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EDUCAÇÃO ESPECIAL, PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: O DIAGNÓSTICO E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Educación Especial, Psicología y políticas públicas: el diagnóstico y las prácticas pedagógicas

RESUMO

O artigo visa analisar políticas públicas, práticas diagnósticas e pedagógicas na educação especial, destacando concepções e articulações entre elas, principalmente afetas ao trabalho de psicólogos e professores. Consideram-se aspectos da legislação, no que concerne à educação especial e ao processo diagnóstico, e do trabalho desenvolvido na escola, a partir desses elementos. Baseadas na Psicologia histórico-cultural, nossas reflexões são perpassadas pelo caso de Roberto, aluno do 4º ano, diagnosticado com deficiência intelectual em laudo psicológico, participante de pesquisa cujo objetivo não estava relacionado ao enfoque deste artigo. Aponta-se a predominância da perspectiva clínica nas políticas e nas práticas, assente em concepção individual e biológica da deficiência, para a qual o insucesso é responsabilidade do indivíduo; e também que, a partir dessa perspectiva, as mediações pedagógicas são de baixa qualidade, infantilizadoras, de modo que mais resultam em exclusão e inferiorização do que na aprendizagem e no desenvolvimento do sujeito.

Palavras-chave:
Educação especial; Psicologia; políticas públicas

RESUMEN

En el artículo se tiene por objetivo analizar políticas públicas, prácticas diagnósticas y pedagógicas en la educación especial, destacando concepciones y articulaciones entre ellas, principalmente afectas a la labor de psicólogos y profesores. Se consideran aspectos de la legislación, en lo que concierne a la educación especial y al proceso diagnóstico, y del trabajo desarrollado en la escuela, a partir de esos elementos. Basadas en la Psicología histórico-cultural, nuestras reflexiones impregnadas por el caso de Roberto, alumno del 4º curso, diagnosticado con deficiencia intelectual en laudo psicológico, participante de investigación cuyo objetivo no estaba relacionado al enfoque de este artículo. Se apunta la predominancia de la perspectiva clínica en las políticas y en las prácticas, ancle en concepción individual y biológica de la deficiencia, para la cual el fracaso es responsabilidad del individuo; y también que, a partir de esa perspectiva, las mediaciones pedagógicas son de baja calidad, que infantiliza, de modo que más resultan en exclusión e inferioridad de que en el aprendizaje y en el desarrollo de sujeto.

Palabras clave:
Educación especial; Psicología; políticas públicas

ABSTRACT

The article aims to analyze public policies, diagnostic and pedagogical practices in special education, highlighting conceptions and articulations between them, mainly affecting the work of psychologists and teachers. Aspects of the legislation are considered with regard to special education and the diagnostic process, and the work done at school, based on these elements. Based on historical-cultural psychology, the reflections are permeated by the case of Roberto, a 4th year student, diagnosed with intellectual disability in psychological report, it is important to highlight that the research participant was not related to the focus of this article. The predominance of the clinical perspective in policies and practices is pointed out, based on an individual and biological conception of disability, for which failure is the responsibility of the individual; and also that, from this perspective, the pedagogical mediations are of low quality, infantilizing, so that they result more in exclusion and inferiority than in the subject’s learning and development.

Keywords:
Special education; Psychology; public policies

INTRODUÇÃO

No presente artigo analisam-se políticas públicas, práticas diagnósticas e pedagógicas na educação especial, apontando-se concepções e articulações entre elas, principalmente afetas ao trabalho de psicólogos e professores, à luz da Psicologia histórico-cultural. Para tanto, tomam-se políticas públicas e legislação pertinentes à educação especial brasileira e orientações para elaboração de diagnóstico relacionado à deficiência, destacando-se concepções que as embasam e articulações entre elas e destas com práticas pedagógicas no âmbito da educação especial. A atenção para com a prática profissional do psicólogo decorre do papel central que suas iniciativas, notadamente a realização de diagnóstico e a elaboração de laudo, tiveram em face do caso do aluno que serve de substrato para nossas análises nesse artigo, inclusive influenciando a definição das práticas pedagógicas com ele desenvolvidas.

Prioriza-se, aqui, a deficiência intelectual, tendo em vista Roberto (nome fictício), aluno de nove anos, matriculado no 4º ano em escola da rede municipal de ensino de Natal/RN. Sua experiência será tomada como elemento para condução da discussão, tendo em vista sua relevância para o objetivo deste artigo. Ressalta-se que Roberto foi participante de pesquisa de doutorado (Kranz, 2014Kranz, C. (2014). Os jogos com regras na perspectiva do Desenho Universal: contribuições à educação matemática inclusiva. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN.), na qual a análise aprofundada da especificidade do seu caso não foi desenvolvida naquele momento, por não estar diretamente vinculada aos objetivos da investigação.

Naquela oportunidade, a relação de Roberto com a escola era mediada por dois laudos emitidos por psicólogo de “instituição clínico-pedagógica” do estado do Rio Grande do Norte. Embora com justificativas diferentes, uma vez que cada um deles amparava-se em distintas Classificações Internacionais de Doenças (CID), os laudos continham o mesmo texto diagnóstico e prescritivo.

Ressalta-se que os laudos eram formulário padrão da instituição e, portanto, com teor previamente definido, cabendo ao profissional apenas preencher os dados pessoais do paciente e os códigos da CID. O lapso temporal entre os dois laudos, emitidos quando Roberto tinha seis anos de idade - ainda sem vida escolar -, era menor que oito meses. Ambos o diagnosticavam como sendo “portador de nosologia específica que o faz dependente e tem anulada a sua responsabilidade civil e capacidade laborativa devendo permanecer sob curatela”. Não obstante esses elementos comuns no diagnóstico, enquanto o primeiro amparava-se na CID F71 (retardo mental leve) e na CID 80.1 (transtorno expressivo de linguagem), o segundo amparava-se na CID F88 (outros transtornos do desenvolvimento) e na CID F91.8 (outros transtornos de conduta).

Tomando por base a significativa realidade de Roberto, algumas questões traduzem o objeto da reflexão ao longo do artigo: como vem sendo realizado o processo de diagnóstico por psicólogos e/ou outros profissionais? Quais concepções de deficiência têm embasado tal processo? Como as políticas públicas da educação especial relacionam-se com o processo de diagnóstico e com o laudo? De que formas o laudo interfere nos processos de ensino e aprendizagem na escola? Quais têm sido as práticas pedagógicas de professores e psicólogos nesse contexto?

O DIAGNÓSTICO, CONCEPÇÕES DE DEFICIÊNCIA E AS POLÍTICAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL

Parte-se do entendimento de que o laudo é um documento, fruto de processo diagnóstico. Assim, para além do conteúdo do laudo, faz-se necessário refletir acerca de tal processo, as concepções que o norteiam e as suas implicações para a vida escolar da pessoa que recebe um laudo de deficiência e/ou de transtorno. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), um dos documentos norteadores dos processos de diagnóstico à época da emissão do laudo de Roberto1 1 Outros documentos também embasavam os diagnósticos clínicos à época: a Classificação Internacional das Doenças (CID-10) e a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), ambas publicadas pela Organização Mundial da Saúde(OMS). Como o conceito de retardo mental e os instrumentos a serem utilizados para a sua constatação são semelhantes (Bridi, 2011), optamos pela referência ao DSM IV por ser publicação em área mais diretamente relativa ao tema tratado. , detinha um caráter clínico (Bridi, 2011Bridi, F. R. S. (2011). Processos de identificação e diagnóstico: os alunos com deficiência mental no contexto do Atendimento Educacional Especializado. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.), globalizando o modelo psiquiátrico americano (Guarido, 2007Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161.). Tomando como elemento para nossa reflexão a deficiência intelectual (denominada retardo mental no referido Manual), atribuída a Roberto no primeiro laudo e aspecto de sua identidade no contexto escolar, cabe apontar os critérios para o seu diagnóstico, de acordo com o DSM IV:

A. Funcionamento intelectual significativamente inferior à média: um QI [Quociente de Inteligência] de aproximadamente 70 ou abaixo, em um teste de QI individualmente administrado...

B. Déficits ou prejuízos concomitantes no funcionamento adaptativo atual (isto é, a efetividade da pessoa em atender aos padrões esperados para sua idade por seu grupo cultural) em pelo menos duas das seguintes áreas: comunicação, cuidados pessoais, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, independência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança.

C. Início anterior aos 18 anos. (American Psychiatric Association [APA], 1994American Psychiatric Association [APA] (1994). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM IV (Artes Médicas Sul, Trad.). Recuperado de: http://blogdapsicologia.com.br/unimar/wp-content/uploads/2015/05/DSM-IV-TR.pdf.
http://blogdapsicologia.com.br/unimar/wp...
, p. 93-94).

Tendo em vista que Roberto foi diagnosticado, no primeiro laudo, como “portador” de retardo mental moderado, o pressuposto é de que seu quociente de inteligência - QI - deveria oscilar entre 35-40 a 50-5 (APA, 1994). Como apontado, a orientação do Manual para o processo de diagnóstico para aferição do QI resume-se a um teste individual, processo este que, em nosso entendimento, caracteriza-se como muito limitado para avaliação da capacidade intelectual de uma pessoa, independente do conteúdo do teste. Tal como afirmam Anache (2001Anache, A. A. (2001). Reflexões sobre o diagnóstico psicológico da deficiência mental utilizado em educação especial. In Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Ed.), Vigésima quarta reunião anual da Anped. Textos completos (pp. 1-18). Caxambu. Recuperado de http://24reuniao.anped.org.br/tp1.htm#gt15.
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) e Bridi (2011Bridi, F. R. S. (2011). Processos de identificação e diagnóstico: os alunos com deficiência mental no contexto do Atendimento Educacional Especializado. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.) acerca da perspectiva psicométrica do diagnóstico, no momento em que o processo é norteado por testagem individual e pela média da capacidade individual, chama-se a atenção para o fato da desconsideração da específica inserção social do sujeito, de suas aprendizagens e de seu processo de desenvolvimento nesse contexto.

Também a esse respeito, ao se referir aos testes para medição do “quociente de inteligência”, afirma Leontiev (2005Leontiev, A. N. (2005). Os princípios do desenvolvimento mental e o problema do atraso mental. In Luria, A. R; Leontiev, A.; Vygotsky, L. S. (Eds.), Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (R. E. Frias, Trad., pp. 87-105). São Paulo: Centauro.) que “no melhor dos casos, as medições que se obtém com os testes apenas dão uma ideia superficial do nível do desenvolvimento” (p. 89), eles “não descobrem nunca a natureza do atraso, nem permitem interpretá-lo em absoluto. Apenas dão a ilusão de uma explicação da causa do fracasso” (p. 89).

A utilização exclusiva de testes como instrumentos de diagnóstico é, da mesma forma, criticada por Vygotsky (2005Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In Luria, A. R; Leontiev, A.; Vygotsky, L. S. (Eds.), Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (R. E. Frias, Trad., pp. 25-42). São Paulo: Centauro), para quem os testes podem apontar tão somente o desenvolvimento efetivo da criança, entendido pela orientação tradicional da pedagogia e da psicologia, como um “limite não superável pela criança” (p. 37). De acordo como é pensada a relação entre aprendizagem e desenvolvimento na Psicologia histórico-cultural, para além do desenvolvimento real do sujeito há que se considerar suas possibilidades de aprendizagens, quando em contextos colaborativos e mediados. Tais aprendizagens são fonte de novos desenvolvimentos, os quais possibilitarão novas e mais complexas aprendizagens.

Ainda de acordo com Vygotsky (2005Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In Luria, A. R; Leontiev, A.; Vygotsky, L. S. (Eds.), Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (R. E. Frias, Trad., pp. 25-42). São Paulo: Centauro), “um simples controle demonstra que este nível de desenvolvimento efetivo não indica completamente o estado de desenvolvimento da criança” (p. 35). As pesquisas empreendidas pelo autor indicam que a relação entre o processo de desenvolvimento e a capacidade da criança para aprendizagem não pode ser definida quando limitada a um único nível de desenvolvimento. Nesse sentido, afirma Vygotsky (1994)Vygotsky, L. S. (1994). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. (Neto, J. C.; Afeche, L. S. M.; Afeche, S. C., Trad). São Paulo: Martins Fontes. que é necessário levar em consideração aquilo que a criança ainda não consegue fazer com autonomia, mas pode fazer com auxílio de outras pessoas, o que ele chama de Nível de Desenvolvimento Potencial. Para Vygotsky (2005)Vygotsky, L. S. (2005). Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In Luria, A. R; Leontiev, A.; Vygotsky, L. S. (Eds.), Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (R. E. Frias, Trad., pp. 25-42). São Paulo: Centauro,

A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois, determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento, e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que produzirá no processo de maturação... Portanto, o estado de desenvolvimento mental da criança só pode ser determinado referindo-se pelo menos a dois níveis: o nível de desenvolvimento efetivo e a área de desenvolvimento potencial. (p. 37).

No que concerne ao segundo critério do DSM IV para o diagnóstico do retardo mental, que faz referência à capacidade em atividades adaptativas, as quais não são referidas no laudo de Roberto, pergunta-se: elas foram avaliadas? De que maneira? Quais delas podem ser avaliadas em uma criança de menos de seis anos de idade? Essa lacuna leva-nos a questionar o processo de diagnóstico e sua resultante, o laudo, tendo em vista o significado e seus efeitos, particularmente, no contexto escolar de uma pessoa, como é o caso de Roberto. É tão significativa a importância do laudo para a escola, a ponto deste exercer papel de mediador nas relações pedagógicas e nas relações sociais que se dão no interior da instituição. Exemplo disso é a necessidade que em geral a escola possui de que o estudante que apresente alguma diferença seja encaminhado para o diagnóstico (Franco, Tuleski, Eidt, & Chaves, 2013Franco, A. F.; Tuleski, S. C.; Eidt, N. M.; Chaves, M. (2013). A medicalização da infância e políticas públicas: análise teórica a partir da psicologia histórico-cultural. In Universidade Estadual do Oeste do Paraná(Ed.), XI Jornada HISTEDBR: a pedagogia histórico-crítica, a educação brasileira e os desafios de sua institucionalização (pp. 1-12). Cascavel. Recuperado de http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada11/artigos/2/artigo_simposio_2_766_adriffranco@hotmail.com.pdf.
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_h...
; Brzozowski & Caponi, 2013Brzozowski, F. S.; Caponi, S. N. C. de. (2013). Medicalização dos desvios de comportamento na infância: aspectos positivos e negativos. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(1), 208-221.; Guarido, 2007Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161.), bem como a forma como o processo pedagógico é moldado, para ser desenvolvido com tal sujeito (Brzozowski & Caponi, 2013Brzozowski, F. S.; Caponi, S. N. C. de. (2013). Medicalização dos desvios de comportamento na infância: aspectos positivos e negativos. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(1), 208-221.; Guarido, 2007Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1), 151-161.). Em face desse contexto, pensa-se, com Leontiev (2015Leontiev, A. N. (2005). Os princípios do desenvolvimento mental e o problema do atraso mental. In Luria, A. R; Leontiev, A.; Vygotsky, L. S. (Eds.), Psicologia e pedagogia: bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento (R. E. Frias, Trad., pp. 87-105). São Paulo: Centauro.):

Que valor têm as investigações de médicos e psicólogos sobre o problema do atraso mental? A que resultado final conduzem os seus diagnósticos e prognósticos, os seus métodos de seleção? Podem conduzir à diminuição do número de crianças classificadas como mentalmente subdesenvolvidas, ou determinam talvez o resultado oposto?. (pp. 87-88).

Não obstante as reflexões acima sobre o diagnóstico, o laudo e suas implicações, decorrentes da situação de Roberto, ressalta-se que o laudo, atualmente, não é obrigatório para a inclusão do aluno como público-alvo da educação especial no Brasil (Brasil, 2014Brasil. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Diretoria de Políticas de Educação Especial (2014,23 de janeiro). Nota Técnica n. 04. Orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no Censo Escolar. Brasília, DF: MEC.). Ou seja, em que pese Roberto ter chegado à escola com um laudo, em face do que seu processo social e educacional na instituição passou a ser mediado por tal instrumento, parcela significativa das crianças somente são inseridas na modalidade da educação especial após estarem na escola.

Essa inserção dá-se por iniciativa dos educadores, com encaminhamento para o professor do Atendimento Educacional Especializado - AEE2 2 Considera-se atendimento educacional especializado o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucionalmente, prestado de forma complementar ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular (Brasil, 2008, artigo 1º parágrafo 1º). , tal como preconizado pela Nota Técnica 4/2014, da Diretoria de Políticas de Educação Especial (DPEE) da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), do Ministério da Educação (Brasil, 2014Brasil. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Diretoria de Políticas de Educação Especial (2014,23 de janeiro). Nota Técnica n. 04. Orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no Censo Escolar. Brasília, DF: MEC.), em consonância com a Resolução 4/2009Resolução Resolução n. 4 (2009, 2 de outubro). Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação., do Conselho Nacional de Educação (CNE), que institui Diretrizes Operacionais para o AEE na Educação Básica, modalidade da Educação Especial (2009). No seu Artigo 9º, a Resolução 4/2009 Resolução Resolução n. 4 (2009, 2 de outubro). Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação.estabelece que:

A elaboração e a execução do plano de AEE são de competência dos professores que atuam na sala de recursos multifuncionais ou centros de AEE, em articulação com os demais professores do ensino regular, com a participação das famílias e em interface com os demais serviços setoriais da saúde, da assistência social, entre outros necessários ao atendimento.

Merece destaque o fato de que, não obstante o laudo de Roberto ter sido assinado por um psicólogo, a atual legislação pertinente à inclusão de alunos na educação especial não contempla explicitamente a participação desse profissional no processo. Ainda que o psicólogo possa fazer parte dos serviços de saúde, de assistência ou de outros, como facultado na Resolução, sua atuação não está prevista na escola, bem como sua função não está diretamente vinculada às questões pedagógicas. Anache (2009Anache, A. A. (2009). O psicólogo escolar e o processo de escolarização da pessoa com deficiência. In Marinho-Araújo, C. M. (Ed.), Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, formação e prática(pp. 221-243). Campinas/SP: Alínea.) chama a atenção para um possível direcionamento “adaptacionista”, “normalizador” dessa atuação (p. 241).

O plano de AEE, de acordo com o parágrafo IV do Artigo 10º da mesma Resolução do CNE, é composto pela “identificação das necessidades educacionais específicas dos alunos, definição dos recursos necessários e das atividades a serem desenvolvidas” (Resolução n. 4/2009, 2009Resolução Resolução n. 4 (2009, 2 de outubro). Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação.). Ou seja, quando já faz parte da escola, o aluno sobre o qual recai suspeita de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação - notadamente por parte de professores - deve ser encaminhado para estudo de caso pelo grupo do AEE, que procede de acordo com as diretrizes acima referidas, sem que para tanto seja necessário o diagnóstico e a elaboração de laudo clínico. Assim, os procedimentos recomendados pelos documentos orientadores das políticas públicas da educação especial possuem caráter pedagógico, muito mais que clínico, apesar da ação educativa vir sendo ancorada em razões de ordem clínica - doença, transtorno, deficiência.

Ainda que a prática do psicólogo venha sendo coerente com essa diretriz clínica, segundo Anache (2009Anache, A. A. (2009). O psicólogo escolar e o processo de escolarização da pessoa com deficiência. In Marinho-Araújo, C. M. (Ed.), Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, formação e prática(pp. 221-243). Campinas/SP: Alínea.), o psicólogo escolar/educacional teria contribuições relevantes nesse processo, no que tange a “estimular os processos de reflexão e capacitar os professores... a construírem suas próprias críticas no interior das escolas, especiais ou não” (p. 230); à “... transformação dos processos do insucesso escolar...” (p. 238) dos alunos com deficiência intelectual; à “construção de espaços de interlocuções entre outras vozes e dimensões do conhecimento...” (p. 240).

Nesse ponto, ressalta-se que a contradição pedagógico/clínico, evidenciada acima nas práticas escolares e na atuação do psicólogo, também pode ser identificada na própria Resolução, que norteia tanto os procedimentos a adotar no AEE, quanto os critérios que levam um aluno a ser incluído na educação especial. A apreensão de tais critérios requer o entendimento da concepção de deficiência presente no documento, no qual os alunos com deficiência são entendidos como “aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual, mental ou sensorial” (Resolução n. 4/2009, 2009Resolução Resolução n. 4 (2009, 2 de outubro). Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação., artigo 4º, parágrafo I). Portanto, o conceito adotado pelo CNE, que norteia a política pública do AEE e as práticas pedagógicas nas instituições escolares, expressa a concepção individual e clínica de deficiência, associada à qual se encontra a compreensão do sujeito pela sua limitação e incapacidade - no caso da deficiência intelectual, incapacidade ou limitação para aprender. Contrário a entendimento dessa natureza, afirma Vygotski (1997aVygotski, L. S. (1997a). Obras Escogidas I: problemas teóricos y metodológicos de la Psicología. Madrid: Visor.) que “... não é possível prática educativa alguma construída sobre a base de princípios e definições puramente negativos” (p. 13, tradução nossa).

Assim, embora o laudo não seja obrigatório, a indicação dos alunos para o AEE e as práticas pedagógicas nele desenvolvidas tendem a reproduzir as concepções que articulam deficiência, incapacidade e doença, do que se conclui que a concepção médica em relação à deficiência ainda é dominante na cultura escolar. Essa relação, decorrente da mesma concepção, está presente no laudo de Roberto, considerado “portador de nosologia específica”. Tal perspectiva já era criticada por Vygotski (1995Vygotski, L. S. (1995). Obras Escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor.), de acordo com quem,

A concepção tradicional [da psicologia] partia da ideia de que um defeito significava uma deteriorização, uma imperfeição, uma falha no desenvolvimento da criança que limitava e restringia seu campo de desenvolvimento. Formulava-se um ponto de vista negativo sobre tal criança, se caracterizava seu desenvolvimento pela perda, fundamentalmente, de umas ou outras funções. (p. 312, tradução nossa).

Tendo em vista que as concepções que norteiam a legislação, as práticas diagnósticas e pedagógicas são foco deste artigo, cabe apontar e refletir acerca do conceito de deficiência presente em documentos oficiais no Brasil. Tal conceito, na Resolução 4/2009 do CNE, por exemplo, está em contradição com aquele instituído pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006Organização das Nações Unidas [ONU] (2006). Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Nova Iorque: Organização das Nações Unidas.), ratificada por quórum qualificado no Congresso Nacional em 2008 e, portanto, equivalente à emenda constitucional em nosso país. De acordo com a Convenção (ONU, 2006Organização das Nações Unidas [ONU] (2006). Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Nova Iorque: Organização das Nações Unidas.),

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Artigo 1).

A Resolução também se encontra em contradição com o documento orientador da Política de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008Brasil (2008). Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial.), que traz conceito de aluno com deficiência semelhante ao da Convenção da ONU: “consideram-se alunos com deficiência aqueles que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que em interação com diversas barreiras podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (p. 15).

Assim, o diferencial que ambos os documentos trazem, em relação ao conceito que está na Resolução do CNE, é particularmente o elemento contextual, a concepção de que a deficiência, para além da limitação do sujeito, é uma construção social. Como se vê, não obstante o Brasil ter ratificado tratado internacional, no qual a deficiência é concebida de forma muito avançada e sob perspectiva inclusiva, que considera as potencialidades do indivíduo e a importância do contexto para seu desenvolvimento, a concepção que norteia as legislações específicas das políticas públicas e as práticas cotidianas da educação especial é ainda bastante tradicional, pautada no modelo médico, individualizante.

Logo, questiona-se como uma Resolução do ano de 2009, de órgão tão relevante para a legislação e para as políticas públicas educacionais brasileiras, como é o Conselho Nacional de Educação, pode se utilizar de conceito diferente e antagônico àquele preconizado por Convenção internacional com estatuto de emenda constitucional no país, como também pelo documento norteador da política pública de educação especial do Ministério da Educação. Inclusive, a este respeito, Maia (2013Maia, M. (2013). Novo conceito de pessoa com deficiência e proibição do retrocesso. Revista da AGU, 37, 289-306., p. 294) afirma que “qualquer conceito de pessoa com deficiência contido em normas infraconstitucionais que se contraponha ao conceito trazido pela Convenção tem-se por revogado”.

Ressalta-se que não são pequenas as consequências da adoção de tal conceito. Um exemplo está no fato da já referida Nota Técnica 4/2014(Brasil, 2014Brasil. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Diretoria de Políticas de Educação Especial (2014,23 de janeiro). Nota Técnica n. 04. Orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no Censo Escolar. Brasília, DF: MEC.), que trata da “orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no Censo Escolar” (p. 1), ser orientada pela Resolução 4/2009 e seu conceito de deficiência, para “a declaração dos estudantes público alvo da educação especial, no âmbito do Censo Escolar” (p. 3). Outro exemplo é a adoção da mesma Resolução e definição para nortearem as “orientações para a institucionalização da Oferta do Atendimento Educacional Especializado - AEE - em Salas de Recursos Multifuncionais, implantadas nas escolas regulares”, como previsto na Nota Técnica 11/2010, também do MEC (Brasil, 2010Brasil Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. (2010, 7 de maio). Nota Técnica n. 11. Orientações para a institucionalização da oferta do Atendimento Educacional Especializado - AEE em Salas de Recursos Multifuncionais, implantadas nas escolas regulares. Brasília, DF: MEC., p. 1). Como se vê, em função do documento do CNE, o Ministério da Educação também utiliza conceito de deficiência divergente do definido na legislação brasileira, para orientar suas políticas públicas. Curiosamente, em que pese ambas as notas técnicas do MEC fazerem referência à Declaração da ONU, na qual o conceito de deficiência é mais inclusivo e social, orientam no sentido de que as ações no âmbito da educação especial se pautem no conceito do CNE, com todas as suas contradições e implicações.

Ademais, os efeitos da Resolução do CNE também impactam outros aspectos das políticas públicas da educação especial, visto que, dentre outras diretrizes, ela define o financiamento da matrícula no AEE (artigo 8º), a inclusão do AEE no projeto pedagógico das escolas (artigo 10º), as atribuições do professor do AEE (artigo 13º). Em síntese, as consequências da Resolução se fazem sentir de forma ampla, incidindo desde a destinação dos recursos do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) para os alunos da educação especial, até o projeto político pedagógico das escolas e, a partir dele, sobre o trabalho pedagógico desenvolvido nas salas de aula e nas salas de recursos multifuncionais do AEE.

Orientar a educação especial pelo conceito clínico-médico, que individualiza e medicaliza a deficiência, constitui um retrocesso em face dos avanços inclusivos mais recentes; significa manter a concepção tradicional, historicamente adotada nesta modalidade e no AEE. Lê-se no histórico contido no documento da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008Brasil (2008). Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial.) que

A educação especial se organizou tradicionalmente como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum, evidenciando diferentes compreensões, terminologias e modalidades que levaram à criação de instituições especializadas, escolas especiais e classes especiais. Essa organização, fundamentada no conceito de normalidade/anormalidade, determina formas de atendimento clínico terapêuticos fortemente ancorados nos testes psicométricos que definem, por meio de diagnósticos, as práticas escolares para os alunos com deficiência. (p. 6).

Enfim, a implementação das políticas da educação especial no Brasil vem reproduzindo concepção tradicional a respeito da deficiência e da diferença. Em decorrência, encontra-se eivada de contradições cujo efeito mais nocivo é a constituição do sujeito baseada em princípios negativos, marcada pela incapacidade/limitação para aprender e para se desenvolver.

Como tal concepção permeia a cultura escolar e quais seus reflexos nas práticas pedagógicas escolares de professores e psicólogos?

CULTURA ESCOLAR, PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E CONCEPÇÕES TEÓRICAS

Parte-se aqui da compreensão de que, quaisquer que sejam as concepções de diferença e de deficiência, elas são a expressão da forma como se entende a constituição do sujeito e do papel desempenhado pela instituição escolar e pelas ações educativas em tal processo. Quando o sujeito é visto a partir da sua falta, da sua deficiência, ou seja, quando a escola tem o laudo clínico como principal elemento norteador de suas práticas, quando ele se constitui instrumento mediador, a mediação pedagógica que se efetiva tende a ser de baixa qualidade, infantilizadora. As ações educativas são restritas a processos elementares, mais de caráter sensório-motor, como apontava Vygotski (1997bVygotski, L. S. (1997b). Obras Escogidas V: fundamentos de defectologia. Madrid: Visor.), reduzindo as possibilidades de aprendizagem e, consequentemente, de desenvolvimento - ratificando a diferença inferiorizante, a incapacitação social e histórica do sujeito. Os resultados de tal perspectiva não podem ser outros que não a medicalização, a tutela do sujeito, o estigma e o preconceito que sobre ele recaem.

Nessa direção, em função do laudo, Roberto possuía prescrição de medicação controlada, tal como inúmeras outras crianças (Franco et al., 2013Franco, A. F.; Tuleski, S. C.; Eidt, N. M.; Chaves, M. (2013). A medicalização da infância e políticas públicas: análise teórica a partir da psicologia histórico-cultural. In Universidade Estadual do Oeste do Paraná(Ed.), XI Jornada HISTEDBR: a pedagogia histórico-crítica, a educação brasileira e os desafios de sua institucionalização (pp. 1-12). Cascavel. Recuperado de http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada11/artigos/2/artigo_simposio_2_766_adriffranco@hotmail.com.pdf.
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). Ele diariamente ingeria Gardenal, medicamento à base de Fenobarbital cuja bula afirma se tratar de “um barbitúrico utilizado como medicamento anticonvulsivante e sedativo”, que “age no sistema nervoso central”, sendo “utilizado para prevenir o aparecimento de convulsões em indivíduos com epilepsia ou crises convulsivas de outras origens” (Gadernal - Bula completa, 2019Gadernal (2019) Bula completa. Recuperado em: 17 de julho, de 2012, Recuperado em: 17 de julho, de 2012, dehttp://www.bulas.med.br/bula/2749/gardenal.htm
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, n.p.). Na bula consta, ainda, que as gotas pediátricas devem ser administradas com cuidado em menores de 12 anos, por conterem álcool e que seu uso prolongado pode causar dependência.

Bittencourt (2008Bittencourt, P. C. T. (2008). Uso abusivo de medicamentos. Visão acadêmica, 9(2), 79-93.), professor de Neurologia da UFSC, em artigo abordando o uso excessivo de medicamentos, afirma que com relação a PB [Fenobarbital], demoramos excessivamente para reconhecer seu mais grave problema: é extremamente difícil encontrar um usuário crônico que não desenvolva barbiturismo, isto é, a combinação de sonolência (ou paradoxal hipercinesia) com transtornos cognitivo-comportamentais em grau variado. (p. 81).

A professora constatava que a medicação deixava Roberto “muito agitado e desatencioso”, o que poderia efetivamente ser um efeito colateral do uso do Gardenal, comprometendo a capacidade do aluno para participar e desenvolver as atividades propostas em sala de aula. Referindo-se ao laudo, ela apontou que nele faltavam informações. “Vem o laudo só escrito deficiência tal. O laudo de Roberto só tem o CID, e aí? Eu acho que o psicólogo ou o médico deveriam dizer que o código diz respeito a tal transtorno”. Nesse depoimento, percebe-se a preocupação com a característica individual do aluno, com sua limitação: qual é ela? Roberto era considerado na escola um aluno “DM” (abreviação de Deficiência Mental, hoje denominada deficiência intelectual), independente das outras CID que compunham tanto o primeiro laudo quanto o segundo, e independente de suas outras características e peculiaridades.

Da mesma forma que em momento algum foi feita referência às orientações para um trabalho pedagógico qualificador do processo de ensino e aprendizagem de Roberto, a equipe gestora e os professores entendiam que a contribuição do psicólogo para a inclusão do aluno seria a realização de atendimento individual, que também não dá direcionamento pedagógico. O papel do psicólogo escolar, entendido nessa perspectiva, somente iria contribuir para a ratificação da diretriz individual e patologizante do laudo, pouco contribuindo para o desenvolvimento do aluno. Por outro lado, uma vez que o laudo não o fez, o psicólogo escolar poderia articular o individual e o coletivo e cultural na constituição do sujeito e da deficiência, trazendo princípios pedagógicos que pudessem orientar as práticas escolares com vistas à aprendizagem e ao desenvolvimento de Roberto.

Para Vygotski (1997bVygotski, L. S. (1997b). Obras Escogidas V: fundamentos de defectologia. Madrid: Visor., p. 313, tradução nossa), o desenvolvimento da criança com deficiência “não depende diretamente do [seu] defeito orgânico”; pelo contrário, “... o desenvolvimento cultural é a esfera mais importante onde é possível compensar a insuficiência. Ali onde o desenvolvimento orgânico resulta impossível, há infinitas possibilidades para o desenvolvimento cultural”.

Quanto ao trabalho pedagógico desenvolvido com Roberto, na sala do quarto ano, ele compunha, com outros dois alunos, também com deficiência, um grupo isolado do restante da turma. Segundo a professora, eles realizavam “atividades mais simples” (pintar, recortar, cobrir letras, colar), que eram orientadas por uma profissional sem formação pedagógica e contratada especificamente para este fim. Até a metade do ano ele escrevia seu nome e reconhecia algumas letras, mas não sabia contar, nem reconhecer algarismos. Tinha grande desejo de “retirar do quadro” (nas palavras da professora), ou seja, copiar em seu caderno o que era escrito na lousa. Ainda que o contexto escolar fosse marcado por muitos cuidados com seu comportamento, era pequeno o investimento em relação às aprendizagens de conceitos. Da mesma forma, também não lhe eram ensinadas habilidades simples, como amarrar o cadarço dos sapatos; cabia à mãe e às professoras realizarem essa tarefa, respectivamente em casa e na escola.

Entende-se que o trabalho desenvolvido nesta perspectiva não só parte das limitações individuais do sujeito, mas ratifica a concepção de deficiência clínico-médica, uma vez que não possibilita mediações que possam, efetivamente, promover a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os alunos. Segregar um aluno de uma atividade pedagógica relevante significa, diretamente, excluí-lo da aprendizagem; oferecer atividades mais simples significa não investir em suas potencialidades humanas para o desenvolvimento.

No contexto da escola, faz-se necessário que sejam desenvolvidas mediações inclusivas, por meio das quais seja possível ensinar conceitos também aos alunos com deficiência, o que possibilitaria, ao mesmo tempo, a ressignificação do conceito individual de deficiência. Vygotski (1995Vygotski, L. S. (1995). Obras Escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor.) definiu mediação como o “meio de que se vale o homem para influir psicologicamente em sua própria conduta, como na dos demais; é um meio para sua atividade interior, dirigida a dominar o próprio ser humano: o signo está orientado para dentro” (p. 95, tradução nossa). Para o autor, os instrumentos psicológicos são mediadores de origem social que “estão dirigidos ao domínio dos processos próprios ou alheios” (Vygotski, 1997aVygotski, L. S. (1997a). Obras Escogidas I: problemas teóricos y metodológicos de la Psicología. Madrid: Visor., p. 65, tradução nossa), envolvendo a “linguagem, as diferentes formas de numeração e cálculo, os dispositivos mnemotécnicos, o simbolismo algébrico, as obras de arte, a escritura, os diagramas, os mapas, os desenhos, todo gênero de signos convencionais etc.” (Vygotski, 1997aVygotski, L. S. (1997a). Obras Escogidas I: problemas teóricos y metodológicos de la Psicología. Madrid: Visor., p. 65, tradução nossa).

A importância desse conceito no presente artigo remete ao tipo de trabalho que é desenvolvido em sala de aula pelo professor e, na escola, por todos os seus atores. Os instrumentos psicológicos, enquanto mediadores pedagógicos, devem ser entendidos em sua potencialidade para tal, ou seja, são possibilidades para mediar processos de aprendizagem e de desenvolvimento dos alunos. Segundo Wertsch (1988 conforme citado por Daniels, 2003Daniels, H. (2003). Vygotsky y la pedagogía. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica.), “os instrumentos culturais, por si só, nada podem fazer e só têm impacto quando utilizados por agentes” (p. 118, tradução nossa). Ainda, a qualidade da mediação pedagógica também deve ser levada em consideração. Como tais instrumentos são utilizados nas práticas pedagógicas? Entendemos que tais usos são permeados pelas concepções de sujeito, de aprendizagem e de desenvolvimento, de diferença e de deficiência presentes na cultura escolar, constituídas e ratificadas dialeticamente pelas políticas públicas e pelos participantes da instituição escolar.

Portanto, adotar a perspectiva histórico-cultural para tratar das relações entre os processos de diagnóstico de deficiência e de transtornos com as práticas pedagógicas e as políticas públicas de educação especial resulta, necessariamente, em revelar contradições e perspectivas para a transformação, tanto das diretrizes contidas na legislação em geral, quanto das práticas pedagógicas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Buscou-se neste artigo, sob a luz da Psicologia histórico-cultural e tendo em vista o papel exercido pelo professor e pelo psicólogo no contexto escolar/educacional, discutir a relação dialética em que estão envolvidas as políticas públicas na área da educação especial, as práticas pedagógicas associadas a tais políticas, os processos diagnósticos de transtornos e deficiência - notadamente intelectual - e as concepções teóricas que norteiam a legislação e as práticas. Ou seja, procurou-se revelar o caráter histórico e cultural das concepções de diferença e de deficiência que presidem as políticas públicas de educação especial no Brasil e que orientam as práticas escolares pertinentes ao tema, partindo do elemento que faz a mediação entre umas e outras, qual seja o processo diagnóstico, e problematizando a diretriz dada às práticas educativas nesse contexto.

Apontou-se a perspectiva clínica de tal processo, mesmo quando desenvolvido pelos professores de classes inclusivas ou do AEE, decorrente de concepção individual e biológica sobre a diferença e a deficiência, com base na qual o insucesso é responsabilidade do indivíduo, sendo plausível perguntar sobre o aluno que não aprende: qual o problema dele? Por que não aprende? Ou seja, uma concepção que não tem em vista o elemento cultural na conformação da deficiência e que não sinaliza os processos pedagógicos necessários ao enfrentamento da limitação. Revela-se que, a partir da perspectiva que pressupõe uma doença, uma limitação do sujeito, as mediações pedagógicas com ele realizadas não são colaborativas, são de baixa qualidade, infantilizadoras, de modo que mais resultam em exclusão e inferiorização do que na aprendizagem de conceitos e no desenvolvimento de funções psicológicas superiores. Portanto, mediações que não têm em vista a limitação secundária, de caráter cultural e social, e que findam por ratificar a concepção clínica e reforçar uma possível limitação biológica do indivíduo.

A partir do laudo de Roberto, assinado por psicólogo, para o qual parece ter sido considerado tão somente o resultado de teste de QI para o diagnóstico, problematiza-se a perspectiva que tem tomado sua prática profissional em face de questões e contextos pedagógicos. Ainda se busca fazer com que o profissional de psicologia que atua em tais contextos, seja com estudantes, seja com professores, que se depara com questões semelhantes àquelas aqui tratadas, entenda o caráter social e cultural da constituição da deficiência, e rompa com o enfoque clínico, biologicista, individualizante. Que esse profissional entenda o papel e a importância do outro no processo de aprendizagem e de desenvolvimento, e assim adote uma perspectiva pedagógica e colaborativa na sua prática profissional na escola, inclusive no sentido de participar do movimento de construção e proposição de políticas públicas inclusivas, fundadas em novas concepções de deficiência e de diferença.

Expressando a complexidade do tema tratado e de suas múltiplas articulações, o artigo também sinaliza para uma série de aspectos que podem ser trabalhados em outros escritos, como é o caso da mudança de código da CID, do primeiro para o segundo laudo de Roberto, no curto espaço de tempo de oito meses. Quais alterações apresentou a criança, para justificar tal mudança? O retardo mental do primeiro diagnóstico deixou de existir, já que não constava do segundo laudo? Quais são os “outros transtornos de desenvolvimento” e “de conduta” que justificaram sua referência no segundo diagnóstico? Possuindo caráter clínico-pedagógico a instituição que emitiu os laudos, não caberiam orientações pedagógicas em tais documentos? Por que, mesmo com alteração na CID, Roberto permaneceu “dependente” e em regime de “curatela”, com “responsabilidade civil e capacidade laborativa” anuladas? Uma criança de seis anos de idade possui responsabilidade civil e capacidade laborativa, de modo a poder ser considerada independente? Da mesma forma, uma criança nessa idade pode ser curatelada? Qual a relação da deficiência e dos transtornos atribuídos a Roberto com a nosologia?

Diretamente relacionadas com tais questões encontram-se outras, decorrentes da articulação entre todo o processo observado na vida de Roberto a partir dos laudos e o sentido de tais diagnósticos para sua família: terá o ‘benefício de prestação continuada’, que a família recebe em nome de Roberto, papel fundamental na organização financeira da mesma? Também por isso, a família tem interesse em questionar a deficiência intelectual atribuída a Roberto? Em que medida a família pode ter contribuído para a emissão dos laudos, nos termos em que se deram?

Por fim, em se tratando da prática profissional do professor e do psicólogo que atuam na interface com a educação especial, pergunta-se: eles têm conhecimento dos instrumentos da política e da legislação pertinente ao tema? Quais componentes curriculares, na sua formação inicial, oportunizaram tais conhecimentos? Quais perspectivas teóricas norteiam esses componentes? Que concepção de história, de escola, de homem e de conhecimento foi possível a esses profissionais desenvolverem na sua formação? Têm eles consciência das concepções que adotam na sua prática?

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    Outros documentos também embasavam os diagnósticos clínicos à época: a Classificação Internacional das Doenças (CID-10) e a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), ambas publicadas pela Organização Mundial da SaúdeOrganização Decreto n. 6571 (2008, 17 de setembro). Dispõe sobre o atendimento educacional especializado. Brasília, DF: Presidência da República.(OMS). Como o conceito de retardo mental e os instrumentos a serem utilizados para a sua constatação são semelhantes (Bridi, 2011), optamos pela referência ao DSM IV por ser publicação em área mais diretamente relativa ao tema tratado.
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    Considera-se atendimento educacional especializado o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucionalmente, prestado de forma complementar ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular (Brasil, 2008Brasil (2008). Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial., artigo 1º parágrafo 1º).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2019
  • Aceito
    01 Maio 2019
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