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RESSIGNIFICANDO A QUEIXA ESCOLAR: CONTRIBUIÇÕES DO PARQUE PARA A DESMEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Resignificando la queja escolar: contribuciones del PARQUÉ a la no medicalización de la Educación

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo avaliar um programa de atenção e ressignificação da queixa escolar e suas contribuições para o enfrentamento da patologização e medicalização dos fenômenos escolares. O referencial teórico norteador de toda a pesquisa foi fundamentado na perspectiva histórico-cultural da Psicologia e na Psicologia Escolar Crítica. As informações foram obtidas através de entrevistas semiestruturadas individuais, realizadas com quatro professoras do Ensino Fundamental de uma escola de Educação Básica da rede federal de ensino, e analisadas por meio de análise de conteúdo temática de cunho qualitativo. Os resultados apontaram que o Programa estudado contribuiu para as participantes ampliarem a compreensão da queixa escolar, passando a reconhecer a atividade docente e as relações institucionais como constituintes dela. Os espaços coletivos de escuta e troca dialógica acerca dos desafios presentes no processo de escolarização oportunizados pelo Programa foram fundamentais para o enfrentamento da patologização e medicalização dos fenômenos escolares.

Palavras-Chave:
queixa escolar; medicalização da educação; psicologia escolar

RESUMEN

En esta investigación se tuvo por objetivo evaluar un programa de atención y resignificación de la queja escolar y sus contribuciones para el enfrentamiento de la patologización y medicalización de los fenómenos escolares. El referencial teórico orientador de toda la investigación se fundamentó en la perspectiva histórico-cultural de la Psicología y en la Psicología Escolar Crítica. Las informaciones se obtuvieron por intermedio de entrevistas semiestructuradas individuales, realizadas a cuatro profesoras de la Enseñanza Básica de una escuela de educación básica de la red federal de enseñanza, y analizadas por intermedio de análisis de contenido temático, de cuño cualitativo. Los resultados apuntaron que el Programa estudiado contribuyó para las participantes ampliar la comprensión de la queja escolar, pasando a reconocer la actividad docente y las relaciones institucionales como constituyentes de ella. Los espacios colectivos de escucha y cambio dialógico acerca de los desafíos presentes en el proceso de escolarización ofrecidos por el Programa fueron fundamentales para el enfrentamiento de la patologización y medicalización de los fenómenos escolares.

Palabras clave:
queja escolar; medicalización de la educación; psicología escolar

ABSTRACT

This research aimed to evaluate a program of attention and resignification of school complaints and its contributions to the confrontation of pathologization and medicalization of school phenomena. The theoretical framework guiding the entire research was based on the historical-cultural perspective of Psychology and Critical School Psychology. The information was obtained through individual semi-structured interviews, carried out with four elementary school teachers from a Basic Education school in the federal education network, and analyzed through qualitative thematic content analysis. The results showed that the Program studied contributed to the participants’ broadening their understanding of school complaints, starting to recognize the teaching activity and institutional relationships as constituents of it. The collective spaces of listening and dialogic exchange about the challenges present in the schooling process provided by the Program were fundamental to face the pathologization and medicalization of school phenomena.

Keywords:
school complaint; medicalization of education; school psychology

INTRODUÇÃO

Desde a década de 1980, a Psicologia vem questionando e refletindo sobre sua atuação nas escolas e sobre formas efetivas de contribuição aos processos educativos. A demanda tradicionalmente apresentada ao psicólogo é a de avaliação do estudante que, por diversos motivos, não cumpre com as expectativas criadas para ele no cotidiano escolar. Nesse contexto, os encaminhamentos de crianças e adolescentes ao psicólogo, via escola, costumam conter a seguinte pergunta: “O que esse estudante tem?” (que o impede de aprender; que o torna indisciplinado; que dificulta sua integração ao grupo etc.) (Freire & Viégas, 2018Freire, K. do E. S.; Viégas, L. de S. (2018). A queixa escolar em um CAPSi de Salvador-Bahia: uma análise a partir da psicologia escolar crítica. Revista Educação Em Questão, 56(48), 202-226. https://doi.org/10.21680/1981-1802.2018v56n48ID15178
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; Patto, 2015Patto, M. H. S. (2015). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Intermeios.; Souza, 2014Souza, M. P. R(2014). Desafios para uma atuação profissional de psicólogos frente à queixa escolar: compromisso ético, político e social. In M. P. R. Souza; S. M. C. Silva; K. Yamamoto (Eds.), Atuação do Psicólogo na Educação Básica: concepções, práticas e desafios (pp. 283-293). Uberlândia: Edufu.).

As hipóteses tradicionais sobre o fracasso escolar são predominantemente centradas em questões individuais, de ordem orgânica ou emocional e as soluções buscadas, consequentemente, envolvem encaminhamentos a profissionais especializados que possam responder a tais questões “de fora do que ocorre no interior da escola”. Esse modo de compreender as questões escolares tem sido denominado de “queixa escolar” e sua compreensão costuma estar ancorada numa perspectiva patologizante e medicalizante dos fenômenos escolares (Beltrame, Gesser, & Souza, 2019Beltrame, R. L.; Gesser, M.; Souza, S. V. (2019). Diálogos sobre medicalização da infância e educação: uma revisão de literatura. Psicologia em Estudo [online]. 24, (e42566). https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.42566
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; Scarin & Souza, 2020Scarin, A. C. C. F.; Souza, M. P. R. (2020). Medicalização e patologização da educação: desafios à psicologia escolar e educacional. Psicologia Escolar e Educacional [online]. 24(e214158), 1-8. https://doi.org/10.1590/2175-35392020214158
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).

A medicalização consiste num processo no qual questões históricas, políticas, culturais, econômicas e afetivas de um determinado fenômeno são reduzidas a supostos transtornos, doenças do indivíduo “[...] invisibilizando a complexidade da existência e camuflando o fato de que as condições de vida são absurdamente desiguais” (Fórum sobre a medicalização da educação e da sociedade, 2019Fórum sobre a medicalização da educação e da sociedade(2019). Manifesto Desmedicalizante e Interseccional: “existirmos, a que será que se destina?”. Anais Seminário Internacional A Educação Medicalizada , (1)1,12-20. Recuperado de http://anais.medicalizacao.org.br/index.php/educacaomedicalizada/article/view/235
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, p. 12).

Em contraponto, “fracasso escolar” é um conceito elaborado pela Psicologia para se referir a situações que fogem às expectativas tradicionais para o processo de ensino-aprendizagem presentes nas comunidades escolares de modo a não culpar de forma individual os diretamente envolvidos nesse processo: estudantes, suas famílias e seus professores, buscando determinantes que vão além de causas individuais, a-históricas e estáticas (Insfran, Ladeira, & Faria, 2020Insfran, F.; Ladeira, T. A.; Faria, S. E. F. (2020). Fracasso Escolar e Medicalização na Educação: a culpabilização individual e o fomento da cultura patologizante. Movimento-Revista De educação, 7(15). https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.43073
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; Patto, 2015Patto, M. H. S. (2015). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Intermeios.).

Estudos recentes baseados numa perspectiva crítica de Psicologia Escolar sustentam a importância de desenvolver práticas profissionais que partam da compreensão de que os fenômenos escolares se constituem por meio de concepções, práticas e políticas que são construídas, coletivamente, no cotidiano das escolas e fora delas (Andrada, Dugnani, Petroni, & Souza, 2019Andrada, P. C.; Dugnani, L. A. C.; Petroni, A. P.; Souza, V. L. T. (2019). Atuação de Psicólogas(os) na Escola: enfrentando desafios na proposição de práticas críticas. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003187342
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; Insfran, Ladeira, & Faria, 2020Insfran, F.; Ladeira, T. A.; Faria, S. E. F. (2020). Fracasso Escolar e Medicalização na Educação: a culpabilização individual e o fomento da cultura patologizante. Movimento-Revista De educação, 7(15). https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.43073
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; Scarin & Souza, 2020Scarin, A. C. C. F.; Souza, M. P. R. (2020). Medicalização e patologização da educação: desafios à psicologia escolar e educacional. Psicologia Escolar e Educacional [online]. 24(e214158), 1-8. https://doi.org/10.1590/2175-35392020214158
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). Partindo desse pressuposto, as Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica sustentam que o trabalho desse profissional deve contribuir com o aprimoramento da educação escolar por meio do fortalecimento de processos democráticos de gestão educacional e do acompanhamento dos processos de escolarização (Conselho Federal de Psicologia, 2019Conselho Federal de Psicologia (2019). Referências Técnicas para Atuação de Psicóloga (o)s na Educação Básica. 2ª.ed.Brasília: CFP.).

Nesse contexto, o presente artigo se configura como um relato de pesquisa que teve como objetivo avaliar as contribuições do Programa de Atenção e Ressignificação das Queixas Escolares (PARQUE) para o enfrentamento da patologização e da medicalização dos fenômenos escolares. Após a caracterização dos procedimentos metodológicos da pesquisa, os resultados obtidos pelo Programa estudado serão apresentados e discutidos.

MÉTODO

O estudo se caracterizou como sendo de cunho qualitativo. A fundamentação teórico-metodológica utilizada para a compreensão do tema estudado é baseada na perspectiva histórico-cultural da Psicologia e nos autores que produzem conhecimento com base na Psicologia Escolar Crítica.

As reflexões teórico-metodológicas propostas por Vigotski1 1 Em Português, o nome do autor é encontrado com diferentes grafias, conforme a tradução realizada. Neste trabalho adotamos a forma escrita Vigotski, por considerá-la mais simples. No entanto, nas Referências respeitamos a grafia original das obras consultadas. (1896-1934) nortearam todo o processo de construção da pesquisa. Essa perspectiva teórica compreende que o sujeito é constituído por meio das interações com o contexto social, do qual ele se apropria a partir do processo de mediação simbólica, construindo sentidos singulares, embora estes sejam também marcados pelas determinações sociais, a partir dos significados sociais compartilhados nesse contexto (Vigotski, 1998Vigotski, L. S. (1998). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.).

O Programa estudado

O PARQUE é resultado de uma parceria firmada em 2013 por professores do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e psicólogos do Colégio de Aplicação da mesma universidade, com o objetivo de contribuir com a formação de psicólogos na área de Psicologia Escolar e Educacional e promover a atenção e ressignificação da queixa escolar em unidades escolares da rede pública de ensino. A escola estudada é campo de estágio supervisionado de acadêmicos de diferentes cursos de Licenciatura, de Pedagogia, de Psicologia e outros, e conta com psicólogos em seu quadro funcional.

O Programa é composto por docentes integrantes do LAPEE, dois psicólogos escolares do Colégio de Aplicação e estudantes que realizam estágio curricular obrigatório em Psicologia Escolar. A quantidade de professores e estagiários participantes varia a cada ano de acordo com o número de vagas oferecidas por cada professor-supervisor, sendo que, em média, participam do PARQUE três docentes e seis estagiários por semestre letivo. Conjuntamente, esse coletivo vem construindo possibilidades de atuação na escola que contrariam o atendimento à clássica demanda por avaliação e intervenção psicológica individual de estudantes que “não aprendem/não se comportam”, partindo de pressupostos teóricos da Psicologia Escolar Crítica.

Ainda assim, a demanda mais comum e recorrente que os psicólogos escolares recebem é o encaminhamento individual de estudantes por queixas relacionadas às dificuldades presentes no processo de ensino-aprendizagem e comportamentos entendidos pela escola como “problema”. Tais encaminhamentos costumam vir por meio de listas com nomes dos estudantes indicados pelos professores ou outros profissionais da equipe pedagógica.

Os estagiários do Programa colaboram no mapeamento da queixa escolar por meio da observação em sala de aula, entrevistas com docentes e demais funcionários da escola, diálogos com os estudantes e seus familiares. As ações de intervenção são planejadas conjuntamente com os supervisores acadêmicos e locais e discutidas com os participantes das atividades.

Desse modo, o PARQUE tem buscado construir estratégias de atuação profissional pautadas nas relações que a criança, objeto da queixa, tem com o contexto escolar. Como exemplos, têm sido realizadas intervenções coletivas em sala de aula, com a participação das professoras e o planejamento conjunto de atividades pedagógicas e do plano de ensino. Sem negar as demais relações que o estudante tem com os outros membros da comunidade escolar, o Programa entende que o professor é um ator central para a elaboração de parcerias, já que se constitui como um mediador da relação do estudante com o conhecimento (Cord, Lopes, & Oltramari, 2020Cord, D.; Lopes, J. S.; Oltramari, L. C. (2020). PARQUE: Um programa de estágio na Universidade Federal de Santa Catarina. In L. C.Oltramari; L. R. C. Feitosa; M. Gesser (Eds.), Psicologia Escolar e Educacional: processos educacionais e debates contemporâneos (pp. 157-177). Florianópolis: Edições do Bosque UFSC/CFH. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217611
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).

Procedimentos

Após a formalização da proposta de pesquisa junto às instâncias competentes no interior da escola, um e-mail contendo uma carta de apresentação com informações gerais sobre o estudo a ser desenvolvido foi enviado a todos os professores que trabalhavam com os anos iniciais (do 1º ao 5º ano) do Ensino Fundamental, como forma de deixá-los cientes do estudo. No fim da pesquisa, o relatório foi entregue às participantes e aprovado por todas, e uma cópia foi entregue à instituição estudada.

Para a participação na pesquisa foram definidos, previamente, quatro critérios de inclusão: a) ter recebido, em suas turmas, estagiários vinculados ao PARQUE, por pelo menos um semestre; b) aceitar participar do estudo voluntariamente; c) estar de acordo com todos os procedimentos previstos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; d) atuar como docente, na escola estudada, no momento de realização da pesquisa.

Quatro foram as professoras que atenderam a todos os critérios de inclusão estabelecidos, sendo três delas professoras de Educação Geral, com formação em Pedagogia, e uma delas professora de Educação Especial, com formação em Educação Especial (Licenciatura).

Com o objetivo de obter as informações necessárias para a realização da pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas (Minayo, 2000Minayo, S. C. (2000). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes.). As entrevistas foram agendadas por e-mail e realizadas na própria escola, em local capaz de garantir conforto e privacidade. O roteiro de entrevista abarcou a caracterização das participantes quanto às informações gerais sobre elas, tais como idade, formação profissional, tempo de atuação na área da Educação e tempo de atuação na escola; o que motivou a escolha pela carreira docente; desafios da atuação docente; experiência de trabalho com o Programa; avaliação do Programa no que diz respeito às contribuições para o trabalho docente; avaliação geral do Programa.

Após a realização das entrevistas, estas foram transcritas e analisadas com base na proposta de análise de conteúdo temática de Bardin (1977/2000)Bardin, L. (2000). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. Trabalho original publicado em 1977. Esse processo foi iniciado com a transcrição detalhada das falas das participantes da pesquisa, seguida da sua leitura flutuante, para identificação dos principais temas e subtemas presentes. Fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação cuja presença ou frequência tenham significado para o objetivo analítico visado (Minayo, 2000Minayo, S. C. (2000). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes.).

Seguida da categorização por temas e subtemas, foi realizada a descrição de conteúdo para ser interpretado, momento em que se buscou obter tanto o conteúdo explícito, quanto o conteúdo subjacente, baseado na junção da observação das participantes da pesquisa e as suas respostas. Por fim, as informações colhidas e categorizadas por meio das etapas acima descritas foram relacionadas com o conhecimento recente produzido em Psicologia Escolar.

Nas análises, elencamos os seguintes eixos centrais: a) desafios da atuação docente; b) contribuições e limites do Programa para o processo de escolarização. No presente artigo, focaremos nossa discussão sobre as contribuições e limites do PARQUE.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Contribuições do PARQUE para a ressignificação da queixa escolar

De acordo com o estudo realizado, o PARQUE trouxe muitas contribuições para a desmedicalização das queixas escolares, que serão apresentadas, a seguir, em tópicos temáticos.

Promoção de novos sentidos para a queixa escolar

A atuação realizada pelo Programa aparece como promotora de novos sentidos na formulação inicial da queixa escolar, seja quando traz uma problematização para o processo singular do estudante na sua relação com as atividades de aprendizagem, seja quando promove uma escuta qualificada do docente e o instiga a refletir sobre sua atuação através de outro olhar. Essa questão pode ser identificada no depoimento abaixo:

Então nesse momento acho que a gente se vê muito, sabe... Porque é uma reflexão também, né, da tua ação... E o fato de tu observar outras pessoas com a tua turma, e outras maneiras de conduzir as atividades, acho que é uma reflexão constante, né, como se pode melhorar. Então acho que sempre há impacto, dos mais diversos... (Ana)

Diante disso, ao analisar os depoimentos com base em Vigotski (1930/2003Vigotski, L. S. (2003). Imaginación y creación en la edad infantil. Buenos Aires: Nuestra América. Trabalho original publicado em 1930), pode-se afirmar que o Programa estudado contribuiu para que as professoras pudessem, por meio da mediação realizada pela equipe do PARQUE, ressignificar aspectos de suas práticas, criando novos modos de se relacionar com a atividade docente. Essas transformações também foram observadas no que se refere às relações entre as professoras e os estudantes com deficiência, assunto que será objeto do próximo tópico.

A queixa escolar e a inclusão educacional das pessoas com deficiência

A homogeneização característica da estrutura de ensino identifica os estudantes com deficiência como um problema, pois eles geralmente não correspondem às expectativas de desempenho padronizado. Assim, os estudantes com deficiência trazem esse estigma a priori, antes mesmo de terem tido a oportunidade de se implicar com as tarefas escolares (Angelucci & Lins, 2013Angelucci, C. B. (2013). Por uma clínica da queixa escolar que não reproduza a lógica patologizante. In B. P. Souza(Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 353-378). São Paulo: Casa do Psicólogo.; Gesser, 2020Gesser, M. (2020). Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola. In L. C. Oltramari; L. R. C.Feitosa; M. Gesser (Eds.), Psicologia escolar e educacional: processos educacionais e debates contemporâneos. (pp. 93-113). Edições do Bosque UFSC/CFH. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217611
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).

A professora de Educação Especial salienta que as observações e trocas com a Psicologia, por meio de reflexões e estratégias desenvolvidas em conjunto - Psicologia, Educação Especial e demais disciplinas curriculares - foram muito úteis para melhor compreender a rede de relações dos estudantes com deficiência e suas dificuldades singulares. Além disso, o PARQUE também contribuiu, com base na perspectiva da educação inclusiva, para transformar a inclusão escolar dos estudantes com deficiência num projeto coletivo, como responsabilidade de diversos atores da escola, não apenas de um profissional especializado. A Professora Regina destaca:

Eu sinto assim, desafio na responsabilização compartilhada com os colegas... a educação especial [...] Parece que... o professor vai salvar o mundo, agora ele é teu aluno, né? É tua responsabilidade... E isso foi uma ação do PARQUE muito interessante [...] que a gente vai ter planejamento, reuniões de planejamento onde participava a psicóloga, as estagiárias do PARQUE, a professora da classe comum, eu, enfim... Era um momento da gente pensar coletivamente e ver esses sujeitos de uma forma coletiva e uma responsabilização coletiva também... (Regina)

A promoção de processos educativos inclusivos está em consonância com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009Decreto nº 6.949/2009. (2009). Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União (26-08-2009) , p. 3. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
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) e com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015Lei nº 13.146/2015. (2015). Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) . Diário Oficial da União (07/07/2015) , p. 2. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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), que se baseia na Convenção e estabelece a criação de um “sistema educacional inclusivo em todos os níveis de aprendizado ao longo de toda a vida”, atribuindo ao Estado, à família, à comunidade escolar e à sociedade como um todo, o dever de garantir educação de qualidade à pessoa com deficiência.

Baglieri, Bejoian, Broderick, Connor e Valle (2011Baglieri, S.; Bejoian, L. M.; Broderick, A. A.; Connor, D. J.; Valle, J. (2011). [Re]claiming “Inclusive Education” toward cohesion in educational reform: Disability studies unravels the myth of the normal child. Teachers College Record, 113(10), 2122-2154.) definem a educação inclusiva como aquela que tem como finalidade o rompimento com concepções normativas de aprendizagem que, baseadas no modelo médico, excluem os estudantes que diferem do que tem sido instituído como norma para aprender.

A educação inclusiva deve ser baseada na eliminação das barreiras que dificultam ou até mesmo impedem o acesso ao conhecimento e a participação dos estudantes, em consonância com a perspectiva anticapacitista de educação (Gesser, 2020Gesser, M. (2020). Por uma educação anticapacitista: contribuições dos estudos da deficiência para a promoção de processos educativos inclusivos na escola. In L. C. Oltramari; L. R. C.Feitosa; M. Gesser (Eds.), Psicologia escolar e educacional: processos educacionais e debates contemporâneos. (pp. 93-113). Edições do Bosque UFSC/CFH. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217611
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), que busca o rompimento das atividades discriminatórias e a criação de estruturas para reconhecer e valorizar a diversidade humana.

A importância da escuta qualificada e da troca dialógica

A etapa de mapeamento da queixa escolar, por se utilizar de escuta sensível, contribui para que novas significações possam emergir acerca das vivências desafiadoras em sala de aula. Isso pode ser identificado nos depoimentos abaixo:

[...] eu acho que os encontros de preparação, as reuniões, ou os momentos que eu tive em outras situações de conversar, de falar qual era a minha queixa, o que me angustiava, de alguma forma são importantes porque a gente não tem muito espaço na escola. [...] Então eu acho, enfim, que é um espaço dentro da rotina da escola que tem seu valor. Se fosse só isso, só para falar, já tem um valor. (Tereza).

Há uma outra coisa de que eu gostava muito que são os momentos de conversas que a gente tinha. Conversas com o grupo do PARQUE, né? [...] Porque a gente pensa, a gente reflete sobre o trabalho [...] E aí refletir o trabalho juntos, isso é uma coisa boa. (Maria).

As informações obtidas a partir das falas das participantes indicam que escutar com legitimidade para construir um processo conjunto de intervenção da queixa escolar não se limita à etapa inicial dessa intervenção; ao contrário, configura-se como ferramenta central no processo de ressignificação da queixa escolar, pois possibilita não só a reflexão conjunta sobre as dificuldades que surgem no processo de escolarização, como também o seu enfrentamento coletivo.

A valorização que as professoras atribuem aos momentos de “conversa” com os estagiários do Programa parece estar relacionada à falta de outros espaços para exercitar essa troca dialógica entre os próprios professores, e entre eles e os demais atores da escola (e o baixo aproveitamento dos espaços existentes), produzindo solidão na realização do seu trabalho. Nessa direção, Insfran, Muniz e Araujo (2019Insfran, F. F. N; Muniz, A. G. C. R.; Araujo, G. G. (2019). Problemas de escolarização, medicalização e docência: outros olhares. Práxis Educacional, 15(36), 84-107. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v15i36.5861
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) ressaltam a importância da criação de espaços coletivos de aprendizado e trocas de experiência como fundamentais à valorização do saber pedagógico e da função docente, no combate aos processos de medicalização da educação.

Além disso, Cunha, Dazzani, Santos e Zucoloto (2016Cunha, E. O.; Dazzani, M. V. M.; Santos, G. L.; Zucoloto, P. C. S. V. (2016). A queixa escolar sob a ótica de diferentes atores: análise da dinâmica de sua produção. Estudos de Psicologia, (33)2, 237-245. https://doi.org/10.1590/1982-02752016000200006
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) identificaram que a ausência de momentos de diálogo contribui para manterem cristalizados o ritmo e a forma pelos quais o ambiente escolar rigidamente opera, com base em normas de órgãos superiores que demandam padronização e controle social. Esse fator é relevante na manutenção da dificuldade da escola em lidar com a variabilidade da experiência humana no processo de ensinar e aprender.

Num contexto pautado pela padronização e pelo controle, no qual o que foge ao previsto é comumente enquadrado como “inadequado”, “anormal”, não é de se estranhar que não apenas os estudantes sejam objeto de normalização, mas também os docentes, que se sentem vigiados e julgados em sua atuação profissional. Esse era o receio apresentado por Maria, quando de seu primeiro contato com o PARQUE: “[...] não vê o grupo do PARQUE como alguém que aponta o destrutivo... E quando eu percebo que na verdade é pra somar, é mais interessante pra mim”.

A história da Psicologia na Educação contribuiu, em grande medida, para a construção da noção de uma suposta superioridade dos saberes psi em relação ao conhecimento pedagógico e de uma relação vertical entre psicólogas e professoras (Paraventi, Scaff, Cord, & Oltramari, 2017Paraventi, L.; Scaff, L.; Cord, D.; Oltramari, L. (2017). Mediação grupal como estratégia de ressignificação da queixa escolar. Pesquisas e Práticas Psicossociais. 12(3), 1-14. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000300014
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).

O depoimento de Maria reforça a centralidade da escuta qualificada e da troca dialógica para a construção de práticas colaborativas, além da importância do estabelecimento de relações horizontais entre psicólogas e professoras, que possibilitem a partilha de sentimentos e experiências, destacando a força do coletivo diante das dificuldades: “o poder restaurador da empatia instaurada por um trabalho em conjunto” (Insfran, Muniz, & Araújo, 2019Insfran, F. F. N; Muniz, A. G. C. R.; Araujo, G. G. (2019). Problemas de escolarização, medicalização e docência: outros olhares. Práxis Educacional, 15(36), 84-107. https://doi.org/10.22481/praxisedu.v15i36.5861
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, p. 104). Quando as dificuldades podem ser pensadas e enfrentadas coletivamente, soluções também podem advir do coletivo. Essa temática será aprofundada no tópico a seguir.

Da culpabilização do indivíduo ao fortalecimento dos coletivos

Os depoimentos das professoras entrevistadas indicam que por meio das intervenções do Programa a atenção delas deixa de se concentrar, exclusivamente, nos comportamentos de estudantes que prejudicam o andamento das aulas, e passa a se dirigir à compreensão de como o grupo atua como um todo, como ele se organiza e reage frente a demandas - institucionais, sociais e políticas - que os atinge.

[...] o que eu acho que o PARQUE faz é colocar o grupo como parte do nosso conteúdo, eu acho isso importante... (Maria).

[...] qualquer questão é motivo de conflito [...] E aí, com a atuação do PARQUE, esse fortalecimento dos vínculos, essas estratégias, identificando o que era necessário trabalhar naquela turma, acaba que gera um resultado importante para a finalidade mor que é a aprendizagem na escola, né? [...] Então foi uma aprendizagem muito importante, e era um momento de as crianças se sentirem ainda mais valorizadas na sua palavra, que [para] isso a gente tem pouco espaço, muitas vezes, na escola... E eu acredito que é um espaço essencial! (Regina)

Dessa forma, as falas apresentadas indicam que as atividades realizadas pelo PARQUE também contribuíram para a integração das turmas e constituição delas como grupo, corroborando a resolução dos conflitos e a fluidez do trabalho desenvolvido pelas professoras, ao permitir que a turma analisasse o seu funcionamento e os pontos de embate que dificultam as relações sociais e o aprendizado conjunto.

Tanto Bittencourt, Lima e Gesser (2017Bittencourt, I. G.; Lima, Á. R.; Gesser, M. (2017). O trabalho em grupo como dispositivo para ressignificação da queixa escolar. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 10(2), 194-203. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202017000200005
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), como Paraventi et al. (2017Paraventi, L.; Scaff, L.; Cord, D.; Oltramari, L. (2017). Mediação grupal como estratégia de ressignificação da queixa escolar. Pesquisas e Práticas Psicossociais. 12(3), 1-14. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082017000300014
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), apostam no trabalho com os vínculos interpessoais como uma das estratégias possíveis à ressignificação da queixa escolar. Paraventi et al. (2017) destacam ainda que o trabalho com grupos no contexto escolar possibilita a emergência de novas significações para as vivências escolares, pois permite a identificação dos recursos individuais e coletivos já existentes e a criação de novas formas de significar e experienciar os desafios presentes no processo de escolarização.

Na medida em que o PARQUE possibilita que diferentes vozes sejam escutadas e a palavra de cada um seja um dado importante, uma nova imagem de si e dos outros pode surgir. Assim, o exercício de alteridade e a implicação na busca de um novo modo de operar como grupo, promovendo o fortalecimento de vínculos, uma vez que possibilitou a identificação com mais precisão dos pontos de entrave do processo de ensino-aprendizagem, incitou a turma a se lançar na superação de impasses em sala de aula.

Conforme foi possível observar até aqui, o Programa estudado trouxe uma série de contribuições ao enfrentamento do processo de medicalização da queixa escolar. Como exemplo, podemos destacar a produção de novos sentidos sobre a queixa escolar, por meio da valorização do trabalho docente, da escuta qualificada e do trabalho coletivo na resolução das problemáticas que surgem no processo de escolarização. Todavia, limites também foram apontados pelas professoras que participaram da pesquisa e serão abordados na próxima seção.

Limites do PARQUE

Do “aluno-problema” para a “turma-problema”?

Alguns depoimentos indicaram que a atuação do Programa em determinadas turmas se deu por elas serem identificadas pela escola como “turmas problemáticas”. O psicólogo como agente da correção dos grupos caracterizados pelos atores sociais da escola como disfuncionais evidencia a perspectiva do modelo biomédico de atuação do psicólogo escolar, já criticado por autores como Souza (2014Souza, M. P. R(2014). Desafios para uma atuação profissional de psicólogos frente à queixa escolar: compromisso ético, político e social. In M. P. R. Souza; S. M. C. Silva; K. Yamamoto (Eds.), Atuação do Psicólogo na Educação Básica: concepções, práticas e desafios (pp. 283-293). Uberlândia: Edufu.).

A professora Maria trouxe o possível estigma que a presença do Programa sinaliza, pois o trabalho é feito em turmas que apresentam uma queixa escolar. Segue o depoimento dela:

[...] então o PARQUE sinaliza o lugar do problema? Que acaba criando o estigma desse grupo? Ao mesmo tempo ele dá uma esperança de que alguma coisa se altera [...] quando o PARQUE chega, parece que alguma coisa é possível. Eu acho que isso é importante também. Talvez isso também seja a ambiguidade do PARQUE. Ele não é pra todos, mas quando ele vem, ele vem com uma esperança pra aquilo que é muito duro [...] (Maria)

Nesse sentido, é importante salientar que a turma pode ser vista como disfuncional quando não se apreende a complexidade de elementos constituintes da queixa escolar. Diversos fatores de diferentes ordens podem influenciar o surgimento de dificuldades em sala de aula, como por exemplo, políticas educacionais generalizantes que não levam em conta as necessidades das escolas, currículos criados de forma vertical, sobrecarga de trabalho, imediatismo e o preconceito em relação aos estudantes pobres são alguns desses fatores (Andrada et al., 2019Andrada, P. C.; Dugnani, L. A. C.; Petroni, A. P.; Souza, V. L. T. (2019). Atuação de Psicólogas(os) na Escola: enfrentando desafios na proposição de práticas críticas. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003187342
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).

Ademais, embora o Programa proponha um olhar voltado para a complexidade das relações estabelecidas na escola, em algumas situações acaba tendo que utilizar a “turma-problema” como analisadora. Todavia, em momento algum a compreensão da queixa escolar é reduzida ao âmbito das relações estabelecidas na turma em si; o que se busca é compreender como a queixa é produzida e como se dão os processos de subjetivação e objetivação dos indivíduos envolvidos em sua produção (Cord, Lopes, & Oltramari, 2020Cord, D.; Lopes, J. S.; Oltramari, L. C. (2020). PARQUE: Um programa de estágio na Universidade Federal de Santa Catarina. In L. C.Oltramari; L. R. C. Feitosa; M. Gesser (Eds.), Psicologia Escolar e Educacional: processos educacionais e debates contemporâneos (pp. 157-177). Florianópolis: Edições do Bosque UFSC/CFH. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217611
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).

Como disse a professora Maria, “ele [o Programa] não é para todos”. O PARQUE vai continuar a marcar o lugar do problema enquanto continuar a existir a noção de um “certo” restrito e regrado que precisa ser generalizado para todos do ambiente escolar. A cooptação pelas normas e poderes instituídos prevalece muito acima de uma problematização acerca dos possíveis determinantes que contribuem para a constituição da queixa escolar.

A análise dos dados da pesquisa indica que o PARQUE apresenta maior efetividade quando, em vez de se propor a resolver o suposto problema enunciado, expõe e coloca em dúvida os elementos que o formam, que o anunciam como desregramento e fracasso. A dimensão do possível estigma carregado por turmas trabalhadas pelo Programa se relaciona ao impacto afetivo das intervenções. Qualquer trabalho sobre a queixa escolar terá implicações e interações complexas no fazer cotidiano da sala de aula e num nível emocional nos sujeitos.

Assim, conforme propõe Angelucci (2013Angelucci, C. B.; Lins, F. R. S. (2013). Pessoas significativamente diferentes e o direito à educação: uma relação atravessada pela queixa. In B. P. Souza (Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 329-349). São Paulo: Casa do Psicólogo.), reposicionar os atores envolvidos diretamente naquela queixa se torna um passo imprescindível para lapidá-la e concentrar alternativas de intervenção que possam trazer resultados e ressignificação de elementos que a compõem, com o horizonte da despatologização.

Tempo escolar e tempo psicológico

Os processos de subjetivação no encontro com o outro não possuem tempo definido, nem escala de medida e, ao contrário do calendário escolar, não são determinados pelo correr do ano letivo. As professoras entrevistadas colocam em questão o tempo da intervenção. Vejamos:

[...] pra mim tem uma implicação da relação de tempo. Porque observa em um período, e atua no outro, e é muito curto. Sabe-se que as questões subjetivas elas são adensadas, e que ninguém faz um trabalho nas emoções a curto prazo, então o PARQUE tem que pensar que prazo ele vai ter diante do trabalho que ele se pretende fazer... pra mim, né... (Maria).

Nenhum trabalho consegue sanar as angústias e demandas totalmente, independente do tempo de observação e intervenção e também, nem deve ser dessa forma. Talvez essa impressão de brevidade da intervenção - dois semestres letivos, em média - esteja correta, ou talvez ela surja frente às expectativas criadas, aos resultados subjetivos, pouco visíveis. Tereza apresenta suas expectativas nesse sentido:

[...] não é tão rápido como a gente espera. Então, às vezes, tem uma criança numa situação super complexa e a gente quer resolver! E aí a gente quer a ajuda de todo mundo pra resolver [...] e ainda assim a gente não vê muita mudança... mas, porque são questões, geralmente quando é um quadro assim, muito mais complexas, né... (Tereza)

O que o PARQUE traz são elementos para ressignificação de contextos, tão complexos e moduláveis a pressões e condicionantes como a própria queixa escolar; um deles é o tempo. Souza (2013Souza, B. P. (2013). Funcionamentos escolares e a produção do fracasso escolar e sofrimento. In B. P. Souza (Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 241-278). São Paulo: Casa do Psicólogo.) salienta a necessidade de manter uma postura cuidadosa na relação entre o tempo escolar e o tempo psicológico dos sujeitos, a fim de evitar que mais violências sejam cometidas e que o fracasso escolar seja potencializado.

Ademais, a pesquisa realizada por Labadessa e Lima (2017Labadessa, V. M.; Lima, V. A. A. de. (2017). Queixa escolar: repercussões na escola a partir do atendimento psicológico. Psicologia Escolar e Educacional, 21(3), 369-377. http://dx.doi.org/10.1590/2175-3539/2017/02131116
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) aponta que as escolas, de modo geral, não discutem o retorno que recebem dos encaminhamentos para atendimento psicológico nem criam estratégias de intervenção frente às dificuldades, sob a justificativa da falta de tempo. Lima, Cruz, Lima e Brandão (2021Lima, M. L. C.; Cruz, B. A.; Lima, L. N.; Brandão, D. A. S. (2021). Debatendo sobre medicalização com docentes em escolas públicas e privadas. Psicologia Escolar e Educacional [online]. 25, 1-9. https://doi.org/10.1590/2175-35392021222921
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) destacam que um tempo de trabalho consumido por pressões de diversas instâncias, internas e externas às escolas, é um dos fatores que contribui para a ausência da crítica aos processos de medicalização nas instituições escolares, que tendem a naturalizar a presença de diagnósticos médicos como explicações para os problemas que surgem no processo de ensino-aprendizagem.

As equipes escolares, pressionadas pela sobrecarga de tarefas e exigências crescentes, se veem impelidas a dar solução imediata a tudo, deixando de valorizar os espaços de trocas e reflexões coletivas (Andrada et al, 2019Andrada, P. C.; Dugnani, L. A. C.; Petroni, A. P.; Souza, V. L. T. (2019). Atuação de Psicólogas(os) na Escola: enfrentando desafios na proposição de práticas críticas. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003187342
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). Se não há tempo para a intervenção coletiva naquilo que aparece como dificuldade no cotidiano da escola, a expectativa é de que a Psicologia resolva o suposto problema de maneira quase cirúrgica, especializada e materialmente visível, o que nos remete, uma vez mais, às expectativas tradicionais acerca de uma atuação adaptacionista e corretiva dos psicólogos na escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diferencial proporcionado pelo PARQUE se dá principalmente nas relações entre professor-estudante da escola pesquisada. O trabalho voltado à ressignificação da queixa escolar produziu reflexões frente aos desafios da sala de aula, possibilitando um movimento de não culpabilização do estudante pelo seu fracasso em corresponder às expectativas de desempenho.

Na promoção de um processo conjunto de elaboração da queixa escolar, o PARQUE desenvolve práticas que aproximam diferentes atores do ambiente educacional e atua como mediador na compreensão multideterminada dos processos educacionais. A ressignificação da queixa passa pela percepção e pela diferente implicação dos professores sobre seu papel nos processos educativos.

A análise dos resultados mostrou que a apresentação das questões pelos docentes sobre uma turma, inicialmente caracterizada como desajustada e disfuncional, foi se modulando à medida que o Programa mediou novos processos de significação sobre a queixa. Diferentes visões e posturas foram fomentadas devido à inclusão de outros elementos na elaboração do que apareceu inicialmente como problema em sala de aula. Como elementos, destacam-se as relações institucionais e sociais que impactaram de forma considerável aquele grupo de estudantes e professores no que se refere ao processo de ensino-aprendizagem.

A criação de um espaço de escuta e de diálogo dos diferentes atores envolvidos na queixa também se mostrou como um diferencial do PARQUE para as professoras entrevistadas. Essas definem como gratificante poder contar com um trabalho conjunto na observação e discussão acerca dos desafios do fazer docente. A problematização da queixa escolar inicialmente apresentada e a melhora nos vínculos entre estudantes e professores foram importantes resultados dessa atuação.

Como observado nos depoimentos, o entendimento da queixa escolar como multideterminada por elementos relacionais, institucionais, sociais e políticos possibilita a construção de novos sentidos sobre o fracasso escolar. Dessa forma, esse entendimento corrobora a despatologização das relações de ensino-aprendizagem, impactando não apenas os sujeitos diretamente envolvidos, mas também, a dinâmica da escola, os valores e as práticas alimentados nessa rede de relações. Ainda sobre a queixa escolar, o estudo também indicou que é importante tratá-la como um desafio coletivo, uma vez que o processo de ensino-aprendizagem não se dá apartado das relações institucionais e sociais, o que aponta para a relevância de que essas relações sejam transformadas a fim de romper com a patologização e medicalização dos fenômenos escolares.

Por fim, o PARQUE pode materializar um fazer ético-político do profissional da psicologia escolar como uma prática não psicologizante e que teve como centro a problematização de questões educacionais com base na complexidade de elementos que a constituem. Dessa forma, apontou para a importância da construção de práticas coletivas e para a elaboração de políticas públicas no campo da educação voltadas para o acolhimento das diferentes formas de aprender como garantia dos direitos humanos de todos os atores sociais da escola.

O estudo trouxe importantes elementos para a compreensão dos efeitos de uma proposta de atenção e ressignificação da queixa escolar, a partir de experiências de estágio em Psicologia Escolar numa perspectiva crítica. Coerente com os pressupostos teórico-metodológicos que o embasam, não tem a pretensão de generalização dos resultados obtidos; ainda que com base em Vigotski (1995Vygotski, L. S. (1995). Obras Escogidas: Vol. 3. Problemas del desarollo de la psique. Madrid, España: Visor.; 1999Vigotski, L. S. (1998). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.), por meio da dialética do singular-particular-universal, tais elementos podem servir para nos auxiliar na compreensão da complexidade dos fenômenos envolvidos na ressignificação da queixa escolar.

Ainda assim, é importante ressaltar que essa pesquisa retratou os resultados de uma experiência singular. Novos estudos são necessários para melhor entendimento da relação que se estabelece entre professoras e psicólogas no cotidiano escolar e sobre os efeitos dessa relação nos processos de ensino-aprendizagem. Também se fazem necessárias pesquisas que contemplem a perspectiva dos estudantes da Educação Básica que passaram por intervenções da Psicologia no interior das escolas e sobre as contribuições das experiências de estágio, numa perspectiva desmedicalizante, para a formação profissional das futuras psicólogas e psicólogos.

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  • 1
    Em Português, o nome do autor é encontrado com diferentes grafias, conforme a tradução realizada. Neste trabalho adotamos a forma escrita Vigotski, por considerá-la mais simples. No entanto, nas Referências respeitamos a grafia original das obras consultadas.
  • A pesquisa recebeu apoio financeiro do CNPq, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2020
  • Aceito
    10 Out 2021
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