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Estratégias de defesa elaboradas por trabalhadores na intervenção em crises suicidas

Defensive strategies developed by workers in the intervention of suicidal crises

Resumos

Resumo

Em razão da complexidade das crises suicidas, trabalhadores que intervém nessas crises para afastar o sujeito tentante do risco elaboram estratégias de defesa com propósito de lidar com o sofrimento e permanecer em condição de trabalho. Neste contexto, o presente artigo objetiva compreender as referidas estratégias de defesa elaboradas por trabalhadores que intervêm em crises suicidas. Para atingir esse propósito, foram entrevistados 15 trabalhadores com vivência em intervenções em crises suicidas, integrantes do corpo de bombeiros militares, situado e com atuação na região Sudeste do Brasil. Os dados produzidos foram analisados com o emprego da técnica de análise de conteúdo, permitindo compreender estratégias de defesa que atuam na negação do sofrimento, enquanto outras na dissimulação do sofrimento. A elaboração dessas estratégias insere os trabalhadores em verdadeiras armadilhas: a dissimulação e a negação ao sofrimento permitem a continuidade do trabalho, mas também tornam o sofrimento de difícil identificação.

Palavras-chave:
suicídio; ambiente de trabalho; sofrimento emocional; estratégias defesas; bombeiros militares


Abstract

Due to the complexity of suicidal crises, workers who intervene in these crises to remove the risk-taking subject develop defense strategies with the purpose of dealing with the suffering and remaining in a working condition. In this context, this article aims to understand the defensive strategies developed by workers who intervene in suicidal crises. To achieve this purpose, 15 (fifteen) workers with experience in interventions in suicidal crises, members of the military fire brigade, located and operating in the southeastern region of Brazil, were interviewed. The data produced were analyzed using the content analysis technique, allowing us to understand defense strategies that act in the denial of suffering, while others act in the dissimulation of suffering. The elaboration of these strategies inserts workers into true traps: dissimulation and denial of suffering allow the continuity of work, but also make suffering difficult to identify.

Keywords:
suicide; working environment; emotional distress; defense strategies; military firefighters


Introdução

O suicídio, considerado grave problema de saúde pública, tem acometido número crescente de sujeitos no Brasil e na América Latina, resultando em número também crescente de sobreviventes: sujeitos que são afetados pela crise suicida, independentemente de possuírem vínculo com o sujeito tentante. Sobreviventes são sujeitos, que entre outros desconfortos, lidam com o inquietante questionamento sobre quais foram as razões que levaram a pessoa a provocar sua morte (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021WORLD HEALTH ORGANIZATION. Suicide worldwide in 2019: global health estimates. Geneva: World Health Organization. 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240026643. Acesso em: 25 jul. 2022.
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; KREUZ; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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). Entre os sobreviventes, este artigo destaca os trabalhadores que atuam na intervenção de crises suicidas com o propósito de afastar o sujeito tentante do risco. Lidam, de maneira simultânea, com a complexidade, riscos e as múltiplas interpretações que surgem no processo de intervir em crises suicidas, que se contrapõem a necessidade de enfrentar o sofrimento, e permanecer em condição de trabalho (AREOSA, 2019AREOSA, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho. Laboreal, v. 15, n. 2, p. 1-24. DOI https://doi.org/10.4000/laboreal.15504.
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; RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2019RUCKERT, M. L. T., FRIZZO, R. P., RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 15, n. 2, p. 85-91, 2019. https://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190013.
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).

Para dissimular e até mesmo negar o sofrimento sem adoecer, os trabalhadores elaboram regras de condutas individuais e/ou coletivas, denominadas pela teoria Psicodinâmica do Trabalho, como estratégias de defesa (DEJOURS, 2011aDEJOURS, C. Uma resposta durante o seminário: sofrimento e prazer no trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011a. p. 185-192.). Assim, o presente artigo tem por objetivo compreender estratégias de defesa elaboradas por trabalhadores que atuam na intervenção em crises suicidas com o propósito de afastar o sujeito tentante do risco. Para se cumprir este objetivo foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 15 (quinze) trabalhadores do corpo de bombeiros militares que possuíam vivência/experiência nesse tipo específico de intervenção. Os trabalhadores integram os bombeiros militares situado e com atuação em um Estado da região Sudeste do Brasil, caracterizados pela responsabilidade de atuar em crises suicidas, assim como em outros tipos de crises.

Os dados produzidos provenientes das entrevistas, foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo, tendo como quadro referencial as concepções de estratégias de defesas preconizada pela Psicodinâmica do Trabalho. Nessa análise, foi possível identificar e compreender estratégias de defesa que atuam como negação e outras que atuam dissimulando o sofrimento.

Atingir o objetivo proposto, é relevante para com a atuação de profissionais que atuam no âmbito de políticas sociais, ao evidenciar que o sofrimento pode ser (e é) experienciado por trabalhadores, no entanto é invisibilizado pelo funcionamento de estratégias de defesa. Desta forma, este artigo contribui ao evidenciar a necessidade de ações de prevenção e posvenção, anterior ao aparecimento de sintomas. Também, contribui com o campo científico das ciências sociais aplicadas, ao discutir e visibilizar trabalhadores sobreviventes, especificamente aqueles que não são profissionais da saúde. Esse estudo soma para com reflexões sobre impacto e posvenção (estratégias de cuidados adotadas após a crise), entendida como área que carece de estudos, já que é mais frequente pesquisas que abordam prevenção e avaliação de risco (RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2019RUCKERT, M. L. T., FRIZZO, R. P., RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 15, n. 2, p. 85-91, 2019. https://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190013.
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).

Para atingir seu objetivo, o artigo a seguir apresenta conceitos de estratégias de defesa, de organização do trabalho e concepções sobre crises suicidas. Em seguida o método é debatido, seguindo da análise dos dados produzidos e por fim apresentadas as principais conclusões.

Estratégias de defesa: resposta e dissimulação ao sofrimento

As vivências de sofrimento no trabalho frequentemente são invisíveis a observadores e aos próprios trabalhadores. Isso ocorre em razão do sofrimento no trabalho não ser necessariamente manifesto como doença e ou sintomas (AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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; DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.). Assim, o sofrimento no trabalho pode ser identificado quando se estabelece processos intersubjetivos de fala e escuta (fala do trabalhador e escuta do pesquisador), com o propósito de identificar e categorizar estratégias de defesa, possibilitando intervenções na realidade laboral anterior a manifestação de sintomas e até mesmo de crises suicidas entre os trabalhadores (DEJOURS, 2011bDEJOURS, C. A metodologia em psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011b, p. 125-150.; AREOSA, 2019AREOSA, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho. Laboreal, v. 15, n. 2, p. 1-24. DOI https://doi.org/10.4000/laboreal.15504.
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).

Essas estratégias são elaboradas pelos trabalhadores com objetivo de negar e/ou dissimular o sofrimento nas situações de trabalho, e com isso permitir uma aparente normalidade, contribuindo na manutenção do trabalhar. Quando ocorre supressão de possibilidades para sua elaboração, o trabalhador pode vir a adoecer (DEJOURS, 2011cDEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011c. p. 57-123.; AREOSA, 2021AREOSA, J. Ensaio sobre psicodinâmica do trabalho. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 321-330, 2021. DOI https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77288.
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). Tais estratégias podem ser elaboradas de maneira individual ou coletiva, sendo as estratégias individuais aquelas capazes de minimizar a percepção do sujeito quanto as pressões que podem conduzir ao adoecimento, como por exemplo, a valorização de vivências fora do trabalho que os ajudam a lidar com as dificuldades no trabalho (AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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).

A elaboração coletiva acontece quando o coletivo de trabalho — grupo de trabalhadores que cooperam entre si na execução das atividades — aderem a determinada forma de lidar com o sofrimento (AREOSA, 2019AREOSA, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho. Laboreal, v. 15, n. 2, p. 1-24. DOI https://doi.org/10.4000/laboreal.15504.
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). A adesão coletiva às estratégias é favorecida quando o trabalhador elabora estratégias individuais, mas que não são suficientes para manter a normalidade diante do sofrimento. O efeito disso, é a busca em aderir e organizar modos protetivos coletivos para minimizar o impacto desses riscos e a permanecer capaz de trabalhar (AREOSA, 2021AREOSA, J. Ensaio sobre psicodinâmica do trabalho. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 321-330, 2021. DOI https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77288.
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).

Assim, elaborar estratégias de defesa representa a tentativa dos trabalhadores de preservarem o equilíbrio psíquico, contribuindo para coesão dos coletivos de trabalho. Em razão de funcionarem como “regras”, quem não se adapta a essas estratégias, incorre no risco de ser excluso do coletivo de trabalho, pois caso contrário são envolvidos no risco de tornar o sofrimento sentido e consciente aos trabalhadores (AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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). Entretanto, a aparente normalidade alcançada com as estratégias, pode ser uma armadilha, porque ao dissimular e negar o sofrimento, torna-o desconhecido a gestores e aos trabalhadores. Isso pode trazer alívio aos que o vivenciam, mas dificulta a identificação e o estabelecimento de medidas de prevenção e posvenção (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

O funcionamento das estratégias de defesa, atuam como mecanismos que tornam os trabalhadores insensíveis, ou ainda, não conscientes dos motivos que os fazem sofrer, inserindo-os em contexto de tolerância ao mal. Favorece essa realidade o fato do trabalho ser fonte de subsistência, por mobilizar subjetivamente o trabalhador, além de sua contribuição na constituição da identidade do trabalhador (AREOSA, 2021AREOSA, J. Ensaio sobre psicodinâmica do trabalho. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 321-330, 2021. DOI https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77288.
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; DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

Apesar dessas estratégias serem usadas pelos trabalhadores, invariavelmente são incentivadas pela organização do trabalho. Tem-se, portanto, a exploração do sofrimento, uma vez que o trabalhador ao experimentar o sofrimento, se mobiliza em atividades que atenuam a sensação de risco e da imprevisibilidade, mas que são requeridas pela própria organização do trabalho (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.; AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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). Trata-se de estratégias de defesa tais como: o ativismo (engajamento em diversas atividades), o presenteísmo (estar no trabalho além do expediente), a forte coesão de equipes, a competição excessiva e o não gozo de intervalos (DEJOURS, 2011cDEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011c. p. 57-123.).

A organização do trabalho e concepções de crises suicidas

A organização do trabalho corresponde na relação entre sujeito e trabalho, a vontade do outro, o controle do sujeito no trabalho, caracterizada como a divisão e condições de trabalho, originadas de forças externas àquele que trabalha. Também está relacionada a maneira como os trabalhadores interpretam os múltiplos fatores da atividade que exercem (AREOSA, 2019AREOSA, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho. Laboreal, v. 15, n. 2, p. 1-24. DOI https://doi.org/10.4000/laboreal.15504.
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). Resulta que os trabalhadores pesquisados, tenham que lidar com as referidas imposições e, também, com os múltiplos sentidos da crise suicida, configurada como lapso temporal em que o sujeito manifesta vontade de pôr fim a própria vida e voluntariamente empreende esforços com esse objetivo (RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2019RUCKERT, M. L. T., FRIZZO, R. P., RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 15, n. 2, p. 85-91, 2019. https://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190013.
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; BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.).

Tais crises podem ter por resultado o suicídio, quando no decorrer da crise, o sujeito mediante ato intencional e voluntário atinge o resultado morte. Ou ainda, em tentativas, situações em que também há intencionalidade, no entanto por razões diversas a vontade do sujeito, não ocorre o resultado morte. Na tentativa, o risco de suicídio pode ser aumentado em razão da escolha de métodos altamente letais e irreversíveis, facilidade de acesso ao meio letal, capacidade para se colocar o plano suicida em prática, providências quanto à preparação para a morte, exclusão da chance de socorro médico e plano de homicídio seguido de suicídio (BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.; KREUZ; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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).

Mediante as tentativas de suicídio, medidas de posvenção e prevenção devem considerar como pano de fundo que a crença do sujeito tentante na letalidade do método empregado pode ser mais relevante do que a letalidade objetiva, sendo medidas efetivas à prevenção: limitar o acesso a meios letais como pesticidas e armas de fogo; identificar precocemente e acompanhar psicossocialmente sujeito com comportamentos que indique possibilidade de crise suicida; e promoção de habilidades socioemocionais em adolescentes (BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021WORLD HEALTH ORGANIZATION. Suicide worldwide in 2019: global health estimates. Geneva: World Health Organization. 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240026643. Acesso em: 25 jul. 2022.
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).

Além disso, medidas de prevenção e posvenção devem levar em conta que os motivos que resultam na crise suicida são diversos, sendo resultado de uma complexa rede de fatores que em determinado momento da vida culminam na crise. Contudo, ressalta que ser sobrevivente (ser afetado pela crise suicida) ou possuir histórico de tentativa de suicídio são considerados fatores de risco para o suicídio. Importa destacar, portanto, que os trabalhadores investigados nessa pesquisa, integram grupos de risco ao suicídio (BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.).

O suicídio tem significativo impacto social e econômico, por demandar a utilização do serviço de saúde, pelo efeito psicológico e social do comportamento sobre o indivíduo e seus familiares, além da incapacidade prolongada oriunda da crise suicida. Estimativas dão em conta que o número de tentativas supere o número de suicídios em pelo menos dez vezes (BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.; KREUZ; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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).

Nesse cenário, os trabalhadores pesquisados, intervém na crise suicida objetivando afastar o sujeito tentante do risco, impedindo com essa atuação o resultado morte. Também atuam quando há morte, nessa situação, sendo-os responsáveis por localizar e dar o devido encaminhamento ao cadáver. Destaca serem trabalhadores que atuam diante da crise suicida, no entanto não são profissionais de saúde. O efeito disso é a emergência em discutir o termo sobreviventes com a necessidade de expressamente incluir e discutir impactos a esses trabalhadores afetados. Consequentemente, também há necessidade de estabelecer estratégias de cuidados condizentes a afetação vivenciada, sob a compreensão de que pode coexistir ao luto, planejamentos ou ideações suicidas, e, portanto, estratégias de posvenção devem ser adotadas no sentido de desencorajamento (RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2019RUCKERT, M. L. T., FRIZZO, R. P., RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 15, n. 2, p. 85-91, 2019. https://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190013.
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).

Método

Para atingir o objetivo proposto adotou-se abordagem qualitativa, com produção de dados mediante entrevistas semiestruturadas, concebidas como técnica que permitem a fala de quem é entrevistado (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.). Nesse processo, foram entrevistados 15 trabalhadores que, a época das entrevistas, possuíam vivência em intervenção em crises suicidas (critério de inclusão). Todos eles bombeiros militares, atuantes na região Sudeste do Brasil.

Mediante o critério de inclusão acima exposto, foram entrevistados todos os trabalhadores, que mediante a divulgação da realização da pesquisa na organização, se voluntariaram a participar da pesquisa. Adotou-se, portanto, uma aproximação com o descrito por Dejours (2011c)DEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011c. p. 57-123. de demanda: o trabalhador que se disponibiliza a falar sobre suas vivências. As entrevistas foram realizadas no local de trabalho desses trabalhadores, em espaço permissor de confidencialidade das informações, além de mediante autorização do entrevistado, essas entrevistas foram gravadas.

O processo de produção de dados resultou em aproximadamente 16 horas de entrevistas, realizadas durante três meses. Os trabalhadores entrevistados, possuíam à época da pesquisa idades entre 27 e 49 anos, com tempo de trabalho na organização entre cinco e 28 anos, 13 se identificaram como do gênero masculino e dois como do gênero feminino.

O projeto da presente pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CAAE 66277917.1.0000.5542, parecer nº 2.364.745). Também, o pesquisador assumiu o cuidado ético a não identificação da organização do trabalho e dos trabalhadores entrevistados. Os respondentes serão identificados nesse artigo a partir da letra R (R01 a R15).

Os dados produzidos foram analisados mediante análise de conteúdo. Essa forma de análise, compreende conjunto de técnicas que visa analisar as comunicações, através da sistematização de procedimentos objetivos permitindo a inferência de conhecimentos relativos às mensagens (BARDIN, 2020BARDIN, L. (2020). Análise de Conteúdo. 5. ed. Lisboa: Edições 70.). No processo de análise, a partir do referencial da Psicodinâmica do Trabalho, foram compreendidas estratégias de defesa como de negação ao sofrimento, e outras que dissimulação o sofrimento, conforme apresentado a seguir (Figura 1), compreendidas na próxima seção.

Figura 1
- Estratégias de defesa identificadas a partir da análise de conteúdo ao olhar da psicodinâmica do trabalho. Brasil, 2022

Resultados e Discussão

Por meio das entrevistas dos trabalhadores, foi possível categorizar a intervenção em crises suicidas com quatro momentos distintos e conexos entre si: (1) momento em que recebem a informação de que está acontecendo a crise, (2) seguido do deslocamento da equipe até o local da crise, (3) a intervenção objetivando afastar o sujeito tentante do risco e (4) o retorno à base. Foi identificado que na intervenção pode ocorrer duas formas distintas de abordagem: mediante o estabelecimento de diálogo e vínculo com o sujeito tentante, para convencê-lo de se afastar do risco, ou então com emprego de força física. É consciente aos trabalhadores, que o estabelecimento de diálogo é maneira mais apropriada de intervenção, já que esse procedimento viabiliza que o sujeito tentante seja melhor aderente a cuidados posteriores ao afaste do risco.

No entanto, por vezes as condições do espaço ocupado, combinado com o meio letal buscado e da própria condição do sujeito tentante, impossibilita o estabelecimento de diálogo e com isso os trabalhadores intervêm mediante força física, isso é, empregam técnicas de resgate que sejam capazes de retirar o sujeito de risco, independente da vontade desse. Em ambas as situações, o sujeito tentante é encaminhado para o serviço de saúde. Constata que dificultar acesso a meio letal é medida eficaz de prevenção e de posvenção ao suicídio, pois sendo crise suicida geralmente acompanhada por impulsos psicológicos, quando se cria empecilhos a determinados meios letais, amplia possiblidades de intervenção, e ainda, de que essa intervenção possibilite o vínculo/diálogo favorecendo a posvenção.

A intervenção nesse tipo de crise, compreende atividade laboral exigente dos trabalhadores lidarem com a imprevisibilidade. Tais condições são oriundas do fato de que nesse tipo de intervenção, o risco está na ação no próprio sujeito tentante que no lapso temporal da crise, coloca-se em risco. Soma-se a isso, as características do espaço ocupado e risco a que esse sujeito se submete. Quando o sujeito tentante ocupa espaços públicos de sociabilidades tais como edifícios, avenidas e pontes, por vezes é exigido que o trabalhador lide com possíveis espectadores (transeuntes), variável capaz de influenciar o desenvolvimento da intervenção e sentida como condição que assevera a imprevisibilidade. Com isso, para compreender as estratégias elaboradas pelos trabalhadores nesse processo de intervenção, a seguir serão apresentadas as estratégias de defesa utilizadas no contexto analisado.

Estratégias de negação ao sofrimento

Foram compreendidas como estratégias de defesa que atuam em negação ao sofrimento: a) o empenho em atividades físicas; b) a busca por conhecimento; c) os espaços de discussão; e a d) antiguidade como fator de divisão do trabalho. A identificação dessas estratégias de defesa, revela um paradoxo, pois à medida que elaborar estratégias permitem a manutenção do trabalhador em condição de trabalho, tais estratégias também são permissoras das organizações explorarem os trabalhadores em prol de resultados. “O sofrimento psíquico, longe de ser um epifenômeno, é o próprio instrumento de trabalho” (DEJOURS, 2000, pDEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.. 103).

Esse paradoxo ocorre porque há aderência entre as estratégias de defesa elaboradas diante do sofrimento e a própria execução do trabalho. Quando os trabalhadores se empenham em atividade físicas, mesmo que seja a maneira de lidarem com as contradições do trabalho, é também uma exigência da organização do trabalho. Ao afirmar que “Faço muita atividade você não tem ideia. Eu nado muito. corro muito, já virou um vício [...] (R01)”, representa um engajamento do trabalhador com o que é determinado pela organização do trabalho, situando o trabalho como possível fator de equilíbrio (AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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).

Com características semelhantes, se estabelece a estratégias de busca por conhecimento, contudo essa estratégia se associa a história de vida do trabalhador e a busca por respostas a motivantes para o suicídio, frequente entre os sobreviventes (KREUZ; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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). Ocorre, portanto, uma tentativa de “estruturar tanto a parte teórica do que fala de como a pessoa pode ir ao suicídio e até mesmo a abordagem e por final a condução dele a um centro especializado” (R02). Os trabalhadores desvelam essa estratégia de defesa, mediante o reconhecimento nos comentários de que “[...] a gente não sabe como fazer e hoje a gente não pode viver só da prática, a gente tem que ter a teoria ligado à prática” (R02). O processo intersubjetivo de fala e escuta permite a percepção de não haver regras/normas expressas que norteiem suficientemente a intervenção em crises suicidas, e assim a necessidade da busca por conhecimento.

A associação dessa estratégia à história do trabalhador, é devido a busca por conhecimento ser motivada pelas múltiplas vivências enquanto sobrevivente: a intervenção pregressa em crises, o suicídio de colega de trabalho, e a própria ideação. O “colega nosso que se suicidou” (R015), ou o fato de tentado “dar cabo a minha vida” (R08), traz a percepção de que “às vezes a gente não tem treinamento nenhum, fica largado aí” (R015), repercutindo na necessidade de que esses trabalhadores busquem conhecimento. Simultaneamente, repercute na reflexão de que ser trabalhador sobrevivente, e por conseguinte, lidar de maneira constante com situações que envolvem suicídio, não representa fator de prevenção a crises suicidas. Contrariamente, ser sobrevivente, os inscreve como grupo de risco ao suicídio, requerendo diretrizes que prevejam cuidados específicos, seja de prevenção ou posvenção (RUCKERT; FRIZZO; RIGOLLI, 2019).

A estratégia de defesa da busca por reconhecimento, se consolida de forma individual, entretanto, o fomento da organização do trabalho faz como que seja transposta ao coletivo. A compreensão como estratégia de defesa se configura por ser atitude do trabalhador que através desses “estudos” almeja uma melhor atuação. O trabalhador quando se mobiliza ao estudo, busca realização pessoal, a organização do trabalho demonstra interesse por esse estudo, reconhece e confere sentido às expectativas subjetivas e à realização de si dos trabalhadores (DEJOURS, 2011cDEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011c. p. 57-123.).

De maneira semelhante, se consolida os espaços de discussão como estratégia de defesa de resposta ao sofrimento. Esses espaços consistem em reuniões dos trabalhadores logo após a intervenção na crise, visando discutir/avaliar a forma que a intervenção ocorreu: “Fala alguma coisa da ocorrência o que pode melhorar. Essa é a frase o que pode melhorar, a gente sempre fala, não tem como não falar” (R01). Não há previsão dessa prática em normas, mesmo que também seja incentivado pela organização. Sua consolidação está atrelada ao gestor enquanto membro do coletivo e ao próprio coletivo na avaliação de ter sido a intervenção dotada de especificidades e complexidade que demandem a discussão. No estabelecimento dessa estratégia de defesa, os trabalhadores buscam suprir hiato entre as normas da organização e a imprevisibilidade da crise suicida. Essa condição pode ser compreendida como salutar, já que possibilita aos trabalhadores espaços para expressão. Entretanto, se a organização não concede normas mínimas, capazes de se antever ao imprevisto, pode ser interpretado como sofrimento (DEJOURS, 2011cDEJOURS, C. Addendum: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011c. p. 57-123.).

Quando os trabalhadores falam e escutam sobre o que sentem, ressignificam o sofrimento, permitindo a construção de formas de lidar com as falhas presentes na atuação do coletivo. Por meio da reflexão, os trabalhadores produzem novos sentidos, ampliando a consciência das experiências vividas. Tais circunstâncias possibilitam o desenvolvimento e a estabilização de práticas e regras de trabalho, além de ajustar a cooperação no coletivo (AMORIM; CARVALHO; LEÃO, 2021AMORIM, W. L., CARVALHO, A. F. M., LEÃO, R. V. (2021). Estratégias defensivas contra o sofrimento psíquico entre trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 33, n. 3, p. 199-204. DOI https://doi.org/ 10.22409/1984-0292/v33i3/5899.
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; DEJOURS, 2011bDEJOURS, C. A metodologia em psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011b, p. 125-150.).

A existência de um coletivo que coopera, viabiliza a estratégia de defesa associada a divisão de tarefas respeitar o critério da antiguidade. Essa estratégia, se concretiza mediante a existência de regra consolidada pelo coletivo, de algumas atividades serem executadas por trabalhadores que sejam mais antigos na organização. Trata-se de uma estratégia de defesa coletiva, objetivando lidar com os imprevistos da crise suicida, sob a perspectiva que o trabalhador mais antigo (veterano) seguramente está mais bem adaptado às condições de trabalho (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

A esse trabalhador veterano é incumbido atividades que são interpretadas pelo coletivo como de maior complexidade. Assim, na intervenção em crises suicidas, esse veterano é responsabilizado por tomar as decisões e estabelecer vínculo com o sujeito tentante, sendo comum expressões dos trabalhadores como: “geralmente esse papel da conversa, do diálogo ali fica com o mais antigo” (R05).

A sutileza do contexto em que as estratégias compreendidas até aqui são elaboradas, com engenhosidade e inventividades, insere os trabalhadores em uma armadilha, permitindo-os a trabalhar, suportando o sofrimento sem se abater. Indicam à organização do trabalho que há possibilidade de permanecerem em trabalho, sem alterações nas condições (Areosa, 2021AREOSA, J. Ensaio sobre psicodinâmica do trabalho. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 321-330, 2021. DOI https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77288.
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). Esse fato, também é constatado nas estratégias de defesa que dissimulam o sofrimento, compreendidas a seguir.

Estratégias que dissimulam o sofrimento

As estratégias de defesa atuantes como de dissimulação ao sofrimento foram identificadas como: a) esquecimento; b) A metáfora casca dura; c) a existência de brincadeiras; d) e a virilidade. A estratégia de defesa esquecimento, foi compreendida a partir da frequência de comentários dos trabalhadores que expressavam não lembrar da maneira como ocorreu a intervenção na crise suicida. Noutras, reforçava o esquecimento com expressões como “não gostamos muito de falar sobre as ocorrências” (R06). Entretanto no processo de compreensão, fora identificado crises aceitáveis de serem lembradas, inclusive com densas descrições. Especificamente as intervenções que envolviam crises suicidas eram postas em esquecimento e/ou interdição.

Processos de interdição e silêncio sobre o tema suicídio ocorrem motivados pela falsa premissa de que falar sobre possa trazer à tona histórias de dor que afetam a coletividade, acompanhados de questionamentos que nem sempre podem ser respondidos. Muitas vezes, os sobreviventes sentem vergonha e evitam falar sobre emoções em relação à morte (Kreuz; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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; RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2019RUCKERT, M. L. T., FRIZZO, R. P., RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, v. 15, n. 2, p. 85-91, 2019. https://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190013.
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). Constata-se que há interesses naquilo que se esquece/interdita e há mecanismos a favorecer o esquecimento: “acaba sendo uma coisa cultural daqui não ficar tocando muito em assunto de ocorrência, porque senão você acaba absorvendo” (R07). Alcançar a dissimulação, não absorver fatos da realidade do trabalho com seus eventos de morte, torna fundamental para continuar trabalhando — “Imagina você passar 35 anos aqui absorvendo?” (R07). Em razão do trabalhador não dissociar sua subjetividade em tempos de trabalho para aqueles tempos livres, a efetividade dessa estratégia garante a normalidade também nos tempos livres. A unicidade do sujeito subverte a tentativa de separação dos tempos (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

Também, como dissimulação ao sofrimento, funciona a estratégia denominada pelos trabalhadores como “casca dura”. Essa expressão representa uma metáfora do que seria uma proteção para com o que está posto à sua frente - a possibilidade de morte, a morte, o cadáver, sob a expectativa de omitir, não deixar penetrar as emoções vindouras desse cenário: “você vê o sofrimento de parentes e eu socorrendo as pessoas, ver criança morta, gente decapitada, gente sem pedaço do corpo” (R08). A morte por suicídio é um tipo de morte violenta, traumática, que repercute aos trabalhadores a lidarem com corpos mutilados, afetando a maneira como lidam com o processo de elaboração dessas vivências (KREUZ; ANTONIASSI, 2020KREUZ, G.; ANTONIASSI, R. P. N. Grupo de apoio para sobreviventes do suicídio. Psicologia em Estudo, v. 25, p. 1-15, 2020. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.42427.
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). Como resultado, elaboram expressões que representam o objetivo de interditar emoções, desveladas também como: inerte e insensível. São dissimulações do sofrimento perante os eventos de morte, que em sua essência representa a forma de lidar com o medo.

Acompanham essas expressões o indicativo de transformação - “a gente acaba criando” (R09) “me tornei” (R10) - ou seja, essencialmente não eram, e sim se tornaram devido a necessidade de permanecerem em condição de trabalho. “O tornar-se” é facultativo, porém se não há adesão, pode resultar em desagregação ao coletivo. Contudo, aderir não está no campo do consciente, é um processo de adaptação ocorrido ao longo do tempo (DEJOURS, 2011bDEJOURS, C. A metodologia em psicodinâmica do trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011b, p. 125-150.).

O processo de dissimulação também atua no coletivo mediante “brincadeiras”. Esse termo é uma metáfora a manifestações de vivências de sofrimento com escárnio, no intento de dissimular, desprezar o medo, o risco, a angústia, em uma inversão da afirmativa (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.). Também, as “brincadeiras” expressam estigmas dos trabalhadores frente ao tema suicídio: “Aí vem uma brincadeira, ah achou que chifre era asa e foi pular da ponte” (R08). Demonstram que a interpretação do tema suicídio independe da habitualidade de lidar com crises, podendo tais estigmas dificultarem estratégias de posvenção, principalmente quando a crise suicida é vivenciada por trabalhador da própria organização do trabalho pesquisada (BOTEGA, 2015BOTEGA, N. J. Crise Suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.).

Essa estratégia, está associada a virilidade, manifesto em comentários como “a gente ri da cara dele, a gente fala você não serve para isso” (R01). Evidencia a concepção do coletivo de que o trabalhador precisa ser sujeito sem medo ou capaz de neutralizar suas emoções e angústias, associado a virilidade. Não alcançar esse intento é não se adaptar e, consequentemente, não servir para a organização do trabalho (AREOSA, 2019AREOSA, J. (2019). O mundo do trabalho em (re)análise: um olhar a partir da psicodinâmica do trabalho. Laboreal, v. 15, n. 2, p. 1-24. DOI https://doi.org/10.4000/laboreal.15504.
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; DEJOURS, 2011aDEJOURS, C. Uma resposta durante o seminário: sofrimento e prazer no trabalho. In: LACMAN, S.; SZNELWAR, L. (org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011a. p. 185-192.). Nesse sentido, mesmo que a virilidade esteja relacionada a concepção de gênero, a ser homem especificamente, sua consolidação está presente em todo o coletivo independentemente do gênero das trabalhadoras(es). Questões de gênero, perpassam o tema suicídio, assim como de elaboração do luto, repercutindo na maneira como os sujeitos interpretam suas respectivas necessidades de cuidados e acolhimento (RUCKERT; FRIZZO; RIGOLI, 2020).

O objetivo da virilidade, assim como das demais estratégias de defesa que dissimulam o sofrimento, é circunscrever o sujeito no trabalho em uma perspectiva de absoluta coragem e capacidade de agir sem o efeito da inércia motivado por emoções e medo (DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.). Permitem aos trabalhadores a executar a atividade, mas novamente os colocam em uma armadilha, já que dissimular o sofrimento e a exigir em coletivo que todos o façam, também mascararam as evidências de adoecimento (AREOSA, 2021AREOSA, J. Ensaio sobre psicodinâmica do trabalho. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 321-330, 2021. DOI https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77288.
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; DEJOURS, 2000DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000.).

A consequência desse mascaramento é que a busca pelo serviço de escuta da organização do trabalho pesquisada, serviço esse composto por profissionais de serviço social, psicologia e administração, ocorre apenas quando já se tenha vivenciado sintomas de adoecimento, em algumas situações, inclusive após a própria tentativa, ou ideação suicida. Frequentemente a busca pelo serviço de escuta são acompanhados de relato de via crucis em busca de atendimento, especificamente psiquiátrico.

Conclusão

O desenvolvimento dessa pesquisa, que teve como objetivo compreender estratégias de defesa elaboradas por trabalhadores que atuam na intervenção em crises suicidas, permite concluir que, a aparente normalidade dos trabalhadores, inclusive por vezes com escárnio acerca dos riscos enfrentados, ou ainda com a elaboração de estratégias que favorecem a execução do trabalho, deve ser questionado e investigado pelos envolvidos com o trabalho, principalmente por profissionais que atuam no âmbito de políticas sociais. A inexistência de sintomas e a aparente normalidade deve ser refletida criticamente, pois o não sucumbir diante das contrariedades do trabalho, ou conseguir dissimular o sofrimento, mais do que representar permanecer em trabalho e garantir a subsistência, significa não enfrentar as dificuldades em conseguir atendimento adequado.

Nesse sentido, a investigação a partir da Psicodinâmica do Trabalho, com a propositura de espaços de fala e escuta dos trabalhadores, tendem a permitir o desvelamento de vivências de sofrimento, e com isso permitir que sobreviventes diante da crise suicida, possam contar com estratégias de prevenção e posvenção. Tais estratégias, devem levar em conta a complexidade das crises suicidas, e a necessidade de determinações dadas pela organização do trabalho, capazes de atenuar a sensação do risco vindouro da imprevisibilidade pela qual é marcada essas crises.

Neste artigo sugere-se para pesquisas futuras compreender vivências de trabalhadores que também lidam com crises suicidas em outras maneiras de atuação, seja em prevenção ou/e em posvenção. Também é emergente compreender sobre vivências de sofrimento e estratégias de defesa, provenientes do trabalhar cotidianamente com eventos de morte e seus desdobramentos, como por exemplo, o lidar com o corpo sem vida. Por fim, é imprescindível alertar futuros pesquisadores da necessidade de atenção ao cuidado de si e ao fortalecimento de redes de apoio no empreendimento em pesquisas que envolvam temas sensíveis, tais como crises suicidas, morte e trabalho. Pesquisar é trabalhar, e, portanto, insere pesquisadores em vivências de prazer e sofrimento.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Espírito Santo.

  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Aprovado sob parecer nº 2.364.745.
    Consentimento para publicação Consentimos a publicação do artigo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    15 Maio 2023
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