elas não são suficientes para explicar o fenômeno da agregação. Nesse mesmo sentido, a leitura dos dicionários modernos adverte-nos que o termo agregado não possuía conotação particular a um grupo ou classe social, nem mesmo referência à questão fundiária, mas indicava o sujeito resultante de um processo de inclusão a um corpo social. Por isso poderia ser aplicado a uma variedade situações e destinado a homens e mulheres livres dos mais variados status. No próximo tópico, utilizaremos a concepção de agregado aqui desenvolvida para refletir sobre os modos de emprego do termo em documentos de fins do século XVIII para, assim, testar nossa hipótese de pesquisa.

Os agregados em Porto Alegre e Viamão, década de 1780

Porto Alegre e Viamão são duas localidades vizinhas que apresentavam processos demográficos e políticos diferenciados durante a década de 1780. Porto Alegre tornou-se uma freguesia em 1772, quando foi desmembrada de Viamão, localidade cuja ocupação remontava à década de 1730. As instituições de governança foram estabelecidas em Porto Alegre e a localidade também se tornou um centro comercial regional. Em Viamão, por sua vez, ocorria um processo de despovoamento, enquanto a primeira geração de estancieiros encontrava-se idosa e seus filhos e filhas tomavam a liderança das famílias e das propriedades. Após um processo de redistribuição de terras iniciado nos anos 1770, os pequenos e médios produtores passaram a predominar numericamente na região. Entre rebanhos e lavouras de trigo, o escravismo era uma instituição fundamental, considerando o fato de a maioria dos domicílios contar com cativos (Kühn, 2006KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa, século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006.; Gomes, 2012GOMES, Luciano. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.; Freitas, 2017FREITAS, Denize. Para além do matrimônio: formas de união, relações familiares e sociais na freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.).

A documentação a ser analisada foi produzida entre 1781 e 1785 e compõe-se de dois tipos de arrolamentos populacionais: os Róis de confessados e as Relações de moradores. Ambos contam com indivíduos classificados como agregados, o que representa uma oportunidade para comparar os modos de emprego do termo. Nosso objetivo é o de instrumentalizar o conceito de agregado desenvolvido no tópico anterior para mediar a comparação das experiências sociais abrigadas sob o mesmo termo. Ao demonstrar o que havia de comum - e justificava o uso da expressão “agregado” - podemos problematizar a produção documental e, assim, pensar em parâmetros que viabilizem a comparação adequada entre pesquisas e fenômenos.

Neste ponto, enfatizamos a importância das preocupações de Lucila Brioschi relativas às condições de produção da fonte, pois, conforme constatou, ocorriam “variações de critérios” por parte dos recenseadores ao longo do tempo, o que resultava em alteração na dimensão dos fogos (Brioschi apudBacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 191). Em diálogo com as contribuições da autora, Carlos Bacellar (2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 192) encontrou, por exemplo, casos de crianças expostas classificadas como agregadas em uma lista de habitantes, mas classificadas como filho do casal em outra. Semelhante reflexão metodológica é fundamental para esta pesquisa.

Nesse mesmo sentido, um segundo fator a ser considerado é a percepção do elaborador do documento em relação às dinâmicas de poder na localidade. Na Descrição da Capitania de São José do Piauí, datada de 1772, o ouvidor Antônio José Durão classificou os agregados como “pestes da República” e “pestífera raça” ao denunciar sua insubordinação às autoridades reais e eclesiásticas. Apesar de, segundo Durão, furtarem os donos das fazendas onde residiam e não se dedicarem ao trabalho, os proprietários os aceitavam tanto por medo de represálias quanto por “dependência”, pois os agregados eram necessários para formar bandos armados (Mott, 1985MOTT, Luiz. Piauí colonial. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985., p. 22 e ss). O agregado poderia ser reconhecido como alguém em posição de subordinação junto ao proprietário de terra que lhe deu abrigo, o que possuía implicações nos processos judiciais, conforme constatou Farinatti (2010FARINATTI, Luís. Confins meridionais. Santa Maria: Editora UFSM, 2010., p. 441-442). Nesse sentido, a dinâmica sociopolítica a envolver os agregados era alvo da leitura e interpretação dos agentes produtores dos documentos.

Nas próximas páginas, desejamos analisar um terceiro fator, que são os objetivos das instituições que demandavam a produção dos documentos, as quais estabeleciam critérios para a organização das informações e classificação dos sujeitos. Ao entender que o termo agregado designava uma prática difusa de incorporação de indivíduos em instituições e que as autoridades que redigiam os documentos empregavam critérios particulares, apontamos que essas autoridades também precisavam sinalizar aquelas relações sociais que poderiam despertar o interesse das instituições para as quais trabalhavam (como a Coroa, a Igreja ou a câmara de vereadores).

Como resultado, considerando os três fatores, nossa hipótese é a de que um documento isolado não é capaz de compreender todas as possíveis experiências de dependência passíveis de serem classificadas pelo termo agregado. Essa hipótese é dependente de três enunciados que podem ser testados empiricamente, quais sejam: 1) havia tantos modos de agregar e tornar-se agregado que nenhum documento histórico isolado pode contemplar sua variedade; 2) havia famílias sem-terra que se encontravam sobre as terras de terceiros, mas que não foram descritas como agregados em qualquer documento; 3) em uma mesma localidade e época, indivíduos ou famílias com diferentes níveis de riqueza e posição social foram classificadas como agregadas.

O teste dos enunciados tem como evidência empírica um conjunto de informações inserido em um banco de dados construído a partir de quatro fundos documentais e organizado a partir do método da pesquisa nominal e da catalogação de informações disponíveis pertinentes a cada família (Levi, 2000LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.; Hameister, 2006HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estratégias sociais e familiares na formação da Vila do Rio Grande através dos registros batismais 1788-1763. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.; Gil, 2009GIL, Tiago. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios de Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.; Fragoso, 2014FRAGOSO, João. Apontamentos para uma metodologia em história social a partir de assentos paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII). In: FRAGOSO, João et al. (org.). Arquivos paroquiais e história social na América Lusa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. p. 21-125.; Marques, 2018MARQUES, Rachel. Para além dos extremos: homens e mulheres livres e hierarquia social (Rio Grande de São Pedro, c.1776- c.1800). São Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: Anpuh-RS, 2018.). Os documentos em questão são os já apresentados Róis de confessados e as Relações de moradores, além de registros de batismos,1 1 Os registros se restringem ao período entre 1781 e 1790. a partir dos quais levantamos informações pertinentes a 425 famílias nucleares ligadas ao setor rural. As Relações de moradores nos informam as famílias proprietárias de terras e aquelas classificadas como agregadas. Os Róis de confessados informam as famílias que residiam na área rural de ambas as localidades. Por fim, com os registros de batismos identificamos casais formados por filhos de produtores rurais.

O primeiro enunciado a ser testado é o de que nenhum documento é capaz de captar todos os modos ou condições de agregar e estar agregado. Em realidade, o modo de emprego do termo variava de documento para documento, a depender tanto dos critérios individuais dos responsáveis pelo registro (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 191-193), como da orientação da instituição produtora de documentos. Ao fim e ao cabo, os agregados eventualmente encontrados em um documento não refletem ou representam a totalidade dos agregados de uma localidade; o registro depende da conjugação dos critérios pessoais do recenseador, da sua percepção das relações de poder na localidade e do seu nível de interesse em atender às demandas da instituição que exigiu a elaboração do documento. Abaixo, vamos observar o conjunto dos indivíduos classificados como agregados em cada um dos arrolamentos populacionais de que dispomos.

No Império português, a elaboração do rol de confessados era uma obrigação dos párocos no período da Quaresma, os quais deveriam respeitar as instruções constantes nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.2 2 Ver: D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia de Antonio Louzada de Antunes, 1853, título XXXVII, p. 61 e ss. No registro de cada domicílio deveriam ser listados seus membros e o tipo de vínculo em relação aos chefes de casa, se parentes, escravos ou criados. Como não há indicação do uso da expressão “agregado” nas Constituições, podemos supor que o emprego da expressão nos Róis de Viamão e Porto Alegre resultou de seu uso costumeiro.

Nos Róis de confessados ora analisados listam-se os domicílios das freguesias e seus membros, os quais são divididos entre chefes de fogo e familiares, escravos e agregados. Conforme demonstrou Denize Freitas (2017FREITAS, Denize. Para além do matrimônio: formas de união, relações familiares e sociais na freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017., p. 173-174, 178), os agregados faziam-se presentes entre 15 e 25% dos domicílios registrados nos Róis de confessados de Porto Alegre entre 1780 e 1814. Os agregados viviam as situações mais diferentes, como agregados parentes, agregados escravos, agregados em situação de passagem e agregadas que carregavam o título de “dona”.

Considerados os registros dos Róis de Viamão em 1781 e de Porto Alegre em 1782,3 3 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA), Róis de confessados de Porto Alegre de 1782 e Róis de confessados de Viamão de 1781. soma-se o total de 469 domicílios. Desses, 17% apresentava ao menos um agregado. Se considerarmos apenas os domicílios rurais (259), o valor desce para 13%. O número mediano de agregados na totalidade das freguesias é de 3 pessoas, valor que baixa para 1 entre os domicílios rurais. Apesar de os domicílios rurais predominarem (55%), concentravam a menor parte dos agregados (48%). Nesse sentido, o registro de agregado nos róis foi mais frequente nos domicílios do espaço urbano de Porto Alegre e do povoado de Viamão (nos arredores da paróquia), algo semelhante ao encontrado por Eni Samara (2005SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Edusp, 2005.) em Itu. É possível que a maioria desses agregados vivesse sob o teto do proprietário, mas não podem ser desconsiderados casos de agregados que habitassem casas ou tetos secundários nos fundos da casa principal, como ponderou Lucila Brioschi (apudBacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 191-193). Como bem observa Carlos Bacellar, “a agregação não consistiria, necessariamente, na instalação de um tecto comum”, “não implicava obrigatoriamente a coabitação, mas sim o pertencer a uma unidade económica de produção” (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199., p. 193).

As Relações de moradores de 1784-17854 4 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Relações de moradores de Porto Alegre e Gravataí de 1785, Códice F-1198A; Relações de moradores de Viamão de 1785, Códice F-1198B; Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) Relação de moradores que têm campos e animais no Continente, Códice 104, v. 6, 7 e 8. são listas de produtores rurais da capitania do Rio Grande de São Pedro realizadas a partir da ordem do vice-rei do Brasil para conhecer o estado da ocupação da terra e das atividades agropecuárias da região. Nelas, encontramos os nomes dos produtores, se possuíam terras ou estavam agregados em terras de terceiros, se cultivavam lavouras e se possuíam rebanhos. Para a maioria das freguesias, existem duas versões do documento: o esboço realizado pelos capitães de distrito e a versão oficial organizada pela Fazenda Real e enviada ao Rio de Janeiro (Osório, 2007OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.). Como regra, a primeira versão está mais atenta à realidade local e informa mais frequentemente o nome dos agregados e suas posses, enquanto a versão oficial tende a ignorá-los.

Dos 191 produtores rurais listados conjuntamente em Porto Alegre e Viamão, 30 foram classificados como “agregado”, “arranchado” ou “vive a favor” (todas expressões sinônimas, indicando alguém que residia sobre as terras de terceiro). Todos possuíam rebanhos, enquanto 21 possuíam lavouras. Os agregados listados nas Relações, portanto, eram pequenos ou médios produtores rurais que estabeleceram suas posses agropecuárias sobre terras que não eram suas. Quando procuramos os agregados das Relações de moradores nos Róis de confessados por meio do cruzamento nominal, encontramos 19 deles na posição de chefes de família, sem que houvesse qualquer referência nesse documento ao fato de estarem agregados sobre as terras de terceiros.

Nas duas freguesias, entre 1781 e 1785, os documentos consultados permitem conhecer dois perfis sociais identificados como agregados: segundo os Róis de confessados, os agregados eram indivíduos estabelecidos sob o teto do proprietário - ou, em alguns casos, em casa secundária nos fundos da casa principal -, a maioria residindo no espaço urbano; os agregados das Relações de moradores, por sua vez, eram pequenos produtores e chefes de domicílio. O padre responsável por elaborar os róis, ao respeitar o que ordenavam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, identificou como agregados indivíduos que aparentavam maior nível de dependência em relação ao proprietário. O termo não foi empregado para os chefes de fogo que residiam em domicílio próprio sobre as terras de outrem. Ao elaborar as Relações de moradores, os dois capitães de distrito envolvidos preocuparam-se em destacar quem eram os donos de rebanhos que se encontravam em terras de terceiros, classificando-os como agregados. Baseados em critérios desenvolvidos em suas vivências e orientados por diretrizes e objetivos específicos ditados pelas instituições para as quais trabalhavam, as autoridades tomaram nota de certos vínculos de agregamento, mas não de outros.

O segundo enunciado a ser testado é o de que havia famílias sem-terra que seguramente viviam em terras de terceiros, mas que não foram classificadas como agregadas por provavelmente não atenderem aos critérios que orientaram os capitães de distrito. A partir de nossa base de dados, foi possível quantificar o número de famílias sem-terra que não foram classificadas como agregadas. No Gráfico 1, as famílias estudadas foram divididas entre as proprietárias e as sem-terra. Esse último grupo foi dividido em três partes: os produtores classificados como agregados, os parentes de proprietários de terras e, por fim, os moradores da área rural que não possuíam terras, profissão informada ou parentesco com proprietário.

Gráfico 1
Chefes de domicílio, se proprietários ou não de terras, Porto Alegre e Viamão, década de 1780

Os dados revelam uma expressiva participação de unidades domésticas chefiadas por proprietários de terras, que somam quase dois quintos do total. Os outros três quintos (61%) não possuíam terras e provavelmente precisavam acertar-se com os proprietários para ter onde residir. Dentro desse grupo de não proprietários, verificamos que apenas um pequeno segmento foi classificado como agregado nas Relações de moradores (7% do total). A maioria das famílias nucleares de sem-terra não foi classificada como agregada em qualquer documento. Ao considerar que a região estava ocupada desde os anos 1730 e encontrava sua fronteira agrícola fechada (Comissoli, 2009COMISSOLI, Adriano. Do arquipélago ao continente: estratégias de sobrevivência e ascensão social na inserção açoriana nos Campos de Viamão (séc. XVIII). Revista Aedos, v. 2, p. 74-96, 2009.; Gomes, 2012GOMES, Luciano. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.), vemo-nos diante de dezenas de unidades domésticas que seguramente viviam em terras de terceiros.

Na Tabela 1, vamos comparar a composição dos núcleos domésticos dos sem-terra, os 61% do gráfico acima. O conjunto a ser analisado restringe-se àquelas famílias para as quais encontramos registro nos Róis de confessados (117 unidades domésticas). O segmento dos parentes de proprietários foi dividido em duas partes: aquele formado por filhos e filhas e aquele formado por sobrinhos, irmãos, pais e outros. A informação de idade é encontrada nos dois Róis de confessados.

Tabela 1
Composição dos domicílios de famílias sem-terra, conforme tipo de relação com proprietário fundiário, Porto Alegre e Viamão, 1781-1782

O conjunto dos agregados produtores rurais tinha a idade mediana de 31 anos e a maioria dos que viviam sob seus tetos eram pessoas escravizadas e agregados individuais. Ao contrário, os demais segmentos apresentavam o predomínio de familiares. O conjunto dos filhos ou filhas de proprietários de terras tinha uma idade mediana de 27 anos e quase um terço daqueles que moravam em suas casas não pertenciam ao núcleo familiar, o que indica a capacidade de obtenção de mão de obra um pouco superior àquela dos demais parentes de proprietários de terras. Estes últimos conformavam um grupo idoso, com idade mediana de 60 anos. Por fim, o grupo dos não parentes de proprietários apresentava uma idade de adulto madura (41,5 anos de mediana) e revelava limitações econômicas e sociais semelhantes àquela do segmento anterior, pois a presença de cativos é pequena e os agregados individuais somam apenas um centésimo dos membros de seus domicílios.

Como vimos, os capitães de distrito que redigiram os rascunhos das Relações de moradores designaram como agregados apenas aqueles que possuíssem rebanhos ou lavouras. Por isso, é possível supor que os jovens filhos e filhas de proprietários então casados não foram incluídos nas Relações por não possuírem recursos próprios e estarem a cultivar as lavouras ou a cuidar dos rebanhos dos pais. Os demais parentes dos proprietários de terras encontravam-se em fase avançada de seu ciclo de vida e provavelmente dependiam do amparo da família extensa. As famílias de não parentes de proprietários deveriam se encontrar a trabalhar a jornal junto aos proprietários. Em suma, a limitada presença de cativos e agregados a residir junto à maioria dos segmentos sem-terra, ao que se inclui a juventude de uma parte e a idade elevada de outra, é coerente com a suposição de formarem grupos sem posse de recursos agrários, o que explica sua não inclusão na Relação de moradores.

Por fim, o terceiro enunciado é o de que a prática de se agregar não era exclusividade dos pobres. Antes, poderia ser empregada por famílias e indivíduos pertencentes aos mais diferentes segmentos sociais e econômicos. Neste momento, estudaremos apenas as 19 famílias cujos chefes foram declarados como agregados nas Relações de moradores e cujo registro de domicílio foi encontrado nos Róis de confessados. Ao identificar seus pais e mães por meio dos registros de batismos, podemos tomar a atividade produtiva dos últimos (informada nas Relações de moradores) como um fator de análise, considerando os meios de reprodução das famílias. Na Tabela 2, os agregados serão distribuídos conforme a ocupação dos pais, se estes eram lavradores (em geral, pequenos e médios produtores), lavradores-criadores (a elite agrária da região) ou se os pais não foram identificados como produtores.

Tabela 2
Idade mediana e mão de obra dos agregados chefes de domicílio, Porto Alegre e Viamão, 1781-1782

A maioria dos agregados de Porto Alegre e Viamão eram filhos ou filhas de proprietários rurais, situação semelhante à encontrada no restante da capitania (Osório, 2007OSÓRIO, Helen. O Império português no sul da América. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.). O conjunto das três famílias de agregados sem pais produtores apresentava um perfil de adultos maduros e chefes de domicílio de pequena dimensão. O perfil das famílias formadas por filhos ou filhas de pais lavradores é o de adulto jovem, chefe de domicílio de pequena dimensão e recentemente formado. A maioria dos residentes de seus domicílios era de familiares. Por fim, o perfil dos filhos de lavradores-criadores era o de adulto maduro, chefe de domicílio de ampla dimensão. Esses possuíam 42 pessoas escravizadas, as quais somavam mais da metade das pessoas sob seus tetos, aos quais se somam 9 agregados. Se os sem-terra não parentes de proprietários e os filhos de lavradores possuíam unidades domésticas com predomínio familiar, os filhos e filhas de lavradores-criadores chefiavam unidades domésticas plenamente escravistas.

Esses dados permitem concluir que famílias de todos os setores sociais agrários poderiam ser qualificadas por essa expressão, desde jovens casais filhos de pequenos produtores até produtores escravistas que residiam nas terras paternas ou maternas. Além disso, os filhos e filhas dos mais ricos produtores tornavam-se agregados nas fazendas dos pais, onde estabeleciam domicílio próprio (como informado nas Relações), no interior do qual abrigavam indivíduos agregados (como informado nos Róis).

Em termos metodológicos, propomos o estabelecimento de parâmetros para segmentar os agregados em grupos a fim de poder compará-los aos agregados estudados em outras pesquisas. Isso porque os agregados não podem ser considerados como uma classe, camada ou categoria, sob o risco de subsumir experiências díspares sob o mesmo termo. Os agregados escravistas residentes nas terras de seus pais de Porto Alegre e Viamão poderiam ser adequadamente comparados ao agregado filho de charqueadores de Jaguarão (Pinto, 2017PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.). Os agregados filhos ou filhas de lavradores podem ser comparados aos agregados também filhos de lavradores de Taquari (Eckhardt, 2019ECKHARDT, Sandra. Lavouras de sustento: demografia e estrutura agrária de São José do Taquari, 1765-1808. Dissertação de (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.) ou aos pequenos produtores de Sorocaba (Bacellar, 2001BACELLAR, Carlos. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz (coord.) Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 187-199.). Os agregados individuais instalados sob o teto de lavradores-criadores, por sua vez, podem ser comparados aos agregados estabelecidos junto aos mais ricos produtores paulistas ou mineiros (Machado, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.; Andrade, 2007ANDRADE, Leandro. Senhor ou camponês? Economia e estratificação social em Minas Gerais no século XIX. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007.). Ao controlarmos metodicamente o modo como o termo agregado foi empregado, podemos segmentar os grupos para então compará-los, o que permite avaliar com maior acuidade tanto os recursos acessíveis e as margens de autonomia dos sujeitos estudados como a própria prática do agregamento.

Considerações finais

As sociedades americanas nascidas da conquista ibérica apresentaram como uma de suas concepções a noção segundo a qual eram os corpos sociais que mantinham a ordem e definiam o lugar dos indivíduos. Aqueles indivíduos que estivessem a procurar um lugar ou estivessem em situação de fragilidade poderiam ser incluídos em um desses corpos, no interior dos quais se esperava um mínimo de deferência. No contexto dos impérios ibéricos, poderia ser um soldado agregado ao exército, um nobre agregado a uma delegação diplomática, uma filha casada agregada nas terras dos pais ou um liberto agregado na casa de um capitão. Portanto, a prática de agregar apresenta um nível de plasticidade e acessibilidade que não pode ser resumido a um determinado grupo ou tipo ou à estratégia social. Poderia implicar desde relações de solidariedade até relações de controle social.

Ao verificar a diversidade de relações estabelecidas em Porto Alegre e Viamão durante a década de 1780, podemos concluir que a constituição do conceito histórico de agregado pode seguir variados caminhos. O latifúndio e a escravidão tornaram-se elementos que possibilitavam a agregação por parte dos filhos da elite regional. Por outro lado, o latifúndio obrigava as famílias sem-terra a se agregarem junto àqueles que lhes cediam acesso. A família camponesa, por sua vez, encontrava na posse de terras uma possibilidade para agregar um ou outro jovem casal formado por filhos para que estes começassem sua vida doméstica, contribuindo para a formação de uma mão de obra no interior da família extensa. Apesar da diferença de casos, encontramos o princípio de que uma instituição poderia ou deveria favorecer, proteger ou abrigar indivíduos ou famílias ao incluí-los em seu corpo.

A partir de nosso estudo, concluímos que as possibilidades de análise das práticas de agregar e estar agregado estão limitadas pela documentação disponível, pela forma pela qual o autor do documento definiu o tipo de agregado que lhe interessava registrar e que a expressão não se referia a um grupo social específico. A expressão “agregado” não é um reflexo límpido dos grupos subalternos do Brasil antigo, mas um prisma que refrata a intepretação de um indivíduo letrado e de instituições sobre indivíduos ou famílias que estabeleciam vínculos de dependência, sem importar os grupos sociais ou os tipos de vínculos envolvidos. Importa, nesse sentido, atentar para a forma de emprego da expressão nos documentos analisados para entender com maior profundidade as condições de vida dos sujeitos sob estudo.

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  • 1
    Os registros se restringem ao período entre 1781 e 1790.
  • 2
    Ver: D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia de Antonio Louzada de Antunes, 1853, título XXXVII, p. 61 e ss.
  • 3
    Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA), Róis de confessados de Porto Alegre de 1782 e Róis de confessados de Viamão de 1781.
  • 4
    Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Relações de moradores de Porto Alegre e Gravataí de 1785, Códice F-1198A; Relações de moradores de Viamão de 1785, Códice F-1198B; Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) Relação de moradores que têm campos e animais no Continente, Códice 104, v. 6, 7 e 8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2022
  • Aceito
    24 Jun 2022
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