O sentimento de angústia é uma forma específica e essencialmente humana de sofrimento, cuja manifestação assume, por vezes, nomes restritivos como “ansiedade” e “pânico” para caracterizar queixas de pessoas diante das exigências próprias da vida moderna. Como cientista e psicanalista, e não como filósofo ou psiquiatra, Marlos Terêncio não se limita a descrever ou a dissertar de maneira exaustiva sobre esse mal-estar constitutivo e primordial, mas o retoma confrontando-o com a vivência igualmente humana do horror. Com essa decisão, sem dúvida interessada, seu trabalho reveste-se da sabedoria metodológica, formulada como questão, que permite esclarecer e aprofundar um e outro objeto de estudo.
Os objetivos, especificados na primorosa introdução, serão cumpridos passo a passo, com rigor e grande erudição, que jamais resvala no proselitismo. Tudo tem seu lugar e não visa senão a ensinar o leitor sobre essa temática atemporal, ainda que o mundo hodierno bem pudesse constituir seu pano de fundo, não fosse o fato de que a escritura original desse trabalho de pesquisa, na forma de tese acadêmica, data de quase uma década. Publicado agora no formato de livro impresso, não deixa de ser oportuno no esclarecimento da angústia e do horror que vivemos nesses tempos ameaçadores de pandemia.
Com Freud, lembra o nosso autor, uma ligação é estabelecida entre a angústia existencial, “a dor propriamente humana de existir” (p. 22), na perspectiva filosófica, e a angústia neurótica, que “surge no quadro das patologias da alma” (p. 22), e como tal é explorada de maneira única e caraterística pela psicanálise no decorrer de sua construção. Examinada, portanto, ao longo do percurso freudiano, o problema da angústia [Angst] teria passado, no entanto, ao largo da obra máxima sobre a temática, “Inibições, sintomas e angústia” - uma primeira observação que Terêncio recupera em Lacan, juntamente com uma segunda, que localiza no pequeno, mas fundamental estudo de “psicanálise aplicada” Das Unheimliche o “eixo indispensável” para sua abordagem.
Para esse termo, assimilado por Freud de maneira própria - em uma palavra, é o caráter familiar, ainda que recalcado, que horroriza -, não há consenso em sua tradução nas principais línguas ocidentais. As alternativas não fazem mais do que enfatizar uma das acepções sempre em detrimento das demais: siniestro e ominoso, no espanhol; uncanny, no inglês; inquiétante étrangeté, inquiétant familier ou simplesmente, inquiétant, no francês; il perturbante, no italiano. Em português, foram propostos estranho, inquietante, sinistro e mesmo o neologismo infamiliar. É que as soluções de Freud estão aquém dos problemas colocados por seus esclarecimentos. E mais: a forte relação entre Unheimliche e Angst não os torna sinônimos, logo, trata-se de encontrar o “ponto central” que possa diferenciar um termo do outro.
Tampouco essa relação entre o estranho e a teoria da angústia foi explicitada por Freud em seu estudo sobre o estranho. Encontrando-a em Lacan, várias são as indagações formuladas pelo nosso autor; a tentativa de respondê-las resulta nas 256 páginas deste livro. Há naturalmente uma “questão aglutinadora”: qual a importância de Das Unheimliche para a compreensão das teorias da angústia em Freud e Lacan? E dois textos centrais: o próprio Das Unheimliche e O Seminário. Livro 10. A angústia, de Lacan. Todos os principais textos freudianos sobre a angústia (desde os ditos pré-psicanalíticos, passando pelo livro dos sonhos e pelos casos clínicos) foram igualmente analisados. Enfim, três grandes eixos, separados por capítulos, constituem objetos de análise e discussão: a relação do sujeito com o outro especular, com o complexo de castração e com o desejo do Outro.
A análise linguística do termo Unheimliche leva Freud a privilegiar a literatura do horror como lugar de aparecimento desse afeto, em particular “O homem da areia”, de Hoffmann, o que, na esteira do mestre e de uma longa tradição da psicanálise, faz Terêncio se valer não só da literatura, mas também das artes plásticas, do cinema e da mitologia, convicto de que “é o artista que sabe mapear, muito antes do psicanalista, os recantos mais sombrios do psiquismo” (p. 24). Trata-se de resgatar a ficção do horror para lhe dar direito de cidade, no âmbito da psicanálise, como expressão dos “dilemas subjetivos provocados pela angústia” (p. 24). E ao assim proceder, fica demonstrado que a relação entre angústia e Unheimliche não é tão óbvia como possa ter parecido aos psicanalistas; e merece ser explorada como faz o nosso autor, mediante a escuta das formações imaginárias de seus pacientes e sua “curiosidade psicanalítica” pelas figuras do horror, cuja abordagem savante foi se constituindo na ficção, sobretudo ao longo dos últimos três séculos.
Como Freud, que não diferenciava a psicologia individual (o viés clínico) da psicologia social, essa obra persegue ainda uma “reflexão mais ampla sobre o que nos horroriza no contato primordial com o Outro” (p. 25), ciente de que a psicanálise tem algo a dizer sobre os dilemas da cultura ou da civilização.
Nos cinco capítulos desse livro são abordados, sucessivamente, o problema da angústia na obra freudiana; o detalhamento de Das Unheimliche (1919), incluindo o estudo de Jentsch e uma introdução da literatura fantástica e da ficção de horror em geral e, em particular, do cinema; o aprofundamento das relações entre a angústia e o Unheimliche através do exame dos conflitos entre o sujeito e o seu semelhante, mediante a teoria do narcisismo (Freud)1Freud, S. (2010). O infamiliar. In Obras completas. Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919). e o estádio do espelho (Lacan), visando esclarecer o tema do duplo, essencial na ficção do horror; a temática da castração em Freud (diferença entre os sexos, figura do pai castrador, horror ao feminino) no intuito de compreender as relações entre o estranho e a angústia, fundamentando-se na mitologia, na literatura, no cinema e nas artes plásticas; enfim, as contribuições de Lacan à teoria da angústia, em particular, sobre o estranho e o conceito de desejo do Outro: na condição de subtemas, a divisão do sujeito, o objeto a, o Che vuoi?, os pesadelos do ponto de vista do gozo do Outro, o duplo real e a fantasia originária do retorno ao ventre materno, para desaguar no debate sobre a “possibilidade de superação da angústia por meio do acesso ao desejo a partir da travessia da fantasia fundamental” (p. 27).
Terêncio tem toda razão em afirmar que o seu é um percurso singular, levando em conta outros possíveis, na abordagem de uma temática-chave, a angústia, para a clínica e a teoria psicanalítica. Mas a maneira e como o faz, tomando como “fio condutor” a especificidade psicanalítica que constitui o estudo do sinistro, do estranho, do inquietante, do estranho familiar, sem dúvida cativa o leitor, estimula sua curiosidade e o leva a extrair todo proveito de cada passagem desse livro.
Referências
- Freud, S. (2010). O infamiliar. In Obras completas Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919).
- Hoffmann, E. T. A. (2006). O homem de areia. In F. M. da Costa (Org.), Os melhores contos fantásticos (pp. 75-106). Nova Fronteira.
- Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
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Recebido
17 Out 2022 -
Aceito
09 Dez 2022