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(Re) Pensar os direitos humanos: do individuo à comunidade

(Re)Thinking human rights: from the individual to the community

Resumos

Resumo

O artigo tem por objetivo apresentar a problemática teórica e política da coexistência de diversas concepções de direitos humanos no contexto do multiculturalismo e da diversidade de lutas e resistências de grupos sociais subalternizados. A tais efeitos o texto descreve em primeiro lugar a matriz hegemônica da tradição jurídica ocidental, para seguidamente expor algumas das críticas à sua insuficiência e ao seu caráter colonizador. Seguidamente apresenta duas perspectivas sobre os direitos humanos de fronte a realidades multiculturais, estas são as análises de Boaventura de Sousa Santos e de Raimon Panikkar. Ambos os autores partem da realidade do pluralismo cultural e da necessidade de estabelecer caminhos possíveis de diálogo entre as diferentes concepções de mundo com a finalidade da defesa dos direitos humanos. No caso de Sousa o autor acredita na possibilidade da “tradução intercultural”, por sua vez Panikkar defende o “diálogo intercultural”.

Palavras-chave:
Direitos Humanos; Multiculturalismo; Diálogo Intercultural


Abstract

The article aims to present the theoretical and political problem of the coexistence of different conceptions of human rights in the context of multiculturalism and the diversity of struggles and resistance of subaltern social groups. For these purposes, the text first describes the hegemonic matrix of the Western legal tradition, and then exposes some of the criticisms of its insufficiency and its colonizing character. It then presents two perspectives on human rights facing multicultural realities, these are the analyzes of Boaventura de Sousa Santos and Raimon Panikkar. Both authors start from the reality of cultural pluralism and the need to establish possible paths of dialogue between the different conceptions of the world with the aim of defending human rights. In the case of Sousa, the author believes in the possibility of “intercultural translation”, while Panikkar defends “intercultural dialogue”.

Keywords:
Human Rights; Multiculturalism; Intercultural Dialogue


Apresentação do problema

A relevância do tema aqui proposto resulta justificada, não apenas pelo interesse acadêmico, mas, e, sobretudo, pelas constantes violações dos direitos humanos no contexto da coexistência de um pluralismo de concepções de mundo que precisam ser compreendidas, e a partir das quais é necessário construir caminhos para gerir os inevitáveis conflitos.

Teórica e politicamente a questão dos direitos humanos no Ocidente surge na Europa na passagem das formações sociais medievais para as modernas, e se expande para os territórios da América Latina e o Caribe nos processos de colonização. Sendo que a consolidação definitiva do discurso dos direitos humanos acontece a partir da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos de Norte América e das declarações de direitos e constituições nacionais que se seguem na Europa e na América.

Mas, a partir da segunda metade do século XX, a crise da modernidade ocidental e de seus paradigmas hegemônicos abriu a necessidade de refletir sobre o pluralismo das culturas e suas diversas concepções de mundo. Entendendo preliminarmente que o pluralismo cultural é uma situação de fato e não um valor ou um objetivo a ser alcançado. Consequentemente, o grande problema que se apresenta é de que modo administrar os conflitos (teóricos e políticos) surgidos dessa realidade em que diversos complexos de concepções de mundo coexistem.

A atual perspectiva hegemônica sobre a questão da “pluralidade” tem colocado a ênfase nas diferenças culturais e consequentemente,

A gestão política do multiculturalismo tem situado as diferenças culturais em vias paralelas, mas não comunicadas, quando não em franca competência ou disputa em defesa da própria identidade. [...] A cultura própria se constitui no único referencial normativo da conduta dos seus membros sem poder apelar a instancias externas. (FARIÑAS DULCE, 2019, pFARIÑAS DULCE, M. J. Democracia e pluralismo: um olhar em busca da emancipação. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.. 58).

Nesse aspecto, o projeto neoliberal fomenta a demagogia do pertencimento exclusivo que pode levar a fundamentalismos ideológicos e religiosos, ademais de obstaculizar a articulação da luta de classes para além das fragmentações identitárias. Por outra parte,

Cai no paradoxo de reivindicar o direito à diferença, e fomentar internamente a homogeneidade e o empobrecimento cultural, até o ponto de impedir a diferença e/ou a dissidência dentro de cada gueto identitário. Este, por sua vez, tende a manter-se fechado e isolado em suas próprias tradições. (FARIÑAS DULCE, 2019, pFARIÑAS DULCE, M. J. Democracia e pluralismo: um olhar em busca da emancipação. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.. 59).

Estamos vivendo um processo de ocidentalização que, nas palavras de Danilo Zolo, se traduz em uma “homogeneização cultural sem integração” (ZOLO apudMOUFFE, 2014, pMOUFFE, C. H. Agonística: pensar el mundo políticamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.. 44), na qual e ao mesmo tempo, a visão dominante na teoria política exige a aceitação do modelo ocidental de democracia liberal como único marco institucional possível para a implementação dos direitos humanos.

Aqui aparece o eixo central do problema: os direitos humanos são entendidos como os critérios básicos para o reconhecimento da dignidade humana e como condição para uma ordem social e política justa, porém, é preciso levar em conta que aquilo que na cultura ocidental se denominam “direitos humanos” são uma forma culturalmente específica de afirmar a dignidade humana, o que não significa que seja a única nem a legítima. A própria formulação da dignidade em termos de “direitos” depende de uma específica teorização moral apropriada para o individualismo liberal moderno, mas que pode resultar inapropriada para outras culturas (MOUFFE, 2014, pMOUFFE, C. H. Agonística: pensar el mundo políticamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.. 46-47). Assim, os conceitos produzidos no interior de uma cultura não são suficientes para compreender outra.

O diálogo intercultural, tal como proposto originalmente por Panikkar, exige compreender a linguagem das outras pessoas sem pretender “traduzir”1 para a nossa linguagem. É fundamental, portanto, reconhecer as diferentes visões renunciando ao “universal”, já que comer, dormir, estudar, trabalhar não têm o mesmo significado nas distintas culturas.

Tendo introduzido a problemática geral que aqui nos ocupa abordaremos primeiramente a descrição da matriz da tradição jurídica ocidental, para seguidamente apresentar as críticas à sua insuficiência e ao seu caráter colonizador, referindo-nos, finalmente, a duas perspectivas sobre os direitos humanos de fronte a realidades multiculturais, nos referimos às análises de Boaventura de Sousa Santos e de Raimon Panikkar.

O direito moderno ocidental: individualismo, igualdade e liberdade

No Brasil, da mesma forma que em todos os países de tradição jurídica ocidental, a matriz dos direitos das pessoas é o Direito Romano. A permanência dessa matriz ao longo dos séculos provocou a conhecida reflexão que Marx realiza na Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1857:

O ponto realmente difícil que precisa ser discutido é o de saber como evoluíram de uma maneira desigual as relações de produção, na sua condição de relações jurídicas. Assim, por exemplo, a relação entre o direito privado romano (quanto ao direito criminal e público não parece tão certo) e a produção moderna. (MARX, 2008, pMARX, K. Introdução à contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.. 269-270).

Marx observa que o direito privado romano continuou e continua a encontrar-se vinculado organicamente ao mundo contemporâneo e às suas formas de produção. O que coloca de manifesto a complexidade da questão do direito no marxismo.

A origem romana da juridicidade ocidental

Os romanos demonstraram a função de modelagem das relações sociais que podiam cumprir as instituições. Como explica Wolin (1974, pWOLIN, S. Política y perspectiva: continuidade y cambio en el pensamiento político occidental. Buenos Aires: Amorrortu, 1974.. 93 e ss.), o sistema de assembleias, os cargos executivos, os tribunais, o Senado, constituíam um complexo mecanismo que proporcionava ao mesmo tempo uma direção e uma limitação aos conflitos entre os grupos sociais, e às ambições pessoais. Assim, os romanos consideravam que o governo devia adaptar-se às instituições por eles mesmos preestabelecidas.

A atividade política passa a ser mediada pelas instituições, e o direito vai sendo construído neste processo como veículo institucional para a mediação dos conflitos. Deste modo, com os exércitos os romanos dominaram territórios e povos por meio da força, e com o direito conseguiram administrar o mundo conquistado, expandindo a cultura latina entre os cem milhões de pessoas que chegaram a habitar os territórios nos tempos do Império.

O processo de criação e consolidação do que hoje conhecemos por Direito Romano se alastra por um período de 1.300 anos, que vai desde a lendária fundação de Roma, no ano 753 a.C., até a compilação ordenada pelo imperador Justiniano, no século VI.

Na ordem jurídica romana a qualidade de sujeito de direitos era individual, porém somente detinham capacidade plena os homens livres, cidadãos romanos e chefes de família. No caso das pessoas escravas, elas não possuíam personalidade jurídica desde que eram consideradas coisas, ou seja, objetos e não sujeitos de direitos.

Desde a fundação de Roma e até a promulgação das XII Tábuas (no ano 451 a.C.) as normas do direito não são públicas, os pontífices guardam as leis em segredo, pronunciando-se somente sob consulta das partes da controvérsia, dos juízes ou dos magistrados. Somente com a possibilidade de acesso dos plebeus ao colégio dos pontífices (Lei Ogulnia, 300 a.C.) e a equiparação dos plebiscitos às leis (Lei Hortênsia, 286 a.C.) começa um movimento pela apertura dos segredos do direito para toda a sociedade.

Para além do conteúdo material ou formal das XII Tábuas, o que lhe outorga relevância histórica é o fato de se tratar do primeiro corpus legal surgido no ocidente como resultado das reivindicações de um setor subalterno visando limitar o poder de um setor dominante da sociedade.

O denominado direito civil (o direito dos cidadãos romanos) foi conformando-se a partir dessa primeira codificação e com o acúmulo das leis emanadas das diferentes instituições políticas com faculdades legislativas em cada período histórico, como as assembleias das curias, as assembleias das centúrias, as assembleias dos plebeus, o senado, os cônsules.

Mas, quem assume de fato a função legislativa na ordem das relações privadas, convertendo-se no órgão clássico da evolução do direito romano, é o pretor. A atividade mesma do pretor era inventar, criar soluções jurídicas novas ali onde não existiam ou quando as que existiam eram insuficientes ou inadequadas para uma solução justa do litígio.

Ora, toda a dinâmica que marca o processo de formação do Direito Romano, a sua capacidade permanente para adaptar-se a novas relações sociais, é a característica que o faz lembrar mais a um método, a um caminho, que a uma obra acabada, ou a um objetivo alcançado. Mas, esse processo criativo se estanca com a monumental obra de Justiniano: a compilação das leis e da jurisprudência romana — denominado Corpus Iuris Civilis — realizada no século VI (entre os anos 529 e 565), por ordem do imperador do Império Romano do Oriente.

Ao longo da Idade Média e até o Renascimento o Direito Romano compilado por Justiniano se converteu aos poucos em lei comum para todos os povos latinos e germânicos. A partir de meados do século XVIII — tempo das grandes codificações nacionais — o direito romano deixa de ser aplicado, pelo menos de forma direta, já que os seus princípios e as suas instituições constituem a principal fonte dos códigos modernos. Em algumas regiões da Alemanha o direito romano continuou em vigência até 1900 sob o nome de direito das Pandectas — uma das partes do Corpus iuris —, já que somente em 1896 foi promulgado o Código Civil Alemão, que entrou em vigor em 1900. É neste contexto que surge a reflexão de Marx sobre o Direito Romano a que fizemos referência.

O direito moderno

A figura central do direito moderno de origem europeia — exportada para os povos colonizados — é o sujeito singular, da mesma forma que no Direito Romano privado, acrescido através do desenvolvimento das teorias jusnaturalistas e contratualistas de um matiz muito mais individualista.

Tal como Bobbio (2004)BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. expressa no texto já clássico de 1970, sabemos que é praticamente impossível uma definição dos direitos humanos que seja satisfatória e não meramente tautológica. Também apreendemos com o filósofo turinês que existem diferentes direitos, de diversas índoles, muitas vezes incompatíveis entre si, que não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas (BOBBIO, 2004, pBOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.. 25). Os direitos humanos são históricos, se constituem dentro de processos de luta pela consolidação de interesses de grupos sociais particulares.

Porém, a concepção hegemônica dos direitos humanos ainda hoje se baseia no individualismo da modernidade ocidental europeia e não na diversidade das perspectivas dos grupos subalternizados e das suas lutas. As grandes declarações (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e a Declaração dos Direitos Humanos de 1948) e as organizações internacionais criadas para garanti-los (ONU, Cortes Internacionais etc.) seguem essa perspectiva desde que surgem no contexto europeu ocidental e respondem a uma pretensa e inexistente universalidade da natureza humana.

Essa hegemonia tem a sua fonte filosófica no jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII, segundo o qual todos os homens têm certos direitos fundamentais inerentes à sua natureza, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade, que devem ser respeitados por àqueles que detêm o poder dentro do Estado. Bobbio define o jusnaturalismo como:

A doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana — que por isso mesmo precedem à formação de todo grupo social e são reconhecíveis através da pesquisa racional — das quais derivam, [...], direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais. (BOBBIO, 1997, pBOBBIO, N. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1997.. 12).

Se bem tal doutrina é, como afirma Bobbio (1997, pBOBBIO, N. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1997.. 13), a racionalização póstuma do estado de coisas resultante da luta entre a monarquia e forças sociais subalternas, o certo é que esse “estado de coisas” resulta de um longo processo de transformações produzidas molecularmente no seio da sociedade europeia, cuja eclosão foi a Revolução Francesa, sendo a sua maior realização “a instituição de uma cultura política drasticamente nova. [...]. O Ocidente nunca mais foi o mesmo” (HUNT, 2007, pHUNT, L. Política, cultura e classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.. 37).

Nesse complexo processo de construção de uma nova cultura, o sujeito moderno e a crença no valor dos direitos do indivíduo, ocupam um lugar central (MACPHERSON, 1979, pMACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.. 13). Segundo Macpherson, a qualidade possessiva do individualismo do século XVII se encontra na:

Sua concepção do indivíduo como sendo essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas. [...] A essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. (MACPHERSON, 1979, pMACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.. 15).

A liberdade encontrava-se intimamente relacionada a esta “propriedade” de si, consequentemente, “a sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias capacidades e do que adquiriram mediante a prática dessas capacidades. A sociedade consiste em relações de troca entre proprietários”. (MACPHERSON, 1979, pMACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.. 15).

O elo que vincula a teoria dos direitos naturais às teorias do contrato social é justamente a concepção individualista da sociedade, segundo a qual a sequência lógica estabelece que primeiro existe o indivíduo singular com seus interesses e carências, que fundamentam a lei natural, e depois a sociedade.

A sociedade, portanto, não é um fato natural, mas artificial, criado pelos indivíduos para satisfazer as suas necessidades e seus interesses. Desse modo,

Sem essa verdadeira revolução copernicana, à base da qual o problema do Estado passou a ser visto não mais da parte do poder soberano, mas da parte dos súditos, não seria possível a doutrina do Estado liberal, que é in primis a doutrina dos limites jurídicos do poder estatal. Sem individualismo não há liberalismo. (BOBBIO, 1997, pBOBBIO, N. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1997.. 16).

Estavam colocados os alicerces teóricos e jurídico-políticos das revoluções liberal-burguesas que se sucederam ao longo do século XIX, e que consolidaram os direitos das pessoas como direitos estritamente individuais.

Reflexões sobre os direitos humanos em contextos multiculturais

O sujeito moderno autocentrado, dono de si não existe mais. A globalização enquanto processo que atravessa fronteiras e conecta comunidades em novas combinações de espaço-tempo torna o mundo mais interconectado, trazendo como possíveis consequências: 1. As identidades nacionais estão se desintegrando; 2. As identidades nacionais e outras locais estão sendo reforçadas; 3. As identidades nacionais estão em declínio e novas identidades híbridas estão tomando seu lugar (HALL, 2006, pHALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.. 69).

Em qualquer um dos casos o problema de como lidar com as relações entre diferentes identidades está posto.

O pluralismo das relações, das línguas, dos costumes, das cosmovisões é um fato inelutável. Os direitos humanos devem ser discutidos a partir desse pluralismo.

O pluralismo de Boaventura de Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos teve o mérito de realizar a crítica da concepção hegemônica dos direitos humanos afirmando o fato da pluralidade de visões sobre os direitos. No início da década de 1970, o autor realiza uma pesquisa empírica de sociologia do direito em uma favela de Rio de Janeiro — denominada ficticiamente como Passárgada —, como parte de sua tese de doutoramento na Universidade de Yale. O resultado das análises teóricas foi publicado pela primeira vez em 1980, ganhando uma versão no Brasil em 1988, sob o título de “O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica”.

O impacto das argumentações foi grande, embora os temas analisados já formassem parte das reflexões do pensamento social em diferentes partes do mundo.

A tese central do trabalho é que, para além do direito do Estado, existe outro direito surgido das relações sociais vigentes no território da favela, uma legalidade paralela àquela denominada “do asfalto”.

No território geográfico da pesquisa de Santos a questão da ocupação das terras e da propriedade e/ou posse das mesmas constituía o problema central. Nesse sentido, os moradores realizavam contratos (compra venda, arrendamento etc.) e outros negócios jurídicos que envolvem a propriedade da terra e das habitações individualmente apropriadas. Segundo o direito do Estado esses negócios são ilegais ou nulos, mas dentro da comunidade são perfeitamente “legais” e protegidos pela associação de moradores que se transformaba em fórum jurídico para dirimir os possíveis conflitos decorrentes da execução dos contratos (SANTOS, 1988, pSANTOS, B. de S. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.. 14).

De algum modo, as normas que regem a propriedade no “direito do asfalto” são seletivamente incorporadas e aplicadas na comunidade, produzindo os mesmos efeitos nesta legalidade paralela. Segundo relata Santos:

Em certo tipo de contrato (por exemplo, contratos de arrendamento), é comum o recurso a fórmulas de rotina semelhantes às usadas nos contratos do mesmo tipo celebrados perante o direito oficial. (SANTOS, 1988, pSANTOS, B. de S. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.. 15).

Embora se tratando de um tipo de legalidade paralela, os princípios que a sustentam continuam a serem os princípios do direito moderno, acrescido de elementos discursivos particulares e de formas de solução dos conflitos muito mais próximas da mediação do que de tribunais do Estado. Não se trata de uma cultura jurídica totalmente diversa, mas de espaços de luta e resistência que utilizam os mesmos princípios da cultura jurídica hegemônica.

Nas décadas seguintes Santos deu visibilidade — através de inúmeras publicações — às lutas dos grupos sociais e povos subalternizados da Ásia, África e América Latina, criando conceitos como “epistemologias do sul”, “sul global” etc.

Indubitavelmente, a questão da existência de outras legalidades “não oficiais” foi ganhando atenção impulsionada pelos movimentos decoloniais, e pelas reflexões em torno das diásporas várias resultado das guerras, dos desastres naturais, da fome.

Mais recentemente, especificamente sobre o tema dos direitos humanos, Santos afirma que “os direitos humanos revelam uma plasticidade que lhes permitiria serem parte de agendas radicais de resistência no seio de lutas contra-hegemônicas” (SANTOS; MARTINS, 2019, pSANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. Introdução: o pluriverso dos direitos humanos. In: SANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-36.. 14).

Realiza ainda uma inquestionável crítica à concepção hegemônica, eurocêntrica dos direitos humanos, fundados sobre uma noção da natureza humana individual, separada radicalmente da natureza não humana, que não leva em conta as diferentes concepções de ser humano, e que coloca a ênfase muito mais nos direitos civis e políticos que nos direitos sociais (SANTOS, 2019, pSANTOS, B. de S. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SANTOS, B. de S. MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61.. 18). “A compreensão ocidental da universalidade dos direitos humanos não consegue conceber que existam princípios diferentes sobre a dignidade humana e a justiça social” (SANTOS; MARTINS, 2019, pSANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. Introdução: o pluriverso dos direitos humanos. In: SANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-36.. 22).

Para o autor, a construção das lutas contra-hegemônicas implicaria um “encontro de linguagens”, a partir de um profundo conhecimento das vozes, lutas, memórias e dos corpos das pessoas subalternizadas pelo capitalismo, o colonialismo e o patriarcado,

Só assim será possível compreender as gramáticas de dignidade a partir dos diferentes sentidos do humano que emergem dos contextos em que são vividos. [...] pensar criticamente sobre as ausências, as emergências e as possíveis traduções interculturais que poderemos empreender para além dos direitos humanos convencionais. (SANTOS; MARTINS, 2019, pSANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. Introdução: o pluriverso dos direitos humanos. In: SANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-36.. 15).

Santos define como procedimentos fundamentais a “ecologia de saberes” e a “tradução intercultural” sobre a que trataremos no próximo apartado (SANTOS; MARTINS, 2019, pSANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. Introdução: o pluriverso dos direitos humanos. In: SANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-36.. 23):

Através da tradução intercultural, os direitos humanos são convocados para um diálogo com culturas, teologias e agendas políticas que os tiram do lugar aproximando-os do Sul e das lutas pela existência, reconstituindo-os a partir de humanidades emergentes que visem desalojar os lugares-comuns das narrativas da emancipação social e reconstruir os horizontes. [...]. No nosso entender, uma concepção contra-hegemônica de direitos humanos terá sempre que ser intercultural, na medida em que se produza através de traduções de diferentes ontologias políticas. (SANTOS; MARTINS, 2019, pSANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. Introdução: o pluriverso dos direitos humanos. In: SANTOS, B. de S.; MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-36.. 25).

Por outro lado, referindo-se à questão das cosmovisões coletivas versus os direitos individuais:

Porque os direitos individuais não entram no cânone originário dos direitos humanos, a tensão entre direitos individuais e direitos coletivos decorre da luta histórica dos grupos sociais que, por serem excluídos ou discriminados enquanto grupos, não podiam ser adequadamente protegidos por direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, dos povos afrodescendentes, dos grupos vitimizados pelo racismo, dos gays e das lésbicas marcaram os últimos cinquenta anos do processo de reconhecimento dos direitos coletivos, um reconhecimento sempre muito contestado e sempre em vias de ser revertido. (SANTOS, 2019, pSANTOS, B. de S. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SANTOS, B. de S. MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61.. 50).

Apontamos aqui outro problema da perspectiva de Santos na compreensão de direitos individuais e direitos coletivos, na citação acima em que o autor combina confusamente lutas que têm índoles diversas. Várias das reivindicações são por reconhecimento de direitos individuais — no sentido moderno — que não se enquadram na noção de direitos coletivos da compreensão multicultural do problema. Como exemplo do primeiro caso podemos nomear as lutas “dos gays e das lésbicas”, como exemplo do segundo as lutas “dos povos indígenas”. Pensamos que a confusão provém de não considerar suficientemente o processo histórico de cada uma das lutas, que embora sejam dimensões da mesma subalternização, se inserem diversamente na construção das demandas coletivas.

A conclusão de Santos é que “a tradução intercultural é a alternativa tanto ao universalismo abstrato na base das teorias gerais eurocêntricas como à ideia da incomensurabilidade entre culturas”. Por esse motivo, a importância do trabalho de tradução entre saberes não hegemônicos “reside em que só através da inteligibilidade recíproca e consequente possibilidade de agregação entre saberes não-hegemônicos é possível construir a contra-hegemonia” (SANTOS, 2019, pSANTOS, B. de S. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SANTOS, B. de S. MARTINS, B. S. (org.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61.. 58).

Seguidamente apresentamos uma visão que, ao tempo de criticar o eurocentrismo do sentido hegemônico dos direitos humanos, tem como ponto de partida, diferentemente de Santos, a incomensurabilidade entre as culturas.

A incomensurabilidade dos direitos humanos e o conflito inelutável

As novas perspectivas multiculturais — como a de Santos — criticam o eurocentrismo e não colocam a ênfase na racionalidade e universalidade, vinculadas à Ilustração e à Modernidade. Porém, da mesma forma que as concepções criticadas, ignoram “o político” na sua dimensão antagónica, o universalismo abstrato kantiano é rechaçado e substituído por um universalismo pluralista que não aceita o caráter necessariamente conflitivo de qualquer pluralismo, se trata de um pluralismo sem antagonismo (MOUFFE, 2014, pMOUFFE, C. H. Agonística: pensar el mundo políticamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.. 39):

Considerar lo político em su dimensión antagónica exige aceptar que el mundo es um pluriverso, no um universo. Esto suscita el siguiente interrogante: si aceptamos [...] que todo orden es um orden hegemónico, y que no existe la posibilidad de un orden “más allá de la hegemonia”. (MOUFFE, 2014, pMOUFFE, C. H. Agonística: pensar el mundo políticamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.. 39).

Segundo Mouffe, se trata de reconhecer a dimensão de “o político” e dos conflitos que acarreta o pluralismo; a tarefa crucial é encontrar modos de abordar os conflitos com a finalidade de minimizar a possibilidade de que adotem uma forma antagônica.

Da mesma forma que o processo de democratização pode ser estabelecido no mundo inteiro, precisamos abandonar a ideia de que essa democratização deverá seguir o modelo democrático liberal de Ocidente. A democracia pode adotar diversas formas conforme o ideal democrático de cada contexto histórico.

A democracia liberal, fundada na ideia da igualdade e da soberania popular é produto de uma história específica, não é uma questão necessária, mas contingente, da mesma forma que a sua concepção dos direitos humanos.

Tal modelo de democracia es constitutivo de nuestra forma de vida, y es sin lugar a dudas digno de nuestra adhesión, pero no hay ningún motivo para presentarlo como el único modo legítimo de organizar la coexistência humana y tratar de imponerlo sobre el resto del mundo. [...] El tipo de individualismo dominante em las sociedades occidentales es ajeno a muchas otras culturas, cuyas tradiciones están inspiradas em valores diferentes. La democracia, entendida como “el gobiendo del Pueblo”, puede por lo tanto adoptar otras formas - por ejemplo, formas em las que el valor de la comunidade es más importante que la idea de libertad individual. (MOUFFE, 2014, pMOUFFE, C. H. Agonística: pensar el mundo políticamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.. 46)

Nesse sentido, os direitos humanos continuam a ter um papel importantíssimo, mas sob a condição de serem reformulados de maneira que permitam uma pluralidade de concepções. As contribuições de Panikkar sobre o diálogo intercultural são fundamentais neste tema.

Raimon Panikkar2, pensador pouco conhecido no Brasil, aporta valiosas reflexões à questão das relações multiculturais, e particularmente à questão dos direitos humanos no contexto da coexistência da multiplicidade de culturas.

No caso da cultura ocidental, a noção de direitos humanos remete ao reconhecimento da dignidade humana e à condição para uma ordem social e política justa. Mas, em outras culturas a dignidade humana é concebida de diferentes maneiras. A ocidental é uma forma culturalmente específica de afirmar a dignidade humana, mas não a única.

O termo “direito” — que se tornou hegemônico — foi formulado dentro de uma cultura particular, como temos indicado no início do presente texto, inapropriada para compreender a dignidade das pessoas em outras culturas. Como assinala Mouffe (2019, p. 47), entanto “liberdade” é a palavra fundamental na cultura europeia, no Extremo Oriente, da Índia até a China, é “harmonia”.

Povo nenhum — diz Panikkar — tem o monopólio da verdade, nem pode, por si só, definir a natureza da vida adequada ao conjunto da humanidade. Os direitos humanos são igualmente violados no Oriente e Ocidente, nenhuma cultura, tradição, ideologia ou religião pode falar pelo conjunto da humanidade, nem resolver seus problemas (PANIKKAR, 2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 206).

Segundo Panikkar, o conceito de direitos humanos hegemônico se baseia em um conjunto de pressupostos ocidentais e liberais: 1) há uma natureza humana universal cognoscível por meios racionais; 2) essa natureza humana é uma essência diferente e mais elevada em relação ao restante da realidade; 3) o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível, que deve ser defendida contra a sociedade e contra o Estado; 4) a autonomia do indivíduo requer uma sociedade organizada não hierarquicamente entre indivíduos livres.

Mas, em outras culturas as construções em torno da definição e defesa da dignidade humana são diferentes. Na nossa cultura as definições têm uma forte marca individualista, em outras culturas o peso do coletivo é muito maior.

O problema é como, a partir das concepções de mundo de uma cultura, compreender as concepções de outra. Para isso o método proposto por Panikkar é a hermenêutica diatópica, que ele mesmo define como sendo: “Uma reflexão temática sobre o fato de que os loci (topoi) de culturas historicamente não relacionadas tornam problemáticas a compreensão de uma tradição com as ferramentas de outras e as tentativas hermenêuticas de preencher essas lacunas” (PANIKKAR, 2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 208). No mesmo sentido: “Uma hermenêutica diatópica não lida apenas com mais um ponto de vista sobre o mesmo problema. O que está em jogo não é simplesmente a resposta, mas o próprio problema” (PANIKKAR, 2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 220).

Desde esse ponto de partida Panikkar afirma a necessidade de analisar a função que tem em cada cultura a noção de direitos humanos, para estabelecer a possibilidade de concepções “homeomórficas”, ou seja, equivalentes funcionais dos “direitos humanos” entre as diferentes culturas. Os equivalentes homeomórficos não são o mesmo que a analogia, eles representam equivalentes funcionais específicos, um tipo de “analogia funcional existencial”. Isto porque os significados não são transferíveis de uma cosmovisão para outra, de uma língua para outra, estamos frente a uma pluralidade de universos de discurso. Não há possibilidade de tradução, a diferença da posição defendida por Santos.

Na visão do referido autor, a pessoa deve ser diferenciada do indivíduo:

Um indivíduo é um nó isolado; uma pessoa é o tecido como um todo em torno desse nó, urdido a partir da totalidade do real. Os limites de uma pessoa não estão dados, dependem como um todo de sua personalidade. Sem os nós, a rede com certeza se desintegraria, mas, sem ela, os nós nem ao mesmo existiriam. (PANIKKAR, 2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 224).

Trata-se de uma perspectiva intercultural em que cada língua (cultura) deve ter a flexibilidade necessária para incorporar outras experiências e abrir-se para o diálogo. Para que este diálogo seja possível são pressupostos: o conhecimento da própria cultura (nós e teia), o conhecimento — sempre limitado — da outra cultura (nós e teia), a localização dos equivalentes homeomórficos e a renuncia à pretensão da possibilidade de tradução e à inexistência de conflitos, como assinalado por Mouffe.

Para uma melhor compreensão da sua proposta Panikkar (2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 232-235) sintetiza a visão indiana dos direitos humanos: 1. Os direitos humanos não são apenas direitos individuais, enquanto nó é a posição na rede que determina o conjunto de direitos que um indivíduo possa ter; 2. Os direitos humanos não são apenas humanos, estão relacionados à disposição cósmica geral do universo; 3. Os direitos humanos não são apenas direitos, são também deveres e ambos são interdependentes; 4. Os direitos humanos não são separáveis entre si, estão relacionados com o cosmos, com os deveres correspondentes e também entre eles, formando um todo harmonioso. 5. Os direitos humanos não são absolutos, são relacionamentos entre entidades.

Podemos perceber que a nossa visão ocidental-moderna-liberal dos direitos humanos difere da visão indiana e que ambas são irredutíveis uma à outra em várias questões, o mesmo poderíamos dizer com respeito a outras concepções não predominantemente ocidentais-modernas-liberais. De qualquer modo, “a defesa dos Direitos Humanos é um dever sagrado” (PANIKKAR, 2004, pPANIKKAR, R. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, C. A. (org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.. 236).

Considerações

Ao longo do texto abordamos os fundamentos do nosso paradigma sobre os direitos humanos, que certamente é o paradigma liberal moderno, baste uma rápida leitura dos primeiros artigos da Constituição de 1988 para perceber que o sujeito dos direitos enunciados é o indivíduo, inclusive quando se trata dos direitos sociais. Lembramos também que a construção histórica dessa concepção dos direitos focada no sujeito individual tem a sua origem no Direito Romano, herdado através da recepção do mesmo pelas legislações nacionais europeias e pelos processos colonizadores.

A concepção europeia ocidental dos direitos humanos é hegemônica e está presente na grande maioria das declarações e convenções internacionais, e, obviamente como disse Panikkar, defender os direitos declarados “é um dever sagrado”.

Porém, já nas últimas décadas do século XX surgem reflexões sobre a multiculturalidade e sobre os problemas que este fato coloca quando entram em conflito diferentes noções de direitos e até o mesmo conceito de “direitos”.

Como subsídio para pensar a questão recorremos a dois reconhecidos autores: Boaventura de Sousa Santos e Raimon Panikkar. O primeiro amplamente conhecido e difundido no Brasil e na América Latina como um todo, o segundo menos conhecido no Brasil, com pouquíssimas obras traduzidas ao português, mas que nos oferece um ponto de vista ímpar para o trabalho teórico e para a práxis dos e das defensoras dos direitos humanos.

Coerente com as suas posições, Santos defende a possibilidade da tradução intercultural como estratégia para a construção de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos. Aceita, portanto que os elementos de culturas radicalmente diferentes possam ser traduzidos e compreendidos.

Na nossa perspectiva — seguindo Mouffe e Panikkar — as culturas são incomensuráveis, e a tradução impossível de todo ponto de vista, tal como afirma Panikkar. O diálogo pode e deve ser construído, mas partindo de dois pressupostos fundamentais: a impossibilidade da tradução e a impossibilidade de ausência total de conflitos.

A proposta de Panikkar, da busca dos equivalentes homeomórficos para estabelecer um diálogo intercultural, se apresenta com maior viabilidade na direção da construção de concepções de direitos humanos alternativas ao individualismo liberal-moderno-europeu.

Agradecimentos

Não se aplica

  • Notas

    1 Neste texto utilizamos os termos “traduzir” e “tradução”, em sentido lato, reconhecendo que é necessário o tratamento aprofundado do tema, particularmente nas elaborações de Gramsci. Porém, essa tarefa excede os limites deste artigo.
    2 Raimon Panikkar nasceu em Barcelona em 3 de novembro de 1918, filho de pai indiano e hindu e mãe catalã católica romana. Frequentou a escola dos jesuítas e estudou química, filosofia e teologia em diferentes universidades da Europa. Em 1946 ordenou-se sacerdote católico romano. Foi professor na Universidade Complutense de Madri, e em 1953 se trasladou à Índia para estudar filosofia indiana, começando então as reflexões sobre o diálogo inter-religioso e à teologia pluralista das religiões. Faleceu na Catalunha, Espanha, em 2010.
  • Agência financiadora Não houve financiamento
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica
    Consentimento para publicação Não se aplica

Referências

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  • SANTOS, B. de S. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988.
  • WOLIN, S. Política y perspectiva: continuidade y cambio en el pensamiento político occidental. Buenos Aires: Amorrortu, 1974.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    08 Maio 2023
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