Acessibilidade / Reportar erro

A prática com a pulsão: do esquecimento à redescoberta

Practice with the drive: from oblivion to rediscovery

Com uma escrita ao mesmo tempo clara e complexa, didática e poética, e um pensamento rigoroso e inovador, ao mesmo tempo aberto e sistemático, usando de maneira desimpedida os dizeres de psicanalistas, filósofos, artistas e analisantes, João Perci Schiavon busca refundar a psicanálise a partir da pulsão.1 1 Perci já havia ensaiado essa reconstrução em dois livros anteriores (Schiavon, 2002, 2003) e resumiu esse esforço em um artigo (Schiavon, 2018). Esta tem sido tratada como um conceito meramente teórico, “mitologia científica”, e não como a própria pulsão enquanto noção exige: como prática clínica e uma questão de vida e morte. E como seria diferente pois, como Lacan (1979)Lacan, J. (1979). Conferência de 9 de julho de 1978. Lettres de l'École, 25(II), 219--220. disse, cada psicanalista não tem de reinventar, com sua prática, a psicanálise? E é justamente sobre prática, e, por conseguinte, avaliação constante do agir, e, mais ainda, sobre uma ciência da ação, uma ética chamada psicanálise, que deseja produzir a diferença absoluta e exige a invenção, que versa o livro que ora resenhamos.

Os psicanalistas perderam o rumo porque desconhecem a orientação imanente da sua clínica, oriunda da pulsão. De tanto se fiarem a um pensamento da representação, analisando os ditos do inconsciente, suas formações, sua lógica, as imagens e suas identificações, acabaram por se perder do filão próprio à análise, ou seja, do phylum vital que reúne esses inúmeros ditos e sua consistência ética: esqueceram-se da pulsão e seu dizer além da representação, um dizer que ex-siste a todo dito (Lacan, 1972-73/1982Lacan, J. (1982). O seminário. Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).). Influenciado por Hegel e Lévi-Strauss em uma lógica da falta, da negatividade e da estrutura, Lacan viu as intensidades pulsionais como o negativo da lógica do inconsciente. Schiavon, por sua vez influenciado por Nietzsche e Deleuze, no primeiro capítulo “Uma vida, um dizer”, evidencia que, desde Freud, e em cada ato do inconsciente que se autoriza por si, como os lapsos, sonhos, sintomas e nas produções artísticas, a pulsão é um dizer, uma vida desconhecida, uma avaliação em ato e uma afirmação primordial, originária.

A pulsão, como força constante e exigência de trabalho, tem por destino originário a sublimação, formação do inconsciente que não passa pelo recalque: eis o segundo esquecimento dos psicanalistas. Em virtude disso, concebeu-se a pulsão como uma força entre o físico e o psíquico; vivas e intensas, porém, acéfalas. Ora, Schiavon nos mostra que justamente porque a pulsão é por princípio uma entidade de fronteira, que atravessa os planos, é também lúcida e avaliativa, inteligente e intuitiva, um pensamento sempre interessado.

No segundo capítulo, “O sentir, o saber e o sentido”, o real é apresentado como ação que visa a satisfação, gozo do saber (jouissance): um saber de não senso, que não reconhece nenhuma instância fora de si para se autorizar, pois se orienta de maneira singular. O inconsciente real, pulsional, vivo (ainda que não orgânico), não reconhece a negação por ser uma afirmação primordial e reúne, por conseguinte, todo o paradoxo, que trama secretamente a vida atemporal do inconsciente. Essa orientação pragmática diz respeito a uma vida singular e impessoal — pois não possui modelo, mas inventa o seu modo de ser pelos seus atos, que implicam escolhas e decisões. O que importa para um é diferente para outro, e esse saber singular e prático que o manejo clínico com a pulsão confere à psicanálise, é, como pensou Lacan, um saber de não senso. Mas esse não sentido é apenas aparente: nasce das perspectivas antigas, superadas, da estrutura do Outro e das identificações do eu que as sustentavam, eu que perde sua soberania para se subordinar ao sujeito real do inconsciente, a pulsão.

O real é um furo da estrutura e a desterritorialização sublimatória das estruturas clínicas, que respondem ao recalque. A pulsão e seu sentido singular não pertence a esse mundo, ainda que seus efeitos sejam sentidos por esse e seja mesmo a fonte de tudo que chamamos de cultura, arte, ciência, filosofia e todos os dizeres. O real em psicanálise é o impossível, pois não pertence à ordem dos possíveis, a ordem desse mundo (simbólico-imaginário); é estrangeira, alienígena, do Fora. Contudo, como o real não é uma falta de representação, mas o que a produz, enquanto prática ele se cria e, em seu desejo, recria a realidade psíquica e social. É por isso que o real deixa de ser um problema ontológico (a naturalização do gozo de certa vertente lacaniana atual) para se tornar um problema ético, mas também estético, ou seja, sempre clínico — e com consequências políticas (Schiavon, 2020Schiavon, J.P. (2020). Nossa humanidade. Pandemia crítica. Recuperado em 11 jan. 2021 de: <https://www.n-1edicoes.org/textos/126>.
https://www.n-1edicoes.org/textos/126...
).

No terceiro capítulo, “As forças pulsionais”, não abrir mão de seu desejo é apresentado como saber escutar (ob-audire, obedecer) o saber de não senso. É a partir dele, que não serve a nenhum bem, que se medem e avaliam todos os bens. Nessa prática com a pulsão como impulso lúcido, de uma lucidez superior e vital, além do princípio do prazer e além do homem (porque é além do eu), só os graus superiores, a própria superação, importam. Ou seja, a vida busca originariamente não a morte, mas uma outra vida. Mesmo a pulsão de morte torna-se uma prática, uma ausência de exercício pulsional, de decisão e ação pela vida, ou uma confusão das linhas vitais com o meio derivado e dos significantes do Outro que mortificam o corpo. Por isso a pulsão de morte é como a micropolítica do fascismo: impulso e linha de destruição e autodestruição.

Tal como é mostrado no capítulo quatro, “O tempo da pulsão”, a pulsão de vida, a única originária, se orienta por um mais ainda, por um gozo do saber que sobrevoa diversos estratos arqueológicos, ordenando-os segundo uma hierarquia de potência, uma composição afetiva e intelectual. A temporalização pulsional se ordena segundo perspectivas vitais de discernimento, do que vem antes e depois, do que quero fazer e como fazer: um saber-fazer inconsciente que se torna íntegro ou cristalizado na ação. Pois o real ou a pulsão é como o corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari (2013)Deleuze, G., & Guattari, F. (2013). Como criar para si um Corpo sem Órgãos? In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. (2. ed.; pp. 11-34). São Paulo, SP: Ed. 34.: é um dado, mas tem de ser construído. Esse saber intempestivo só existe se exercido, se praticado, ou seja, se autorizando.

É nesse sentido que a pulsão enquanto exercício constante de sublime-ação é um gozo do saber, satisfação como um saber-fazer, como na arte, onde cada obra de um artista, ou um dito, jamais esgota o seu dizer, sua própria subjetividade artística em devir e criação (Schiavon & Pelbart, 2020Schiavon, J. P., & Pelbart, P.P. (2020, set-dez.). Subjetividade literária. Ágora, XXIII(3), 38-46.). Tal como é mostrado no último capítulo “O saber da cura”, essa subjetividade pulsional é capaz, no processo de sua (auto)produção, de avaliar seu percurso, a partir de sua condição de escolha sempre aberta, sua indeterminação — que, vista por si, é uma hiperdeterminação, uma constância que confere a uma obra e uma vida seu afeto e sua ideia, integridade ética em que sua verdade pode se dizer inteira a cada vez. Cura é o nome que se dá a esse exercício.

  • Pragmatisno pulsional: clínica psicanalítica João Perci Schiavon São Paulo, SP: n-1 edições, 2019, 336 págs.
  • 1
    Perci já havia ensaiado essa reconstrução em dois livros anteriores (Schiavon, 2002, 2003) e resumiu esse esforço em um artigo (Schiavon, 2018Schiavon, J.P. (2018, jan-abr.). A imanência analítica. Ágora, XXI(1), 116-126.).

Referências

  • Deleuze, G., & Guattari, F. (2013). Como criar para si um Corpo sem Órgãos? In Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2 (2. ed.; pp. 11-34). São Paulo, SP: Ed. 34.
  • Lacan, J. (1979). Conferência de 9 de julho de 1978. Lettres de l'École, 25(II), 219--220.
  • Lacan, J. (1982). O seminário. Livro 20: mais, ainda Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).
  • Schiavon, J.P. (2002). O caminho do campo analítico Curitiba, PR: Travessa dos editores.
  • Schiavon, J.P. (2003). A lógica da vida desejante Curitiba, PR: Criar Edições.
  • Schiavon, J.P. (2018, jan-abr.). A imanência analítica. Ágora, XXI(1), 116-126.
  • Schiavon, J.P. (2020). Nossa humanidade. Pandemia crítica Recuperado em 11 jan. 2021 de: <https://www.n-1edicoes.org/textos/126>.
    » https://www.n-1edicoes.org/textos/126
  • Schiavon, J. P., & Pelbart, P.P. (2020, set-dez.). Subjetividade literária. Ágora, XXIII(3), 38-46.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D'Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2021
  • Aceito
    08 Abr 2021
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com