Acessibilidade / Reportar erro

Medicalização de Crianças e Adolescentes

Medicalización de la Infancia y la Adolescencia

Medicalization of Children and Adolescents

RESENHA

Medicalización de la Infancia y la Adolescencia

Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.). (2010). Medicalização de Crianças e Adolescentes - conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 290 p.

O crescente número de encaminhamentos de crianças e adolescentes aos profissionais da área da Saúde, para diagnóstico e tratamento da dislexia e déficit de atenção e hiperatividade, impõe discussão e reflexão crítica sobre a medicalização de crianças e adolescentes. Medicalização é entendida como o processo de transformação de problemas sociais e institucionais - dificuldades de escolarização - em problemas individuais e em distúrbios orgânicos.

Organizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e pelo Grupo Institucional Queixa Escolar e contando com o apoio de diversas entidades envolvidas na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, este livro marca um posicionamento ético-político sobre a medicalização ao divulgar a produção científica existente que sustenta o debate crítico do tema: os princípios epistemológicos e políticos, os fundamentos e os impactos do diagnóstico e do tratamento da dislexia e do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, as posições de enfrentamento à medicalização dos processos educacionais e também, algumas intervenções, que rompem com a lógica medicalizante, realizadas nos campos da medicina, fonoaudiologia e psicologia.

A obra é composta por 15 capítulos, escritos por 19 autores e dividida em quatro partes.

Na primeira parte, são apresentados os princípios epistemológicos e políticos que sustentam a oposição à medicalização de crianças e adolescentes, em quatro capítulos:

(1) Desafios da Clínica Contemporânea: novas formas de "manicomialização", escrito por Maria Ângela Santa Cruz. Neste texto a autora retoma a história do poder da psiquiatria, dos movimentos e pensamentos que sustentaram a reforma psiquiátrica no Brasil e analisa criticamente a condição atual dessa área nos diagnósticos de hiperatividade e déficit de atenção em crianças e adolescentes.

(2) A Biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação, é da autoria de Renata Guarido. Este capítulo aborda o discurso contemporâneo da biociência e a difusão dos novos conhecimentos em revistas e jornais de grande circulação. Denuncia a biologização do humano e a ilusão de um possível controle técnico da vida, inclusive das experiências escolares.

(3) Os "Intratáveis": a patologização dos jovens em situação de vulnerabilidade, escrito por Maria Cristina Vicentin, fundamenta uma importante perspectiva de compreensão sobre a medicalização, ou, da psiquiatrização de adolescentes autores de ato infracional como uma via de realização do biopoder. Analisa como a psiquiatrização/patologização da conduta criminosa sustenta o paradigma da segregação.

(4) Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo, capítulo escrito por Marilene Proença, problematiza aspectos no campo da política educacional e da psicologia educacional e escolar, apresentando uma concepção teórica que permite analisar o processo de escolarização e não os problemas de aprendizagem.

A 2ª parte deste livro, denominada Fundamentos do Diagnóstico e do Tratamento em Debate, destaca, nos três capítulos que a compõe, a lógica que sustenta a construção dos diagnósticos de dislexia e TDAH e o impacto desses diagnósticos na subjetividade, nas configurações vinculares e na participação dos sujeitos assim avaliados nas instituições sociais.

(5) Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica, de autoria de Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares, traz exame minucioso dos conceitos de dislexia e TDAH, demonstrando como esses conceitos estão enraizados no chão dos dogmas e da fé e como as explicações dadas afrontam a lógica da Ciência. As autoras alertam para o perigo da drogadição nos jovens e abrem possibilidades para efetivo debate científico e ético em defesa da vida.

(6) Subsídios da Análise do Comportamento para Avaliação de Diagnóstico e Tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no âmbito escolar foi escrito por Jan Luiz Leonardi, Denize Rosana Rubano e Fátima Regina Pires de Assis. Os autores apoiam-se nas concepções filosóficas do Behaviorismo Radical e da Análise do Comportamento para analisar a força do diagnóstico e o tratamento do TDAH. Questionam os efeitos do tratamento com metilfenidato e sugerem intervenções na direção da promoção de competências, ao invés da produção da calma e docilidade.

(7) Dislexia, Processo de aquisição ou sintoma na Escrita? é de autoria da fonoaudióloga Rejane Rubino e trata da interpretação supostamente científica das dificuldades da leitura e escrita, mais especificamente do lugar ou não-lugar reservado ao sujeito que suporta as dificuldades na aquisição e no uso da escrita. Mostra como as justificativas apoiadas na falha do funcionamento cerebral desresponsabiliza a todos: escola, pais e o próprio sujeito e fecha qualquer perspectiva para uma interpretação psicodinâmica.

A terceira parte deste livro, denominada Medicalização e Educação, propõe reflexão mais aprofundada sobre o enfrentamento à medicalização dos processos educacionais. Posições que sustentam esse enfrentamento, estimulando a construção de novas estratégias de ação, são apresentadas nos cinco capítulos seguintes.

(8) Um Panorama Nacional dos Estudos sobre a Medicalização da Aprendizagem de Crianças em Idade Escolar escrito por Juliana Garrido e Maria Aparecida Affonso Moysés, mostra o estado da arte da crítica à medicalização de crianças em idade escolar na produção acadêmica nacional. As autoras analisam as dificuldades que a vertente não-medicalizante enfrenta, principalmente, na divulgação das conclusões críticas aos professores, reafirmando a necessidade de o sujeito ser visto em seu contexto e sua história, gerando, assim, práticas emancipadoras.

(9) Conhecimento Científico, Medicalização e os Saberes Escolares em Saúde, escrito por Maria de Lourdes Spazziani e Cecília Collares, resgata de modo crítico alguns aspectos que tratam da construção do conhecimento científico, do saber escolar e das concepções de saúde e doença que tem marcado as práticas educativas em saúde. As autoras contrapõem-se ao discurso medicalizante e defendem a existência de um espaço pedagógico em que os saberes e práticas cotidianas e culturais das crianças se entrelacem com o conhecimento construído.

(10) A Desatenção Atenta e a Hiperatividade sem Ação é de autoria de José Leon Crochick e Nicole Crochick. Neste texto, os autores apresentam uma reflexão sobre o TDAH e sobre a impulsividade a partir da configuração da sociedade e da cultura atuais. Discutem a vivência efêmera e descartável, na qual os alunos aprendem apenas os conteúdos e os professores desgastam-se para atender o que a escola exige, como substituta da experiência de reflexão sobre o conhecimento.

(11) Preconceitos no Cotidiano Escolar: a medicalização do processo ensino-aprendizagem é de autoria de Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés. As autoras apresentam pesquisa sobre as causas do não aprender. Teoricamente, a pesquisa está fundamentada na concepção materialista histórica da sociedade e mostra como é significativo o discurso (preconceito) que atribui à própria criança seus problemas de alfabetização, colocando como causa do fracasso escolar as pretensas doenças, que sustentam a medicalização do processo ensino-aprendizagem.

(12) Projetos de Lei e políticas públicas: o que a psicologia tem a propor para a educação? Este capítulo, de autoria de Marilene Proença e Beatriz Belluzzo, apresenta os motivos que levaram o Sistema Conselhos de Psicologia e particularmente, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo a preocuparem-se com os Projetos de Lei no campo da Educação. Destacam a dimensão política da prática psicológica e a necessidade de não só compreender a profissão no interior das políticas públicas, mas de interferir nos seus rumos.

Compõem a 4ª parte deste livro, três relatos de intervenções realizadas nos campos da medicina, fonoaudiologia e psicologia. São intervenções que questionam e rompem com a lógica da medicalização, oferecendo outras bases de sustentação para aproximação e compreensão das dificuldades no processo de escolarização.

(13) Medicalização na infância e adolescência: históricas, práticas e reflexões de um médico da atenção primária é o título do capítulo escrito por Charles D. Tesser e Paulo Poli Neto. Os autores relatam as sensações e sentimentos do Dr. Júlio, um médico clínico, em seu trabalho cotidiano em um Centro de Saúde. Relatam a angústia, os questionamentos do médico e suas reflexões sobre o controle do futuro expresso na medicina e apontam para a importância do envolvimento dos profissionais com as vidas e problemas dos seus pacientes, tanto individuais e clínicos, como sanitários e coletivos.

(14) Possível Intervenção Fonoaudiológica em um caso de linguagem escrita, texto escrito por Claudia Perrotta, apresenta um caso clínico de paciente com suspeita de dislexia, desde sua busca de interlocução com a instituição escolar, o manejo do processo terapêutico, até o final do contato com o paciente. A autora focaliza o atendimento na ampliação do universo cultural do paciente por meio da linguagem, o que favorece reflexões sobre o diagnóstico, as responsabilidades da escola pelas dificuldades dos alunos e o modo com que os pais compreendem os diagnósticos de dislexia e/ou déficit de atenção.

(15) A medicalização do Ensino comparece aos atendimentos psicológicos, de autoria de Beatriz de Paula Souza, apresenta o Serviço Orientação à Queixa Escolar, do Instituto de Psicologia da USP. A autora relata dois atendimentos de crianças com dificuldades de escolarização, uma delas com suspeita de TDAH e outra diagnosticada como disléxica. Ao analisar cada caso, a autora aprofunda a reflexão quanto à importância de o psicólogo compreender o processo de produção das queixas escolares e intervir como mediador nas relações, centrando seu trabalho nos funcionamentos institucionais do sistema educacional.

O livro traz também, indicações de vídeos disponíveis na internet, sugestões de artigos, livros, teses e dissertações, aos que pretendem continuar seus estudos no tema.

A tarja preta na capa do livro adverte para a medicalização de crianças e adolescentes - conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. Os textos apresentados evidenciam, pois, o ainda vigente poder do modelo da medicina na concepção da ciência moderna positivista que transforma questões sociais em distúrbios, transtornos pessoais, individuais. Nesse sentido, no processo de escolarização são os distúrbios e/ou transtornos dos alunos que os impedem de aprender. Como consequência, precisam utilizar alguma droga que os coloque dentro dos padrões esperados, não importando sua trajetória educacional, ou sua história de vida.

Concordo com os autores que não negam a existência de crianças e adolescentes com dislexia ou transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Mas, será a maioria, dado o crescente aumento de encaminhamentos e crianças usuárias de medicação, tendo por justificativa o avanço da produção de novos fármacos? O que vejo é um abuso, ou pior, a redução de questões sociais a doenças de indivíduos.

Por estimular a reflexão sobre a medicalização e a patologização de problemáticas de natureza social a que estão submetidas crianças e adolescentes, este livro é indicado a todos os envolvidos com os processos de escolarização e suas dificuldades. Aos profissionais e estudantes da área da Saúde e da Educação, que trabalham com o que se denomina o não aprender, estes textos podem subsidiá-los à crítica sobre suas responsabilidades e encaminhá-los à construção coletiva de ações que questionem o que muitos ainda consideram o padrão normal de aprendizagem e comportamento em crianças e adolescentes. A questão colocada e que merece muita atenção, versa sobre os Direitos da Criança e do Adolescente - uma questão Ética, portanto.

O contato com o pensamento de especialistas nos campos da medicina, da fonoaudiologia e da psicologia, nas vertentes social e escolar, que resiste à medicalização da educação estimula também a reflexão no interior das famílias, incluindo suas crianças e adolescentes, permitindo o diálogo fundamentado no exame crítico do contexto e situações específicas dos processos de aprendizagem.

Com este livro, nova força se instala capaz de desenredar tão complexo tema e desarrumar o tabuleiro de crenças há muito estabelecidas sobre o processo de medicalização e a naturalização da história.

Uma força que ascende e faz barulho, tal como o movimento migratório dos peixes, quando em cardumes iniciam uma jornada perigosa com fins reprodutivos, nadando com esforço contra a correnteza até a cabeceira dos rios para a desova.

O movimento contra a medicalização e patologização de crianças e adolescentes é, portanto, essencial para romper o silêncio dos conflitos, tornando franco e aberto o debate sobre a redução de questões sociais a doenças de indivíduos.

Recebido em: 17/04/2011

Aprovado em: 30/05/2011

Carmem Silvia Rotondano Taverna

Pós-doutora em Psicologia da Educação pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil.

  • Medicalização de Crianças e Adolescentes

    Medicalization of Children and Adolescents
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
    Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Rua Mirassol, 46 - Vila Mariana , CEP 04044-010 São Paulo - SP - Brasil , Fone/Fax (11) 96900-6678 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@abrapee.psc.br