EDITORIAL
Formação e exercício profissional em Serviço Social
Em 24 de abril de 2007, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PDE vem se materializando por meio de um conjunto de decretos, projetos de lei, resoluções e portarias que estruturam a proposta de "contrarreforma" universitária em andamento. Para entender essa proposta, é preciso recuperar algumas informações da história referentes à educação superior no país nas três últimas décadas.
Em meados dos anos 1980, no governo do presidente José Sarney (1985-1990), foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (Geres), que, entre outros objetivos, colocava-se contra o modelo de educação superior pautado na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, mais tarde defendido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996). Esse grupo foi desfeito, na época, ante a reação dos segmentos sociais organizados comprometidos com um projeto de universidade pública, gratuita, presencial, laica e socialmente referenciada.
No governo do presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992), no entanto, consolida-se o ataque ao que se passou a chamar de "modelo único de universidade", em favor da necessidade de sua diversificação, explicitada na ideia de "Universidade de Ensino". No governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), essa concepção se operacionalizou como ação do Ministério da Educação (MEC): "expandir o sistema de ensino superior público por meio da otimização dos recursos institucionais aos modelos existentes" (Planejamento Político-estratégico 1995/1998 MEC, 1995, p. 26). Tal proposta tinha como referência uma das diretrizes do Banco Mundial para a "reforma" do ensino superior nos países em desenvolvimento.
A partir daí, a flexibilização do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão passa a integrar, ostensivamente, a pauta das políticas públicas voltadas para a educação superior, flexibilização que se materializou em parâmetros como cursos sequenciais, ensino a distância, ciclos básicos. Estes, por sua vez, sustentaram iniciativas como a criação da Universidade Aberta do Brasil e da Universidade Nova. Essas iniciativas envolvem três âmbitos: o ensino presencial público, o ensino presencial privado e o Ensino a Distância (EAD) público e privado.
No que se refere ao ensino público, essa concepção de flexibilização foi incorporada ao PDE no governo Lula, tendo assumido grande destaque o Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Os objetivos principais do Reuni são evitar a profissionalização precoce e fechada, por meio da introdução dos ciclos ou níveis de formação, reduzir as taxas de evasão e aumentar o número de vagas, com a intenção de elevar em 100% o número de ingressantes nos cursos superiores. Tudo isso, porém, sem o aumento proporcional da verba de custeio das universidades e, consequentemente, do número de docentes.
Igualmente grave é o processo de privatização e mercantilização do ensino superior, com a ampliação, sem critérios, do número de cursos privados em diversas áreas. No caso específico do Serviço Social, em 1998, havia no país 89 cursos reconhecidos pelo MEC. Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC), esse número subiu para 111, em 2002, e para 567, em julho de 2012. Ou seja, de 1998 a 2012, houve um crescimento de mais de 500% no número de cursos de Serviço Social oferecidos no país, sem que se reconheçam condições de infraestrutura operacional e docente para atender tal oferta.
O EAD, por sua vez, tem sido apresentado pelo MEC como instrumento capaz de garantir e ampliar o acesso da população ao ensino superior e de realizar responsabilidade social. Segundo o site do MEC, havia, já em 2010, 189 instituições credenciadas para oferecer EAD, cada qual com seus respectivos polos. A relação custo-benefício tem resultado em uma adesão crescente das instituições privadas a essa modalidade de ensino. A crítica ao EAD se estende a toda e qualquer forma precária de formação profissional, seja ela presencial ou não, pública ou privada.
Com base nessas informações, nota-se que as propostas presentes na "contrarreforma" da educação superior, a partir do governo Lula, interferem diretamente na implementação das Diretrizes Curriculares para os cursos de Serviço Social. O PAC e, dentro dele, o PDE não preveem, de fato, recursos novos: ambos pretendem alcançar seus objetivos por uma redistribuição de ênfases e pelo incentivo a ações dentro de uma perspectiva de parcerias público-privadas (PPP), dispostas pela lei n. 11.079/2004. Segundo essa lei, tanto o setor público pode investir no setor privado, quanto o contrário, e alguns serviços, sejam ou não prestados diretamente pelo Estado, passam a ser considerados públicos dentre eles, a educação. Em sendo públicos, podem receber verbas do Estado.
Além dessa ambígua relação entre o público e o privado, verifica-se a intencionalidade em fortalecer a divisão entre universidade de ensino versus universidade de pesquisa. As universidades de pesquisa, que demandam alto investimento, corpo docente qualificado e com dedicação exclusiva, segundo a proposta governamental, devem existir em pequeno número são os chamados "centros de excelência", voltados para atender aos interesses do mercado por meio da Lei de Inovação Tecnológica. Já universidades de ensino seriam instrumentos de profissionalização aligeirada, com cursos de curta duração, sem ambiente de pesquisa acadêmico. Essas já existem no setor privado, mas algumas unidades federais também estão se transformando nesse modelo de instituição.
A justificativa para tal política é a inegável necessidade de democratização do acesso ao ensino superior, defendida, inclusive, pelo movimento docente. Entretanto, não queremos um ensino "pobre para os pobres", formando o cidadão trabalhador para a sociedade do desemprego, instituída pelo capital. Essa política afeta nosso projeto de formação profissional, colocando novas configurações tanto para a formação do assistente social quanto para o exercício da profissão. Ela interfere diretamente no perfil do profissional que se quer formar, para que e para quem formar, oferecendo vantagens somente aos interesses do mercado. Assim, coloca-se mais uma vez em risco a defesa da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nas universidades, presente nas Diretrizes Curriculares, princípio que, como assinalamos antes, vem sendo duramente atacado pelas recentes propostas dos governos para a educação superior.
A pesquisa é parte constitutiva do exercício profissional e, portanto, da formação; não pode ser uma atividade eventual, pois é inerente ao processo de formação profissional. Associada à atividade de pesquisa, há ainda a extensão, ambas consideradas como "atividades complementares" às atividades forma-tivas básicas. Essas atividades não podem assumir um caráter apenas mercantil de ofertas de serviços, de venda de produtos, devem objetivar o ensino e a aproximação da universidade à sociedade, do conhecimento à realidade.
Consequências diretas dessa política de governo também recaem sobre a atividade de estágio obrigatório. O Serviço Social vem tentando frear essa precarização, aprovando dois instrumentos de luta da categoria em prol de uma educação superior de qualidade: a Resolução 533 do Cfess, de 29 de setembro de 2008, que regulamenta a Supervisão Direta de Estágio, normatizando o número de alunos por supervisores de campo, e a Política Nacional de Estágio (PNE), elaborada pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) e aprovada pela categoria em 2010.
Diante deste quadro são imprescindíveis a socialização e o aprofundamento do debate sobre a "Formação e o Exercício Profissional em Serviço Social". Este fascículo da Revista Katálysis vem cumprir esse papel, apresentando artigos que contribuem com essa discussão nos diferentes âmbitos da formação: graduada, pós-graduada e permanente. Fazemos com essa edição da Revista um apelo para a participação de todos na defesa da universidade pública no Brasil.
Cláudia Mônica dos Santos, Juiz de Fora, agosto de 2012.
Cláudia Mônica dos Santos
Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Professora Adjunta III na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Presidente da Abepss, gestão 2011-2012
UFJF Faculdade de Serviço Social
Campus Universitário de Martelos
Juiz de Fora Minas Gerais
CEP: 36016-970
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2012