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A Escravidão Digital1 1 O termo escravidão digital foi originalmente formulado por Antunes (2018), em sua obra O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Ao se contrapor à tese sobre o fim do trabalho, o referido autor atesta o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços, que segundo ele, evidencia-se como uma variante da escravidão digital. e a superexploração do trabalho: consequências para a classe trabalhadora

Digital slavery and the super-exploitation of labor: repercussions for the working class

Resumo

O presente artigo tem como escopo de análise a precarização e a superexploração do trabalho, que se manifestam na atualidade através das novas modalidades de terceirização e flexibilização do contrato de trabalho. Fundamenta-se na teoria do valor-trabalho de Marx e na Teoria Marxista da Dependência (Ruy Mauro Marini), objetiva captar alguns elementos essenciais para apreensão da superexploração, tendo em vista estabelecer uma conexão clara entre esta categoria teórica e as novas modalidades de trabalho precário, tão expressivas na atualidade. Dá especial destaque ao setor de serviços, especificamente o trabalho monitorado e controlado por novos dispositivos tecnológicos e de rede. Pretende demonstrar como o processo de expansão dos serviços privatizados e mercadorizados na era informacional-digital contribui para a subsunção real do trabalho ao capital e provoca consequências profundas para a classe trabalhadora, em especial nos países dependentes e periféricos.

Palavras-chave:
Dependência; Superexploração do Trabalho; Precarização; Uberização

Abstract

This article aims to analyze the precariousness and super-exploitation of work, which are currently manifested through the new modalities of outsourcing and flexibilization of the work contract. It is based on Marx’s theories of work and value, and on the Marxist Theory of Dependence (thoughts of Ruy Mauro Marini), We aim to capture some essential elements for comprehension of super-exploitation, owing to establish a clear connection between this theoretical category and the new modalities of precarious work, so expressive nowadays. We give special emphasis to the service sector, specifically to the work monitored and controlled by new technological and network devices. We intend to demonstrate how the process of expansion of privatized and commodified services in the informational-digital era contributes to the real subsumption from labor to capital and has profound repercussions for the working class, especially in dependent and peripheral countries.

Keywords:
Dependence; Super-Exploitation of Labor; Precariousness; Uberization

Introdução

Pensar sobre o trabalho na sociedade contemporânea, nos convida a refletir sobre os elementos centrais do processo de transformações do capitalismo financeiro e mundializado, quais sejam a precarização e a superexploração do trabalho, especialmente nos países latino-americanos.

Ao considerarmos o processo de restauração do capitalismo e suas determinações macroeconômicas em nível mundial, instauram-se novas exigências que configuram estratégias encontradas pelo próprio capital para sair da crise. Ou seja, em decorrência da liberalização, desregulamentação e privatização tem-se uma dinâmica de acumulação flexível e uma economia baseada na exploração da força de trabalho barata e precária, como elementos constitutivos da reprodução ampliada do capital na atualidade.

Baseada nas pesquisas produzidas por Antunes (2006ANTUNES, R. A Era da Informatização e a época da Informalização. Riqueza e Miséria do trabalho no Brasil In: ANTUNES, R. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo. Boitempo: 2006. p. 15-25.) sobre as mudanças no mundo do trabalho, particularmente no atual estágio do capitalismo brasileiro dependente e periférico, observa-se que alguns traços singulares e particulares do processo de reestruturação produtiva do capital, conforme o autor, estão associados às formas multifacetadas e heterogêneas de organização, gestão e controle da força de trabalho, associadas à mundialização, transnacionalização e financeirização dos capitais.

Ao retomarmos o tema central proposto para esta análise, ou seja, a escravidão digital e a superexploração do trabalho, inserido na totalidade do trabalho na sociedade contemporânea, o nosso interesse não está em apenas apontar as características ou formas de ser das expressões da precarização do trabalho, mas, sim, em adensar o debate sobre a relação entre precarização e superexploração do trabalho. Mais precisamente, torna-se relevante analisar as mudanças que afetam as relações capital-trabalho e as novas formas de exploração do trabalho “ as quais sofreram alterações radicais com o padrão de acumulação flexível “ utilizando para isso, mediações concretas de análise, tais como: a precarização do trabalho e a superexploração da força de trabalho2 2 No plano da Teoria da Dependência, “a superexploração não é apenas um conjunto de mecanismos que levam à elevação da taxa de mais-valia, mas, para além disso, constitui-se em uma categoria central - aliás, a mais importante - da teoria marxista da dependência”. (CARCANHOLO, 2013, p. 81). .

Nesse sentido, a estrutura do presente artigo subdivide-se em uma análise sobre a especificidade do capitalismo dependente e periférico, fundamentada na Teoria do valor-trabalho formulada por Marx, e na Teoria Marxista da Dependência defendida por Ruy Mauro Marini. Corroborando o pensamento de Marini, e referenciados pelos fundamentos da transferência de valor e da superexploração da força de trabalho, intencionamos captar os elementos essenciais para apreensão da superexploração, a fim de estabelecer uma conexão clara entre esta categoria teórica e as novas modalidades de trabalho precário, tão expressivas na atualidade. Em seguida, iremos analisar as tendências atuais de precarização do trabalho ou trabalho precário, especificamente no setor de serviços, evidenciando algumas facetas da exploração características do trabalho monitorado e controlado por novos dispositivos tecnológicos e de rede, a exemplo das plataformas da economia de compartilhamento, que têm grandes empresas como protagonistas, tais como Uber (aplicativo de táxi), Rappi (aplicativo de compras e entrega), IFood (aplicativo direcionado ao pedido de refeições em restaurantes e lanchonetes) etc.

Desenvolvimento

A especificidade que define a condição de capitalismo dependente, para Ruy Mauro Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da Dependência In: MARINI, R. M.; SADER, E. (org.). Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-165.) se traduz, principalmente, pela categoria da superexploração da força de trabalho e pelos mecanismos de transferência de valor.

Sobre isso, afirma Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da Dependência In: MARINI, R. M.; SADER, E. (org.). Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-165., p. 121): “frente a esses mecanismos de transferência de valor, baseados seja na produtividade, seja no monopólio da produção, pode-se identificar - sempre no nível das relações internacionais de mercado - um mecanismo de compensação”. Esse mecanismo de compensação é a superexploração do trabalho.

Nesse sentido, Marini, Amaral e Carcanholo (2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.) atestam a permanência da lógica de um intercâmbio desigual, através do qual se operam três mecanismos de transferência de valor: o aumento da intensidade do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho.

Dentro dessa óptica, os referidos autores abordam as categorias da superexploração da força de trabalho e da transferência de valor como fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. Assim, ancorados na teoria marxista da dependência, analisam as características próprias da acumulação de capital na particularidade dos países periféricos. Quanto à especificidade das economias periféricas, afirmam Amaral e Carcanholo (2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 88):

A única atitude que torna possível às economias periféricas garantir sua dinâmica interna de acumulação de capital é o aumento da produção excedente através da superexploração da força de trabalho, ‘o que implica o acréscimo da proporção de excedente/gastos com força de trabalho ou a elevação da taxa de mais-valia, seja por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho, em associação com aumento da intensidade do trabalho’.

Além disso, vale salientar que Amaral e Carcanholo (2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.), ao avançarem na discussão sobre a superexploração, problematizam a relação existente entre a superexploração do trabalho e a lei geral da acumulação capitalista, especialmente quando consideram a funcionalidade do exército industrial de reserva para a acumulação capitalista e a sua disfuncionalidade em relação aos impactos que este provoca na classe trabalhadora em geral.

Sob a perspectiva crítico-marxista, os referidos autores atestam que a dinâmica da acumulação capitalista, a qual se traduz pela ampliação da composição orgânica do capital, ou seja, “a relação entre capital constante (c) e capital variável (v) investidos”, também se amplia. Sendo assim, considerando que “a taxa de lucro é uma função da taxa de mais-valia e da composição orgânica do capital, pressupondo uma taxa de maisvalia constante, o crescimento da composição orgânica do capital leva necessariamente à queda da taxa de lucro.” (AMARAL, CARCANHOLO, 2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 90).

Com efeito, é importante sublinhar que o impacto imediato da lei geral de acumulação capitalista (aumento do capital constante em relação à massa de capital variável) é a formação do exército industrial de reserva que traz consigo a possibilidade crescente de exploração capitalista dos assalariados, seja em termos de extensão da jornada de trabalho, seja pela intensificação do trabalho numa mesma jornada, seja, ainda, em termos de arrocho salarial.

Nesse sentido, com base nessa análise, depreende-se que a especificidade do capitalismo dependente se fundamenta na relação existente entre a superexploração do trabalho e o exército industrial de reserva, articulada à lei tendencial da queda da taxa de lucro, defendida por Marx (apud AMARAL; CARCANHOLO, 2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.).

Dito de outra maneira, nas economias periféricas reafirma-se a necessidade de elevação da taxa de lucro que, do ponto de vista capitalista, fundamenta-se na relação imediata entre os mecanismos de superexploração e o aumento do exército industrial de reserva, reforçando-se, dessa forma, a expropriação do trabalho.

Fundamentados na teoria de Ruy Mauro Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da Dependência In: MARINI, R. M.; SADER, E. (org.). Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-165.), Amaral e Carcanholo (2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.) defendem que há quatro formas principais de superexploração do trabalho, atuando de maneira isolada ou combinada, as quais possibilitam a continuidade do processo de acumulação capitalista na periferia, quais sejam:

a) o aumento da intensidade do trabalho; b) o prolongamento da jornada de trabalho; c) a apropriação, por parte do capitalista de parcela do fundo de consumo do trabalhador, convertido em fundo de acumulação capitalista; d) a ampliação do valor da força de trabalho sem que seja pago o montante necessário para tal. (AMARAL; CARCANHOLO 2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 99).

Vale dizer que os quatro mecanismos de superexploração da força de trabalho, expostos acima, têm como característica fundamental a negação ao trabalhador das condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho. De uma maneira geral, o trabalho se remunera abaixo de seu valor, e isso, por si só, deixa patente a existência da superexploração.

Portanto, referenciadas por Marx e Marini, pode-se afirmar que a superpopulação relativa e a superexploração da força de trabalho revelam-se como categorias analíticas para desvelar a dimensão histórica do processo de precarização do trabalho (AMARAL; CARCANHOLO, 2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (org.). Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.).

Ancorado na mesma tradição crítico-marxista, ao problematizar os equívocos e as polêmicas em torno da superexploração da força de trabalho, Luce (2018LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177.) nos traz algumas reflexões sobre esta categoria apreendida como fundamento do capitalismo dependente. No entanto, segundo o referido autor, este fundamento é pouco compreendido em muitas análises no âmbito do próprio marxismo, principalmente pelo fato de que “um aspecto do fenômeno em um nível de abstração ou instância da realidade é transformado em um postulado de identidade supondo que seja a sua própria essência”. (LUCE, 2018LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177., p. 135).

De acordo com Luce (2018LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177., p. 155), esta categoria histórica, tendencial e relacional da superexploração define-se com base na economia política marxista da dependência “[...] enquanto tendência negativamente determinada que exacerba a relação-valor em seus aspectos alienantes”. Então, detalha Luce:

A força de trabalho na superexploração, além de estar submetida à exploração capitalista nas suas determinações mais gerais do valor, está também submetida às determinações específicas desta, sob as quais é agudizada sua tendência negativamente determinada, que atua de modo sistemático e estrutural sob as economias dependentes, provocando desgaste prematuro da força de trabalho e/ou a reposição de seu desgaste de tal maneira em que a substância viva do valor não é restaurada em suas condições normais (isto é, nas condições sociais dadas), ocorrendo o rebaixamento do seu valor. (LUCE, 2018LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177., p. 155).

Diante disso, inspirado no pensamento de Ruy Mauro Marini, o autor assevera que a superexploração e a sua essência devem ser desveladas a partir das suas determinações e conexões internas (LUCE, 2018LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177.).

Nesse sentido, podemos dizer que, fundamentando-se em distintos níveis de abstração e sem prescindir de Marx, a teoria marxista da dependência nos possibilita apreender a especificidade do capitalismo dependente. Assim, por meio dessa teoria e de seus fundamentos referentes ao mecanismo de transferência de valor e da superexploração da força de trabalho, torna-se possível entender que essa especificidade nos remete ao condicionante estrutural da dependência3 3 Sob esta óptica, a superexploração “é a característica estrutural que demarca a condição dependente de um país” (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 101). Ela ocorre em função da existência de mecanismos de transferência de valor entre as economias periférica e central, justamente porque parte do excedente gerado nesses países é levada para o centro. , considerando a forma de inserção dos países dependentes no sistema mundial capitalista. Em poucas linhas, mediante a configuração de um intercâmbio desigual4 4 O conceito de intercâmbio desigual é explicitado por Ruy Mauro Marini (2000), em sua obra clássica, Dialética da Dependência, na qual o autor procura analisar as leis próprias da economia dependente. Ao tomar como referência a divisão internacional do trabalho e a expansão do mercado mundial, Marini desenvolve uma análise sobre as relações entre as nações dependentes e as nações centrais. Segundo Marini, sob a lógica do intercâmbio desigual, identificam-se mecanismos de transferência de valor e de compensação, por parte das nações dependentes, fundadas na produtividade e no monopólio da produção (nações centrais). Como consequência, tem-se a descapitalização dos países dependentes. , as economias centrais se diferenciam das economias dependentes: as primeiras tendem a se apropriar de um valor produzido por capitais operantes na segunda economia.

No tocante ao processo de restauração do capital, que avançou nas décadas de 80/90, implantou-se um novo sistema de produção, o Toyotismo, o qual se opõe à rigidez do fordismo5 5 Segundo Tavares (2009, p. 250): “Para os defensores o trabalho assalariado, sob a modalidade de trabalho formal, com carteira assinada e garantia de direitos sociais, caracterizava a rigidez, à qual deve se opor o toyotismo”. . Com ele, inaugurou-se um novo estágio de acumulação capitalista (modelo de acumulação flexível), consubstanciado no processo de reestruturação produtiva6 6 A crise estrutural do capital vem sendo enfrentada, segundo Teixeira (1996), a partir de um processo de reestruturação produtiva que acompanha novas tecnologias e uma produção de mercadorias baseada num modelo flexível, capaz de satisfazer as novas exigências do mercado e criar condições para que a oferta de bens e serviços possa acompanhar o consumo. , o qual introduziu profundas mudanças nas formas de produção e de gestão do trabalho mediante as exigências do mercado, em um contexto de mundialização do capital (CHESNAIS, 1996CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. São Paulo, Xamã: 1996.).

Por consequência desse novo perfil do capitalismo contemporâneo, principalmente a partir dos anos 90, no contexto latino-americano, as contrarreformas propostas pelo Consenso de Washington7 7 A partir de uma reunião de avaliação das reformas econômicas empreendidas na América Latina a proposta neoliberal foi recomendada pelo governo norte-americano aos países de terceiro mundo, como uma condição para a continuidade da concessão de cooperação financeira externa. As recomendações e conclusões dessa reunião passaram a ser conhecidas como Consenso de Washington. resultaram na intensificação do processo de reestruturação produtiva do capital, especialmente no Brasil, o qual segundo Antunes (2006ANTUNES, R. A Era da Informatização e a época da Informalização. Riqueza e Miséria do trabalho no Brasil In: ANTUNES, R. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo. Boitempo: 2006. p. 15-25., p. 18), “desenvolveu-se por meio da implantação de vários receituários oriundos da acumulação flexível e do ideário japonês8 8 O autor cita a intensificação da lean production, dos sistemas just-in-time e kanban, além do processo de qualidade total (ANTUNES, 2006). , [...] das formas de subcontratação e de terceirização da força de trabalho”.

Desse modo, no contexto atual do capitalismo brasileiro dependente e periférico, as formas de inserção no mercado de trabalho seguem uma única exigência que é de atender aos interesses do capital, através da elevação da produtividade impulsionada pela extração da mais-valia, tendo em vista manter a estrutura do emprego e do trabalho funcionais à lei do valor e da acumulação capitalista.

Assim, como já mencionamos anteriormente, “para incrementar a taxa de exploração, distinguem-se quatro formas fundamentais: a compra do trabalho abaixo de seu valor; o prolongamento da jornada de trabalho; o incremento da produtividade do trabalho; e a intensificação do trabalho”. (FERREIRA; OSÓRIO; LUCE, 2012FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 54). Essas formas ou mecanismos correspondem, portanto, à superexploração da força de trabalho.

Partindo de uma reflexão crítica sobre as determinações da dinâmica do capitalismo contemporâneo no âmbito das relações de trabalho, Mota (2013MOTA, A. E. Superexploração: uma categoria explicativa do trabalho precário. Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, Portugal, v. 2, p. 87, 2013.) utiliza a expressão precarização do trabalho ou trabalho precário para designar os estatutos jurídicos, as condições e as relações de trabalho que imperam no mundo do trabalho na atualidade.

A referida autora problematiza a relação entre precarização do trabalho e superexploração da força de trabalho, recuperando a Teoria Marxista da Dependência de Ruy Mauro Marini. Nesse sentido, segundo Mota (2013MOTA, A. E. Superexploração: uma categoria explicativa do trabalho precário. Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, Portugal, v. 2, p. 87, 2013.), na fase de subsunção formal e real do trabalho ao capital, a potenciação da exploração do trabalho, através da sua precarização, pode ser compreendida como um processo de desvalorização da força de trabalho, que ocorre mediante os seguintes aspectos: a violação do valor do trabalho socialmente necessário - baixos salários, salário por produção ou salário por peça; métodos de assalariamento disfarçado como bônus salarial -, que convertem o trabalhador à condição de mera mercadoria (força de trabalho); a redução da qualidade e do tempo real de vida do trabalhador, pelo desgaste psicofísico do trabalho, através do prolongamento da jornada de trabalho, como os acordos de banco de horas que, apesar de facilitarem o acesso a bens necessários à sobrevivência do trabalhador, reduzem o tempo de descanso necessário para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas de trabalho; o sitiamento de qualquer projeto de vida do trabalhador e sua família, que se manifesta atualmente nas formas sutis de controle do tempo de trabalho, da padronização de procedimentos, da ideologia do trabalhador-colaborador que mistifica a ideia do valor do trabalho como uma necessidade humana; e, por fim, a fratura da organização e da solidariedade coletivas das classes trabalhadoras, determinada pelo esgarçamento da vivência coletiva do trabalho e pela concorrência entre os trabalhadores, a qual se expressa através das formas de envolvimento e cooptação dos trabalhadores etc.

A partir daí ocorre a violação do valor do trabalho que significa a usurpação do único meio de que dispõe o trabalhador para reproduzir a própria vida - a venda da sua força de trabalho em troca do salário para atender às suas necessidades de sobrevivência -, como expressão do processo de superexploração do trabalho. Esse processo consiste na conversão do fundo de consumo do trabalhador em fundo de acumulação de capitais e se expressa, na atualidade, pelas mediações concretas da precarização e da superexploração da força de trabalho.

Em suma, ao perseguir a análise Mota (2013MOTA, A. E. Superexploração: uma categoria explicativa do trabalho precário. Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, Portugal, v. 2, p. 87, 2013.), no tocante à relação entre a precarização e a superexploração do trabalho, enfatizamos que as tendências atuais de precarização do trabalho por meio do trabalho informal ou trabalho por conta própria, apontam para um incremento dos mecanismos da superexploração da força de trabalho. Nesse sentido, passaremos, então, a analisar a superexploração da força de trabalho, por meio de algumas expressões objetivas da precarização e da intensificação do trabalho9 9 O significado da intensificação do trabalho, segundo Marx, “compreende o dispêndio maior de trabalho e de força de trabalho, objetiva-se preencher todos os poros da jornada de trabalho, todos os ‘tempos de não trabalho’, fenômeno que fica a cargo do aumento do esforço realizado pelos próprios trabalhadores”. (MARX, 2013 apud GUANAIS, 2016, p. 212). .

Em recente matéria publicada pela pesquisadora, Ludmila Abílio (2020ABÍLIO, L. C. Colapso ou atualidade do empreendimento colonial. Revista Le Monde Diplomatique Brasil, ano 13, n. 150, p. 18, jan. 2020.), na revista Le Diplomatique Brasil, intitulada, Colapso ou atualidade do empreendimento colonial, é possível perceber algumas expressões objetivas da precarização e flexibilização do trabalho, a partir de um retrato atual da população trabalhadora, especificamente o trabalhador do setor de serviços.

De acordo com a referida pesquisadora, na especificidade do desenvolvimento capitalista periférico, evidencia-se que a realidade atual do mundo do trabalho brasileiro é caraterizada pela informalidade, terceirização, pela extensão do tempo de trabalho e pelo rebaixamento do valor da força de trabalho. Por conseguinte, o caos e a precariedade do espaço urbano materializam-se na figura do trabalhador que trocou o emprego formal com carteira assinada pelo trabalho por conta própria vinculado à plataforma e aos aplicativos Uber e IFood. Em relação a essa nova modalidade de trabalho precário, destaca a pesquisadora:

A figura dos ciclistas10 10 A matéria divulga dados da “Pesquisa de perfil de entregadores ciclistas de aplicativo”, realizada pela Aliança bike (2019 apud ABÍLIO, 2020). jovens, negros e periféricos pareceu romper momentaneamente o anestesiamento social diante da brutalidade da exploração do trabalho. Com jornadas de em média 12 horas por dia, recebendo em torno de R$900,00 por mês, esses trabalhadores pedalam mais de 50km por dia em meio ao tráfego de São Paulo. Reduzidos à força física barata, perambulam pelas ruas e praças da cidade à espera do próximo chamado. Arcam com os poros do trabalho, recebem estritamente por aquilo que produzem, embora estejam em média 12 horas disponíveis ao trabalho, sete dias por semana. (ABÍLIO, 2020ABÍLIO, L. C. Colapso ou atualidade do empreendimento colonial. Revista Le Monde Diplomatique Brasil, ano 13, n. 150, p. 18, jan. 2020., p. 19).

Este quadro se manifesta, principalmente pelo fenômeno conhecido como uberização do trabalho, o qual resulta no processo de autogestão subordinada, em que o trabalhador se submete a uma longa jornada de trabalho, e às formas de assalariamento disfarçado (bonificações e remuneração por produção), passando também a assumir os riscos e os custos do seu trabalho.

Ainda nessa matéria, evidencia-se dados importantes quanto ao perfil socioeconômico das vítimas fatais nos acidentes com motocicleta, particularmente da cidade de São Paulo. Com base no relatório da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), destaca-se: “a morte por acidente de motocicleta tem classe, sexo e cor bem definidos: frentistas, garçons, manobristas, motoristas, porteiros, seguranças e vigilantes, ajudantes gerais, mecânicos, eletricistas e pedreiros” (MARTINS; BIAVATTI, 2009MARTINS, H.; BIAVATTI, E. Mortos e feridos sobre duas rodas: estudo sobre a acidentalidade e o motociclista em São Paulo. CET, São Paulo, 2009.). De acordo com esses dados, constata-se que as vítimas compõem o contingente dos trabalhadores do espaço urbano, que se arriscam diariamente ao utilizarem a moto como meio de transporte, visando economizar o tempo de deslocamento para o trabalho.

Diante desse quadro, a pesquisadora postula que a outra definição para a uberização do trabalho é expressa pela “transformação do trabalhador formalizado em trabalhador just-in-time” (ABÍLIO, 2020ABÍLIO, L. C. Colapso ou atualidade do empreendimento colonial. Revista Le Monde Diplomatique Brasil, ano 13, n. 150, p. 18, jan. 2020., p. 19), fenômeno que, segundo ela, atesta a dispersão controlada do trabalho e a centralização dos lucros. Em suas palavras:

Trabalhadores que trabalham por metas, movidos a bonificações e participações nos lucros, gerentes de seu próprio tempo. Trata-se de uma transferência muito bem-sucedida do gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador, que segue subordinado, o que geralmente também é uma transferência de custos e riscos. Trata-se da crescente eliminação das determinações da jornada de trabalho, do que é e do que não é tempo de trabalho, do que é a remuneração pelo trabalho. (ABÍLIO, 2020ABÍLIO, L. C. Colapso ou atualidade do empreendimento colonial. Revista Le Monde Diplomatique Brasil, ano 13, n. 150, p. 18, jan. 2020., p. 19).

Assim, como se pode ver, a uberização do trabalho consolida a autogestão do trabalho imbricada com a “transformação do trabalhador em um autogerente subordinado” (ABÍLIO, 2020ABÍLIO, L. C. Colapso ou atualidade do empreendimento colonial. Revista Le Monde Diplomatique Brasil, ano 13, n. 150, p. 18, jan. 2020., p. 19). Por conseguinte, através do discurso de empreendedorismo, observa-se na realidade novas formas de exploração da força de trabalho por meio da flexibilização do contrato de trabalho e da intensificação do trabalho, associadas ao pagamento de salário por produção.

Pelos limites deste artigo, não vamos nos estender, nem nos deter ao aprofundamento do significado da intensificação do trabalho. De modo sucinto, podemos dizer que sob a lógica da valorização do capital, “o aumento da intensidade implica um maior dispêndio de trabalho e de força de trabalho no mesmo período de tempo” (GUANAIS, 2016GUANAIS, J. B. Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira. 2016. Tese (doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281240. Acesso em: 29 maio 2020.
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, p. 216). Com uma jornada de trabalho mais intensiva exige-se uma aceleração do ritmo de trabalho e consequentemente, um desgaste maior da força de trabalho, para poder incorporar mais produtos. Logo, numa jornada de trabalho mais intensiva tem-se um incremento na produção de mercadorias e de mais-valia, por meio da elevação do desgaste físico dos trabalhadores, “[...] sem que seja acompanhado necessariamente de um desenvolvimento tecnológico dos meios de produção, dos instrumentos de trabalho ou da organização técnica do trabalho”. (SOTELO VALENCIA, 2012 apud GUANAIS, 2016, p. 219).

No caso do aumento da produtividade ou da força produtiva do trabalho 11 11 Corroborando Guanais (2016, p. 214), o termo força produtiva pode ser apreendido como sinônimo de “produtividade do trabalho”, “[...] tal como ocorre em várias traduções do livro I de O Capital. A edição de 1988 da Editora Bertrand Brasil, traduzida por Reginaldo Sant’Anna, por exemplo, é uma das que trata ambos os termos como sinônimos, o que não ocorre com a edição da Boitempo, de 2013". , ocorre uma diminuição do tempo de trabalho necessário, obtendo-se, assim, uma produção maior de mercadorias. Isso implica em dizer que, ao se elevar a produtividade ou a força produtiva do trabalho, através da revolução das condições técnicas e do incremento da tecnologia, diferentemente do aumento da intensidade, exige-se um quantum de trabalho menor e, portanto, uma redução do tempo de trabalho necessário em detrimento da elevação do tempo de trabalho excedente.

Dito de outra maneira, durante uma jornada de trabalho mais intensiva, o valor do produto é mais alto, pois foi necessária uma quantidade maior de trabalho para se obter uma produção maior de mercadorias. Diferentemente, com o aumento da produtividade do trabalho, temos um valor total do produto mais baixo, pois o tempo de trabalho necessário para reprodução desse valor foi reduzido em função das alterações das condições técnicas e das novas formas de organização do processo de trabalho.

Ainda no tocante às expressões objetivas da precarização do trabalho, em sua obra mais recente, O privilégio da servidão, Antunes (2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 4), procura compreender o sentido do trabalho em suas formas de ser, analisando uma tendência caracterizada pela “expansão significativa de trabalhos assalariados no setor de serviços”, tendo como foco central os traços particulares de uma nova morfologia da classe trabalhadora.

Na opinião do referido autor, por consequência da hegemonia do capital financeiro, consolida-se uma nova fase no mundo produtivo, denominada por Antunes (2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64.) como fase informacional-digital, na qual os celulares, tablets e smartphones representam a expansão das novas tecnologias a serviço do capital e uma explosão da indústria de serviços. Esse processo, segundo o referido autor, vem repercutindo em transformações no mundo do trabalho e em novas formas de realização da lei do valor, através das distintas modalidades de trabalho digital, as quais se constituem em novas formas disfarçadas de exploração e de extração da mais-valia.

Conforme Antunes (2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64.), estamos vivendo uma nova fase de subsunção real do trabalho ao capital e de expansão dos serviços privatizados e mercadorizados, onde o avanço das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) configura-se como elemento central de uma nova empresa flexível e digital. Com efeito, na era das inovações tecnológicas, tem-se uma forte tendência de ampliação da população sobrante e desempregada, combinada com um quadro acentuado de precarização, informalidade e subemprego.

Assim, alinhada com essa nova era informacional-digital, tem-se, a escravidão digital que, conforme o referido autor, expressa uma clara tendência de “intensificação dos níveis de precarização e informalidade”

(ANTUNES, 2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 31) e incorporam as novas formas de geração de trabalho excedente. Em suas palavras,

O resultado dessa processualidade é que, em todos os espaços possíveis, os capitais convertem o trabalho em potencial gerador de mais-valor; o que inclui desde as ocupações, tendencialmente em retração global, que ainda estabelecem relações de trabalho pautadas pela formalidade e contratualidade, até aquelas claramente caracterizadas pela informalidade e flexibilidade, não importando se suas atividades são mais intelectualizadas ou mais manuais. (ANTUNES, 2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 31).

Parafraseando Antunes (2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64.), a nova morfologia do trabalho sugere, ao mesmo tempo, uma tendência aparente de redução do proletariado industrial nos países centrais, e uma forte contratendência dada pela explosão do proletariado do setor de serviços nos países do Sul, a exemplo do Brasil. Na opinião do referido autor, o aprofundamento da divisão internacional do trabalho “[...] entre Norte e Sul, centro e periferia seguindo um movimento que, desigual e combinado12 12 Ao analisar o processo de constituição da economia global, Santos (2011, p. 7) assevera que as relações comerciais produzidas no mercado mundial são desiguais e combinadas. Ou seja, “para os países dependentes essas relações representam uma exportação de lucros e juros que leva junto parte do excedente gerado domesticamente e conduz a uma perda do controle sobre os seus próprios recursos produtivos”. Por conseguinte, a lógica da transferência de recursos dos setores mais atrasados e dependentes aos mais avançados e dominantes, resulta na limitação do desenvolvimento de seu mercado interno e no aprofundamento e combinação das desigualdades, como elemento necessário da economia global. “Isto se denomina desenvolvimento desigual e combinado”. , atinge de forma diferenciada a totalidade dos países que integram o sistema mundial capitalista, aprofundando a expulsão de força de trabalho a um patamar maior que o atual”. (ANTUNES, 2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 38).

Em suma, constata-se que na atualidade, a ampliação do trabalho informal e terceirizado se dá por meio do processo de expansão dos serviços privatizados e mercadorizados na era informacional-digital, os quais revelam um incremento da superexploração da força de trabalho através dos mecanismos de prolongamento da jornada de trabalho, do aumento da produtividade combinada com a intensidade do trabalho, garantindo, assim, a extensão do trabalho excedente sobre o necessário. Como já analisamos anteriormente, principalmente nos países de capitalismo dependente e periférico, evidencia-se uma tendência crescente de ampliação das novas formas de organização e de controle do trabalho, identificadas pelo fenômeno da uberização, o qual consolida a nova era da autogestão do trabalho. De um modo geral, as expressões objetivas da precarização do trabalho, configuradas pelo trabalho monitorado e controlado por novos dispositivos tecnológicos e de rede, demonstram a clara conexão entre uberização e superexploração do trabalho, no sentido da subsunção real do trabalho ao processo de valorização do capital.

Considerações Finais

Não por acaso, altos índices de adoecimento, depressões e suicídios, acometem a classe trabalhadora dos países periféricos. A lógica destrutiva do capital 13 13 O termo foi aqui adaptado para fazer referência a “lógica dos capitais em relação ao trabalho“, que segundo Antunes se expande nas últimas décadas, através da trípode destrutiva: terceirização, informalidade e flexibilidade, numa nova era de escravidão digital. (ANTUNES, 2018, p. 37). , particularmente no Brasil do século XXI, provoca ao mesmo tempo metamorfoses no mundo do trabalho e mudanças no papel do Estado, quando este último passa a intermediar a relação capital-trabalho, promovendo a informalização e a flexibilização do contrato de trabalho.

Na atualidade, o trabalho informal, o trabalho intermitente, o trabalho por conta própria de baixa qualificação constituem diversas modalidades de contratos flexíveis14 14 Conforme Antunes, as situações instáveis, precárias, o flagelo do desemprego, assim como a redução dos direitos sociais e a erosão das conquistas históricas dos trabalhadores se refletem como consequências de uma “lógica destrutiva do capital“, em pleno século XXI. Sobre isso ver em Antunes (2018). , os quais repercutem na redução dos salários e no agravamento do quadro das desigualdades sociais.

Ao analisar as tendências atuais da precarização do trabalho no Brasil, especificamente no universo dos serviços, Antunes (2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 35) destaca o fenômeno da uberização do trabalho como um exemplo emblemático da forma disfarçada da exploração da força de trabalho, em que os trabalhadores utilizam seus automóveis como instrumentos de trabalho e “[...] arcam com suas despesas de seguridade, com os gastos de manutenção dos veículos, de alimentação, limpeza, etc.”.

O resultado mais evidente da uberização, conforme o referido autor, se identifica com uso de uma nova terminologia na sociologia do trabalho, a chamada escravidão digital, enquanto uma das vertentes da nova era informacional-digital, que por sua vez combina um processo intenso de precarização do trabalho com expansão crescente do novo proletariado de serviços e crescimento da força de trabalho supérflua e sobrante.

Em relação ao perfil da classe trabalhadora, representada pelo “novo proletariado dos serviços”, cumpre-nos evidenciar as consequências profundas da uberização do trabalho para os trabalhadores, uma vez que as empresas acabam transferindo para esses trabalhadores, “[...] a pressão pela maximização do tempo, pelas altas taxas de produtividade, pela redução dos custos, como os relativos à força de trabalho” (ANTUNES, 2018ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64., p. 32).

Por meio dessa modalidade de trabalho instável, é possível identificar uma nova forma de gestão e organização do trabalho, a autogestão subordinada, a qual se caracteriza pelo predomínio do trabalho individualizado e pela redução dos custos do trabalho, o que traz graves consequências para a classe trabalhadora. Acrescenta-se a essas consequências, as “práticas de assédio” que, em uma proporção grave15 15 De acordo com Antunes (2018, p. 35): “Em 2017, os assédios que ocorreram na empresa Uber assumiram uma dimensão tão grave que levaram, inclusive, à demissão de seu CEO, envolvido nessas práticas escusas que se repetem em muitas empresas globais”. , podem gerar adoecimentos, depressões e suicídios.

Além disso, o quadro de expansão do proletariado dos serviços deflagra uma diminuição do papel do Estado em suas funções de regulação e proteção do trabalho que passa a legitimar a informalização do trabalho e os discursos de liberdade do mercado através das recentes contrarreformas trabalhista e previdenciária, as quais trouxeram profundas consequências para classe trabalhadora, no que tange à eliminação das proteções, garantias e direitos.

Na esteira dessas reflexões, enfatiza-se que na era informacional-digital, sob a hegemonia do capital financeiro, as relações estabelecidas entre capital e trabalho são travestidas pela flexibilização crescente dos contratos de trabalho e pela expansão em escala global da terceirização, assumida como modalidade de gestão empresarial, tendo em vista a ampliação de seus lucros.

Dito de outra maneira, por trás da expansão global da uberização do trabalho, identificada como estratégia de empreendedorismo, constata-se, na realidade, uma tendência de incremento dos mecanismos de superexploração, mediante as novas formas de extração do trabalho excedente e do pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor.

Corroborando Antunes (2020), a expansão das novas modalidades de trabalho instável, traz um novo significado para o mundo do trabalho. Na visão deste autor, abre-se uma nova era, onde predomina “[...] a quebra do espaço coletivo, a quebra da reflexão da solidariedade e da organização coletiva”. Logo, o espaço da sociabilidade decorrente do espírito de coletividade, solidariedade e união é substituído pelo espírito individualista de competitividade, o que dificulta enormemente a reflexão sobre os problemas vivenciados no trabalho e a participação política desses trabalhadores, nos seus sindicatos, associações representativas, conselhos, etc.

Em poucas linhas, na era da escravidão digital e da explosão do novo proletariado de serviços, as metamorfoses no mundo do trabalho, expressam uma clara conexão entre as expressões objetivas da precarização e a categoria da superexploração da força de trabalho, no sentido da subsunção real do trabalho e da valorização do capital.

Agradecimentos

Não se aplica.

Referências

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  • ANTUNES, R. A Era da Informatização e a época da Informalização. Riqueza e Miséria do trabalho no Brasil In: ANTUNES, R. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo. Boitempo: 2006. p. 15-25.
  • ANTUNES, R. A Explosão do Novo Proletariado de Serviços In: O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo. Boitempo: 2018. p. 25-64.
  • ANTUNES, R. Trabalho remoto e a precarização do ensino. Disponível em: https://youtu.be/HoXwKQ7kg Acesso em: 28 maio 2020.
    » https://youtu.be/HoXwKQ7kg
  • CARCANHOLO, M. D. (Im)precisões sobre a categoria da superexploração da força de trabalho. In: NIEMEYER, A. F. (org.). Desenvolvimento e Dependência: cátedra Ruy Mauro Marini. Brasília: IPEA, 2013. p. 71-98.
  • CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. São Paulo, Xamã: 1996.
  • FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102.
  • GUANAIS, J. B. Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira. 2016. Tese (doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281240 Acesso em: 29 maio 2020.
    » http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281240
  • LUCE, M. S. A Superexploração da força de trabalho In: LUCE, M. S. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018. p. 135-177.
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  • MARTINS, H.; BIAVATTI, E. Mortos e feridos sobre duas rodas: estudo sobre a acidentalidade e o motociclista em São Paulo. CET, São Paulo, 2009.
  • MOTA, A. E. Superexploração: uma categoria explicativa do trabalho precário. Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, Portugal, v. 2, p. 87, 2013.
  • TAVARES, M. A. Acumulação, trabalho e desigualdades sociais. In: CFESS. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília. CFESS/ABEPSS, 2009, p. 239-254.
  • TEIXEIRA,F.J.S. O neoliberalismo em debate In: Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva. As Novas determinações do Mundo do Trabalho. São Paulo.Cortez,1996. p.195-252.
  • SANTOS, T. dos. A Estrutura da Dependência. Revista Sociedade Brasileira Economia Política. São Paulo, nº30, p.5-18. Outubro, 2011.

Notas

  • 1
    O termo escravidão digital foi originalmente formulado por Antunes (2018), em sua obra O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Ao se contrapor à tese sobre o fim do trabalho, o referido autor atesta o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços, que segundo ele, evidencia-se como uma variante da escravidão digital.
  • 2
    No plano da Teoria da Dependência, “a superexploração não é apenas um conjunto de mecanismos que levam à elevação da taxa de mais-valia, mas, para além disso, constitui-se em uma categoria central - aliás, a mais importante - da teoria marxista da dependência”. (CARCANHOLO, 2013, p. 81).
  • 3
    Sob esta óptica, a superexploração “é a característica estrutural que demarca a condição dependente de um país” (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 101). Ela ocorre em função da existência de mecanismos de transferência de valor entre as economias periférica e central, justamente porque parte do excedente gerado nesses países é levada para o centro.
  • 4
    O conceito de intercâmbio desigual é explicitado por Ruy Mauro Marini (2000), em sua obra clássica, Dialética da Dependência, na qual o autor procura analisar as leis próprias da economia dependente. Ao tomar como referência a divisão internacional do trabalho e a expansão do mercado mundial, Marini desenvolve uma análise sobre as relações entre as nações dependentes e as nações centrais. Segundo Marini, sob a lógica do intercâmbio desigual, identificam-se mecanismos de transferência de valor e de compensação, por parte das nações dependentes, fundadas na produtividade e no monopólio da produção (nações centrais). Como consequência, tem-se a descapitalização dos países dependentes.
  • 5
    Segundo Tavares (2009, p. 250): “Para os defensores o trabalho assalariado, sob a modalidade de trabalho formal, com carteira assinada e garantia de direitos sociais, caracterizava a rigidez, à qual deve se opor o toyotismo”.
  • 6
    A crise estrutural do capital vem sendo enfrentada, segundo Teixeira (1996), a partir de um processo de reestruturação produtiva que acompanha novas tecnologias e uma produção de mercadorias baseada num modelo flexível, capaz de satisfazer as novas exigências do mercado e criar condições para que a oferta de bens e serviços possa acompanhar o consumo.
  • 7
    A partir de uma reunião de avaliação das reformas econômicas empreendidas na América Latina a proposta neoliberal foi recomendada pelo governo norte-americano aos países de terceiro mundo, como uma condição para a continuidade da concessão de cooperação financeira externa. As recomendações e conclusões dessa reunião passaram a ser conhecidas como Consenso de Washington.
  • 8
    O autor cita a intensificação da lean production, dos sistemas just-in-time e kanban, além do processo de qualidade total (ANTUNES, 2006).
  • 9
    O significado da intensificação do trabalho, segundo Marx, “compreende o dispêndio maior de trabalho e de força de trabalho, objetiva-se preencher todos os poros da jornada de trabalho, todos os ‘tempos de não trabalho’, fenômeno que fica a cargo do aumento do esforço realizado pelos próprios trabalhadores”. (MARX, 2013 apud GUANAIS, 2016, p. 212).
  • 10
    A matéria divulga dados da “Pesquisa de perfil de entregadores ciclistas de aplicativo”, realizada pela Aliança bike (2019 apud ABÍLIO, 2020).
  • 11
    Corroborando Guanais (2016, p. 214), o termo força produtiva pode ser apreendido como sinônimo de “produtividade do trabalho”, “[...] tal como ocorre em várias traduções do livro I de O Capital. A edição de 1988 da Editora Bertrand Brasil, traduzida por Reginaldo Sant’Anna, por exemplo, é uma das que trata ambos os termos como sinônimos, o que não ocorre com a edição da Boitempo, de 2013".
  • 12
    Ao analisar o processo de constituição da economia global, Santos (2011, p. 7) assevera que as relações comerciais produzidas no mercado mundial são desiguais e combinadas. Ou seja, “para os países dependentes essas relações representam uma exportação de lucros e juros que leva junto parte do excedente gerado domesticamente e conduz a uma perda do controle sobre os seus próprios recursos produtivos”. Por conseguinte, a lógica da transferência de recursos dos setores mais atrasados e dependentes aos mais avançados e dominantes, resulta na limitação do desenvolvimento de seu mercado interno e no aprofundamento e combinação das desigualdades, como elemento necessário da economia global. “Isto se denomina desenvolvimento desigual e combinado”.
  • 13
    O termo foi aqui adaptado para fazer referência a “lógica dos capitais em relação ao trabalho“, que segundo Antunes se expande nas últimas décadas, através da trípode destrutiva: terceirização, informalidade e flexibilidade, numa nova era de escravidão digital. (ANTUNES, 2018, p. 37).
  • 14
    Conforme Antunes, as situações instáveis, precárias, o flagelo do desemprego, assim como a redução dos direitos sociais e a erosão das conquistas históricas dos trabalhadores se refletem como consequências de uma “lógica destrutiva do capital“, em pleno século XXI. Sobre isso ver em Antunes (2018).
  • 15
    De acordo com Antunes (2018, p. 35): “Em 2017, os assédios que ocorreram na empresa Uber assumiram uma dimensão tão grave que levaram, inclusive, à demissão de seu CEO, envolvido nessas práticas escusas que se repetem em muitas empresas globais”.
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Consentimento da autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2020
  • Aceito
    06 Jun 2020
  • Revisado
    17 Jun 2020
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