A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), que há mais de trinta anos se consolida como modelo assisten cial, enfrentou e enfrenta grandes desafios. Contando com alguns atrasos e alguns avanços valiosos, podemos dizer que o caminho traçado pela RPB leva de fato a questionar valores mais íntimos da sociedade. É a partir do questionamento sobre como a sociedade se organiza e como a Saúde Mental (ou a Psiquiatria) responde à demanda a ela endereçada que podemos avaliar os caminhos que a assistência a esse campo vem se desenhando no Brasil.
O livro de Angela Maria Pagot aborda um dos temas fundantes da psiquiatria: a relação da cidade com os loucos, em especial os chamados 'loucos de rua'. Importante destacar que a partir do estabelecimento da loucura como doença, a assistência em psiquiatria ganha um contorno próprio, impulsionando uma tentativa de resposta ao 'incômodo' gerado na convivência e também ao sofrimento demonstrado pelo louco.
Sabemos que a RPB é um processo, e como tal se reorganiza, reinventa e a cada novo passo um novo caminho de possibilidades se abre. Essa foi uma aposta explícita da RPB: ao colocar acento na cidade, questionando o modelo hospitalocêntrico e fazer uma aposta de que a assistência em saúde mental não se esgota em algum tratamento específico; ampliou a questão da loucura destacando sua formação a partir das relações e como as relações se revelam no seu trato. Também já não é novidade que alguns aspectos do modelo de assistência hospitalocêntrico foram, se não negligenciados, pelo menos não tomados como ênfase no processo e construção da RPB. É o caso dos manicômios judiciários, por exemplo, e também podemos destacar de certo modo a loucura errante das ruas. É certo que uma aposta nos termos da loucura e sua relação com cidade já contempla que a mesma deva ser simplesmente encarcerada nas tramas discursivas de um serviço ou rede; mas há que se questionar em que medida os efeitos da RPB renderam frutos para uma população que sempre esteve à margem do tratamento formal (ou por não ter acesso a ele ou por recusá-lo). Lançar luz sobre essa relação é de grande valia, não só para pensar nas formas de assistência direta disponíveis aos mais diferentes modos de viver a loucura, mas também para pensarmos nos efeitos da RPB enquanto movimento que propõe um novo olhar sobre a mesma.
O livro é dividido em três partes que expressam bem os termos que constituem essa relação: I) Cidades; II) Saúde; e, III) Comunidade.
No primeiro capítulo, uma discussão sobre a cidade inaugura o debate, apresentando assim Porto Alegre, cenário da pesquisa desenvolvida. O debate sobre o território ganha destaque na terceira parte do primeiro capítulo, e autores como Walter Benjamin, Sergio Rouanet e Milton Santos (dentre outros) dão o tom da leitura sobre a apropriação da cidade, ou do território encarnado no homem. A discussão sobre o território, cara a Saúde Mental por princípio, parece ser o ponto de ancoragem mais relevante da pesquisa, já que localiza de que cidade, de que território se trata ao abordar as relações entre isso que chamamos de cidade e o que chamamos de loucura em situação de rua.
No segundo capítulo, a saúde ganha cena, descrevendo a rede de Saúde Mental de Porto Alegre, localizada a partir da história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, no Rio Grande do Sul e, finalmente, na cidade. A partir dessa localização, podemos entender os serviços e sua distribuição na cidade, podendo singularizar em cada bairro, ou em cada serviço, as peculiaridades das relações únicas construídas em cada espaço relacional; sempre atravessados pelas relações com as instituições constituintes do território.
O referencial utilizado é a Representação Social, buscando revelar as relações que se estabelecem entre os atores que compõe o recorte preciso entre a loucura de rua e a cidade. No terceiro capítulo temos então a articulação entre a comunidade e da Loucura que habita as ruas da cidade.
O que podemos notar como um dos resultados da pesquisa, é que a loucura e a cidade de algum modo se acomodam, seja com a intervenção dos dispositivos de saúde ou apesar deles. Assumir que há certa acomodação dentro da errância própria da loucura de rua, não significa dizer que não há tensão ou conflito, mas que há um arranjo possível. Tais arranjos, identificados pela autora em algumas categorias demonstram que ao articular a loucura e as respostas sociais dadas a ela, temos um retrato concomitante dos termos que compõe a equação: não há como falar dos chamados loucos de rua, sem falar da rua. Não dá para falar da rua, sem falar da cidade que atravessa e determina tanto o modo de agir com a loucura como influencia e é determinada pelos modos de assistência desenvolvidos pela Saúde Mental.
Quando assume que a comunidade "é agente de saúde mental e de reabilitação psicossocial" demonstra esse paradoxo da RPB: o cuidado desde o ponto de vista que não seja técnico. Ou seja, um cuidado que prescinda de um saber especializado para dar contorno, convivência, aos loucos de rua. Se por um lado é possível a indicação de que nem toda loucura precisa ser tratada de um modo formal (ou tradicional), qual seja, mediada por um serviço; por outro, aponta para o que os serviços podem aprender com essa evidência.
Também é necessário destacar que a própria comunidade se modifica nesse encontro, e que pode ser lida através de suas respostas, da forma com que lidam com os loucos na frente de suas casas, de seus estabelecimentos comerciais, na praça que frequentam. Esse encontro é que pode ser traduzido como a vida na cidade e as intervenções técnicas que partem dos serviços têm muito a aprender com as respostas leigas, interessadas na convivência ou na cessão da mesma.
Segundo a autora, "uma cidade é fruto do trabalho coletivo de uma sociedade". Deste modo, na cidade esta materializada a história de uma comunidade, suas relações sociais, políticas, econômicas e religiosas. Essa indicação novamente afirma a importância de que os determinantes da saúde mental não sejam tomados como ações puramente técnicas (ou tomadas como se isso fosse possível), mas que a disposição para tratar a loucura esteja alinhada com os efeitos produtores e produtos das relações.
O Louco, a rua e a comunidade são, portanto, termos de uma equação que devem ser tomados em interface, já que um é efeito do outro em alguma instância.
Nesses termos, a Reforma Psiquiátrica Brasileira, que já avançou muito em sua agenda de desinstitucionalização, de abertura de novos serviços e de um novo modo de pensar a loucura e, consequentemente, seu tratamento, não pode ser dada como definitiva. É importante sublinhar que enquanto processo, está sempre em diálogo e construção de formas de atuação. Sendo assim, ou avança ou retrocede, sem possibilidade de estagnar-se, uma vez que a ideia de estabilização dentro desse campo é, em si, uma contingência.
As pesquisas que tentam dar resposta, ou pelo menos problematizar essas questões são sempre bem vindas ao campo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul 2014