O futuro da psicanálise é objeto de preocupação desde Freud, mas mesmo depois da morte de seu mentor ela sobreviveu e disseminou-se no campo social. Nas últimas décadas, esta difusão é caracterizada por um contraste, pois a psicanálise apresenta vitalidade em países da América Latina e em outros, como a China, mas em certos contextos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, passa por uma crise que se encontra relacionada a uma nova modalidade de gestão da saúde mental.
Neste cenário, foi publicado na França, em 2010 - e este ano, no Brasil -, o livroManifesto pela psicanálise, que já revela no título seu caráter crítico e patente.O trabalho é um desdobramento do Manifesto, organizado pelos mesmos autores em fevereiro de 2004, cujo ponto de partida foi a emenda apresentada pelo deputado Accoyer em outubro de 2003, cuja proposta visava regulamentar o uso do título de psicoterapeuta. A promulgação dessa lei de saúde pública, em agosto de 2004, constituiu o artigo 52, que, por sua vez, apontava diretamente para os psicanalistas. A possibilidade de inscrevê-los na denominação genérica de "psicoterapeutas" despertou a preocupação de alguns, uma vez que a normalização empreendida suporia a submissão da psicanálise ao poder público.
Diante dessa situação, outros psicanalistas ficaram indiferentes, seja por acreditarem que ocupam uma posição de "extraterritorialidade" em relação à psicologia, seja por apostarem que a psicanálise é imortal. Alguns mostraram-se ingênuos por não perceberem a relação entre o planejamento burocrático da "saúde mental" e o controle das práticas psicoterápicas. Houve, também, aqueles que contribuíram para o projeto de lei, por ficarem seduzidos com as supostas vantagens de um estatuto profissional garantido pelo Estado - por exemplo, acreditaram que a psicanálise teria maior adesão e que se veria protegida dos "charlatães", ilusões que caem por terra uma vez que os autores sustentam com unhas e dentes que seria a psicanálise quem pagaria o preço de tal regulamentação.
O que está em jogo é que o movimento psicanalítico mostrou-se bastante dividido. Por exemplo, a École de la Cause Freudienne (ECF) assumiu uma postura ambígua, o Grupo de Contato não se opôs ao artigo 52 e a Association de Psychanalyse Jacques Lacan (APJL) o recusou radicalmente. Para investigar a questão, os autores revisitam alguns marcos do movimento psicanalítico francês, como a fundação da École Freudienne de Paris (EFP), em 1964, e sua dissolução, em 1980. A partir disso, lançam a hipótese de que o fato de alguns psicanalistas terem participado da elaboração do projeto de lei revela que a dissolução da EFP não foi concluída. Ademais, defendem que a reação desorganizada dos psicanalistas evidenciou que não houve um questionamento sério no interior do campo psicanalítico, o que impossibilitou a constituição de uma frente única que poderia reafirmar a singularidade da psicanálise em relação aos "serviços dos bens".
Algumas rupturas e cisões foram fundamentais para o futuro da psicanálise, o que os autores qualificam como momentos, inspirados no historiador da filosofia política J. G. A. Pocock, o qual define um momento como o período no qual uma entidade teórica ou institucional corre o risco de desaparecer e que a intervenção teórica de um é crucial para que os contemporâneos percebam tal perigo e possam reagir a ele.
Pois bem, a partir daí, a ideia sustentada no livro é de que estamos diante de um terceiro momento, no qual a psicanálise se vê ameaçada. O primeiro momento diz respeito ao risco de a psicanálise ser subordinada ao saber médico, contextualizado em 1926, quando Freud escreve A questão da análise leiga. Os autores retomam o caso Reik, que foi acusado de exercer a psicanálise sem ser médico, para enfatizar que se tornar psicanalista não é uma questão de diploma, mas, sim, de formação. Esta questão é examinada de forma pormenorizada no decorrer do livro, na medida em que os autores se opõe, de modo frontal, à ideia de que a legitimação da "passagem do analisante à psicanalista" possa ser dada pelo Estado, o que é um ponto nevrálgico do debate suscitado pela Lei de 2004.
O segundo momento em que a psicanálise se viu ameaçada está circunscrito a 1956 e refere-se ao desenvolvimento da "Psicologia do eu", que desencadeou outro movimento como contrapartida: o "retorno a Freud", empreendido por Lacan. Uma crítica incisiva sobre as pretensões científicas da psicologia foi esboçada naquele momento, no entanto, o alcance da psicologia só encontrou seu apogeu 30 anos depois. Sendo assim, dá-se o terceiro momento, marcado pela aprovação do artigo 52, que demarca o perigo da psicanálise ser incluída no império da psicologia.
Para aprofundar essa discussão, os autores analisam a coadunação entre neoliberalismo e as novas modalidades de gestão do social que visam promover a "saúde mental positiva". E investigam como as ciências humanas contribuíram para a instauração de uma novagovernamentalidade que visa produzir "sujeitos do governo", sinalizando que é nessa conjuntura que a inflação do saber psicológico se impõe. Assim, são conduzidos à hipótese de que a questão da regulamentação das psicoterapias é sintomática de um novo modo de organização social. Para sustentá-la, analisam como certas categorias (como "vítima" e "trauma"), que estão sendo investidas na vida política por meio de "prescrições da fala", provocam efeitos nos modos de subjetivação. E mais: indicam como essa nova gestão humana articula-se com a definição de novos limiares de normalidade, com a complementariedade entre os "psicotrópicos" e as "psicoterapias" e com as políticas sanitárias de segurança. Desse modo, a constituição de uma bolsa de valores "psi" é pensada em relação às atuais variantes do discurso capitalista, o que implicou, também, na problematização da relação entre psicanálise, ciência e mercado.
Reconhecendo que certas práticas clínicas colocam em xeque algumas das premissas éticas da psicanálise e que esta não é imortal, os autores procuram enfatizar suas especificidades. Por exemplo, sublinham que a psicologia visa a unidade do sujeito, enquanto a psicanálise postula a divisão do sujeito, na medida em que ela supõe um saber inconsciente. Criticam a proposta de Lagache de inscrever a psicanálise em uma psicologia geral, ressaltando que a psicoterapia visa erradicar o sintoma para promover uma vida harmoniosa, diferente da psicanálise, que almeja extrair a verdade do sintoma. Os autores indicam que isso supõe que o analista abdique do desejo de curar, pois a cura implica que algo volte a uma ordem anterior, isto é, à normalização.
Assim, os autores defendem que o ganho que uma análise pode propiciar está ligado à forma pela qual o sujeito vai restabelecer o sentido de seu desejo inconsciente, o que dificilmente implicará em um benefício capitalista. Afinal, a psicanálise é uma ética e, como tal, não pode se submeter a qualquer tipo de gestão administrativa ou utilitarista, como a exigência de rapidez e de avaliação.
No que se refere a isso, outra problemática importante é abordada: muitos psicanalistas tornaram-se os coveiros da psicanálise, uma vez que tentam fazer com que esta assuma uma postura servil em relação ao discurso dominante. Mas, mesmo que se negligencie o inconsciente e que o Estado tente controlar a psicanálise, os autores apostam que seu campo ainda está aberto, afinal, os sujeitos, enquanto seres de linguagem, continuam atravessados por seus inconscientes e suscetíveis ao recalque.
Em suma, Manifesto pela psicanálise encontra sua pertinência crucial por revelar um novo lugar que a psicanálise vem sendo convidada a ocupar na atual lógica do mercado da Saúde e da Segurança, ressaltando, como contrapartida, a irredutível singularidade da experiência analítica. Assim, ele fornece ferramentas preciosas para problematizarmos a relação entre espaço social contemporâneo e psicanálise, além de evidenciar que esta não pode se manter como prática sem tomar uma posição no campo de tensão dos discursos.
E é essa tomada de posição dos autores que faz desse Manifesto pela psicanálise um livro tão belo, corajoso e imprescindível. Devemos aclamar a iniciativa da Civilização Brasileira por ter traduzido a obra, e também a dedicação de Joel Birman, organizador da Coleção Sujeito e História, para que fosse publicado no Brasil.
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Natasha Mello Helsinger - Psicóloga (PUC-Rio), mestre e doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ), membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, nathelsinger@gmail.com.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
06 Jul 2015 -
Aceito
27 Jul 2015