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Brasil: fascismo ou neoescravidão?

Brazil: fascism or neo-slavery

Resumo:

O artigo tem por objetivo discutir a pertinência do conceito de “fascismo” em referência ao atual governo do Brasil. A reflexão segue o caminho teórico-metodológico que dois dos maiores intelectuais italianos de início do século XX propuseram nas suas respectivas análises sobre o fascismo, trata-se de Piero Gobetti e Antonio Gramsci, servindo também como referência os relatos de Norberto Bobbio sobre a sua experiência pessoal em relação a esse regime. A partir dessa porta de acesso à problemática, são apresentadas as ponderações sobre a possibilidade de denominar o atual governo e o Estado brasileiro como “fascistas”. A conclusão do estudo é que as atuais relações sociais no Brasil respondem ao desenvolvimento histórico de ininterrupta reprodução das relações de subordinação a partir da escravidão, e não a uma forma particular de fascismo ou de fascistização. Metodologicamente assume-se a perspectiva da “história integral”. Em termos das ferramentas para as análises, o estudo se vale de material bibliográfico.

Palavras-chave:
Fascismo; Escravidão; Brasil; Estado

Abstract:

The article aims to discuss the pertinence of the concept of “fascism” in reference to the current Brazilian government. The reflection follows the theoretical-methodological path of which two of the greatest Italian intellectuals of the early 20th century proposed in their respective analyzes of fascism, namely Piero Gobetti and Antonio Gramsci, also serving as a reference to Norberto Bobbio's reports on his personal experience in relation to this regime. From this door of access to the problem, the considerations on the possibility of naming the current government and the Brazilian State as “fascists” are presented. The conclusion of the study is that the current social relations in Brazil respond to the historical development of an uninterrupted reproduction of subordination relations from slavery, and not to a particular form of fascism or fascistization. Methodologically, the perspective of “integral history” is assumed. In terms of tools for analysis, the study uses bibliographic material.

Keywords:
Fascism; Slavery; Brazil; State

Introdução

Em praticamente todos os âmbitos políticos e acadêmicos do Brasil – e naqueles que no exterior demonstram interesse ou mera curiosidade pela nossa realidade – com excessiva rapidez se tem rotulado o atual governo como fascista, ou, tratando de buscar um caminho pretensamente alternativo a tal afirmação, tem-se afirmado a existência de um processo de fascistização.

Levando em conta o atual estágio das análises e discussões, pensamos que corresponde em primeiro lugar, e atendendo aos princípios da honestidade intelectual, dizer que não podemos ainda realizar nenhum enquadramento teórico sério daquilo que está acontecendo na política brasileira. Mas, tampouco podemos furtar-nos da reflexão sobre alguns aspectos que permitam a construção de caminhos explicativos, apesar da dificuldade em se manter o distanciamento necessário para uma análise teórica rigorosa.

Por esses motivos, com o presente ensaio não pretendemos explicar o processo que levou a um abstruso ex-capitão do exército à Presidência da República. O nosso objetivo, dada a complexidade do assunto e o escassíssimo espaço para desenvolvê-lo, é anunciar alguns caminhos possíveis para avançar na compreensão, não apenas do sucesso do projeto político que hoje conduz o Brasil, mas também do fracasso do projeto político que vinha sendo desenvolvido, com altos e baixos, pelo Partido dos Trabalhadores, a partir de 2003 até o golpe parlamentar de 2016.

Inicialmente acreditamos que seja necessário não sucumbir à tentação de a priori definir como fascista a toda e qualquer forma autoritária-conservadora de exercício do poder político. Em segundo lugar, entender o fascismo como encarnação objetiva de identidades e caracteres peculiares da história italiana, e também das tendências e mudanças próprias do ocidente capitalista de início do século XX (GAGLIARDI, 2019GAGLIARDI, A. Fascismo e “política totalitária”. In: FROSINI, F., GIASI, F. Egemonia e modernità: Gramsci in Italia e nella cultura internazionale. Roma: Viella, 2019., p. 245). Ou seja, como realidade historicamente situada, única e irrepetível. Para isso, trazemos algumas das considerações sobre o fascismo realizadas por três dos mais lúcidos pensadores italianos do século XX que seguramente haverão de inspirar-nos: Piero Gobetti, Antonio Gramsci e Norberto Bobbio. Finalmente, propomos alguns elementos teórico-metodológicos que nos fornecem ferramentas de análise para aproximar-nos à complexidade das relações sociais e políticas imperantes e ao problema do modo em que está sendo construída a hegemonia no Brasil, parafraseando a Togliatti (1978)TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.: Onde está a força do atual governo?

O fascismo italiano

Os termos fascismo e fascista têm sido utilizados frequentemente na América Latina, sendo vinculados às práticas violentas das diversas formas de governos autoritários que temos padecido. Porém, se trata de um uso que, se por um lado qualifica com força as violações cometidas, por outro, opaca as importantes diferenças históricas que distinguem a Itália de Mussolini das nossas realidades, complicando as tentativas de explicação de recentes experiências políticas, como é o caso das leituras que se realizam do atual governo brasileiro.

Como indica Ludovico Incisa (BOBBIO, MATTEUCCIE, PASQUINO, 1985BOBBIO, N.; MATTEUCCIE, N.; PASQUINO, G. Diccionario de Política. México: Siglo XXI, 1985.), aceita-se o rótulo de fascista para regimes que não tem nada a ver com o fascismo como o franquismo, o salazarismo e vários regimes militares de direita, por exemplo, e nega-se para outros como o justicialismo de Perón que reproduzem emblematicamente as suas especificidades.

Os elementos comuns aos movimentos do franquismo, o nacional socialismo e o fascismo estão na “violenta cultura anticomunista, nacionalista e adversa ao pluralismo democrático dos partidos, bem como na função insubstituível do chefe carismático e na exigência da eliminação de todas as liberdades individuais e coletivas” (FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017., p. 83). Porém, esses aspectos também estão presentes em regimes autoritários que não podem ser denominados fascistas.

No caso italiano, anteriormente à chegada de Mussolini ao poder, o sistema político havia entrado em uma fase de decomposição devido às mazelas que se alastravam desde o Risorgimento. Nesse contexto, o fascismo se apresenta como uma ideologia cicatrizante que incorpora os resíduos do velho sem resolver totalmente as fissuras, tendo como sintoma uma espécie de dualismo de poderes: a monarquia e o fascismo, os quais se traduzem também em uma dualidade em nível pessoal nas figuras do rei Vittorio Emanuelle III e do Duce.

Uma vez no governo do Estado, os elementos distintivos do fascismo são: 1) a exigência de unidade social; 2) a chegada de uma geração nova ao exercício efetivo do governo; 3) a chefia de uma personalidade carismática; 4) a conformação de uma nova classe dirigente; 5) a tentativa de integração das massas ao Estado; 6) o ecletismo doutrinário; 7) a promoção do desenvolvimento industrial; 8) a defesa de fórmulas dirigistas na política e na economia (nacionalismo e protecionismo); 10) a proposta de um estilo de vida peculiar; e 11) a violência contra toda força nacional centrífuga e conflitiva.

As discussões em torno do conceito e das leituras do fascismo italiano tem passado por ciclos de polêmicas acirradas e tempos de sossego. Seja qual for a opinião e o lugar ocupado nas polêmicas, o autor que indiscutivelmente tornou-se referência no assunto é Renzo De Felice (1929-1996), “o historiador que mais indagou o fascismo” (FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017., p. 81), e escreveu a monumental biografia de Benito Mussolini em quatro volumes ao longo de 30 anos de estudos e pesquisas (o primeiro volume foi publicado em 1965 e o último em 1997).

Na caracterização feita por De Felice (apud FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017.) aparecem elementos que nos permitem compreender a distinção entre os diferentes tipos de regimes autoritários. No que compete ao fascismo, houve a aglutinação de particularidades que, combinadas, formaram um movimento capaz de se manter na Itália pelo período de vinte anos. Destaca-se a presença de um chefe carismático habilidoso em criar um vínculo direto com as massas, promovendo a mobilização plebiscitária das classes populares e das camadas médias, porém, ao mesmo tempo, exigindo a eliminação das liberdades, sejam elas individuais ou coletivas. Somados a esses elementos, está a ocupação permanente dos meios de comunicação de massa, objetivando um consenso popular montado a partir de uma opinião pública formada por meio de campanhas políticas, sociais e culturais, utilizando-se de todos os recursos propagandísticos existentes, inclusive o cinema. Além disso, o fascismo caracterizou-se por uma luta armada anticomunista, pelo forte nacionalismo, e pela eliminação de todos os partidos políticos, associações e organizações sociais que se encontrassem fora dos círculos fascistas.

Fresu (2017)FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017. destaca, entretanto, que para além dos elementos acima elencados, a relação entre pequena burguesia e fascismo é essencial para compreensão desse fenômeno. Isso inclui compreender a “moderna política de consenso” (FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017., p. 97) desenvolvida pelo fascismo, a qual buscava – na contramão da maioria dos regimes antidemocráticos – a mobilização contínua das massas, em uma aparente relação direta com o chefe de Estado. Esta arregimentação popular cunhava-se a partir da ideia de uma revolução e da construção de uma nova ordem, mas que na verdade conservava os privilégios das classes dominantes e pouco tinha a oferecer de novo.

A característica que poderíamos chamar típica do fascismo,

A sua novidade, está na mobilização plebiscitária não só das camadas médias, mas também das massas populares, nos rituais do regime, no recurso sistemático a campanhas políticas, sociais e culturais para formar a opinião pública, com a ocupação permanente dos modernos meios de comunicação, de modo a angariar o consenso popular. (FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017., p. 83).

A preocupação com o sucesso do fascismo na inserção nas classes subalternas aparece cedo nas análises de intelectuais de esquerda como Palmiro Togliatti, que em 1934 publica o artigo: “Onde está a força do fascismo italiano?” (TOGLIATTI, 1978TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1978., p. 117). No texto, o então Secretário do Partido Comunista da Itália se pergunta sobre a extraordinária força do fascismo no seio das classes populares e sobre os possíveis equívocos do seu partido nas estratégias para combatê-lo:

A concepção segundo a qual o fascismo é a forma aberta da ditadura dos grupos mais reacionários da burguesia, nas condições históricas atuais, é até agora uma concepção largamente popular. Mas de que modo o fascismo consegue manter e defender o poder do capitalismo sobre a classe operária e sobre amplas massas trabalhadoras hoje, nas condições sempre mais graves – trate-se da situação econômica ou da política – que a burguesia se vê obrigada a enfrentar? (TOGLIATTI, 1978TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1978., p. 117, grifo do autor).

No intuito de melhor explicar a combinação de métodos violentos e “métodos de enquadramento mais ou menos forçado das massas numa organização criada pelos fascistas” (TOGLIATTI, 1978TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1978., p. 125), Togliatti coloca os seguintes exemplos:

Quanto às massas, a política do fascismo consiste em fazer-lhes do terror uma ameaça contínua, embora não se aplique sempre de modo idêntico e maciço. Em Florença, por exemplo, os elementos “subversivos” mais conhecidos (na maior parte comunistas) são, de vez em quando, arrastados para a sede fascista regional e espancados sem motivo plausível. Simultaneamente, o círculo fascista do setor conduz entre as massas uma ação pseudo “popular”. Se um marido bate na própria esposa e esta vai queixar-se ao círculo fascista, os dirigentes locais tomam sua defesa, chamam o marido, admoestam-no, e ordenam-lhe a colocar um fim em seus perversos tratamentos. Ocorre também que os dirigentes do círculo intervêm em favor de um inquilino ameaçado de despejo por seu proprietário, ou ainda prestam ajuda em dinheiro a uma família em dificuldades. (TOGLIATTI, 1978TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1978., p. 125-126).

Aqui está a força do fascismo italiano: coerção e consenso em um movimento orgânico que levou à formação de uma cultura, a qual em muitos aspectos continua presente na Itália de hoje.

Na trilha de Piero Gobetti, Antonio Gramsci e Norberto Bobbio

Em 1926 morria em Paris, Piero Gobetti (1901-1926), vítima da perseguição fascista, sem ter completado ainda os 25 anos de idade. Dez anos mais tarde, em 1937, a vítima foi Antonio Gramsci (1891-1937). Norberto Bobbio (1909-2004) não morreu vítima do fascismo, porém o padeceu íntima e dolorosamente apontando elementos de reflexão pessoal indispensáveis para entender o modo como foi marcada a vida italiana, motivo pelo qual incluímos este autor nas nossas análises.

Os três intelectuais mencionados compartilharam os tempos do surgimento e consolidação do fascismo e – embora desde diferentes perspectivas teóricas e políticas – coincidiram em entender esta nova forma de hegemonia não como uma exceção ou uma anomalia, tal como avaliara Benedetto Croce (FRESU, 2017FRESU, G. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG, 2017.; BOBBIO, 2005BOBBIO, N Política e cultura. Turim: Einaudi, 2005.), mas como uma nova realidade profundamente enraizada na história da Itália.

Piero Gobetti é um pensador pouco conhecido no Brasil, motivo pelo qual dedicamos uma pequena apresentação da sua trajetória intelectual.

Antes dessa apresentação, contudo, devemos explicar a epígrafe deste artigo: “Che ho a che fare io con gli schiavi?” (O que eu tenho a ver com os escravos?). A frase foi escolhida por Gobetti como lema da sua casa editora – que em formato de logotipo (incluído neste artigo junto à epígrafe) acompanhou o cabeçalho das suas revistas e livros publicados entre 1923 e 1926 – como expressão da sua intransigência frente a qualquer totalitarismo, e da sua decisão de não fazer coro com tantos que corriam para converter-se em servos da nascente ditadura.

Bobbio (1984BOBBIO, N. Ritratto di Piero Gobetti (1901-1926). In: LAVRIANO, U. M. di. Vita di Piero Gobetti. Turim: Strenna UTET, 1984. p. 7-26., p. 22-23) resume a “mensagem gobettiana” nas seguintes proposições: 1) devido à falta de uma reforma ou de uma revolução, a história da Itália foi uma história de servos – conformes ou desconformes – e o fascismo foi a sua extrema consequência, a prova, talvez inelutável, de que para começar do zero é preciso chegar ao fundo; 2) porém, uma regeneração não pode acontecer com retoques políticos ou econômicos, mas somente através de um processo revolucionário; 3) para uma revolução ser uma verdadeira revolução, e não apenas uma simples mudança de dirigentes, ou do ponto de vista dos servos uma mudança de patrão, deve ser um movimento que parta de baixo, um movimento de liberação nacional no sentido pleno da palavra liberal; e 4) o sujeito histórico da revolução italiana não será a classe burguesa, que filiando-se ao fascismo traíra a sua missão, mas a classe operária: somente o movimento operário italiano poderia conduzir a revolução liberal até as últimas consequências.

Segundo Gobetti, o fascismo era a:

Autobiografia da nação. Uma nação que acredita na colaboração entre as classes; que renuncia por preguiça à luta política. [...] Mussolini não é, portanto nada de novo [...] e a palingenesia fascista nos há atestado inexoravelmente a impudência da nossa impotência. [...] Privados de interesses reais, distintos, necessários os italianos pedem disciplina e um Estado forte. [...] Nem Mussolini nem Vittorio Emanuelle Savoia têm virtude de patrões, mas os italianos têm animo de escravos. (GOBETTI, 2008GOBETTI, P. La Rivoluzione Liberale: Saggio sulla lotta politica in Italia. Turim: Einaudi, 2008., p. 165-166, tradução nossa).

O fascismo não poderia ter surgido e se desenvolvido em outra sociedade. A Itália e os italianos forneceram a matéria-prima, um tipo particular de relações sociais que conformaram as condições objetivas necessárias e suficientes para o sucesso do projeto de Mussolini. Para Gobetti, o fascismo e Mussolini enquanto responsáveis de um ilegalismo difuso e continuadores da essência dos costumes de transformismo e corrupção, dividiram o campo entre cortesãos e cidadãos cavando uma trincheira pela qual passou a reafirmação da liberdade política e pessoal na Itália (CAMERANO, 2017CAMERANO, A. «Che ho a che fare io con gli schiavi?» Gobetti e Malaparte: profilo di un’amicizia tra pensatori eccentrici. Cahiers d’études italiennes, Grenoble, n. 24, 2017. Disponível em: https://journals.openedition.org/cei/3360. Acesso em: 29 jun. 2020.
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).

Além desses elementos de transformismo e corrupção, Gobetti alerta para o fato de que na Itália não houve a Reforma: “O fascismo é católico, arcaico, antimoderno, é a Contrarreforma, em síntese” (D’ORSI, 2012D’ORSI, A. Piero Gobetti. In: Enciclopedia Italiana di scienze, lettere ed arti. Il contributo italiano alla storia del pensiero. Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana, 2012., p. 1). Foi, portanto, um movimento antiliberal.

Por sua vez Gramsci, embora não sistematicamente, aborda o fascismo como um novo tipo de guerra de posição conduzido pelas classes dominantes, e consequentemente um novo tipo de luta hegemônica, na forma de revolução passiva. Afirma a natureza totalitária do regime, no sentido de que abarca todas as manifestações da vida social. Ao mesmo tempo em que o Estado entra na sociedade, ocupando a vida privada, a sociedade entra na máquina do Estado, produzindo a fascistização da sociedade e a socialização dos aparatos institucionais e políticos (GAGLIARDI, 2019GAGLIARDI, A. Fascismo e “política totalitária”. In: FROSINI, F., GIASI, F. Egemonia e modernità: Gramsci in Italia e nella cultura internazionale. Roma: Viella, 2019., p. 253-254).

Gramsci (1977)GRAMSCI, A. Escritos Políticos. Lisboa: Seara Nova, 1977. visualiza a organização do movimento fascista baseada em dois núcleos: o rural, composto por pequenos proprietários e os próprios colonos; e o urbano, capitaneado pela pequena burguesia. Os interesses desses dois grupos se identificam principalmente na desconfiança com relação à autoridade do Estado e à eficácia do Parlamento, além do extermínio das forças sindicais do movimento operário e camponês. Ou seja, mesclavam-se interesses políticos e econômicos da pequena burguesia urbana e rural, que não se furtava do uso da violência armada contra seus adversários.

Fresu (2019)FRESU, G. Gramsci e o Fascismo. Revista Práxis e Hegemonia Popular, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul. 2019. Disponível em: http://igsbrasil.org/praxis/edicao-4/gramsci-e-o-fascismo/. Acesso em: 23 jan. 2020.
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aponta que Gramsci desenvolve o conceito de transformismo para explicar a estratégia que desde o Risorgimento foi utilizada pelas classes dominantes como forma de cooptação das lideranças políticas estratégicas, e que no caso do fascismo foi ferramenta de cooptação de lideranças sindicais do movimento operário – intelectuais orgânicos que davam organicidade às classes subalternas – a fim de consolidar o poder e enfraquecer os grupos adversários.

No Caderno 3, Gramsci (2007)GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. destaca o subversivismo como uma característica inerente do povo italiano, que manifesta sua insatisfação com as condições de vida e com a situação política do país de forma esporádica e aleatória. Porém, essa insatisfação não se refere à forma de organização social no sentido mais amplo e acaba sendo dirigida contra algumas figuras políticas em particular, e, portanto, não apresenta capacidade para tornar-se um movimento orgânico. A partir disso, Gramsci caracteriza o fascismo como um subversivismo reacionário surgido como consequência de uma crise de hegemonia, ou de uma crise de autoridade, criando uma onda subversiva, porém reacionária. Se por um lado, o fascismo emerge para confrontar o comunismo diante da crescente organização da classe trabalhadora, por outro lado também é fruto da histórica inabilidade das classes dirigentes italianas em estabelecer uma hegemonia no interior da sociedade.

A história da Itália é caracterizada por processos de revolução passiva, com elementos progressistas incorporados pelas classes dominantes, como resposta ao subversivismo esporádico e desorganizado das massas. Nesse sentido, o fascismo também incorpora de forma passiva algumas demandas populares, sendo mais um processo de revolução passiva na história italiana utilizando a violência e o autoritarismo como recursos, e lançando mão sempre que possível do transformismo.

Ao mesmo tempo, o fascismo é uma nova cultura, o seu caráter de massa é uma nova forma de construção da hegemonia por parte da classe dominante em que os corpos sociais são incorporados ao Estado eliminando a sua autonomia. Não se trata somente de uma forma coercitiva da organização do poder, mas também de uma transformação antropológica que muda estruturalmente as coordenadas da vida social (GAGLIARDI, 2019GAGLIARDI, A. Fascismo e “política totalitária”. In: FROSINI, F., GIASI, F. Egemonia e modernità: Gramsci in Italia e nella cultura internazionale. Roma: Viella, 2019., p. 257).

Dentre as considerações sobre o fascismo dos três autores escolhidos, provavelmente sejam as reflexões de Norberto Bobbio sobre a sua própria experiência pessoal – relatadas na sua autobiografia – aquelas mais instigantes no caminho das presentes argumentações e um exemplo da transformação antropológica que as relações de dominação fascista foram capazes de produzir.

Em 8 de julho de 1935, Bobbio escreve uma carta endereçada diretamente à Mussolini, dizendo que havia crescido em um âmbito familiar patriótico e fascista, e que havia recentemente obtido a livre docência após estudos que teriam fundamentado a firmeza das suas opiniões políticas e convicções fascistas. A finalidade da mensagem era apelar ao senso de justiça de Il Duce para afastar as acusações de antifascismo que teriam motivado uma intimação por parte da polícia, as quais Bobbio considerava sem fundamento e ofensivas à sua consciência de fascista (BOBBIO, 2004BOBBIO, N. Autobiografia. Bari: Laterza, 2004., p. 29-32).

Em sua autobiografia, Bobbio (2004)BOBBIO, N. Autobiografia. Bari: Laterza, 2004. publica a carta na íntegra, seguida das declarações que realizara em 1992, no contexto de uma entrevista motivada pela então recente publicação da polêmica correspondência. Naquela ocasião disse:

Quem viveu a experiência de um Estado ditatorial sabe que é um Estado diferente de todos os outros. Também minha carta, que agora me parece vergonhosa, o demonstra. Por que uma pessoa como eu, que era um estudioso e pertencia a uma família de bem tinha que escrever uma carta deste gênero? A ditadura corrompe o ânimo das pessoas. Constringe à hipocrisia, à falsidade, ao servilismo. E esta é uma carta servil. [...] Para salvar-se em um Estado de ditadura são necessárias almas fortes, generosas e corajosas, e eu reconheço que então com esta carta não fui. (BOBBIO, 2004BOBBIO, N. Autobiografia. Bari: Laterza, 2004., p. 32, tradução nossa).

O fascismo estava presente em todas as relações de modo a naturalizar atitudes que em outro contexto jamais seriam imagináveis. A experiência de Bobbio (2004BOBBIO, N. Autobiografia. Bari: Laterza, 2004., p. 32) nos surpreende na dimensão da força com que se moldavam as subjetividades: “A ditadura corrompe o ânimo das pessoas”.

A partir dessa breve aproximação com as análises de Gobetti, Gramsci e Bobbio, podemos concluir que os três pensadores coincidem em pelo menos duas questões fundamentais que são vitais para a análise e compreensão do presente: a abordagem necessariamente histórica do problema das novas formas de construção de hegemonia, e a importância fundamental da questão da cultura nos processos de fascistização das relações sociais.

Até aqui descrevemos sumariamente o fascismo com o objetivo de evidenciar as características que o definem, bem como salientar a necessária diferença com o atual governo brasileiro. Propomos consequentemente mudar o foco. Não se trata de um líder carismático nacionalista e industrialista, não se trata de um movimento de massas nem de uma revolução passiva, mas, sim, de um fenômeno próprio do desenvolvimento das relações de subordinação presentes no Brasil, como o fascismo o foi na Itália.

Em todas as sociedades existem grupos conservadores, autoritários, machistas, homofóbicos e racistas, tentando impor os seus projetos societários por diferentes meios. Cada sociedade constrói a possibilidade ou impossibilidade de que esses grupos cheguem a se expandir, ao ponto de conseguirem ocupar importantes cargos nos diferentes níveis governamentais. No caso do Brasil, o atual governo conseguiu construir um projeto de continuidade e aprofundamento das desigualdades e estabelecer-se no poder. A partir desta afirmação, a questão que precisa ser colocada diz respeito às condições objetivas presentes na história do Brasil que possibilitaram a hegemonia desse projeto.

Delimitação metodológica do problema

Partindo do pressuposto de que não é adequado teoricamente definir o atual governo como fascismo – tal como temos apontado –, e para subsidiar metodologicamente o problema da análise das relações sociais que sustentam o atual projeto hegemônico das classes dominantes no Brasil, assumimos a perspectiva da história integral elaborada por Gramsci.

Trata-se de uma abordagem que considera a história como um conflito aberto entre dois projetos opostos de síntese entre passado e presente. “História e política são idênticas não apenas porque o passado se torna a base da ação política presente, mas também no sentido de que a definição do passado é parte de um projeto político” (FROSINI, 2013FROSINI, F. A “história integral” desde a perspectiva dos subalternos: contribuição para uma teoria marxista da história. In: Revista Crítica Marxista, n. 37, 2013. São Paulo: UNESP, 2013, p. 27-46., p. 44). Assim, a leitura do passado é fundamental para o projeto do presente. A burguesia elabora e impõe um ponto de vista como o único, inevitável e universal, porém esse ponto de vista é parte de um projeto hegemônico e como tal deve ser analisado, criticado e combatido:

A história integral [...] mostra que qualquer “teoria da história” é sempre, inevitavelmente, interna a um determinado projeto hegemônico. Reabertura crítica da história (operação teórica) e incorporação da atividade historiográfica na política são, no historicismo integral de Gramsci, articuladas de modo unitário. [...] Mostra também, de forma positiva, como essa teorização é parte de um projeto hegemônico. (FROSINI, 2013FROSINI, F. A “história integral” desde a perspectiva dos subalternos: contribuição para uma teoria marxista da história. In: Revista Crítica Marxista, n. 37, 2013. São Paulo: UNESP, 2013, p. 27-46., p. 36, grifo do autor).

As classes subalternas precisam elaborar uma concepção autônoma e independente da história: a história integral. Ela é um repensamento da história a partir do conflito, permitindo em primeiro lugar, revelar o caráter falsamente universal da perspectiva histórica da burguesia; e em segundo lugar, indicar um percurso político de construção de universalidade na concretude das lutas. É uma reelaboração da história a partir da perspectiva dos subalternos. Considerando a história não como um processo, mas como um equilíbrio instável de forças contrapostas; “a vitória de uma força sobre a outra vem de sua capacidade de coordenar a própria ação política com o conhecimento da própria posição e daquela do adversário” (FROSINI, 2013FROSINI, F. A “história integral” desde a perspectiva dos subalternos: contribuição para uma teoria marxista da história. In: Revista Crítica Marxista, n. 37, 2013. São Paulo: UNESP, 2013, p. 27-46., p. 43-44, grifo do autor).

A burguesia elabora e impõe um ponto de vista como o único, inevitável e universal, porém esse ponto de vista é parte de um projeto hegemônico e como tal deve ser analisado, criticado e combatido.

Escrever a história desde a perspectiva dos subalternos tem um valor político imediato, pois torna possível “colocar em perspectiva os vencedores, mostrando quanto aquela sua vitória seja mérito da política e não de um destino inelutável, e como daquela política faça parte o trabalho prospectivo de definição e de sua relação com o presente. Nesse sentido, a “revolução passiva” torna-se sinônimo de transformação histórica: pois é um critério que mostra a história como obra-prima política de uma classe, da qual é preciso antes de tudo tomar consciência para podê-la combater. (FROSINI, 2013FROSINI, F. A “história integral” desde a perspectiva dos subalternos: contribuição para uma teoria marxista da história. In: Revista Crítica Marxista, n. 37, 2013. São Paulo: UNESP, 2013, p. 27-46., p. 44-45, grifo do autor).

Sabemos – com Gramsci – que a hegemonia como prevalência de uma classe sobre o conjunto da sociedade é obtida e mantida por meio da combinação de força e consenso. Porém, a burguesia – que já não pode ser revolucionária – elabora um novo modelo de hegemonia definido pela combinação de revolução passiva e guerra de posição.

A classe dirigente se reagrupa, se reorganiza, produz reformas, modifica a sua visão de mundo, outorga um lugar a grupos que provêm de formações sociais anteriores para lograr, no novo equilíbrio de forças, manter a posição de dirigente e afastar as possibilidades de uma revolução de baixo. Perante a ausência de uma iniciativa popular unitária, a debilidade da concepção estratégica ou a carência de continuidade das tentativas de transformação surgidas “de baixo”, as classes dominantes mantêm ou retomam a iniciativa e convertem as transformações em instrumento para tornar governáveis às classes subalternas (CAMPIONE, 2007CAMPIONE, D. Para leer a Gramsci. Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación, 2007., p. 94-95). O fascismo foi uma dessas formas possíveis de revolução passiva, mas não é a única.

Considerações Finais

Levando em conta essas brevíssimas notas, pensamos que no atual contexto brasileiro devemos considerar ao mesmo tempo – porque do nosso ponto de vista não é possível compreender um sem o outro –, o fracasso (embora possa não ser definitivo) do projeto do Partido dos Trabalhadores (PT) e o sucesso do projeto autoritário-conservador em vigor. Arriscamos dizer que um dos componentes do fracasso, para além das estratégias da direita, particularmente o lawfare e a atuação cúmplice das mídias, foi de algum modo, (que ainda deve ser pesquisado), a questão da formação e transformação cultural. Em certa medida houve o fortalecimento, ou pelo menos o não enfraquecimento, dos traços culturais mais conservadores e violentos da sociedade brasileira como mostram os dados.

Elucidando essas afirmações em números, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, ano 13, 2019. ISSN 1983-7364. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020.
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), cujos dados mais recentes são do ano de 2018, houve 57.358 mortes violentas intencionais no Brasil. Destas, 6.220 foram provocadas por policiais no exercício de sua função, significando 11% do total de mortes, o que representa 17 pessoas mortas por dia pela polícia, afora os dados que não constam nos registros. Não fosse o bastante esse número elevado de homicídios, é possível avaliar que a violência policial tem recorte de raça, gênero e faixa etária: 75,4% das vítimas são pessoas negras, 99,3% são homens e 77,9% possui idade entre 15 e 29 anos. Vale salientar que se comparada ao ano de 2017, a taxa de mortes violentas causadas pela polícia teve um aumento de 19,6%. Além disso, a população carcerária cresceu 212% no período de 2000 a 2017, chegando a 726.354 pessoas encarceradas no ano de 2018, sendo que 32,4% sequer tiveram seus processos julgados. Ainda segundo dados do Anuário (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, ano 13, 2019. ISSN 1983-7364. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020.
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), as ações policiais que resultam em mortes não ocorrem de forma aleatória, e sim nos territórios onde vivem pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, acometendo com maior intensidade jovens negros do sexo masculino.

Tanto os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, ano 13, 2019. ISSN 1983-7364. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020.
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) quanto do Atlas da Violência (CERQUEIRA, LIMA et al., 2019CERQUEIRA D.; LIMA R. S. et al. Atlas da Violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9489. Acesso em: 23 jan. 2020.), informam variação considerável na comparação entre os estados da federação, porém, a tendência de crescimento dos números absolutos é inegável. De 2007 a 2017, o número de homicídios no Brasil teve um aumento de 36,1%. Mas, enquanto alguns estados como Acre apresentaram crescimento de 276,6% no mesmo período, São Paulo teve redução de 28,1% nos números de homicídio. Nesse cenário, a desigualdade racial é marca indiscutível, pois enquanto a taxa de homicídios de pessoas negras cresceu 33,1%, a de não negros cresceu apenas 3,3% (CERQUEIRA, LIMA et al., 2019CERQUEIRA D.; LIMA R. S. et al. Atlas da Violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9489. Acesso em: 23 jan. 2020.).

Os dados que retratam a violência no Brasil em referência à taxa de homicídios e ao encarceramento são importantes porque demonstram as consequências da atuação do Estado desde a abolição e até a atualidade em referência aos descendentes das pessoas escravizadas nos séculos passados. Estes dados demonstram que não é exagero falarmos de uma realidade de neoescravidão operante no país, pois não houve alteração no sistema que perpetua as desigualdades sociais e raciais.

Foi neste contexto que o discurso do ódio, da intolerância, do autoritarismo, da ignorância achou terreno fértil, explicitando e dando visibilidade a relações de subalternização históricas que aparentemente estavam em vias de superação.

O atual governo não é um “acaso” histórico, como pensava Croce que fosse o fascismo na Itália, ele é parte, bizarra corresponde dizer, de um processo de longa data, que começa com a dominação portuguesa. O Brasil teve um sistema legalmente legítimo de escravos por 300 anos, até a abolição formal em 1888. A escravidão moldou as subjetividades, tanto a dos donos da terra e das pessoas quanto a dos escravos e escravas em um processo jamais interrompido. Darcy Ribeiro, após descrever os horrores da escravidão, assinala:

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária. (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 120).

Se conforme Gobetti, a história da Itália foi uma história de servos – conformes ou desconformes – e o fascismo foi a sua extrema consequência (GOBETTI, 2008GOBETTI, P. La Rivoluzione Liberale: Saggio sulla lotta politica in Italia. Turim: Einaudi, 2008.), talvez poderíamos afirmar que a história do Brasil também foi uma história de servos e o atual governo, sua extrema consequência.

A hegemonia das classes dominantes no Brasil foi construída e continua sendo sustentada por fortes doses de coerção, as quais estão presentes desde a invasão e colonização portuguesas, tanto na sociedade quanto no Estado. Esta hegemonia se consolidou – também desde esses tempos – na construção de outro elemento fundamental que é o consenso, levando à naturalização da subalternidade, da submissão, da tragédia cotidiana: o extermínio dos povos originários, a escravidão, o trabalho escravo, as chacinas, os assassinatos de jovens e crianças, a violência contra as mulheres... e agora o genocídio como projeto explícito do governo. Compreender esse processo histórico é o nosso desafio teórico e político.

Desse ponto de vista, torna-se necessário para as classes subalternas uma espécie de reabertura crítica da história e das relações de dominação, a fim de avançar na compreensão e superação da subalternização do presente.

Por esse motivo, o atual projeto político – por enquanto bem-sucedido – que pretende o acirramento da subalternização das classes populares por diferentes meios, se por um lado constrói um novo tipo de subjetividade neoliberal (TATIÁN, 2019TATIÁN, D. Es necesario reparar el daño en las subjetividades que produjo Cambiemos. Jornal Página 12, Buenos Aires, 15 out. 2019. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/225257-es-necesario-reparar-el-dano-en-las-subjetividades-que-produ. Acesso em: 23 jan. 2020.
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), em todo caso, por outro, reatualiza as velhas relações de escravidão que estão no âmago de toda e qualquer subalternidade no Brasil (SOUZA, 2017SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.). Consequentemente, poderíamos falar não de um fascismo” de novo tipo, mas de uma escravidão de novo tipo, aggiornada, em que elementos do passado são ressignificados para que as mesmas classes dominantes continuem dominando as mesmas classes subalternas.

Parafraseando Gobetti, nos atrevemos a sugerir que possivelmente o atual projeto de neoescravidão possa ser lido como a autobiografia do Brasil e que somente a história escrita pelos subalternos, a história integral seja a única possibilidade de superação.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação Consentimento das autoras.

Referências

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  • TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    01 Ago 2020
  • Revisado
    01 Set 2020
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